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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psychê v.9 n.15 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Angústia e pensamento

 

Anxiety and Thinking

 

 

Ana Maria RudgeI

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

São estudadas as relações entre o pensamento e a angústia na teoria freudiana. Defendese a necessidade de incluir a alucinação negativa como uma das formas da alucinação primária, para se dar conta da dificuldade encontrada na clínica de se proceder a julgamentos que levem a reconhecer situações hostis. Após uma revisão do tema, concluise que a segunda teoria freudiana da angústia é uma formulação que dá conta de forma mais adequada do fato clínico em questão.

Unitermos: Angústia, Sinal de angústia, Pensamento, Desprazer, Afeto


ABSTRACT

The relationship between thinking and anxiety in the Freudian theory is studied. I argue for the convenience of including the negative hallucination as one of the forms of the primary hallucination, thus enabling an explanation for the difficulty, found in psychoanalytic clinic, of performing judgments that lead to the recognition of hostile real situations. After a revision of the subject, the second Freudian theory of the anxiety is considered a formulation that gives a more adequate account of the clinical fact in question.

Keywords: Anxiety, Signal of anxiety, Unpleasure, Thinking, Affect


 

 

Na longa entrevista com o historiador marxista Eric Hobsbawn (2000), que veio a constituir o texto do livro O novo século, Antonio Polito, o jornalista italiano que conduziu a entrevista, buscava delinear as tendências do novo século, que na época estava para começar.

Esclarecendo que não é como “astrólogo ou oráculo” que se dirige a Hobsbawn (no que os psicanalistas poderiam identificar uma simples negação), Polito admite, entretanto, que é pela convicção manifestada pelo renomado historiador – de que prever o futuro, dentro de certos limites, é uma legítima preocupação de quem se dedica a esclarecer o passado – que o procura com essa finalidade. Conta então ao leitor que o sogro de Hobsbauwn, que morava em Viena, fora capaz de perceber, em 1937, que a Áustria terminaria por ser anexada à Alemanha nazista, o que lhe permitiu transferir a tempo seus negócios para Manchester. Assim, ressalta a importância da capacidade de prever os acontecimentos futuros.

O tema em discussão, neste momento da entrevista, é o valor do estudo da história e da identificação de tendências e problemas relevantes do passado, para o prognóstico do futuro, sempre probabilístico.

Para o psicanalista, entretanto, a capacidade de prever um acontecimento mal vindo, como a anexação da Áustria pela Alemanha nazista, não depende apenas de um saber adquirido pelo sujeito em sua vida, seja como historiador ou sociólogo, ou em sua experiência cotidiana. Os julgamentos corretos não podem ser vistos apenas como frutos de um pensamento lógico.

Não se trata de uma questão meramente cognitiva, mas afetiva. O julgamento que nos leva à previsão de acontecimentos dolorosos é, em si mesmo, penoso. Foi seu juízo correto que confrontou o sogro do historiador com a tarefa de separar–se de muitas das pessoas e coisas amadas de sua vida, e com a necessidade de enfrentar todo o trabalho, as dificuldades e a dor envolvida em reorganizar sua vida em outro continente.

A capacidade de pensar depende da capacidade de tolerar angústia. Essa evidência da experiência clínica reflete–se no papel fundamental que as noções de angústia e defesa assumiram na teoria psicanalítica. Em 1926 Ferenczi escreveu um artigo chamado O problema da aceitação das idéias desprazerosas, em que discute exatamente como o sentido de realidade marcha contra uma das tendências mais importantes da vida psíquica, que é a de fuga da dor e recalque das idéias que trazem desprazer.

Baseando–se no pequeno texto de Freud, Negação (1925), Ferenczi considera que justamente porque a aceitação de uma idéia desprazerosa é tarefa penosa, ela se dá em duas etapas. Inicialmente tenta–se negar a idéia como um fato, e depois faz–se um esforço para negar essa negação, de sorte que o reconhecimento do mal sempre se faz por meio de uma dupla negação.

Isso pode ter uma tradução quase literal na expressão verbal “Jamais je n’oublierai cette nuit” – Elie Wiesel emprega a dupla negação, na promessa que relata ter feito a si mesmo na noite em que chegou a Auschwitz, promessa que o “comprometeu” a escrever La nuit (1958), seu primeiro livro, o relato dessa experiência.

A experiência clínica mostra que a compensação oferecida pelo amor de transferência é um motivo para que analisandos aceitem idéias que lhes provocam angústia1, idéias que, sem a moldura analítica e o apoio garantido pelo amor de transferência, não se fariam presentes. É possível aceitar a angústia, desde que isso sirva para trazer uma compensação. Essa renúncia tanto pode vir a garantir algo positivo, como o amor, quanto evitar uma experiência dolorosa, um sofrimento ainda maior, como foi o caso na história do sogro de Hobsbawn.

É porque a capacidade de conviver com uma idéia dolorosa pode evitar uma angústia ainda maior, que o psiquismo pode se decidir a aceitar a idéia e a angústia que ela carreia sem desmentir a busca ao prazer como uma tendência fundamental do psiquismo. Essa capacidade é a que se chamou de princípio de realidade, e é um aprimoramento do princípio do prazer, que inclui a inibição e o adiamento de descarga para que o pensamento se faça possível. O princípio de realidade nada mais é do que o princípio de prazer modificado, em conseqüência das experiências, permitindo o pensamento e o julgamento.

O reconhecimento da realidade foi concebido desde o início por Freud (1900) como dependente do adiamento do investimento alucinatório do objeto e da descarga. O adiamento permite um rodeio, que é o próprio pensamento, entre a idéia do objeto desejado e seu encontro na realidade.

O pensamento envolve um esforço de inibição e, portanto, a capacidade de suportar uma medida de desprazer. O desprazer resultante da tensão imanente ao pensar em canto algum se evidencia de forma tão clara quanto no prazer ligado à piada. Ela provoca a descarga prazerosa do riso à medida que, ao recair no nonsense, dribla o pensamento lógico e com sentido. A energia posta a serviço da inibição pode ser desperdiçada alegremente.

Ao abordar em diversas ocasiões a questão do reconhecimento da realidade, Freud dirá que é porque o princípio do prazer é incapaz de conseguir satisfação por meio de mecanismos alucinatórios e solipsistas, que o psiquismo empreende a tentativa de elaborar uma concepção das circunstâncias reais, mesmo que à custa de desprazer. Os mecanismos alucinatórios equivalem a um primeiro julgamento, aquele de atribuição. Basta que algo seja prazeroso para que tenha lugar na realidade psíquica, e desprazeroso para dela seja rejeitado.

O juízo de existência é logicamente posterior ao de atribuição, no modelo freudiano. O “recalque” das idéias dolorosas é substituído por um julgamento que se quer imparcial, e que decide se uma idéia é verdadeira ou falsa, ou seja, se está ou não de acordo com a realidade.

Sendo a alucinação primária positiva – única presente nas formulações freudianas desde 1900 – a que põe em presença os objetos do prazer nesse primeiro juízo de atribuição, qual a sua contrapartida, a alucinação que repele os objetos maus?

Freud (1917) indicou rapidamente, em pé de página do texto Um suplemento metapsicológico para a teoria dos sonhos, que a alucinação primária poderia ser negativa. Sem explorar as conseqüências dessa idéia para a reformulação de seu modelo metapsicológico, que são consideráveis, deixou essa pista para ser desenvolvida posteriormente.

Hoffer (1952) partiu dessa sugestão, definindo a alucinação negativa como uma surdez sensorial e afetiva, que toma como sendo a forma primordial do recalque. Desde então outros autores (ver Monchaux, 1962) perceberam que a alucinação primária (que não é uma verdadeira alucinação, mas uma construção teórica) deve ser considerada não apenas como positiva, mas também como negativa, se esse modelo teórico pretende dar conta da repulsa pelas idéias que provocam angústia.

A noção de alucinação remete comumente a uma falha ligada à percepção. Mas o modelo da alucinação primária não a considera como falha perceptual; de início tudo é dado à percepção, tudo está presente. O critério que distingue o princípio do prazer e o de realidade é o juízo de existência: a possibilidade de julgar o que está presente apenas no pensamento, e o que está presente no pensamento e também na realidade. Se tomamos seriamente a idéia de alucinação primária negativa – a surdez sensorial e afetiva para o que é doloroso –, o melhor termo para ela não seria “recalque”, mecanismo que incide sobre uma tendência desiderativa mas conflituosa. O recalcado, como é uma tendência desiderativa, tenta sempre retornar, o que não se dá necessariamente com o que sofre alucinação negativa. Esta implica uma falha no julgamento de existência com relação aos indícios que anunciam a vivência dolorosa, a qual não tem necessariamente laços com o desejo.

Green (1998, p. 658), um autor que tem avançado na conceituação da alucinação negativa, define–a como algo que não incide apenas sobre a percepção de dados sensoriais, mas especialmente sobre a percepção de pensamentos. Na alucinação negativa os pensamentos são verdadeiramente apagados, de forma que não se confunde com o recalque. Sabemos que, para Freud, os pensamentos só podem se tornar conscientes quando se articulam a traços de palavras. Quando as representações verbais são alvo da alucinação negativa, por meio desse expediente fica obstruído o funcionamento do juízo de existência.

A experiência clínica que corresponde a isso é das mais corriqueiras: a de ouvirmos no dizer do analisando alguma situação de risco que está pairando sobre sua vida, sem que ele extraia dos indícios de que dispõe as conclusões necessárias para se proteger. Nem sempre, a meu ver, isso aponta para uma pulsão autodestrutiva. A dificuldade de enfrentar a angústia a que o reconhecimento da situação levaria parece ser, muitas vezes, a razão da surdez afetiva.

A falha no julgamento está presente tanto na alucinação positiva quanto na negativa.

O pensamento era para Freud uma espécie de ação, cuja principal meta é obter a satisfação pulsional e evitar a frustração. A tardia aparição, apenas em 1917, da menção à importância da alucinação negativa deveu–se ao longo período de sua produção teórica em que a sexualidade e o desejo formavam o território quase exclusivo de sua atenção clínica. A angústia era tomada como secundária à sexualidade, não tinha uma gênese autônoma. Essas concepções iniciais sobre o desprazer e o pensamento mantiveram–se na teoria freudiana, mas não se pode apreciá–las senão à luz da teoria da angústia enunciada em 1926, que vai englobá–las, ao mesmo tempo em que as remaneja, impondo uma diferente perspectiva. Esse remanejamento permitirá articular o papel da repulsa a pensar no que causa angústia de forma mais rigorosa.

Desde Freud muito se tem feito para aprofundar suas formulações sobre as relações entre pensamento e angústia. As contribuições de Bion acerca do aparelho de pensar são fundamentais3. Não entrarei nesse campo, entretanto, já que meu objetivo aqui é explorar, com a ajuda de comentadores, o desenvolvimento do tema na metapsicologia freudiana, objetivo que justifico recorrendo a Green. Com efeito, esse autor defende que se encontram no trabalho de Freud bases que passam muitas vezes despercebidas para o conceito do negativo (no qual propõe incluir recalque, recusa, negação, foraclusão ou rejeição e cisão). Elas foram desenvolvidas de formas diversas e em diferentes contextos por Lacan, Winnicott e Bion. Para Green (1998, p. 658), não faz sentido discutir prioridades, já que essas diferentes contribuições não derivaram uma da outra, pouco se comunicaram entre si e fazem parte de corpos teóricos diversos. Se alguma correspondência pode–se encontrar entre elas, isso se deve a que todas derivam de pressupostos básicos de Freud. Esse argumento não só nos dá uma medida da dificuldade de circular de um autor para outro, sem uma especial atenção para evitar as condensações e a falta de rigor, como apóia a tentativa de esclarecer o tema na obra freudiana, de vez que essa é a base necessária para o entendimento de todas as diferentes contribuições.

 

A teoria da angústia

A interlocução de Freud com Rank, tal como apresentada em Inibição, sintoma e angústia, explicita com clareza as divergências entre os dois autores, mas só nas entrelinhas permite ler as convergências. Quando abandona a teoria de que a angústia é transformação de libido, descarga de energia sexual não empregada, em conseqüência do recalque ou mesmo de circunstâncias da vida (neurose atual), Freud dá um passo que obviamente é resultado da importância concedida à contribuição de Rank (1924).

Inaugura a concepção da angústia como anterior ao recalque e inextricavelmente ligada, não à sexualidade, mas ao desamparo. Essa angústia é conseqüência da prematuridade do infante, de sua extrema dependência e da importância assumida pelo adulto, por serem seus cuidados indispensáveis para que a criança não morra. É, na verdade, tal como na proposta de Rank, basicamente uma angústia de separação e de desproteção, da qual a angústia de castração é apenas uma das versões. Se não está excluída a possibilidade de a angústia originar–se de uma transformação da libido, a partir de então a angústia tem uma gênese autônoma, independente da sexualidade, e é basicamente angústia de aniquilamento.

A angústia, para Rank, é causada pelo trauma que é o nascimento, tomado por ele como uma experiência de separação. Ao mesmo tempo em que explicitamente recusa a teoria do trauma do nascimento proposta por Rank, Freud parece promover, contraditoriamente, a experiência do nascimento a um importante papel em sua teoria da angústia, como um protótipo. Que tipo de protótipo? Protótipo de quê?

Para esclarecer qual o papel concedido por Freud ao nascimento na economia da angústia, assim como a diferença que, ao mesmo tempo, enfatiza entre sua proposta e a teoria de Rank, é importante entender o apoio que Freud busca na teoria enunciada por Charles Darwin (1872) sobre a expressão de emoções.

Darwin considera que as expressões de emoções são um universal humano, assim como assinala certas similaridades entre a expressão emocional no homem e em outros mamíferos. Assim, visa indicar que o comportamento expressivo humano é, do mesmo modo que sua anatomia e fisiologia, fruto da evolução.

O que esse autor chama de expressão de emoções são movimentos e ações expressivos típicos, que se fixaram na espécie ao longo da evolução filogenética. Ora, estas ações expressivas das emoções desenvolveram–se segundo alguns princípios. Um deles é que os movimentos que foram repetidos inúmeras vezes, por serem úteis para obter gratificação ou alívio, tornaram–se tão habituais que se repetem quando a mesma sensação é sentida, mesmo quando sua utilidade não mais existe. Outro princípio explicativo é que o sistema nervoso central, quando excitado, atua diretamente sobre o corpo de forma involuntária. Nessa ocasião, a direção da força nervosa toma canais predeterminados para o corpo, resultantes da constituição do sistema nervoso.

As ações resultantes são de ordem fisiológica, e independentes da vontade. Os tremores, por exemplo, são movimentos involuntários e pouco expedientes para lidar com as situações de medo. Há casos, entretanto, em que Darwin atribui ao hábito as reações nervosas que levam aos movimentos. Um exemplo é o movimento comum nas crianças em sofrimento, e que não se conserva na idade adulta, de apertar os olhos. Darwin considera que este é um movimento involuntário, que pode ser explicado pela necessidade de proteger os vasos oculares da tensão provocada pelo sangue que flui para a cabeça quando se grita muito alto.

Os movimentos pelos quais as emoções se expressam são independentes da vontade do indivíduo, porque os mais importantes deles são inatos e herdados. Entretanto, em momentos anteriores da evolução da espécie, eles foram executados muitas vezes voluntariamente e com um objetivo apropriado. Assim, os animais que lutam com os dentes têm o hábito de encolher as orelhas para junto da cabeça quando estão zangados, mesmo que não tenham a intenção de brigar, porque seus antepassados o faziam voluntariamente para proteger suas orelhas dos dentes do inimigo. A expressão de dor por meio dos gritos altos e guturais justifica–se pela suposição de que os animais jovens, quando angustiados ou em perigo, conseguiram com essa reação a atenção de seus pais para ajudá–los.

Ao tomar a situação de nascimento como protótipo da angústia, sabemos que Freud recusa a posição de Otto Rank quanto ao papel central das impressões causadas pelo trauma do nascimento nas situações de angústia posteriores. Argumenta que não pode haver recordação nem da paz intra–uterina, nem do traumatismo do nascimento. A idéia de Rank de que as fobias do escuro ou da solidão reativariam o trauma do nascimento não consegue sua aquiescência, já que considera que a criança não teve a vivência de separar–se da mãe, pois desconhecia inteiramente, ao nascer, sua existência como um outro ser.

Para Freud não se trata, portanto, de tomar o nascimento como o melhor exemplar psíquico da angústia, mas de justificar dentro das teses darwinianas, que sempre lhe foram caras, os movimentos involuntários e fisiológicos de descarga de tensão que caracterizam a angústia em nossa espécie: taquicardia, respiração acelerada e gritos.

No ideário evolucionista, aceita–se que as várias situações de vida evocam ações e reações diversas. Algumas são úteis e promovem a vida, enquanto outras não o fazem.

As ações expressivas de emoções possuem, dentro desse modelo, o cunho de programas que foram eficientes em promover a solução de problemas na história das espécies. Tomando em conta esta posição, é fácil entender o argumento defendido por Freud em Inibição, sintoma e angústia. Os gritos, a taquicardia e a respiração acelerada – reações estereotipadas, involuntárias e herdadas de expressão de angústia – foram fixadas na espécie no momento do nascimento porque são eficientes para ativar os pulmões do bebê.

Freud não admite que o psíquico esteja em jogo aqui. As ações expressivas da reação de angústia que foram funcionais no nascimento são, para ele tal como para Darwin, inatas e herdadas, nada têm a ver com a história singular de um sujeito. Desde o nascimento, e por toda a vida, sua manifestação será automática e sem controle, o que demonstra que o aprendizado não tem a ver com essa reação. A reação de angústia irá perdurar sem modificações ao longo da vida, assim como a taquicardia nos momentos de raiva, o ruborizar nas ocasiões de vergonha, as lágrimas na tristeza. Trata–se da fisiologia da angústia.

A reação automática de angústia é comparada por Freud a um ataque histérico universal, típico e inato (1926, p.133), porque assim como a conversão histérica, e de acordo com a teoria de Darwin, ela se apóia em uma reminiscência. É necessário especificar que no caso da angústia automática, a reminiscência que se atualiza é da espécie, e não do indivíduo.

A reação de angústia é, portanto, caracterizada em termos fisiológicos como uma descarga para o soma por vias típicas. Ela é isso, mas é mais. Sendo descarga e movimento no nível do corpo, ela é algo que o sujeito sente, e que por isso mesmo, funciona como um sinal. Sinal para o eu.

Vimos anteriormente que o pensamento para ser percebido deve se associar aos traços da fala, que envolvem movimentos mitigados do corpo. Da mesma forma, a angústia é um sinal, permite que uma qualidade do mundo psíquico seja reconhecida, porque também é movimento corporal.

Retroativamente podemos perceber que entre os diversos sentidos em que Freud utiliza o termo afeto, um deles é o de descarga ou reação automática. É este que justifica a afirmativa, presente nos textos metapsicológicos, que não é da natureza dos representantes afetivos da pulsão ser inconscientes. Isso porque os afetos são sempre experimentados como manifestações corporais, ainda que as razões de seu desencadear possam ser inteiramente enigmáticas, o que é especialmente o caso quanto à natureza da angústia.

As manifestações corporais da angústia dão inicialmente um sinal para os adultos, que podem interpretá–las antes mesmo que tenham qualquer sentido para a criança, e responder construindo um sentido para elas. Graças a esse processo, essas mesmas manifestações se tornarão, gradativamente, também um sinal para o eu.

É como um sinal para o eu que a função da angústia é destacada em 1926. Entretanto, não é apenas a angústia, mas todos os afetos que são concebidos por Freud como uma possibilidade de o psiquismo tomar conhecimento do que nele se passa. Percebemos sem dificuldade as nossas experiências, mas os eventos internos ao psiquismo não são facilmente percebidos. Para que os processos psíquicos, os pensamentos, possam fabricar “sinais de qualidade” que os tornem perceptíveis, há duas condições. Ou que eles se transformem em acontecimentos no corpo, externos ao psiquismo, como as reações de angústia e os afetos em geral, ou que eles se associem a palavras, que emitem sinais de qualidade, por serem na teoria freudiana também movimentos do corpo. Afinal, o pensamento é para Freud fala mitigada. É pelo fato do pensamento acompanhar–se de movimentos corporais da mesma ordem dos que são necessários ao falar, embora em escala menor, que os processos psíquicos, em si mesmos inconscientes, podem se tornar conscientes: “processos internos no eu podem também adquirir a qualidade de consciência. Esse é o trabalho da função da fala”2 (Freud, 1940, p. 162).

Seja leve ou poderosa, ligada a alguma representação ou livremente flutuante, toda a angústia é acontecimento no corpo. Como diz Lacan:

De que temos medo? Do nosso corpo. É o que manifesta esse fenômeno curioso sobre o qual fiz um seminário durante um ano e que se chama a angústia. A angústia é, precisamente, algo que se situa em nosso corpo, por outro lado, é o sentimento que surge da suspeita que nos embarga de que nos reduzimos ao nosso corpo (1988, p. 102).

Por outro lado, toda a notícia que temos dos processos psíquicos nos vem do corpo. O que singulariza, portanto, a angústia sinal; o que a diferencia da reação de angústia ou angústia automática? É o fato de que a angústia sinal é a angústia mitigada, inibida, e a inibição permite que os indícios do que é mal vindo possam ser reconhecidos e se tornarem manejáveis pelo pensamento. Essa antecipação permite evitar uma angústia maior, o naufrágio na angústia.

O valor da angústia sinal é que ela possibilita o trabalho do pensamento para evitar o objeto hostil, a experiência danosa que se pôde antecipar. Mas para que ele possa operar, é necessário que a alucinação negativa seja inibida, da mesma forma como a alucinação positiva deve ser inibida para que o objeto real possa ser encontrado.

O verso de Ana Cristina César, que Fuks (2001, p.9) escolheu como epígrafe de suas notas sobre a angústia – “angústia é fala entupida” – , evoca em sua forma poética as duas dimensões antagônicas da angústia. Primeiramente, que a angústia é fala e, tal como a fala, é um dos caminhos pelos quais podemos ter alguma notícia, sempre precária, dos eventos psíquicos. Depois, ao designá–la como fala entupida, o verso remete a uma outra face da angústia: quando excessiva, angústia traumática, ela repele o pensamento. É por esse motivo que o manejo da angústia é uma função absolutamente primordial do trabalho do analista, já que a interpretação, o próprio analisando a toma como tarefa, ao se escutar falar.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Ana Maria Rudge
Av. Rui Barbosa, 532 / 1101 – 22250–020 – Flamengo – Rio de Janeiro/RJ
tel: (21) 2551–4268
email: frbelo@terra.com.br

 

recebido em 09/07/04
versão revisada recebida em 10/09/04
aprovado em 14/09/04

 

 

Notas

I Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle; Professora do Departamento de Psicologia da PUC–RJ; Pesquisadora do CNPq; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.
1 Tausk (1924) parece ter sido o primeiro a usar o termo compensação para referir–se a esse mecanismo que já está implicado na obra de Freud em diferentes contextos, sem que o termo seja empregado.
2 Internal processes in the ego may also acquire the quality of consciousness. This is the work of the function of speech.
3 O pensamento em Bion (1962) se aproxima do que Freud chamava princípio de realidade. O aparelho de pensar tem sua atividade deslanchada pela frustração. Mas o aparelho para identificação projetiva pode assumir seu lugar, o que vai depender de se o que vai predominar é a modificação da situação ou a evasão da frustração. A tolerância à frustração é a chave básica, e se for suficiente pode–se aprender com a experiência. Vemos que efetivamente esse desenvolvimento de Bion é bastante fiel aos pressupostos freudianos.