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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psychê v.9 n.15 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

A toxicomania e o sujeito da psicanálise1

 

Drug-addiction and the subject of psychoanalysis

 

 

Ana Paula Lacorte GianesiI

Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A estrutura deste trabalho estabelece a intenção de discorrer, a partir da clínica com o sujeito da psicanálise, sobre os termos que envolvem o fenômeno da toxicomania. Com o foco voltado ao sujeito, à teoria e ao método psicanalítico, realizo em princípio incursão relativa a um modo de concepção da manifestação toxicomaníaca, destacando o termo toxicomania. O texto culmina nas indagações psicanalíticas referentes à existência do sujeito toxicômano, em conjunto com algumas considerações expostas por meio da apresentação de fragmentos de um caso clínico a respeito da relação entre o sujeito e o objeto droga.

Unitermos: Sujeito, Psicanálise, Toxicomania, Toxicômano, Droga.


ABSTRACT

This work on psychoanalysis explores concepts involved with the phenomenon of drug-addiction. With the focus turned to the subject of psychoanalysis, psychoanalytical theory and the psychoanalytical method, we explore a perception of the drug-addiction phenomenon. The text concludes with psychoanalytical investigations about the existence of the drug-addicted subject and with considerations on the relationship between the object drug and the subject.

Keywords: Subject, Psychoanalysis, Drug-addiction, Drug-addicted, Drug.


 

 

O assunto toxicomania é neste texto recortado pela ótica psicanalítica. A eleição de determinado caminho na abordagem de um tão tema abrangente mostra-se bastante importante, e o que se depreende desta delimitação de interesses logo no princípio pode se revelar em uma interrogação: o que a psicanálise tem a dizer sobre a toxicomania e os termos que a envolvem?

A tentativa de denodar a toxicomania segundo a psicanálise recai sobre uma proposta de desdobramento da primeira. Isto porque parece haver três termos dedutivamente indicados marcando as discussões sobre essa temática: toxicomania, droga e toxicômano. Mesmo correndo risco de pecar por algum didatismo, já que os termos envolvidos estão interligados e inseridos em um mesmo fenômeno, cada um mostra merecer destaque, dada a proposta de abordá-los a partir do campo psicanalítico. Assim, discorrerei inicialmente sobre o primeiro termo referido.

Compõem o espaço de reflexão acerca da toxicomania escritos que apontam certo consenso sobre o lugar desse fenômeno na teoria psicanalítica. E são justamente possíveis vozes consoantes que o presente texto tem por fim transmitir.

Como meio para chegar a um traçado inicial da leitura deste trabalho acerca da toxicomania proponho, em princípio, uma breve incursão histórica em busca da origem dessa terminologia. O termo toxicomania advém do discurso proferido pela psiquiatria, que em meados do século XIX passa a considerá-lo isoladamente como categoria clínica específica, relacionada à inclinação impulsiva e aos atos maníacos (Santiago, 2001). O conhecimento médico emergente na época propôs-se a decifrar o fenômeno, e o que surgiu como resultante de tal processo foi o início da elaboração de critérios diagnósticos, que passaram a descrever a relação de dependência que determinado indivíduo estabelece com uma ou mais substâncias psicoativas. Os diferentes tipos de drogas também mereceram uma minuciosa descrição de seus efeitos químicos, cujo poder de causar dependência muitas vezes apareceu explicitado.

Conforme o caminho sugerido, Santiago (2001), fazendo referência aos dizeres psiquiátricos, postula que a toxicomania, sob o ponto de vista psicanalítico, é efeito de um discurso. No quadro desenhado pela psiquiatria parece não haver sujeito em questão, mas algo que resulta de uma determinada e bastante específica interação entre o organismo e ambientes diversos. Diante de tal configuração, torna-se viável a leitura da toxicomania segundo um modo discursivo, relacionado à operação efetuada pela ciência moderna – referente à descoberta e ao concomitante rechaçamento do próprio sujeito. De acordo com a terminologia psicanalítica, pode-se indicar o discurso capitalista. Soler (1998) constata que a estrutura desse discurso fica estabelecida pelas mudanças que os resultados da ciência operaram nodiscurso do mestre antigo.

Por meio desta introdução, pretende-se reconhecer a manifestação toxicomaníaca, que como tantas outras classificadas pela psiquiatria, possui existência material. Entretanto, o olhar que a psicanálise lança para o fenômeno traz o convite para verificar a plausibilidade da inclusão do mesmo no próprio campo psicanalítico.

Como fenômeno, a toxicomania pode ser localizada, considerada efeito da operação realizada pela ciência – a exclusão do sujeito –, e ter lugar consoante o discurso capitalista. Entrementes, as manifestações humanas não são isoladamente equivalentes às estruturas propostas pela psicanálise e não dizem diretamente coisa alguma sobre elas. Em sua práxis o psicanalista continua atento ao aspecto estrutural dos sujeitos. E também por estrutura, esse mesmo profissional espera a emergência do discurso analítico, o avesso daquele do mestre. Enfim, diz-se desta forma que o fenômeno aqui em pauta, desenhado por aqueles que classificam o comportamento humano, não é conceito psicanalítico.

Em relação à sua atividade clínica, a psicanálise vê-se assegurada de que a manifestação toxicomaníaca não é exclusiva de qualquer uma das três estruturas propostas. Um psicótico, um neurótico ou um perverso podem fazer uso problemático de drogas, e então serem classificados, a partir da referência médica, como quem sofre de transtorno de dependência de substâncias psicoativas (DSM-IV, 1994). A estrutura, entretanto, é logicamente anterior a qualquer manifestação, e surge do momento fundante do sujeito. Assim sendo, o psicanalista autoriza-se a afirmar que cada sujeito, estruturado segundo sua já constituída forma de organização do desejo, possui sua peculiar relação com as drogas – esta sempre amarrada ao modo estrutural.

Posicionar a toxicomania diante do campo psicanalítico é um gesto que o analista faz ao admitir a presença de um fenômeno bem caracterizado, e ao mesmo tempo continuar marcando a visão ética dessa abordagem, sem insistir em fazer de uma manifestação muitas vezes inacessível à clínica um conceito da psicanálise.

Jacques Alain Miller faz um alerta ao comentar as definições relativas à toxicomania realizadas pela psicanálise:

Não é uma definição da toxicomania, e sim uma tentativa de definição da droga enquanto tal. Talvez há que lhe dar todo seu valor. Talvez na experiência analítica nos perguntemos menos pela toxicomania que pela droga em sua relação com o sujeito (1992, p. 16).

Adentra-se assim nas questões sobre o objeto droga. O relevante nessa explicitação é o deslocamento do esforço em construir uma definição própria sobre a toxicomania, para a tentativa de estabelecer articulações entre o objeto droga e o sujeito. Em relação ao segundo termo, de acordo com a psicanálise, o foco é desviado de sua concretude e seus efeitos químicos.

Nesse mesmo sentido psicanalítico, Santiago (2001) interroga-se sobre as possíveis relações entre a materialidade do produto droga e seus efeitos, e afirma que estas relações parecem estar vinculadas às particularidades do sujeito. Para a psicanálise é este que faz a droga, e não o contrário. As conseqüências do uso ou da procura pela droga podem aparecer em qualquer sujeito que um dia experimentou. Ou seja, o recurso à droga não é exclusividade do fenômeno descrito pela psiquiatria, o da toxicomania.

Desta forma, ainda segundo Santiago (2001), torna-se viável afirmar que não é possível estabelecer razão direta e literal, ou determinação causal entre a droga e a toxicomania, e tampouco entre o efeito químico explicitado pela ciência e a fala sobre o objeto. Isso porque existem muitos dizeres sobre a droga, que são particulares e aparecem de forma única em cada sujeito.

Assim, além do fato do uso de substâncias tóxicas não significar toxicomania, cada sujeito denominado toxicômano possui sua relação particular com o objeto droga. Diz-se, enfim, que no processo psicanalítico o analista se depara com as faces que a droga, o uso ou a abstinência ganham em cada discurso.

Na clínica não se fala sobre objetos da realidade suposta e compartilhada. A realidade da clínica é aquela do sujeito, já metaforizada em seu discurso. Os objetos que a fala de cada um aponta são referentes à linguagem. O analista não fica perante os objetos ditos da realidade; permanece, ao invés disso, em relação ao discurso, à fala do analisante. No discurso de cada sujeito a droga pode surgir operando essa plástica movimentação.

Os efeitos químicos atribuídos às diversas drogas também costumam perder importância quando presentes nos ditos que surgem em análise. Os sujeitos fazem referência ao prazer que esses objetos propiciam. Ou ao se pensar com Freud (1930) em um mais além, pode-se sugerir que os sujeitos, quando incluem essas experiências em seus dizeres na análise, estão tentando lidar com sua já constituída relação com o mal-estar, com o gozo fálico e, portanto, com a castração.

Outra ressalva parece importante. Quando se fala sobre discurso em análise e sobre essa função atribuída ao objeto droga, relativa a seu efeito de prazer ou até de gozo, pressupõe-se a castração, a insigne fálica, um sujeito relacionando-se com a falta, ou seja, supõe-se o sujeito neurótico.

De maneira distinta das estruturas em que a castração operou, o psicótico não está na mesma relação com o gozo fálico. Muito embora não discorra sobre essa forma estrutural ao longo deste trabalho, pareceram-me bastante plausíveis as elucubrações de Santiago (2001) acerca do uso de drogas por psicóticos. O autor afirma que o psicótico busca algo diverso na droga, busca a anexação do significante. Escreve que por vezes a droga desempenha uma função de suplência estabilizadora ou de moderação do gozo do Outro. Uma função de suplência para aquilo que é não simbolizado, ou simbolizável.

Retomando a ênfase dada ao discurso do sujeito da psicanálise com seus possíveis dizeres sobre a droga, penso ser importante realizar, mesmo como um esboço introdutório, uma discussão conceitual acerca da repetição. Isto porque pode-se conferir ao uso de drogas um caráter repetitivo.

Lacan (1969-70) estabelece uma precisa relação entre a repetição, o saber e o gozo. Acompanhando e ordenando as repetições está um saber, meio de gozo. Quanto a esta referência ao saber, diz-se que assim se chama o conjunto dos significantes que se repetem e reeditam, de forma não idêntica, o reprimido. Toda a vida dos sujeitos, por meio dos sintomas, de outras formações do inconsciente e da estrutura do fantasma, está ordenada por esse saber que trabalha em cada um.

A psicanálise demonstra a seu modo que pelo inconsciente há tendência à repetição. A repetição relaciona-se à falta, e portanto, ao objeto (a). Na repetição o sujeito castrado busca o controle da ausência. Porém, também é próprio da repetição o fracasso da tentativa de reencontrar o perdido. Assim, a psicanálise diz que não há repetição total. A repetição não é uma reprodução.

Repete-se, mas nunca o mesmo. Busca-se a origem mítica, mas não se encontra. Pela própria estrutura da linguagem, a característica substitutiva das palavras faz preservar o caráter de impossível do suposto momento primeiro. A repetição, de acordo com a psicanálise, é a referência ao original que não o imita, e assim conduz ao novo. Uma tentativa de alcance do supostamente perdido e ilimitado gozo absoluto ocorre, porém, sob a égide de outro gozo: após a castração – fálico. Assim, por meio da repetição o sujeito mantém-se dentro dos limites da estrutura. É interessante notar a dupla função da repetição. Se por um lado é busca pelo perdido e pelo gozo, por outro, a cada vez que opera, reedita o limite do gozo.

O suporte da repetição, segundo a formulação lacaniana, é o significante. Lacan, n’ “O seminário sobre A Carta Roubada”, de 1966, mostra os lugares ocupados pelo sujeito como possibilidades dependentes da cadeia significante. É nesse sentido que a repetição depende do discurso.

A repetição é então destino do sujeito que passou pela castração; vincula-se ao discurso e não ao comportamento que aparece. O psicanalista não encontrará a repetição no isolado comportamento repetitivo. O que se repete revelar-se-á na análise por meio da fala do analisante.

Ao seguir a proposta de discorrer sobre a questão da repetição, é possível estabelecer uma discussão acerca do objeto droga e sua relação com o sujeito castrado. O uso de drogas como manifestação pode aparecer como repetição no âmbito comportamental, mas não é, per se, repetição no sentido psicanalítico. Para a psicanálise a repetição desvela-se no discurso. Assim, se em princípio não se atribui ao recurso ao tóxico o caráter de repetição, pode-se atentar àquilo que o sujeito diz, e a partir da cadeia significante ver iluminado algo dessa mesma ordem.

Nesta direção é importante acompanhar o que escreve Raíces, citando Magoudi: “na análise de um toxicômano aquilo que retorna de forma repetitiva no curso das sessões é toda sintomatologia significante do sujeito, e isso como em toda análise” (1992, p. 75).

A repetição marca uma relação com o sintoma. Se o que se repete na análise é a sintomatologia significante de cada sujeito, como propiciar um diálogo entre o sintoma, o sujeito e a droga? Raíces (1992), como introdução à noção de sintoma segundo a psicanálise, aponta que este é resultado de uma formação de compromisso que ocorre sobre a base da resolução de conflitos entre sistemas ou instâncias. O sintoma não é um acontecimento histórico, circunstancial – o recalque é uma operação simbólica. A introdução do primeiro traço ou significante não é observável na realidade compartilhada. É suposto e notado a posteriori.

O autor continua seu escrito sobre esse imprescindível conceito psicanalítico e faz referência a Lacan, definindo sintoma como uma formação do inconsciente que tem estrutura de linguagem; é o significante de um significado reprimido da consciência do sujeito, que persiste apesar de sua remissão, pelo deslocamento, para outra via de representação; persiste como aquilo que insiste – a função do desejo – e assume as mais variadas formas.

Portanto, existe possibilidade de transformação do sintoma, contanto que isto queira dizer que ele se deve a efeitos de mudança de posição do sujeito em relação à verdade que entranha seu sintoma (Raíces, 1992, p. 74).

Ou, como escreve Leite: “para a psicanálise, o sintoma só existe quando falado pelo paciente e portanto tem como paradigma o ato-falho” (2000, p. 56). Porque está estruturado como uma linguagem, também em termos de significante e significado, o sintoma diferencia-se do signo. Não é aquilo que aparece no concreto e pode ser observado de imediato. Como metáfora, altera a forma da língua, muda de valor e sentido, assume diversas formas; ressignifica-se ao longo do tempo, embora sempre se relacione com a castração.

Voltando-se à questão própria do recurso ao tóxico, Raíces propõe uma diferenciação entre aquilo que se pode observar como fenômeno e o que se diz sobre o sintoma para a psicanálise, notando que:

Se uma pessoa entra embriagada ou drogada no consultório de um psicanalista, rapidamente se poderia diagnosticar que o sintoma que se apresenta é sua embriaguez. Porém isso é assim visto pela medicina ou pela ordem social. Não sabemos se isso será ou não um sintoma para uma psicanálise singular (1992, p. 66).

Mais adiante, em seu texto:

A palidez de uma cara, uma tosse seca, mãos suando, um estado tenebroso, uma obesidade notória, fumar maconha, estar bêbado, não é equivalente nem se traduz per se em sintoma para a psicanálise. É necessário que o sujeito se refira a ele enquanto sujeito dividido, mais ainda, que transforme esse dado em pergunta, que o leve a questão pessoal (p. 71-72).

Parece plausível a asserção segundo a qual o uso de drogas só pode ser considerado sintomático, do ponto de vista psicanalítico, se houver transformação da queixa em sintoma analítico, o que ocorre quando o sujeito em análise coloca-se perante o analista como dividido e a partir do lugar de agente formula sua questão.

Seguindo esse caminho, considere-se que alguém vai ao consultório de um analista e diz que faz uso de drogas – é este sujeito um toxicômano? O toxicômano é supostamente aquele que se apresenta, ou assim é classificado, quanto à sua íntima, embora por vezes conflituosa, relação com o objeto droga. Assim como o datado termo toxicomania, toxicômano também surge do construto psiquiátrico. Segundo a psiquiatria, o último termo refere-se àquele sujeito que possui o transtorno de dependência de substâncias psicoativas. Parece possível apontar, pela abordagem médica, a tendência de se encontrar especificidade, bem como de se construir a fotografia do toxicômano, a partir de uma decorrente e teórica particularização da toxicomania.

Segundo a linha proposta neste trabalho, pode-se afirmar que se não há toxicomania como há neurose, psicose ou perversão, mas como um fenômeno que pode compor com estes três termos, é incongruente procurar criar uma figura singular do sujeito toxicômano. Formula-se então uma hipótese, segundo a qual cada sujeito dito toxicômano apresenta sua particular relação com o objeto droga dentro de sua estrutura. Segue-se dizendo que em cada caso atendido, mesmo abarcando a queixa em relação à droga, ainda é o sujeito estruturado pela linguagem quem aparece.

Parece que para a psicanálise o toxicômano é figura que não existe (Raíces, 1992). Porém, em relação a este mesmo termo destacado, em sua atividade clínica o psicanalista, que por um lado não se depara com a toxicomania como algo que existe per se, encontra-se por vezes diante de um sujeito que resume sua identidade nas questões referentes àquilo que envolve o uso de drogas. Ele apresenta-se como um toxicômano, fato que deve ser entendido pelo analista como próprio do campo das identificações.

Neste sentido, Santiago traz uma importante contribuição, referindo-se ao significante toxicômano:

Para a psicanálise esse termo tem um valor identificatório. Com efeito, esse significante pode tornar-se, para certos sujeitos, objeto de uma escolha. Ser toxicômano consiste então num recurso diante do impasse de uma neurose, ou mesmo de uma psicose. Esse aspecto identificatório manifesta-se freqüentemente mediante o enunciado: “Sou toxicômano” (2001, p. 185).

Na clínica, o relato e a descrição de uma relação bastante importante com o objeto droga pode aparecer em primeiro plano como queixa dos analisantes. Assim sendo, o psicanalista pergunta-se: por que alguém chega a se queixar e se restringir a tal problemática?

Ressalto aqui o termo queixa: a relação com a droga como queixa formulada ao psicanalista. Em um primeiro momento o sujeito pode apresentar-se de acordo com aquilo que supostamente resume sua identidade; nessa situação hipotética inicial a existência do sujeito está restrita à droga, aos problemas localizados na droga, ou seja, a uma exterioridade que o afasta de qualquer pergunta sobre o saber de seu gozo. Assim, com sua queixa, o sujeito pode dirigir-se ao analista.

Acompanhando os escritos de Dominique Miller (1989), observa-se que a demanda por análise pode mascarar-se no princípio, já que o sujeito eventualmente evita formular sua questão. O sujeito diz-se toxicômano, apropria-se desse significante oferecido pelo discurso capitalista e se exime da possibilidade de estabelecer qualquer relação entre seu discurso e seu desejo. O termo toxicômano carrega consigo o status de um transtorno. O toxicômano é vítima de um transtorno.

Seguindo esse caminho, pode-se postular que o psicanalista que se põe diante dos sujeitos nos atendimentos apenas irá se deparar com a figura do toxicômano quando houver essa apresentação, que remete ao modo pelo qual cada um se põe em análise. De acordo com esse recorte psicanalítico, torna-se interessante marcar que se a psicanálise não se aprisiona à queixa, muito menos pode forçar a emergência de uma queixa. Não é o psicanalista quem indica ao sujeito essa terminologia – toxicômano.

Em todos os casos, a possibilidade de análise passa pelo esforço de desfazer a identificação bruta “eu sou toxicômano”. Em conseqüência, desde o ponto de vista da experiência analítica, tudo que reforce essa identificação está contra-indicado (Miller, 1992, p. 20).

Não obstante o pedido inicial do analisante possa ser dirigido ao analista como uma forma de procurar adquirir conhecimento por meio do mestre, as possibilidades de se operar a estrutura analítica e deixar surgir a pergunta sobre o desejo próprio podem já estar em curso. O psicanalista realiza cortes e espera um giro de discurso, deseja que o sujeito entre em análise.

Assim, a hipótese que a especificidade do sujeito toxicômano advém da forma como este se apresenta traz em si sua negativa. O sujeito pode se autodefinir como toxicômano, mas ao entrar em análise revelar-se-á em sua estrutura. O psicanalista não tem acesso ao denominado toxicômano, mas à singularidade de cada sujeito, e se houver questão sobre o objeto droga, esta será proferida, estará presente na fala sempre autêntica de cada um.

De acordo com o caminho proposto, a incursão teórica pode resultar satisfeita ao articular as noções de sujeito e estrutura clínica já formuladas pela psicanálise com a experiência clínica.

Passo a seguir ao relato de fragmentos clínicos referentes ao trabalho realizado com uma analisante considerada toxicômana.

 

Lia

Lia foi-me encaminhada como alguém que utilizava muitos tipos de drogas, com grande freqüência. Dentre elas, sua preferida era o ecstasy.

Sua queixa inicial apontava para a identificação com o termo toxicômano indicada ao longo deste trabalho. Ela queixava-se sobre os males que as drogas causaram em sua vida. Não havia, no princípio, implicação de Lia em relação a qualquer questão pessoal.

Chegou dizendo que havia parado de usar. Contou que desde os 15 anos vinha usando muita droga e que ocorrera um episódio que a fizera repensar o uso. Disse que estava bastante assustada e relatou:

“Em 98 conheci um amigo e depois de algum tempo de convívio, grudamos. Nós dois usávamos muitas drogas juntos, de deixar um usuário habitual assustado. Eu queria tirá-lo da casa dele. A mãe dele era cafetina e usava crack. Ele fugiu de casa com a irmã e foi morar num flat, só que a polícia pegou ele, e eu nunca mais o vi”.

Lia também queixava-se freqüentemente da falta de amor e atenção de seus pais, que separados desde que ela tinha 2 anos, revezavam-se em relação à sua guarda. A última saída da casa da mãe foi decorrente de uma briga. Lia descreveu sua mãe como “a mais Patricinha”. Disse que ficou muito triste na última vez que falou com ela por telefone, e esta disse que sua irmã de dois anos era super feminina, passava batom e procurava se vestir “toda bonitinha”. Disse que tentou, pouco antes de começar a usar cocaína, sair com o tipo de amigas que sua mãe apontava como amigas ideais, mas que ela não agüentava, que era “forçar a barra”. Contou que sua mãe não aceitava seu jeito de ser, dizia que era “coisa do demônio”. Disse que não acreditava no amor da mãe, que dizia que a amava, mas não a aceitava; que dizia ter saudades, mas não ligava para ela; e que se ela morresse sua mãe não ficaria sabendo.

Logo em seguida Lia falou que era mesmo difícil ter uma filha como ela, que não devia ser fácil para ninguém. Disse que isso se devia à sua sexualidade, pois era homossexual e tinha uma namorada há nove meses. Afirmou que tinha a sexualidade errada, e que por isso não era aceita. Contou também que sua mãe se transformou depois de ingressar em uma seita religiosa, e a partir de então passou a tratá-la como alguém relacionada ao demônio. Nesse sentido parece interessante a expressão “eu não sou aceita”. Ela queixava-se de uma totalidade da mãe com a seita e sofria por não poder fazer par com a mesma.

A dinâmica do desejo de Lia parece ficar explicitada nesse ponto. Ela sofre por não ser amada o suficiente, algo complementar lhe falta. Ser errada, dependente de drogas ou homossexual faz com que ela permaneça insatisfeita. Assim ela não corresponde ao desejo do Outro. O uso de drogas e a homossexualidade estão associados com a não aceitação da mãe.

Por meio dessa leitura da dinâmica do desejo de Lia pode-se começar a pensar na estrutura histérica. Segundo Dor (1997), Freud bem esclareceu: o histérico deseja sobretudo que seu desejo permaneça insatisfeito. Ele se fecha, de fato, em uma lógica psíquica sem par: para manter seu desejo, o sujeito esforça-se por jamais lhe dar um objeto substituto possível, a fim de que a insatisfação que daí resulte remobilize sempre para mais longe o desejo, na aspiração rumo a um ideal de ser.

Em outro momento Lia iniciou a sessão contando as coisas que vinha fazendo. Relatou que estava trabalhando muito, ajudando uma prima com trabalhos em computador. Ficou encarregada de organizar o banco de dados e exigiu de si mesma terminar tudo em tempo rápido. Passou noites em claro e não agüentou uma crítica que recebeu. Falou então: “lido comigo como se não tivesse limites, meu consciente gosta e precisa de limites, mas meu inconsciente gostaria de não ter limites. É muito prazeroso pensar que não se tem limites, que podemos tudo”. Disse que estava insatisfeita por não conseguir “tudo ao mesmo tempo” e por ser muito exigente em relação a si. Nessa sessão ela apontou para um certo estranhamento em relação a si. A identificação: “eu sou toxicômana” não dominava mais todas assuas queixas. Perguntas começavam a ser esboçadas.

Ela chegou a outra sessão dizendo que gostaria de fazer psicologia só para estudar mais “estes fenômenos”, descobrir como analisar as pessoas como os psicólogos e psiquiatras conseguem. Disse que considerava as pessoas dessas áreas seres especiais. Contou que estava lendo um livro de Roberto Freire em que ele analisava seus pacientes; falou sobre os casos clínicos, descreveu detalhadamente a chegada do paciente, o olhar, a postura etc; disse que imaginava que eu fazia o mesmo. A relação com a analista como suposto saber se delineia. O significante da transferência está presente.

É interessante, pois logo após ter me colocado no lugar daquela que detém o saber sobre seus segredos, Lia procurou revelar a falha em nosso trabalho, dizendo que ainda não trouxera a ela qualquer conclusão e/ou solução final, que eu ainda não revelara a ela qual o seu perfil, ela ainda não havia sido definida. Citando Lacan, destaco um trecho d’ O avesso da psicanálise que resume bem esta questão:

O que a histérica quer (...) é um mestre (...). Ela quer um mestre (...) Ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas, mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio máximo de todo o seu saber. Em outras palavras, quer um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina, e ele não governa (1969-70, p. 122).

Lia disse em seguida que tinha muita curiosidade em saber o que eu pensava a seu respeito. Voltou a dizer que estava sem graça e que não tinha o que falar. Perguntou: “e se eu ficar em silêncio, é muito ruim para você ?”; na sessão seguinte chegou dizendo que estava com muita raiva. Acontecera algo “terrível” na sua vida! Havia perdido o banco de dados que estava fazendo para sua prima. Disse que teve muitos pesadelos à noite, não lembrava o conteúdo, mas apenas a sensação de acordar assustada. Contou, então, o sonho da noite anterior: sonhou que estava na loja onde trabalhava, com sua gerente, e ficava trocando de roupa na frente de todos. Sentia muita vergonha. “Tenho vergonha de meu corpo, acho que tenho um corpo muito feio”. Ficou em silêncio e mencionou que ficou com vergonha.

Disse que mudaria radicalmente de assunto e perguntou se eu achava que ficaria bem com o cabelo cheio de trancinhas, que ela encontrou um cabeleireiro que fazia isso – “quem sabe posso ficar bem com as trancinhas”. Falou que se decepcionava profundamente quando percebia que alguém não era perfeito.

Continuou contando o sonho, no qual de repente arrancava seu dente. Acordou muito angustiada e consultou o dicionário de símbolos de sua empregada. “Arrancar dentes quer dizer um homicídio que está por vir. Fiquei muito mal”. Falou rapidamente: “é por isso que eu adoro usar drogas. Quando eu uso drogas me sinto linda, não tenho nenhum grilo, fica tudo maravilhoso! (...) nossa nunca falei disso assim, tão fácil!”.

Parece-me razoável pensar neste caso como pertinente à estrutura neurótica, que revela um modo do sujeito se posicionar diante da operação simbólica da castração. Esse trecho de sessão é ilustrativo em relação à castração: ela chegou dizendo que perdera algo e isso fora terrível. Algo lhe faltou, ou algo lhe foi arrancado. Isto estava associado a um homicídio. Ficar nua era vergonhoso. Seu corpo era feio, não era feminino aos olhos da mãe. As trancinhas apareceram como uma esperança: será que com trancinhas ela poderia ficar linda aos meus olhos, aos olhos do Outro?

Lia colocou-se como sujeito dividido. Relatou um sonho, associou livremente, surpreendeu-se com sua própria fala, fez perguntas. Nesse sentido, ela disse que percebia que seu jeito “de olhar o mundo” fazia com que ela ficasse aprisionada na idéia de que sempre seria a “abandonada”. Se Lia era abandonada, nunca poderia ser amada o suficiente.

O que falta a Lia para que ela seja a seita da mãe? Aceita pelo Outro? Este parece ser seu pedido, demanda de amor: seja o que me falta, permitame que eu o complete. Porém, o movimento de seu desejo ocorre pela insatisfação; seu desejo não pode ser satisfeito, nada pode ser suficiente. Ela precisa de tudo ao mesmo tempo.

Em relação à temática deste trabalho, e porque Lia chegou para análise dizendo-se toxicômana, torna-se relevante a discussão acerca da importância do objeto droga para a analisante. É interessante notar que se por um lado a droga pode servir como solução à falta a ser – já que com a droga ela é linda, não lhe falta nada – por outro surge em seu discurso pela associação com o significante abandono.

Lia diz que a relação com sua mãe era plena antes da droga. O fato de iniciar o uso de drogas, bem como sua escolha sexual, fizeram com que sua mãe a abandonasse. Assim, mesmo sem fazer uso de drogas, este objeto aparece em seu discurso associado ao significante abandono.

Ela associa o objeto droga àquilo que tampona seu sofrimento e causa prazer, bem como à sua “sexualidade errada” e ao abandono. Dentro da forma estrutural histérica, relacionada aos paradoxos satisfação – insatisfação, correspondência à suposta demanda do Outro – castração, Lia articula os termos em cadeia. A droga compõe consigo e faz dela alguém que tanto pode ser linda, como ser abandonada pelo amor materno e paterno. Neste último sentido, ela não pode ser a seita. Permanece insatisfeita. Ela não pode mesmo ser aceita.

Dados estes fragmentos clínicos, autorizo-me a declarar algo sobre o trabalho com este sujeito denominado toxicômano. Aproveito um trecho do trabalho de Tarrab, que ao escrever sobre um analisante que fazia uso de heroína, concluiu: “o estatuto e a função da heroína, é neste caso uma tentativa do sujeito, aqui neurótico, de curar o incurável: a falta a ser do sujeito, a castração no Outro” (1993, p. 162).

Ao recomendar uma postura para o psicanalista diante do suposto toxicômano, Miller (1992) reafirma o método analítico, que dirige atenção ao sujeito e não se deixa aprisionar por objetos que possam estar dispostos entre os analistas e os analisantes, inclusive aqueles construídos a partir do discurso capitalista. Se o analista ouve o toxicômano (com sua possível identificação), permanece no registro das relações dadas pela realidade compartilhada, e perde a oportunidade de escutar aquilo que fala no sujeito.

Trilhando caminhos que apontam a direção proposta neste trabalho, suponho que não se pode mostrar qualquer traço de especificidade no dito toxicômano que o torne merecedor de uma clínica psicanalítica especializada. Torna-se relevante frisar que a ética e a estrutura psicanalíticas, no trabalho com os sujeitos considerados toxicômanos, estão preservadas.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Ana Paula Lacorte Gianesi
R. Haroldo Gurgel, 167 – 05514-030 – Butantã – São Paulo – SP
tel: (11) 3726-656 5
email: anagi@csbr.com.br

recebido em 03/04/03
versão revisada recebida em 05/02/04
aprovado em 26/02/04

 

 

Nota

I Psicanalista; Mestre em Psicologia Clínica (USP); Doutoranda (IPUSP); Membro da Equipe Multidisciplinar do PROMUD (Programa de Atenção à Mulher Dependente Química) do Instituto de Psiquiatria/FMUSP.
1 As idéias contidas neste trabalho são referentes àquelas expostas em minha dissertação de Mestrado (Gianesi, 2002), sob orientação da Profª Drª Miriam Debieux Rosa.