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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psychê v.9 n.15 São Paulo jun. 2005

 

RESENHAS

 

Novos fundamentos para a clínica da psicanálise ou a clínica em comunidade de destino

 

 

Luís Claudio Figueiredo1

Universidade de São Paulo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

SAFRA, Gilberto. A Po-ética na clínica contemporânea. Aparecida: Idéias & Letras, 2004, 160p. ISBN 8598239143.

O leitor não deve se iludir. São apenas 140 páginas (tirando as da apresentação escritas por Tales Ab’Sáber) distribuídas em oito capítulos (muito bem integrados) e escritas em linguagem clara, muito próxima à experiência, cristalina, transparente, sem nenhum hermetismo, repletas de alusões muito sugestivas ao que se passa na atividade clínica de um psicanalista dos nossos tempos (há diversas vinhetas muito saborosas em todos os capítulos) e, mais amplamente, ao que marca as experiências de vida cotidianas de qualquer um de nós. Não se iluda, porém, o leitor com tantas e tão atraentes facilidades de leitura. Gilberto Safra, em continuidade ao seu livro anterior – A face estética do self – mas de forma ainda mais incisiva e corajosa, nos propõe nada mais nada menos que novas bases para a clínica da psicanálise. Em vez de concentrar suas investigações no plano da chamada “vida psíquica”, suas estruturas e suas dinâmicas, Safra faz-nos recuar para o plano da ética e, dada sua compreensão da ética como assento e morada do humano, nos conduz para o plano ontológico, aquele em que a questão do ser e da condição humana emerge como a grande questão do nosso tempo. Como se a contemporaneidade nos obrigasse a uma recuperação da filosofia, mas agora já não mais como uma área do interesse exclusivo do filósofo profissional e, certamente, não mais como um campo de saberes especializados e práticas especulativas. Talvez, acompanhando Gilberto Safra, devamos reconhecer a pertinência da questão ético-ontológica para todo o existente contemporâneo em sua vida cotidiana e, mais ainda, a sua obrigatoriedade para o clínico psicanalista. Trazer a filosofia das altas regiões do pensamento abstrato – o que foi a nota dominante na tradição ocidental – para o dia a dia da vida comum e, ao inverso, levar a clínica da psicanálise para as proximidades das questões do ser e da condição humana é o duplo movimento que o livro de Gilberto Safra procura instalar em seu leitor, tornando-nos mais clínicos e mais filosóficos. O que não é, claro está, ambição pequena.

E no entanto, esta ambição não parece em absoluto decorrer de uma veleidade do autor, uma vontade caprichosa de circular por estas paragens novas e inéditas para o leitor comum e mediano da literatura psicanalítica, como é o caso, em particular, da filosofia russa que Gilberto Safra nos apresenta. Outras referências, de certo, como Heidegger, Lévinas, Benjamin, Simone Weil e Hanna Arendt, podem ser mais facilmente assimiladas e surpreender menos. Atualmente, a produção psicanalítica e psicológica não está tão desacostumada a incursões pelas áreas de reflexão destes autores. Na verdade, a própria preocupação com a problemática ética e mesmo com a problemática ontológica não está totalmente ausente das considerações de muitos psicanalistas e psicoterapeutas, e sem dúvida, a já antiga Daseinanalyse de extração heideggeriana (Medard Boss e Ludwig Binswanger) caminhava nessa direção. Assim sendo, pareceria que apenas a adoção da filosofia russa como referencial básico marcaria a diferença entre o trabalho de Safra e o de alguns outros autores. Mas isso não é verdade. Ainda que a referência fundamental à filosofia russa, e em especial à noção de Sobórnost, chame a atenção de forma muito forte e articule os vários elementos do livro, é todo o projeto de Safra que nos parece realmente inovador. Não se trata, portanto e apenas, de inventar uma nova linguagem e importar um pensamento relativamente exótico. O que caracteriza aquela novidade a que acima nos referimos é o que procuraremos esclarecer a seguir.

Sobórnost é o “conceito”, e as aspas nos lembram que estamos adentrando o terreno do que é refratário à representação e à conceituação, que diz da condição do “indivíduo” humano – que de propriamente individual não tem nada: uma singularidade irredutível feita da conjunção do múltiplo; uma condição ontológica em que o singular e o universal se entrecruzam, dando ao existente uma “natureza” (outra palavrinha inadequada) transcendental, sempre projetado para fora de si. O Um singular “contém” e manifesta um horizonte temporal – gerações passadas e possibilidades de futuro – e espacial – seus contemporâneos, outros homens, semelhantes, diferentes, animados e mesmo inanimados (coisas). O Um singular é sempre mais que si mesmo, quanto mais si-próprio se torna. Há aqui uma modalidade de ser-com, bem distinta do sercom da impessoalidade cotidiana, tal como descrita por Heidegger em Ser e Tempo, que é mais que intersubjetividade, ao menos na acepção corrente do termo. O nós, o tempo, o Outro e a história estão incrustados no ser em sua irredutível singularidade. Em Sobórnost, as singularidades humanas mantêm-se aparentadas umas às outras e a todo o mundo de coisas, matérias, símbolos, mensagens e linguagens que nos constituem. Segundo Safra, o homem moderno e contemporâneo do ocidente sofre pela perda deste radical aparentamento (sic. Feodorov), e boa parte da nossa clínica psicanalítica deve ser capaz de diagnosticar e tratar das diferentes modalidades de adoecimento que daí decorrem. Há no livro, portanto, tanto uma atenção ao que é peculiar aos modos contemporâneos de subjetivação e aos sofrimentos que lhes são correlatos, quanto uma recuperação do que determina ontologicamente o humano de forma universal e trans-histórica. Em contrapartida, por mais que esta questão ontológica nos atraia e seja determinante, ser em Sobórnost implica também na aceitação e acolhimento da dimensão de mistério e de indizibilidade, o que faz com que “Sobórnost” não se transforme em conceito e não possa nutrir a pretensão de tudo iluminar sobre o homem e sua condição.

Nas condições históricas atuais, ferido em seu aparentamento, sem a possibilidade de existir em Sobórnost, o Um singular perde suas referências, e mais profundamente, sua vinculação visceral (sensorial, encarnada) ao mundo, suas coisas, seres e materiais, deixa que se atrofie seu potencial criativo, não pode desenvolver seu idioma pessoal, não pode existir em transcendência de si e... adoece. O “indivíduo” transforma-se aí em uma abstração. Desta compreensão das condições profundas sócio-culturais e históricas das modalidades do sofrimento humano deriva tanto uma nova “psicopatologia” (outro termo certamente inadequado) como uma outra perspectiva do que cabe ao analista em sua clínica sempre que se defronta com estes pacientes que padecem da perda de um solo ético – Sobórnost –, em que se enraizar ou, melhor dizendo, que sofrem com a ruptura das ligações de parentesco que precisamos entreter com o mundo, suas coisas, seus seres e suas matérias para nos sentirmos vivos, reais e humanos.

Dentre os diversos capítulos do livro, chamamos a atenção especial do leitor para os capítulos V (“O gesto em Sobórnost”) e VI (“O idioma pessoal”), cujo interesse imediato para a escuta clínica não pode ser superestimado, e que me pareceram decisivos para a compreensão do último e conclusivo capítulo, “A ética da situação clínica”. Já o capítulo VII, “O sofrimento humano e as fraturas éticas”, acerca das chamadas “novas patologias”, apesar de muito sugestivo, exige do leitor um cuidado especial: o de não tomá-lo como uma tipologia aprioriorística e exaustiva das formas contemporâneas de adoecimento, o que nos dispensaria da escuta singularizada do singular de cada paciente. Embora nos pareça ser esta também a preocupação do autor, sempre que se elaboram descrições esquemáticas de condições e destinos humanos, corre-se o risco de instalar, no leitor menos criterioso e sensível, uma certa propensão aos esquematismos. Principalmente quando os esquemas propostos parecem tão adequados ao que se passa na clínica e tão úteis e razoáveis. Neste caso, aumenta o perigo de leituras redutivas e “aplicações” estereotipadas de idéias, e contra ele talvez Gilberto Safra pudesse ter sido mais enfático, sem deixar, claro está, de nos brindar com suas engenhosas elaborações.

Cabe-nos, finalmente, situar este livro na tradição psicanalítica em que ele, apesar dos aportes fundamentais dos autores russo, deva ser encontrado. No desenvolvimento desse ambicioso projeto de re-fundação ético-ontológica da clínica psicanalítica, Gilberto Safra insere-se, sem sombra de dúvida, na posterioridade winnicottiana, e em certos aspectos, bioniana. Não se trata, contudo, nem de repetir e entronizar Winnicott, nem de procurar os supostos fundamentos filosóficos de Winnicott (Heidegger, por exemplo, como querem alguns). O Winnicott que encontramos aqui é, se nos permitem esta aposta, um Winnicott em que Donald W. Winnicott gostaria de se reconhecer: um parceiro para a escuta e o pensamento teórico-clínico em estado de liberdade, e um exemplo e impulso para os processos de singularização do psicanalista, uma abertura, enfim, parao futuro da clínica psicanalítica, jamais um modelo constrangedor. Gilberto Safra, Donald Winnicott, nossos “pacientes difíceis”, os feridos em Sobórnost, os sem passado e sem futuro, os desaparentados e sem-esperança, e de carona todos nós que sofremos e clinicamos nos dias e nas condições ético-ontológicas contemporâneas, eis-nos todos reunidos em comunidade de destino. Este termo, emprestado a Ecléa Bosi e redimensionado por Gilberto Safra no contexto da Sobórnost, indica tanto uma meta como um meio da clínica psicanalítica contemporânea, a que se compromete com a restauração das condições ético-ontológicas da existência. Além dos esclarecimentos que proporciona e das indicações que oferece ao psicanalista em atividade, um livro como o que estamos examinando, por si só e sem nos forçar a uma adesão dogmática e programática, admitindo ao contrário a diversidade e as singularidades, contribui para que nos reconheçamos em comunidade de destino com nossos pacientes, colegas e amigos. Nessa medida, seus efeitos transformadores e terapêuticos são muito mais profundos, extensos e imediatos do que os que em geral observamos em livros de psicanálise e obtemos com essas leituras. Cremos que se sentir em comunidade de destino não só com seus pacientes, mas também com seus pares seja uma condição indispensável para cada um de nós poder enfrentar as exigências e vicissitudes da nova clínica psicanalítica, uma clínica que põe à prova nossas reservas de ser e estar em Sobórnost. Este livro, de uma certa forma, ajuda a formar uma comunidade de destino entre seus leitores, incluindo os que eventualmente não possam acompanhar o autor em todas as suas teses.

Por isso, é com um agradecimento ao amigo Gilberto Safra que encerramos esta resenha, tendo aprendido com ele a reconhecer a amizade como uma das mais dignas e significativas manifestações da Sobórnost.

 

 

Endereço para correspondência
e-mail: lclaudio@netpoint.com.br

 

 


1 Psicanalista; Professor da USP e da PUC-SP; Autor de Ética e técnica em psicanálise (co-autoria com Nelson Coelho Jr) e Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea, entre outros livros.