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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psychê v.9 n.15 São Paulo jun. 2005

 

RESENHAS

 

Acerca da pulsão de morte

 

 

Érico Bruno Viana Campos1 ; Roberto de Oliveira Preu2

Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 

KIMMERLE, G. (1988). Denegação e retorno : uma leitura metodológica de “Para além do princípio de prazer”, de Freud. Piracicaba: Editora da UNIMEP, 2000. 149p. ISBN 85-85541-14-8.

Como, em plena era da biotecnologia, sustentar algo para além do princípio do prazer, minando os preceitos hedonistas e funcionalistas de nossa cultura? Esse tipo de crítica retorna compulsivamente desde que Freud publicou Além do princípio de prazer, em 1920. A introdução da pulsão de morte suscitou questionamentos provenientes das mais diversas origens, desde as ciências biológicas e epistemologias positivistas, até o próprio seio do movimento psicanalítico. Sem dúvida é o conceito mais controverso, obscuro e incompreendido da metapsicologia freudiana. Afinal, como compreender e descrever uma energia que, por definição, não se faz representar no psiquismo?

Pode-se abordar essa questão de várias perspectivas. O livro de Kimmerle o faz a partir do movimento intrínseco de desdobramento do pensamento freudiano, evidenciando a exigência de tal conceito para formular uma tensão essencial no ponto de vista econômico da metapsicologia. Sua hipótese é que a pulsão de morte ocupa um lugar central no edifício conceitual da psicanálise, e além disso, que as oposições inerentes à sua formulação ajudam a compreender melhor a articulação entre metapsicologia e prática clínica. Para tanto, propõe abordar, a partir de um enfoque epistemológico, as contradições internas presentes desde o início da teoria freudiana, apontando seus desdobramentos e sua tensão máxima na “virada” dos anos vinte, na qual os princípios econômicos da metapsicologia se embaraçam definitivamente.

Publicado originalmente em 1988, o livro de Kimmerle, que é doutor em filosofia e pesquisador da história da psicanálise, só recentemente foi traduzido. A apresentação – redigida pelo tradutor – delineia a questão proposta pelo autor, a saber, a incidência da pulsão de morte não apenas na virada conceitual da metapsicologia, mas na ruptura definitiva do saber psicanalítico com o legado do pensamento científico do século XIX. Tratase de como as considerações presentes em Além do princípio de prazer ultrapassam e contradizem o próprio quadro epistemológico em que são geradas, levando a uma necessidade de reconstrução conceitual partindo de uma tensão interna de natureza filosófica, em que “o Freud empirista descortina um campo de experiência que extrapola os limites prévios de sua própria investigação” (p. IX).

Kimmerle inicia sua exposição com a demarcação da lógica inerente ao princípio de prazer como conceito fundamental de regulação do aparelho psíquico, ao qual se submetem todos os processos que ocorrem em seu interior. Essa regulação ocorre segundo duas funções distintas, a evitação do aumento de tensão e a sua eliminação, as quais são tomadas como um princípio geral de constância da quantidade de excitação.

A contradição entre a universalidade do princípio de prazer e o lugar restrito que este ocupa em nossa experiência empírica é explicada pela necessidade de inibição do princípio de prazer, quer seja pela instauração do princípio da realidade, quer seja pela repressão. O que está em jogo nos dois casos é a oposição que o princípio do prazer encontra na função de autoconservação. Disso decorre que por exigência do mundo externo há cisão no aparelho psíquico, criando uma instância de eu, cuja função é a inibição do prazer avaliado como perigoso. Portanto, a cisão de princípios implica uma cisão topográfica e pulsional, o que configura o conflito entre pulsões sexuais e pulsões do eu como a oposição fundamental da primeira tópica.

Nessa configuração inicial coloca-se uma questão pertinente com relação à função de censura da vida mental, já que como pressuposto da repressão há uma certa dialética de saber o proibido. Desse modo haveria um enigma inerente à teoria da repressão, que se desenrolaria na fronteira entre a consciência e a inconsciência. Entretanto, esse enigma que coloca uma ilusão sobre si mesmo, cujo saber é pressuposto em sua própria recusa, foi trabalhado de forma superficial por Freud, que equacionou a problemática na primeira tópica por meio da célebre fórmula de que o prazer reprimido engendra desprazer consciente. Como podemos organizar esse problema do ponto de vista epistemológico?

O que está em jogo é esclarecer algo da dimensão de uma observação empírica na qual aparece uma oposição. O desprazer indica uma causa que a consciência não sabe, que está para além dos seus limites. Assim, é preciso supor que parte do psíquico é inconsciente, ou seja, que há saber inconsciente. Torna-se necessário, do ponto de vista metapsicológico, determinar a fronteira que delimita esses dois pólos, inferindo a regra que estabelece esse limite, a saber, a hipótese da repressão. Desse modo, aquilo que escapa à consciência do sujeito, o saber inconsciente, transparece ao teórico, caso ele consiga decifrá-lo por meio de uma regra. Ele o faz na medida em que identifica o que está em operação nisso que determina a divisão no aparelho, ou seja, no que ele formula como sendo o mecanismo de repressão. Em contrapartida, no âmbito da clínica, pode-se operar um ajuste dessa oposição, na medida em que é possível, do ponto de vista metapsicológico, subsumi-la a uma regra geral – o princípio do prazer.

A virada para a segunda teoria pulsional ocorre quando aquilo que contradiz a regra não se dá apenas no aspecto da confusão do sujeito, mas é impermeável à própria lei metapsicológica. Sendo assim, o empírico não é aparentemente contraditório, de modo que possamos desvendar as leis dessa contradição. Ele é realmente contraditório, posto que contradiz a própria lei que o determina. Para resumir, temos dois níveis de problematização distintintos: um em que se trata de resolver uma contradição empírica ou psicológica por uma regra de determinação metapsicológica; outro em que se trata de uma contradição lógica, inerente à própria regra de determinação metapsicológica.

Entende-se que no quadro teórico da primeira tópica a desordenação causada pelo eu aos processos econômicos, em função da repressão e da autoconservação, são explicadas no próprio contexto do princípio do prazer. Ou seja, “não haveria a necessidade de um princípio de regulação para além dos já descritos mecanismos de prazer e desprazer” (p. 41), o que, em síntese, quer dizer que todo desprazer é secundário a uma regulação inerente ao princípio do prazer. Não haveria, portanto, um desprazer originário, para além do princípio do prazer. O desprazer comparece, nessa primeira construção, como um mero ardil do prazer. Segundo Gabbi Jr., os princípios são tomados como elementos constitutivos de uma unidade, o prazer, sendo concebidos como “pares de opostos no interior de uma oposição” (p. IX), criando entre os princípios “relações de dependência lógica e não de exterioridade, como ocorreria numa compreensão empirista da psicanálise” (p. X).

Em outras palavras, os limites da teoria metapsicológica freudiana se evidenciam quando ela se propõe a explicar o eu como instância voltada para autoconservação. O eu é o mecanismo que o aparelho psíquico desenvolve para se proteger das fontes de tensão do mundo externo. No entanto, essas fontes de tensão são também internas. Nesse sentido, a explicação empírica do mecanismo de repressão dá conta da oposição interna ao aparelho psíquico. Porém, aquilo que o aparelho produz para se proteger dessa contradição conserva o que internamente a engendra. A explicação empírica funciona até o ponto onde ela produz internamente uma instância que a contradiz – o eu. A partir daí exige-se uma releitura da primeira teoria que suponha uma relação de dependência lógica entre os dois princípios e não apenas uma complementaridade empírica. O que por sua vez exige que se tome a teoria por sua construção, e não mais pelas determinações da realidade dada.

Como se sabe, a hipótese de um desprazer originário será sustentada pela análise da compulsão à repetição, efetivada no texto de 1920 a partir de três classes de fenômenos: as neuroses traumáticas, o jogo infantil e as neuroses de transferência.

A irrupção do traumático evidencia a falha no domínio do estímulo pulsional, levando à permanência de uma impressão persistente que é recordada por meio de repetição inconsciente, como no caso dos sonhos pós-traumáticos. Assim, a repetição do desprazer originário abre espaço para a consideração de uma região para além do princípio de prazer: a tendência masoquista do eu.

O jogo do Fort-Da constitui um segundo exemplo da compulsão à repetição, que pode ser esquematizada nos seguintes aspectos: (1) inversão da passividade pela atividade; (2) expressão de pulsão de domínio; (3) impulso suprimido de vingança contra a mãe; (4) diferenciação da mãe, que envolve tanto uma aceitação quanto uma denegação de sua ausência, cujo produto – a brincadeira – é um símbolo da unidade perdida entre mãe e bebê, de tal forma que “a negação da realidade pela imaginação torna a realidade suportável” (p. 47). Assim, no processo de constituição originária do eu há não apenas uma identificação em termos positivos – uma analogia entre eu e ideal de eu, por exemplo – mas também uma identificação que é marcada pela negatividade. Ou seja, na identificação primária em jogo na experiência de desamparo do bebê, o que se observa é uma dinâmica paradoxal entre recordação e falta, em que o reconhecimento é dado por intermédio de uma separação.

Nesse ponto o raciocínio freudiano é taxativo: a possibilidade de representação e de constituição do eu só é possível por meio da frustração, ou seja, a representação do objeto só é possível a partir de sua perda. Isso é evidente no auto-erotismo, em que a satisfação dada pela sucção do próprio dedo é marcada pela falta do objeto da ação específica – o seio materno. É dessa forma que se pode interpretar a máxima freudiana de que todo encontro de objeto é um reencontro. Não só porque o objeto da realidade é reflexo de uma fantasia de objeto que o pré-existe, mas além disso, que é a perda do objeto que possibilita a representação e a criação da fantasia. Portanto, para além da positividade da teoria representacional, é a negatividade que se coloca como sua condição de possibilidade.

Essa interpretação chega a uma noção de eu que é diferente daquela defendida pela concepção moderna de sujeito, pois o que está em questão é um eu que só pode ser entendido a partir de uma constituição mediada pela experiência de alteridade. Isto é, na perspectiva moderna, sujeito e objeto – eu e mundo exterior – presentificam-se mutuamente na realidade dada. Já no jogo do desaparecimento, o objeto paradoxalmente apresenta-se por uma ausência, e o eu constitui-se na negação dessa ausência na realidade. O eu do bebê é, assim, uma construção que se forma pela repetição de uma experiência perdida de simbiose com a mãe. Emerge do desamparo em direção a um processo de identificação, que concilia em uma unidade o desejo e a realidade. Evidencia-se, portanto, uma ambigüidade conceitual que permeia toda a metapsicologia freudiana. Há duas concepções de objeto – o objeto de satisfação da pulsão e o objeto de identificação – que implicam duas concepções de eu – o eu solipsista e o eu constituído na e pela experiência intersubjetiva.

A análise da compulsão à repetição permite pensar o fenômeno da repetição como uma forma de atividade pulsional, e não sua mera reprodução na memória ou sua atuação na transferência. Além disso, permite fundamentar uma nova concepção de temporalidade, marcada pela circularidade (p. XII-XXIII). Isso se dá pela retomada de um aspecto essencial da teoria da sedução: a idéia da ressignificação a posteriori. A diferença é que antes a sedução era entendida a partir de duas experiências positivas de encontro do sujeito com o objeto – uma no trauma, outra na memória – em que se ressignifica a experiência com base em dois eventos sucessivos no tempo. Dessa forma, a significação era circular, mas o tempo linear. Agora são duas negatividades que se alternam perpetuamente em um tempo circular, e configuram-se como a possibilidade dialética da constituição subjetiva. A noção de circularidade, portanto, aplica-se à própria temporalidade. É a partir dessa dupla negatividade circular – realidade que se apresenta como negativa e negação dessa ausência – que toda e qualquer significação pode aparecer. A recordação é a positivação de um passado perdido, que antes dela jamais se deu positivamente, que só se mostra como perda, como falta ser.

É no interjogo dialético entre o retorno do desprazer originário em forma de denegação que Kimmerle irá definir sua compreensão da oposição de princípios em psicanálise, baseado em uma dialética reflexiva de inspiração hegeliana. A partir desse reordenamento o embaraço dos pressupostos freudianos pode ser equacionado, suprimindo a ambigüidade entre metapsicologia e clínica criada por Freud: “O preconceito de uma análise elementar por parte de Freud e sua projeção numa história de desenvolvimento colocaramno diante de uma falsa alternativa. Ele acreditou que tinha de decidir se para ele os fenômenos de repetição deviam ser inseridos no princípio de prazer ou associados a um princípio anterior de regulação, mais originário do que aquele. Ao colocar-se diante dessa alternativa, embaraçou a metapsicologia. Em vão, procurou repetidamente esboçar, segundo essa análise elementar, uma unidade livre de contradições que não requeresse ligar elementos isolados uns dos outros (portanto, abstrações) numa totalidade funcional, no lugar de explicitar como passar para uma outra análise constituída como momentos duais de uma relação dialética reflexiva” (p. 66-67).

Assim, como aponta Gabbi Jr. no título de sua apresentação, seria na passagem do mecanicismo do princípio do prazer para a teleologia dirigida pela morte que se encontraria a verdadeira ruptura epistemológica operada pelo saber psicanalítico. A tematização dessa passagem é o grande mérito de Kimmerle, pois abre espaço para se pensar um fundamento intencional para a vida psíquica, em uma lógica que transcende o mero determinismo mecânico ou biológico. Nesse trabalho pode-se encontrar uma série de questões pertinentes para pensar a compreensão psicanalítica de homem, que passa não só pelo princípio conservador da pulsão de morte, mas também por sua temporalidade própria e sua irrepresentabilidade. Nesse sentido, é uma leitura rigorosa dos percalços dessa enigmática feiticeira que é a metapsicologia.

Contudo, pode-se questionar a esperança de síntese das tensões em psicanálise, esclarecendo e iluminando aquilo que o horizonte cultural – no qual o pensamento freudiano desenvolveu-se – legou como preconceito para a posterioridade. Há de se perguntar se não existe, nesse caso, um retorno daquilo que é a própria restrição de pensamento criticada pelo autor. Afinal, a verdadeira ruptura do saber psicanalítico não foi responsável por jogar o homem moderno de volta ao jogo de luz e sombras do trágico? Não marcou a ambigüidade constitutiva tanto no âmbito dos sujeitos psíquicos quanto no cerne do próprio modo de produção de conhecimento psicanalítico, ou seja, em nível epistemológico?

Nesse sentido, a interpretação de Kimmerle complexifica e elabora os princípios do pensamento freudiano, mas talvez sofra do mesmo pressuposto iluminista que procura combater. Isso se evidencia no referencial hegeliano, que apesar de tentar dar conta da perda de garantias do sujeito do conhecimento frente ao devir histórico, garante-o teleologicamente em uma síntese última, que é o absoluto. Observa-se, assim, o mimetismo do próprio problema que se aborda: o movimento de denegação e o retorno no seio dos princípios epistemológicos.

 

 

Endereço para correspondência
Érico Bruno Viana Campos
e-mail: ericobvcampos@uol.com.br

Roberto de Oliveira Preu
e-mail: robertopreu@uol.com.br

 

 

1 Psicólogo; Mestre e Doutorando em Psicologia pelo Instituto de Psicologia (USP); Bolsista CNPq.
2 Psicólogo; Mestre em Psicologia (UFF); Doutorando em Psicologia pelo Instituto de Psicologia (USP); Bolsista CAPES.