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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.9 n.16 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Psicanálise é trabalho de fazer falar, e fazer ouvir1

 

Psychoanalysis is labor of making (someone) speak, and making (someone) listen

 

 

Luiz Augusto CelesI

Universidade de Brasília. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo por objetivo caracterizar a psicanálise em seu sentido originário e fundamental de trabalho de tratamento, o presente artigo propõe entendê-la como trabalho de “fazer falar, e fazer ouvir”. O entendimento assim formulado é apresentado como resultado de uma conquista da análise dos três principais modos com os quais Freud compreende a tarefa psicanalítica, quais sejam, vencer resistências, interpretação e construção. As relações de dependência e suplementariedade entre falar e ouvir também são estabelecidas, em articulação com as posições de analista e analisando, como condição para o tratamento psicanalítico e sua realização.

Palavras-chave: Sentido da psicanálise, Falar e ouvir em psicanálise, Associação livre, Resistências, Interpretação, Construções em análise, Posição do analista.


ABSTRACT

With the aim of characterizing psychoanalysis in its original and fundamental sense of labor of treatment, the present paper proposes to understand it as labor of “making (someone) talk, and making (someone) listen”. Such an understanding is presented as result of a conquering of analysis of the three main ways by which Freud comprehends the psychoanalytic task, namely: the overcoming of resistances, interpretation and construction. The relations of dependence and supplementarity between speaking and listening are also established, in articulation with the positions of the analyst and the patient, as a condition for psychoanalytic treatment.

Keywords: Sense of psychoanalysis, Speaking and listening in psychoanalysis, Free association, Resistances, Interpretations in analysis, Constructions in analysis, Position of the analyst.


 

 

Abordar o sentido da psicanálise comporta ou suporta diversas facetas. Desde há alguns anos nossa investigação tem privilegiado sua origem e fundamento, o trabalho de tratamento inicialmente da neurose. Tendo em outro texto2 circunscrito o sentido originário e fundamental da psicanálise como trabalho, cabe ainda salientar, antes de lançar nova questão, que embora diversas sejam as possibilidades das abordagens ao sentido da psicanálise, sua indicação como trabalho não é uma escolha arbitrária. Ela não somente propõe entender a origem efetiva da psicanálise a partir de sua primeira caracterização como talking cure, mas também sugerir sua “essência” ou sua “verdadeira” natureza, aquela que seja capaz de justificar e dar sustentação a seus diversos desdobramentos (práticos e teóricos), inclusive desdobramentos ou desenvolvimentos históricos. Isso também significa dizer que o sentido originário e fundamental da psicanálise permite sua delimitação. Pois bem, esse sentido como o de um trabalho – trabalho de tratamento – responde de imediato à consabida compreensão de que não há psicanálise sem análise.

Essa abordagem originária e fundamental não dispensa aproximações diversas (e sucessivas), pois exige não somente sua caracterização como tratamento, mas também como investigação e conhecimento, aspectos que por várias vezes Freud deu à psicanálise. Entre as diversas aproximações, nesse momento interessa caracterizar concretamente o trabalho que é a psicanálise.

 

1. Psicanálise é trabalho de falar … e ouvir apropriadamente

Para se caracterizar o trabalho psicanálise de maneira concreta, recorre­ se a um episódio da experiência de Freud com Charcot, o qual não teve origem em um tratamento psicanalítico propriamente falando, mas que pode revelar o que significa esse trabalho.

Como se sabe, em 1885 Freud esteve em Paris por seis semanas para estudos com Charcot, médico que se dedicava a um trabalho de caráter inusitado com histéricas com a utilização da hipnose. Ao mesmo tempo que realizava experiências hipnóticas com histéricas, Charcot mantinha o Laboratório Patológico, onde Freud realizou pesquisas microscópicas de cérebros infantis, em uma preocupação pela anatomia cerebral. Freud votava grande respeito e admiração por Charcot, tomando-o como grande mestre3. Muitos anos depois, Freud recorda-se e conta, em História do movimento psicanalítico, um episódio que se transcreve inteiro, devido à riqueza de seus detalhes:

(…) participava eu de um desses saraus que dava Charcot; encontrava-me perto do venerado mestre, a quem Brouardel, pelo que parecia, contava uma muito interessante história do trabalho daquele dia. Ouvi no começo de maneira imprecisa, e pouco a pouco o relato foi cativando minha atenção: um jovem casal de terras distantes do Oriente, a mulher com um padecimento grave (neurose) e o homem impotente ou de todo inábil. “Tâchez donc” ouvi que Charcot repetia, “je vous assure, vous y arriverez”. Brouardel, que falava em voz mais baixa, devia ter expresso então seu assombro pelo fato de que em tais circunstâncias se apresentaram sintomas como os da mulher. E Charcot pronunciou imediatamente, com brio, as seguintes palavras: “Mais dans des cas pareils c’est toujours la chose génitale, toujours… toujours… toujours!”. E dizendo-o cruzou os braços sobre o peito e se vergou várias vezes dos pés à cabeça com a vivacidade que lhe era peculiar. Sei que por um instante se apoderou de mim um assombro quase paralisante e me disse: “Se ele o sabe, por que nunca o disse?”. Mas essa impressão logo foi esquecida; a anatomia cerebral e a produção experimental de paralisia histérica absorviam todo o meu interesse (Freud, 1914d, AE, p. 13; SB, p. 23-4)4.

Assoun (1993, p. 89-93) discute esse episódio a fim de revelar a “cena primitiva”, que marca as investigações freudianas sobre a histeria como determinante da compreensão da função da sexualidade na constituição e na determinação da histeria, muito antes de Freud tematizá-la de maneira apropriada. A seguir, acompanha-se a análise de Assoun, não com o objetivo de mostrar a “coisa” sexual na origem da psicanálise, como faz o autor, mas para buscar o caráter próprio ao trabalho psicanálise.

No episódio enfocado, quando se toma a surpresa de Freud expressa na frase “se ele o sabe, por que não o disse?”, percebe-se que Freud queixa-se de Charcot não dizer o que precisamente acabou de dizer. O que, então, Freud está lamentando em específico, já que o que foi explicitamente dito não justificaria a queixa?

Primeiramente, sob uma ótica mais óbvia, podemos compreender que Freud lastima o fato de Charcot não dizer em público o que disse a Brouardel reservadamente, ou seja, de não dar publicidade ao que falou, sendo a publicidade uma das condições, como se sabe, de se fazer ciência. Ao contrário, Charcot pronunciou-se na intimidade de seu lar, por ocasião de uma festa, que não obstante agrupar nomes notórios da medicina de Paris da época, não constituía ambiente próprio à divulgação do conhecimento ou da ciência. A queixa de Freud pode ser entendida pelo fato de Charcot dizer o que disse como quem somente emite uma opinião, e dela tira satisfação, diante de um círculo social restrito, em vez de se pronunciar como cientista. A surpresa de Freud justifica-se, então, pelo contraste entre o que Charcot ensinava publicamente sobre a histeria em suas conferências na Salpêtrière e nas pesquisas de anatomia patológica em seu laboratório, e aquilo que intimamente parecia compreender da histeria. Freud pergunta-se, portanto, por que Charcot não toma em sua devida conseqüência o que disse, ou por que o diz irresponsavelmente. É de uma certa “maneira de dizer” que carece o dizer de Charcot. Segundo Freud, ele não o disse verdadeiramente – essa é a interpretação de Assoun (1993, p. 89) –, não revelando nem mostrando apropriadamente o fator fundamental da sexualidade na determinação da histeria. Utilizando-se uma expressão de feitio lacaniano, talvez possa-se entender a fala de Charcot no episódio narrado como “fala vazia”, não se importando com a verdade. Isso significa dizer que a fala de Charcot está determinada pelo efeito de gozo que provoca (sobre Brouardel e os outros do círculo). Não se trata, nesse caso, dele ter proferido uma fala reveladora, mas sim uma fala mediadora –mediadora de sua fruição, como acontece nos chistes. No entanto, o que torna a fala de Charcot não reveladora, dado que ele disse o que era para dizer, a ponto de despertar a surpresa de Freud?

Sob ótica diversa da acima exposta, a queixa de Freud pode ter outro lastro de motivações. É notável que Freud imediatamente tenha se esquecido do episódio, voltando seu interesse à anatomia do cérebro e à indução experimental de paralisias histéricas. Outra coisa, que não a “coisa” dita por Charcot, ocupava o interesse de Freud. Dois aspectos se revelam, então:

1. Assoun, na obra citada, sugere que Freud esqueceu do episódio precisamente por sua submissão ao mestre que tanto o fascinava, querendo dizer que Freud o teria esquecido pois seu mestre também o fizera. Também Charcot, tal como Freud, tinha sua preocupação voltada para outro interesse – nesse caso, tinha o mesmo interesse que fez Freud esquecer o que ouviu de Charcot. Assim, a queixa de Freud por Charcot não ter se pronunciado pode ser conseqüentemente entendida como censura por Charcot, tendo “esquecido” o que disse, não ter “ouvido” o que ele mesmo falou. Mas por que Charcot não “ouve” o que de modo tão claro e determinante disse? A partir desse ponto vai se privilegiar um caminho de elaboração distinto do que segue Assoun na obra citada. Isso porque aqui interessa caracterizar o trabalho psicanálise, a partir do que esse episódio entre Freud e Charcot figura, e não apontar a natureza sexual do que foi dito por Charcot, a qual teria sido o motivo de seu esquecimento, caminho privilegiado por Assoun.

2. Freud está dizendo que ele esqueceu do que Charcot proferira; portanto, o próprio Freud não “ouviu” conseqüentemente o que Charcot disse, tampouco o fez qualquer outra pessoa do círculo de participantes da conversa. Não existiu um “ouvir” verdadeiro. O “ouvir” de Freud ou de outra pessoa seria exatamente a condição para que Charcot, também ele, ouvisse em toda a sua conseqüência o que falou. No caso de Freud seu “ouvir” somente se deu posteriormente, quando se lembrou do que então ouviu, e aí o narrou em História do movimento psicanalítico. Não o narrou de maneira descomprometida, note-se, como simplesmente alguém conta um caso, mas integrando o acontecido à história da psicanálise, da qual o episódio constitui cena originária. Ao assim proceder, Freud efetivamente “ouve”, mas quando Charcot já não podia, por meio desse ouvir de Freud, ouvir ele também o que dissera.

O episódio e a interpretação dele proposta servem de exemplo – no sentido psicanalítico do termo (o exemplo é a coisa) – do significado da atenção à fala do neurótico que Freud dizia caracterizar a psicanálise. Se há referência a uma atenção à fala é porque trata-se, no trabalho psicanálise, de “falar”, mas um “falar” que corresponde exatamente a um “ouvir” – este, por sua vez, responsável pelo “ouvir” daquele que fala. Poder-se-ia dizer que no trabalho psicanálise trata­se de o analisando “falar” o que foi esquecido, sob a condição do “ouvir” específico do analista para que o analisando também “ouça” o que fala. Tomando-se a interpretação do exemplo de Freud com Charcot como figurativo do acontecer psicanalítico, compreende-se que mais do que condição, o ouvir do analista faz o analisando ouvir (como o ouvir de Freud teria feito Charcot ouvir o que ele próprio disse); nesse caso, ouvir constitui um ato, não simplesmente uma percepção. O processo de psicanálise assim resumido nomeia-se na regra técnica da associação livre, convite explícito para que o analisando fale de modo específico e da abstinência, condição imposta ao analista de que não tenha outro ouvido, senão aquele voltado ao modo da atenção flutuante para a fala do analisando.

A sugestão de que “falar e ouvir” caracterizam o trabalho que se aproxima do sentido concreto de psicanálise surgiu a partir de uma situação outra que não uma psicanálise: o episódio de Freud com Charcot. Resta verificar se essa sugestão mostra-se como entendimento adequado do trabalho psicanálise propriamente dito, regido pela regra técnica fundamental e por suas regras derivadas.

 

2. Três perspectivas da psicanálise como trabalho de fazer falar …e fazer ouvir apropriadamente: vencer resistências, interpretação e construção

a) “Vencer resistências” revela a psicanálise como trabalho de fazer falar

Freud reconhece que o tratamento de Bertha Pappenheim (nome real de Anna O.) realizado por Breuer deu início à psicanálise entendida como trabalho de fazer a histérica falar o que foi esquecido. Assim Freud retoma as palavras de Breuer:

Descobrimos com efeito, no início para nossa máxima surpresa, que os sintomas histéricos individuais desapareciam em seguida e sem retornar quando se conseguia despertar claramente a lembrança do processo ocasionador, convocando ao mesmo tempo o afeto que o acompanha, e quando o enfermo descrevia esse processo da maneira mais detalhada possível e expressava em palavras o afeto (Freud e Breuer, 1895d, AE, p. 263; SB, p. 311).

Dessa vez a surpresa de Freud não foi vã, nem a impressão esquecida. Ao contrário, Freud toma a sério a novidade, e em conseqüência começa a exigir que suas pacientes histéricas se esforcem para lembrar as origens de seus sintomas e descrever com riqueza de detalhes cada uma delas.

Sabe-se que o achado propiciado por Bertha foi ocasional: um certo dia, durante a hipnose do anoitecer, Bertha relata para Breuer a origem de um de seus sintomas, evocando novamente todo o afeto que o acompanhou e traduzindo-o em palavras; quando desperta da hipnose, não apresenta mais o sintoma cuja origem descrevera. Se Breuer, a partir desse episódio e ainda durante o tratamento de Bertha, e Freud no tratamento de suas pacientes – após tomar conhecimento do ocorrido com Bertha –, utilizaram à farta o procedimento sugerido pelo caso de Bertha (procedimento ao qual aliás, ela mesma deu o nome de talking cure), é porque esses médicos, surpresos, ouviram o que Bertha disse, não reduzindo suas surpresas a alguma outra preocupação anterior.

A invenção da “cura pela conversa” ou “cura pela fala” realizada por Bertha encontra, particularmente em Freud, uma disposição para levá-la até suas últimas conseqüências5. É assim que Freud, mesmo não se adaptando bem à hipnose, aprende com ela que é possível fazer a histérica lembrar-se de cenas ou episódios que supostamente estariam esquecidos: bastava insistir veementemente e garantir à paciente que a recordação dar-se-ia. Mas nem sempre a insistência foi suficiente. Freud viu-se obrigado a “inventar estratégias” para vencer as resistências à recordação. Foi então que usou da pressão de sua mão sobre a testa da paciente, assegurando que logo após ela lembrar-se-ia de alguma coisa ou veria alguma imagem que deveria relatar. Pois exatamente a fala de alguma palavra ou frase, ou a descrição em palavras de imagens, ocorridas sob a pressão na testa, invariavelmente levavam à recordação da cena buscada.

Chama a atenção de Freud o esforço que lhe era exigido – insistência, pressão sobre a testa – para que a histérica acabasse por recordar-se da cena esquecida e a dissesse. A essa dificuldade Freud chamou “resistência” (Freud e Breuer, 1895d, AE, p. 168; SB, p. 203).

O conceito de “resistência” vem tematizar às avessas o trabalho de Freud – pois se há trabalho (é porque) há resistência. A “resistência” testemunha o esforço de Freud em fazer a histérica falar as cenas esquecidas originárias de seus sintomas. O trabalho psicanálise não se contenta somente em ser um trabalho de falar, mas envolve necessariamente vencer resistências, portanto, fazer falar: a psicanálise se dá a entender, então, como trabalho de fazer falar.

A terapia, justifica Freud, não consiste em extirpar nada (…) mas somente em dissolver a resistência e assim facilitar à circulação, o caminho por uma região antes bloqueada (Freud e Breuer, 1985, AE, p. 296; SB, p. 348

Trata-se, como se vê, de circular com a fala pelos caminhos das lembranças inicialmente inalcançáveis.

O trabalho de fazer falar por meio da insistência logo encontra um outro tipo de resistência: a oposição que a paciente Emmy von N. faz ao fato de Freud interromper sua narrativa, não deixando que ela fale tudo o que tem a dizer – “é como se, comenta Freud, [a paciente] se houvesse apoderado de meu procedimento e aproveitasse a conversação, de aparência frouxa e guiada pelo acaso, para completar a hipnose” (AE, p. 78; SB, p. 100).

Desta maneira (conforme comenta Strachey em nota de rodapé na mesma página de onde a frase anterior foi extraída), Freud emprega o procedimento que chamará mais tarde associação livre – que significa, explicitamente, convidar o paciente a dizer o que lhe ocorre abrindo mão de seu julgamento a respeito. O convite à associação livre constitui o modo específico de fazer falar, e a resistência será entendida como o que interrompe a fala em associação livre.

Atrelada à associação livre, a resistência ganha grande importância em psicanálise, a ponto de Freud defini-la como trabalho de vencer resistências: “em termos gerais, pode-se conceber o tratamento psicanalítico como uma pós-educação dessa índole para vencer resistências interiores” (1905a, AE, p. 256; SB, p. 277). Ainda insiste Freud muito posteriormente:

A cura analítica impõe ao médico e enfermo um difícil trabalho que é preciso realizar para cancelar umas resistências internas. Mediante a superação destas, a vida anímica do enfermo se modifica duradouramente, se eleva a um estágio mais alto do desenvolvimento e permanece protegida frente a novas possibilidades de adoecer. Este trabalho de superar as resistências constitui a função essencial do tratamento analítico; o paciente tem de realizá-lo e o médico lhe possibilita fazê-lo com a ajuda da sugestão, operando em um sentido educativo. Por esse motivo, o tratamento psicanalítico tem sido apropriadamente qualificado como um tipo de pós-educação (1916-17, AE, p 410-11; SB, p. 526-7).

Vencer resistências constitui o difícil trabalho do tratamento psicanalítico. Se a resistência é entendida como uma certa inércia característica da neurose (devido à sua relação com a civilização), uma espécie de resistência ao tratamento, à cura (Kur), a alguma modificação da própria inércia (mas também repetição) neurótica, deve-se assimilar que a psicanálise trata de, vencendo resistências, fazer-se acontecer, dirimindo a inércia do modo neurótico de satisfação. Desse modo, vencer resistências constitui o próprio trabalho de fazer psicanálise, para se alcançar psicanálise. Psicanálise será, então, o trabalho que se realiza para se fazer psicanálise. A psicanálise (como vencer resistências) é o trabalho em direção à associação livre, que é a meta a se alcançar para fazer psicanálise. Assim, psicanálise é, ao mesmo tempo, trabalho de realizar psicanálise. Dessa maneira, vencer resistências, ou seja, fazer falar, é o sentido do trabalho psicanálise, o que faz confundir meio e fim em psicanálise: este seria seu próprio meio de fazer-se. A psicanálise também então, caracteriza­se por seu fim mais imediato, sua finalidade em cada sessão, a cada psicanálise, como o fim (a meta) de alcançar-se, de realizar-se o tratamento psicanalítico, de fazer-se o trabalho psicanálise.

A aproximação até aqui empreendida em direção ao sentido da psicanálise caracterizou seu trabalho e seu fim, este que é alcançar o trabalho psicanálise, quando então se realiza psicanálise e esta não finda.

Na última passagem de Freud, acima transcrita, há ainda um outro interesse particular que leva a mais uma aproximação ao sentido da psicanálise. Trata-se da vinculação que ele faz entre o trabalho psicanálise e seu valor, como sendo de caráter educativo ou pós-educativo. A discussão desse vínculo comporta alguns aspectos que merecem atenção.

Lembrando-se que Freud (1937c) faz diversas ressalvas à expectativa da cura permanente, deve-se ainda chamar atenção para a função de pós-educação, à qual Freud se refere para mostrar que se trata, primeiro, de entender a neurose como produto ou destino civilizatório. Segundo, tratando-se a resistência de uma certa inércia característica da neurose, uma recusa à cura, ou seja, à análise, a psicanálise se esforça por, vencendo resistências, desfazer a inércia do modo neurótico de satisfação. Como se fosse uma educação segunda em relação à educação civilizatória.

Aqui se alcança estabelecer como o efeito de análise na sociedade dos homens (repetindo a já citada idéia de Freud) não se restringe ao alívio individual do neurótico e, talvez, à retomada de sua possibilidade de inserção nas tarefas sociais que lhe são exigidas. Além disso, o valor inerente ao trabalho psicanálise seria sua operação “em sentido educativo”, sua qualificação pós-educativa. O valor da psicanálise não estaria, assim, em um de seus efeitos, mas em sua operação de vencer resistências. Superando resistências, a psicanálise age pós-educativamente: modifica “duradouramente o enfermo”, forma-o (ou “pós-forma-o”), diferentemente do que ocorre na inércia neurótica; vincula-o de outro modo à sociedade; estabelece outros fundamentos de sua vida na civilização.

Pode-se pensar que o conceito de sublimação vem nomear esse valor a um só tempo individual e civilizatório do trabalho psicanálise. Em parte, essa compreensão diferencia a psicanálise de uma concepção individualista6, mas também de uma compreensão socialista, pelo menos enquanto esta tem o sentido de oposição ao individualismo. O sentido educativo inerente ao trabalho psicanálise lhe confere valor e vincula a psicanálise do individual ao social. A utilização do termo “educativo” por Freud certamente não foi vã ou aleatória. Se a educação, a primeira, a ação civilizatória, faz instruir os homens (cada um deles) para o convívio social (o que se pode resumir pela renúncia e pela sublimação pulsional), a psicanálise, vencendo resistências, pós-educa, não para uma oposição à civilização – pois não haveria assim realização educativa –, mas para a civilização, para um “re-confronto” com o mal-estar na civilização7, com a renúncia pulsional e a sublimação.

Assim, é possível entender o procedimento de psicanálise de vencer resistências como tendo uma função pedagógica. Tomando-se o sentido em que Vaz afirma constituir a atividade científica um exercício de formação, sendo o seu éthos um “éthos pedagógico” (1974, p. 66), entende-se que a atividade psicanalítica é pedagógica, isto é, educa, no sentido formativo. O trabalho psicanálise promove uma formação, inclusive a formação psicanalítica. A exigência da análise pessoal para a formação do psicanalista encontra nessa reflexão seu sentido maior: maior do que qualquer idéia, bem ou mal empregada, de despatologização do analista ou de sua “pós-educação”, segundo o sentido restrito da ética do desejo. A psicanálise, entendida fundamental e originariamente como trabalho específico de fazer falar, constitui também o seu “éthos como éthos praxeológico” (p. 68), que pode ser compreendido como uma educação do fazer, uma pós-educação do ato, da práxis daquele que faz psicanálise. Dessa maneira, fazer psicanálise tem, pelo próprio motivo da submissão à especificidade desse trabalho, uma função formadora, que Freud qualifica de pós-educação8. Lembrando o julgamento freudiano de que o valor social da psicanálise encontra-se justamente em seu caráter de prática terapêutica (Freud, 1919a), o sentido ético da psicanálise ganha, nessas considerações, demarcações bastante precisas, quais sejam, as de que o ato psicanalítico institui uma práxis e uma Paidéia.

Freud ainda indica o meio pelo qual se dá a pós-educação, a saber, vencendo-se resistências, o que também pode significar vencer a estrutura independente na qual se constituiu a neurose como modus vivendi9, sedimentada por força dos ganhos econômicos que a neurose propicia, porque acaba por se constituir meio eficaz de satisfação pulsional. Expresso de um modo mais psicanalítico que metapsicológico, trata-se do gozo (geralmente narcísico) que a neurose possibilita e é, e de cuja fruição o ser humano não abre mão com facilidade. Da resistência como impedimento parcial à associação livre, acaba por se constituir o que foi chamado de reação terapêutica negativa, que significa, em sua raiz, o impedimento ao tratamento psicanalítico, uma defesa dos modos tradicionais de satisfação pulsional, conformados ou esculpidos pela exigência civilizatória da renúncia pulsional, ainda que esses conceitos não se sobreponham nem se confundam10.

A sugestão para vencer resistências de que fala Freud não pode fazer esquecer a recomendação fundamental do trabalho psicanálise dar-se na abstinência: em diversos momentos Freud já observara que não se deve induzir o paciente a tomar essa ou aquela atitude na vida, e nem se deve estabelecer metas do tratamento. Então, como entender a sugestão que é, na citação transcrita, legitimada como meio de pós-educação definidora do trabalho psicanálise? Mesmo não desenvolvendo em amplitude as implicações e efeitos das considerações – que não têm menor importância – sobre a sugestão na psicanálise, é possível, a partir da passagem citada, dizer que não cabe o entendimento de que a sugestão seja meio de pós-educação, mas sim, diferentemente, que ela seja meio de vencer resistências. É como se o psicanalista tivesse a função de “sugerir” ao paciente que – parafraseando­se outra passagem de Freud – mais vale a infelicidade comum do que o sofrimento neurótico.

A caracterização do trabalho psicanálise como vencer resistências, para fazer falar o paciente, não estaria completa sem a especificação – nesse momento da construção da psicanálise – da função do analista, anterior mesmo à função de sugestão como indicada acima. Pois é precisamente ainda nos Estudos sobre a histeria, no caso da Senhora Emmy von N. – aquele que fez Freud aproximar-seda associação livre – que se pode encontrar Freud dedicando-se ao “ouvir” como trabalho psicanálise “paralelo” ao trabalho de fala do analisando.

Três dias antes, quando começou a queixar-se de seu medo de manicômio, eu a havia interrompido logo após seu primeiro relato de que ali se amarravam os doentes a umas cadeiras. Noto que assim não consigo nada, que não posso poupar-me de escutá-la em cada ponto até o final (Freud e Breuer, 1895d, AE, p. 83; SB, p. 105).

Assim, o fracasso da intervenção – já avaliado seu efeito negativo sobre o tratamento de Emmy por meio da escuta – “ensina” Freud a ouvir as histórias de suas pacientes em todos os pormenores, até a última palavra. Aliás, isso torna-se tão essencial à psicanálise, que n’A interpretação dos sonhos é Freud (1900a, AE, p. 127; SB, p. 113) quem, por sua vez, vai pedir ao leitor que empreste sua atenção aos detalhes de sua vida e interesses para acompanhar as interpretações dos próprios sonhos ali narradas. Mas se vencer resistências permitiu caracterizar o trabalho psicanálise como fazer falar, a função do ouvir do analista também como fazer ouvir ainda não está demonstrada.

b) A “interpretação” mostra o trabalho de fazer ouvir como complemento do trabalho de fazer falar que caracteriza a psicanálise

Viu-se que o trabalho psicanálise consolida-se na técnica de associação livre, implicando a atenção flutuante: a primeira correspondendo ao falar do paciente, e a segunda, ao ouvir do analista. Agora, queremos mostrar que ambos têm por fim, privilegiadamente, (no sentido do fim da psicanálise como tratamento – Kur)11 fazer o paciente ouvir o que sua fala diz.

Sabe-se como a A interpretação dos sonhos foi a obra freudiana talhada para introduzir o público nos procedimentos da psicanálise. Nela Freud parte do sonho e de sua interpretação para apresentar de modo detalhado não somente os fundamentos de sua compreensão da neurose12, mas também do que chama “aparelho psíquico” de modo geral, como um aparelho regulado por forças dos desejos e as oposições que se lhes fazem. Não é sem fundamento que se diz encontrar n’A interpretação dos sonhos a primeira formulação desse aparelho em seus sentidos tópico, econômico e dinâmico (formulações que dizem da localização relativa das partes desse aparelho, da manutenção adequada da grandeza de energia e das circulações dessa energia e das trocas ou conflitos entre as partes)13.

Mais originariamente do que as primeiras formulações conseqüentes de um aparelho psíquico, A interpretação dos sonhos caracteriza-se como uma obra que quer apresentar de modo cabal o trabalho psicanálise14. Freud estende os procedimentos de interpretação de sonhos – tomados como a “via régia para o inconsciente” – aos procedimentos da análise propriamente dita, ou pelo menos busca naqueles primeiros estabelecer fundamentos dos procedimentos da psicanálise. O que, então, mostra a Interpretação, sendo tomada como trabalho psicanálise? O que particularmente ela significa, quando se diz que trabalho psicanálise é interpretação? Interpretar! O que revela esse trabalho que legitimamente complete o sentido da psicanálise como fazer falar o paciente e ouvir o analista?

Interpretar tem o propósito de revelar a fala do paciente no sentido que lhe é próprio. Após discutir no primeiro capítulo as diversas concepções sobre o sonho, diferenciando dentre elas a sua, no segundo capítulo d’A interpretação dos sonhos Freud opõe a especificidade do trabalho psicanálise de interpretar sonhos à sua interpretação popular. Essa oposição baseia-se no fundamento de que, diferentemente das práticas populares da interpretação de sonhos, a psicanálise tem por finalidade, garantida por sua regra fundamental, revelar o sentido do sonho do paciente, e não lhe emprestar um sentido que lhe seja externo; ou seja, a psicanálise inscreve a própria pessoa que sonha na interpretação do sentido de seu sonho. O fato de que o sentido do sonho é sempre a figuração da realização de um desejo mostra – como aliás já frisou Politzer (1975-6) – que o desejo de um sujeito singular é que constitui o termo da interpretação de um sonho. A interpretação tem a finalidade precisa de revelar o desejo particular, realizado em cada sonho, de um paciente singular. Interpretar, portanto, é explicitar esse desejo; assim se fazendo, será dado sentido e inteligibilidade ao sonho, inserindo-o na cadeia dos pensamentos de vigília. Tem o mesmo sentido a afirmação de que “o tema a que se referem esses sonhos de meus pacientes é sempre a história que está na base de sua neurose” (Freud, 1900a, AE, p. 125; SB, p. 112). O sentido do sonho encontra-se na própria história daquele que sonha, não fora dela. É pelo fato do sonho revelar as intimidades do sonhador que Freud, expondo e interpretando seus próprios sonhos, reserva-se o direito de não contar todo o sentido de seus sonhos, de não revelar seu termo.

Interpretar sonhos é pois, buscar o sentido do sonho como realização de desejo singular daquele que sonha, revelando assim a intimidade do sonhador e envolvendo sua própria história. Isso está implicado na própria exigência de fala do sonhador, pois Freud mostra como a fala é singular a um falante, ainda que use o repertório comum de uma língua. Mas em que essa presença singular do sonhador no trabalho de interpretação completa o sentido da psicanálise como fazer falar o paciente e ouvir o analista? No fato de que fazer falar o paciente e ouvir o analista têm por propósito fazer o paciente ouvir o que ele fala mas não quer saber, fazer o paciente ouvir o que diz a sua própria fala.

Interpretar revela de imediato uma atividade do analista, diz de seu próprio trabalho de falar, porque é o analista quem interpreta. É claro que isso não se desenrola dessa maneira, pois não se trata de o paciente contar o sonho e o analista devolver-lhe uma interpretação. Dá-se que, diferentemente, a interpretação do sonho resulta do trabalho de associação livre do sonhador, de sua fala, revelando o que essa fala afinal de contas está dizendo, mas que o analisando não sabia, ou não queria saber. O trabalho de fala do analista implicado na interpretação pode ser então precisado: trabalho de fala do analista na posição de um “espelho vazio”15. Como espelho vazio, o analista “devolve” o que o paciente fala, para que assim o paciente ouça sua própria fala. É um certo modo de ouvir do analista que transforma o discurso do paciente em fala, esta que materializa a falha – nos termos de Freud – do discurso consciente. O acolhimento (cuidado na/de abstinência) do discurso do paciente como fala, ou seja, como portador de sua singularidade, segundo a regra da associação livre, tem por fim fazer o paciente ouvir sua fala. O tratamento psicanalítico pode, então, ser interpretado como trabalho de fazer ouvir o que se fala.

Psicanálise é trabalho de fazer falar …e fazer ouvir; na expressão “fazer falar...e fazer ouvir”, as reticências que introduzem fazer ouvir marcam a mediação do analista como aquele a quem o analisando dirige seu discurso (transferência). O outro a quem o discurso do analisando está dirigido (e não somente dirigido como demanda ou como apelo) é ao mesmo tempo o outro singular do analista e o Outro transferido ao analista. Nessa duplicidade (Outro/ outro) do analista configura-se a transferência. Também as reticências dizem de um outro que ainda não está nomeado: um outro que não o analisando e o analista em suas singularidades, tampouco o Outro como referência comum e transcendental ao analisando e ao analista (isto é, também não o Outro como condição da experiência psicanalítica – o simbólico, a linguagem ou o inconsciente). Trata-se de um outro “sujeito da análise”, o “terceiro analítico”, aproveitando-se a expressão sugerida por Ogden (1996). O terceiro analítico é o sujeito constituído da transferência – contratransferência. Dessa maneira, trata-se de um terceiro singular (talvez por isso se possa justificar a designação “sujeito”), constituído na singularidade do encontro entre analisando e analista, mas não redutível a qualquer um deles, e na condição de sujeito transferencial, constituído no Outro como pressuposto da transferência, mas não a ele elevado.

Mas as reticências entre “fazer falar …e fazer ouvir” também marcam o tempo que determina o trabalho psicanálise. Um tempo efetivo de trabalho, que apoiando-se no presente da transferência temporaliza a fala do paciente. Esse tempo é evocado por Freud como tempo de elaboração (Freud, 1914g).

Por uma questão sintética e estética, doravante substitui-se as reticências da expressão “fazer falar …e fazer ouvir” por vírgula. Desta maneira, em “fazer falar, e fazer ouvir” – como aliás escreveu-se no título do presente trabalho –, também significa-se a mediação necessária para dar a ouvir, bem como a temporalidade implicada no processo analítico, pela pausa e pequena suspensão que a vírgula traz.

c) A “construção” deixa ver a implicação do analista e do analisando no trabalho psicanálise de “fazer falar, e fazer ouvir”

O trabalho psicanálise finalmente definido como construção (Freud, 1937d) parece vir restabelecer a antiga maneira de lidar com o caso, aquela mesma em relação à qual Freud empenhou-se em se afastar. Isso porque, em construções, afigura-se definir sobretudo o trabalho do analista como senhor do saber do paciente e sujeito de poder curar por meio de suas construções, de sua própria fala. Tal compreensão indicaria assim um certo ensurdecimento do analista com respeito à fala do paciente, seu discurso e singularidade. É no que o termo “construção” leva a acreditar, pois sua conotação está próxima de uma concepção moderna da construção planejada e controlada do conhecimento, da economia, da história etc. Envolve dessa maneira a idéia de um sujeito “fundamento” do que constrói. Se entendida como trabalho de construir, a construção supõe a atividade específica, planejada, controlada e de acordo com a vontade (de acordo com o “princípio de razão” [Figueiredo, 1996]) daquele que, por sua conta e risco, constrói.

Firmemente vinculada à idéia acima está a concepção de construção em análise como o complemento veraz e definitivo da história esquecida do paciente, como a sua “última palavra”. A construção, entendida como partindo do analista, traz a idéia de que ele possui a última palavra (a palavra definitiva, a palavra verdadeira), aquela que faria compreender toda a pré-história do paciente, constituindo-se dali em diante uma história não mais lacunar. Em apoio a essa perspectiva, Freud diz: “e o desejado é uma imagem [Bild] confiável e completa [vollständiges] em todas as peças [Stücken] essenciais dos anos esquecidos da vida do paciente” (Freud, 1937d, AE: p. 260; SB: p. 292; SA, p. 396).

Acontece que precisamente isso não é o que Freud chama construção. Nesta última citação Freud está falando do fim (como finalidade) do trabalho psicanálise, do que dele se deseja. O trabalho psicanálise tem por finalidade estabelecer tal imagem (Bild), guia-se por esse horizonte16: a possibilidade de uma imagem completa dos anos esquecidos do paciente, isto é, de sua história recalcada. Acontece, continua Freud, que o trabalho com esse horizonte é um trabalho específico, com características próprias, que definitivamente afastam a construção psicanalítica da idéia (ou ideal) de construção no sentido moderno, como a seguir discute-se.

Freud começa por diferenciar, no “trabalho analítico”, a tarefa do analista e a do analisando:

Todos sabemos que o analisado deve ser movido a recordar algo vivenciado e reprimido por ele, e as condições dinâmicas desse processo são tão interessantes que a outra peça do trabalho, a produção [die Leistung] do analista, permaneceu, ao contrário, em um segundo plano. O analista não vivenciou nem reprimiu nada do que interessa; sua tarefa não pode ser a de recordar algo. Em que consiste pois sua tarefa? Tem de coligir o esquecido desde os indícios que deixou atrás de si; melhor dito: tem de construir (Freud, 1937d, AE, p. 260; SB, p. 292; SA, p. 396).

E o que são, e em que momentos se dão, as construções?

O trabalho de construção está próximo, em um certo aspecto, do trabalho de interpretação: se a interpretação incide sobre um detalhe do discurso do analisando, sobre um ato falho ou uma ocorrência, a construção colige e põe diante dele fragmentos de sua pré-história esquecida (Freud, 1937d, SA, p. 262; SB, p. 295). A construção, assim definida, está em continuidade com a interpretação, tem a mesma natureza desta, não havendo entre esses trabalhos diferença qualitativa. Como a interpretação, a construção parte dos indícios que deixou atrás de si o esquecido, para devolvê-los ao analisando como indícios do recalcado. Dessa maneira, a construção será uma interpretação “ampliada”. “Ampliada” no que se refere ao material do discurso no qual se apóia (não é sobre um elemento singular somente), e também no que toca ao que é restituído ao analisando (devolve-se mais do que um simples traço, devolve-se um fragmento composto da pré-história do sujeito da análise). É verdade que essa aproximação não ajuda muito na compreensão dos trabalhos de interpretação e de construção, a não ser por possibilitar perceber que Freud aí estreita o sentido de interpretação, para dar lugar à idéia de construção como sendo a designação da técnica analítica (do trabalho psicanálise, portanto) em seu sentido “mais apropriado”. Chamando-se de construção a técnica analítica, dá-se a ela o sentido próprio do trabalho psicanálise – não somente o trabalho do analista –, que envolve, por sua proximidade à interpretação, o trabalho do analista a partir do discurso do analisando para fazê-lo ouvir sua própria pré-história esquecida, e mais precisamente, fragmentos coligidos dessa sua pré-história17.

Por outro lado, é interessante anotar que Laplanche e Pontalis (1970, p.141-2) observam o sentido restritivamente técnico que tem o uso do termo “construção” no citado artigo de Freud de 1937. Aqueles autores mostram que a idéia de construção está presente na obra de Freud desde suas primeiras formulações sobre o tratamento psicanalítico, mas sempre com um sentido mais amplo. Assim se dá, por exemplo, quando Freud compreende que a psicoterapia da histeria tem por objetivo reconstruir o inconsciente que vem fragmentado no discurso do analisando (cf. Freud e Breuer, 1895d). “Construção” também tem o sentido da reconstrução da evolução de uma fantasia, como aparece em Bate-se numa criança, texto de Freud de 1919, incluindo-se aí a construção de uma das fases da história de uma fantasia, quando ela não é jamais lembrada, e mesmo quando ela não teve, conforme diz Freud, uma existência “real”, como ocorre com a segunda das fantasias implicadas em Bate-se numa criança (Freud, 1919e).

Já mesmo em A psicoterapia da histeria (último capítulo de Freud e Breuer, 1895d), pode-se encontrar uma expressão completa do sentido de construção como característica do trabalho psicanálise:

Em sentido estrito – e por que não o tomaríamos com todo o rigor possível? – somente merece o título de psicanálise correta o empenho analítico que conseguiu levantar a amnésia que oculta para o adulto o conhecimento de sua vida infantil desde seu começo mesmo. (…) [As] impressões vitais mais tardias falam na análise com voz bastante alta pela boca do enfermo, enquanto que é o médico quem deve alçar a voz para defender os direitos [Anrechte] da infância (Freud e Breuer, 1895d, AE, p. 181; SB, p. 230; SA, p. 235).

A voz do analista tem, então, a função de revelar o que de infantil está no discurso do analisando. Assim, a fala do analista possui, em relação ao discurso do analisando, uma função crítica: diz o que ouviu de infantil. Desse modo, é construção do esquecido, da pré-história, cujos indícios atualizam-se, sob as diversas formas do retorno (sintomas, atos falhos, transferência etc), no discurso do adulto. A construção temporaliza: pretende colocar a fala infantil em seu “devido lugar”, fazer história do discurso do analisando18. O ouvir do analista tem, portanto, a função de crítica do discurso do analisando, tomando-o como fala – fala que diz o infantil, que fala o esquecido. Dessa fala infantil presente, no entanto, o analisando não se dá conta (não ouve), inclusive porque dela “não quer saber”. A fala do analista como construção faz-se escutar, dando a ver e a sentir, isto é, mostrando (Figueiredo, 1996, p. 89). A idéia de que a construção colige do discurso do analisando o que é fala infantil é corroborada pelo momento em que uma construção acontece em análise.

O momento da construção na psicanálise é outra característica que a aproxima, sob o aspecto de sua natureza, da interpretação: a construção não é a última palavra, ainda que possa ser o termo onde se revela a constituição do desejo interpretado. Definindo a construção, Freud diz:

Trabalho preliminar, na verdade, não no sentido de que deva ser tramitado primeiro em sua totalidade antes de começar com os detalhes, (...)

[É trabalho que se dá desde o começo, não apresenta a totalidade do que se constrói, não tem sentido totalizante. Não é uma construção que traz à presença do analisando um quadro global e completo de sua vida infantil. O trabalho construção passa por trâmites, dá-se como movimento. Dessa maneira, o construído e a construção se confundem como um trabalho de aproximação sucessiva e que só idealmente se completa numa síntese não fragmentada. Não se dá, continua Freud:]

...como na edificação de uma casa, onde se tem de levantar todas as paredes e se colocar todas as janelas antes que se possa ocupar da decoração do interior.

[A construção, não sendo uma edificação, indica que nela não se trata de um trabalho “técnico”, no sentido de uma construção planejada e autocontrolada, que ao se finalizar apresentaria uma totalidade outra que não é ela mesma, como um objeto, algo objetivamente dado, como uma casa. É, em psicanálise, um outro modo de construção:]

Todo analista sabe que no tratamento analítico as coisas acontecem de outro modo, que ambas as modalidades de trabalho correm lado a lado, uma sempre à frente e a outra reunindo-se a ela.

[A construção é, então, trabalho preliminar e final desde os detalhes, formando peças que se detalham e permitem formar novas peças, sem, contudo, globalizar­se num quadro completo e unissonante.]

O analista completa um fragmento [Stuck] e o comunica ao analisado para que exerça efeito sobre ele; em seguida constrói outro fragmento a partir do novo material que aflui, procede com ele da mesma maneira, e nesta alternância segue até o final (Freud, 1937d, AE, p. 262; SB, p. 294-5; SA, p. 398).

Trata-se sempre da construção de um fragmento, como trabalho preliminar a produzir um certo efeito sobre o analisando, que permite a construção de um outro fragmento… até o final – isto é, até o seu termo, que não será, determinado pelo processo de construção, um quadro completo que concentra um sentido total e unificador da história do analisando. Trata­se bem mais de múltiplas construções, das quais surge a multiplicidade de sentidos que caracterizam a história sobredeterminada do analisando. O termo pode ser entendido como a última palavra, mas em um sentido especial: uma palavra que é termo, mas não necessariamente completude e totalidade. Mesmo que ofereça para o analisando um certo modo outro de compreensão de si mesmo, essa última palavra não fará fixar esse “si-mesmo”, nem o definirá propriamente.

Se as construções em análise têm um caráter de síntese, elas o têm parcialmente e devem ser de tal ordem que permitam a análise, isto é, uma permanente produção de material, o reinício da associação livre. Elas também devem ter um efeito de síntese, ao mostrar os determinismos dos destinos subjetivos. Em análise, as construções têm uma potencialidade analítica. Elas não dizem de uma verdade no sentido de corresponder a alguma outra coisa que estaria no inconsciente do analisando. Não é a correção ou a falsidade das construções que está eventualmente em jogo; o que se pergunta, a partir de cada construção, é se a análise continua, ou seja, indaga-se pelo efeito que a construção exerce sobre o analisando. Esse efeito é um fluir do material (retomado da associação livre) que permitirá outra construção. Freud observa no mesmo texto não serem o “sim” ou o “não” do analisando que garantirão ou tirarão a validade de uma construção, mas sim o efeito da construção exercido sobre ele. Se a análise não segue, a construção não é boa. A construção é boa se coloca em movimento a “‘pulsão emergente’ [Auftrieb] do recalcado” (Freud, 1937d, AE, p. 268; SB, p. 301; SA, p. 404). Estar certa a construção significa, parafraseando Heidegger, a apropriação explícita do que se abriu e descobriu (1993, p.99). A construção continua sendo trabalho psicanálise de fazer ouvir, para novamente fazer falar, e fazer ouvir. A construção – que seria, segundo o entendimento de Freud, a última palavra caracterizadora do trabalho psicanálise – mostra a meta (como tratamento [Kur]) da psicanálise como o trabalho psicanálise ele mesmo: constrói-se em psicanálise para haver novas construções, para se dar seguimento ao trabalho psicanálise. Além disso, e como já se afirmou em outra ocasião (Celes, 1987), as construções apoiam-se sobre a associação livre entendida como “ter de falar”: não basta ter consciência, possuir idéias claras e distintas – elas devem ser ditas. E, acabou-se de ver, é o efeito da construção de fazer falar em associação livre que constitui o seu critério de “veracidade” ou adequação.

Em conseqüência, a construção não se negocia. A construção não é um acordo calculado entre analista e analisando, não é a melhor forma de lhes dar satisfação, nem é a maneira mais econômica de se fazer caminhar ou concluir uma análise. Quando, no caso Homem dos lobos, Freud propõe uma negociação da cronologia da cena primitiva construída, o Homem dos lobos (1918b) sequer responde, não reage a não ser com indiferença. Qual é, não obstante, a natureza das construções?

O texto Construções em análise termina com Freud precipitando-se em considerações sobre a psicose. Por esse meio ele compara a construção ao delírio; a construção seria como um sonho que o analista sonha no lugar do analisando19. É um trabalho de coligir os fragmentos do que se ouviu no modo da atenção livremente flutuante. É essa atenção livremente flutuante que colige, e não o raciocínio ou a reflexão deliberada do analista. A abstinência tem aqui presença fundamental, como a condição sob a qual o “sonho” do analista, a partir do discurso do analisando, pode ser oferecido de volta como sonho deste. A abstinência, sendo condição necessária, não é suficiente, pois se trata de ouvir (ao modo da atenção livremente flutuante) os efeitos do “sonho” proposto na retomada da associação livre, isto é, da fala; trata-se de, na força desse “sonho”, fazer mover a “pulsão emergente”, fazê-la vir do recalcado. Rigorosamente falando, portanto, a construção conclui-se nos mesmos procedimentos que a constituíram.

O trabalho psicanálise, entendido como vencer resistências, mostrou que se trata de trabalho para fazer continuar falando o analisando, ainda que sua fala tenha sido interrompida pela resistência: trabalho de fazer falar segundo a exigência da associação livre. O trabalho psicanálise entendido como interpretação permitiu, além disso, mostrar que não se trata simplesmente de o analisando falar e o analista ouvir. Ouvir em atenção flutuante, isto é, ouvir o discurso do analisando como fala, faz o analisando ouvir (ouvir-se) o que não sabe, ou o que não quer saber que fala. A interpretação, por sua vez, permitiu completar a caracterização da psicanálise como trabalho de fazer falar e fazer ouvir. Por fim, o trabalho de construção – tal como os trabalhos de vencer resistências e de interpretação – mostrou-se também como trabalho psicanálise de fazer falar e fazer ouvir. E permitiu, ainda, precisar a função crítica da fala do analista e a natureza do seu ouvir e do seu falar como um “sonho”. Resta introduzir, de maneira mais explícita e destacada, o modo como se trabalha psicanálise.

 

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Endereço para correspondência
Luiz Augusto Celes
SQN 205 / bloco “L” / 303 – 70843-120 – Brasília/DF
tel: (61) 340-763 5
e-mail: celes@unb.br

recebido em 17/01/05
aprovado em 28/02/05

 

 

Notas

IPsicanalista; Professor Titular do Departamento de Psicologia Clínica (Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília); Pesquisador Bolsista do CNPq.
1O presente artigo é resultado parcial de pesquisa financiada pelo CNPq. Este é o terceiro artigo de uma série de seis outros, que refletem sobre o sentido da Psicanálise. O primeiro discute a conveniência e oportunidade de se formular “A questão sobre o sentido da psicanálise”. O segundo busca estabelecer o sentido original e fundamental da psicanálise como trabalho de tratamento, intitulado: “Psicanálise é o nome de um trabalho”. Os seguintes a este texto completam e abordam o sentido da psicanálise como prática e conhecimento. Este e os outros textos pertinentes, além de apresentarem a pesquisa mencionada, tiveram inicialmente uma finalidade didática – foram, em sua origem, formulados como apostilas de cursos de graduação e pós-graduação, utilizadas desde 1996. A partir de então foram revistos e completados por diversas vezes.
2O referido texto, intitulado “Psicanálise é o nome de um trabalho”, atualmente encontra-se submetido para publicação.
3Sobre a estada de Freud em Paris e suas relações com o trabalho de Charcot, ver Gay (1989, p. 59-64).
4Veja-se as abreviaturas utilizadas para identificar as edições utilizadas da obra de Freud na última nota(*).
5A respeito, sabe-se que Breuer, surpreendido uma segunda vez pelo curso de seu tratamento, abandonou de maneira definitiva o propósito de utilizar aquele procedimento de fazer a histérica falar o seu sofrimento. Ver a sugestiva descrição feita do episódio, agora de Breuer, por Jones (1989, vol. 1, p. 232).
6A concepção que estabelece ser a sociedade a soma de seus indivíduos e o indivíduo valor fundante. Ver, por exemplo, Dumont (1985), Lukes (1973), Elias (1994). É claro que a relação entre a psicanálise e o individualismo não se presta a ser descartada de modo tão fácil. Por exemplo, deve-se considerar o efeito político – no sentido foucaultiano do termo – da compreensão da psicanálise como um trabalho singular e individual. No entanto, as relações da psicanálise com a ideologia moderna são bastante complexas, não cabendo aqui serem desenvolvidas.
7A expressão freudiana é: Das Unbehagen in der Kultur (Freud, 1930a).
8A função pedagógica inerente ao trabalho psicanálise, em que inclusive funda-se a questão ética da psicanálise já foi explorada por Rieff (1979).
9Ver Freud (1916-17), Conferência XXIV – O estado neurótico comum (AE, p. 344; SB, p. 441).
10Para uma interpretação da reação terapêutica negativa como uma configuração particular e assim distante de resistência, ver Pontalis (1991, particularmente o capítulo intitulado “Não duas vezes não”, p. 54-73).
11Deve-se distinguir Kur de Genesung, este último termo é usado para significar o fim de um tratamento como cura, como o de se curar de uma doença.
12Por exemplo, Freud, 1900, AE, p. 126; SB, p. 112.
13Objetivo d’A interpretação dos sonhos que se consolida em seu famoso Capítulo VII.
14Sobre o alcance pretendido e efetivo d’A interpretação dos sonhos, ver Anzieu (1989). A insuficiência d’A interpretação dos sonhos para uma análise só é tematizada, cinco anos após, no Caso Dora. Para uma discussão desse aspecto, ver Celes (1995).
15Kaufmann (1996, p. 190). Cf. o verbete “fala” nesse dicionário; em tal verbete, procede-se a uma certa síntese das idéias principais do texto de Lacan (1998, p. 238-324), “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”.
16Pelo menos o é na concepção freudiana, que, inclusive, assume como próprio à psicanálise seu movimento regressivo.
17Para uma especificidade e diferenciação entre as noções de pré-história e história em psicanálise, ver Celes (1994).
18Para a idéia da temporalização e de crítica da construção ao discurso do analisando, ver Celes (1987). Também nesse artigo é apontado o modo como a teoria psicanálise, isto é, a metapsicologia, se faz presente no trabalho de construção; ver, privilegiadamente, p. 290-293.
19Para uma interpretação nesse sentido, ver ainda Figueiredo (1996, p. 89).
(*)Abreviaturas utilizadas para a obra freudiana, na ordem de seu aparecimento.
AE: Sigmund Freud. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1978-85. 24 volumes.
SB: Edição standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972-80. 24 volumes.
SA: Freud, S. Studienausgabe. Francfort: S. Fischer Verlag, 1979-75. 11 volumes.