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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.9 n.16 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Um tipo excepcional de caráter

 

An extraordinary type of character

 

 

Tania Coelho dos SantosI; Fabio André Moraes AzeredoII

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é uma das elaborações em co-autoria entre orientando e orientadora na pesquisa sobre o tema Subjetividade e Cultura, que resultou na tese de doutorado “Caráter e contemporaneidade”. O conceito de caráter, que nos anos 1920 serviu para questionar o método freudiano da associação-livre, foi deslocado por nós de seu contexto original para redimensionar a relação entre interpretação e satisfação pulsional na clínica contemporânea. Tratamos esse problema à luz das diferenças na modernidade e na contemporaneidade no que concerne às relações entre caráter e superego. Finalmente, apresentamos a tese de Lacan sobre o Sinthoma como uma articulação entre sintoma e caráter, que nos parece uma ferramenta útil na clínica com pacientes contemporâneos.

Palavras-chave: Caráter, Sintoma, Superego, Modernidade, Contemporaneidade, Sujeito, Laço social.


ABSTRACT

The concept of character, which in the 20’s was invoked to question Freud’s method of free-association, is taken by us in order to try to answer to some issues brought up by contemporaneity, such as the lack of belief in the psychoanalytical deployment, especially because it is still limited to the Oedipus Complex. If the Other – represented by the father figure- is becoming increasingly barren, therefore the subject now is claiming its surplus of enjoyment, whereas the Freudian superego imposes a renounce to any satisfaction that is too direct. At last, we present Lacan’s concept of sinthome – as opposed to the classical symptom- that combines character and symptom, hoping that it can be useful to deal with nowadays patients.

Keywords: Character, Symptom, Superego, Modernity, Contemporaneity, Subject, Social binds.


 

 

Em 1916, Freud, em seu artigo intitulado Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico, descreve três tipos básicos: os que se consideram “exceções”, os “fracassados pelo êxito” e os “criminosos devido ao sentimento de culpa”. O primeiro tipo refere-se àqueles que acham que sofreram alguma lesão a mais em relação aos demais seres humanos, e julgam que possuem também um direito a mais na esfera das limitações impostas pela vida e suas regras de convivência. O segundo tipo diz respeito àqueles que quando finalmente alcançam aquilo que almejavam, adoecem e produzem um quadro sintomático que os impede de usufruir sua conquista. O último tipo inverte a concepção clássica que coloca o sentimento de culpa como uma conseqüência do delito. Freud postula que o sentimento de culpa é anterior ao crime, e que a passagem ao ato criminoso teria a função de produzir uma representação psíquica consciente desse sentimento nconsciente de culpa.

O que pretendemos avançar1 é que os dois últimos tipos de caráter descritos por Freud, por serem vinculados ao sentimento de culpa, são tipos de caráter que estariam “caindo em desuso”, ou seja, são típicos de uma forma de organização social baseada em uma figura paterna forte, que serve de ideal do eu e justifica a culpa neurótica, isto é, derivada da transgressão efetiva ou imaginada desse ideal. Em contrapartida, o primeiro tipo abordado por Freud, o das exceções, estaria assim em franco avanço, pelo mesmo motivo que os outros dois estariam em desuso.

Este artigo compreende uma extensão em um campo ainda inexplorado, o do caráter na contemporaneidade2, dos estudos que efetuamos no Núcleo Séphora sobre os efeitos do declínio da função paterna na modernidade e no contemporâneo. Esses termos capitais, na medida em que supõem uma longa tradição de pesquisa de todo um grupo, serão aclarados ao longo destas páginas. Nossa questão será: como se explicam as mudanças na posição subjetiva dominante a que chamamos caráter? Sabemos que a função paterna apóia-se no recalque das pulsões. A função psíquica da representação de um pai que proíbe alguma coisa é a condição para delimitar a zona de silêncio, que engendra o desejo permitido. O que o pai não proíbe, então é permitido. O declínio da função paterna, conceito originalmente lacaniano (Lacan, 1938) que descreve o crescimento na cultura de uma neurose caracterial ligada a um modo de subjetivação da pulsão, foi redescrito e ampliado com apoio na literatura sociológica e psicanalítica recente (Coelho dos Santos, 2001b) para atualizar a discussão sobre as patologias que se fazem acompanhar de um avanço na direção da satisfação direta das pulsões. Propomos que o privilégio paterno de fazer lei, delimitando o que é proibido, vem sendo substituído pela sua forma denegada, “é proibido proibir” (Coelho dos Santos, 2005). À medida que desaparece o lugar da exceção e cresce o nivelamento e a equalização entre os sujeitos sociais, vemos surgirem novos modos de subjetivação da pulsão e patologias diferentes da neurose (Coelho dos Santos, 2004c). Pensamos que o tipo das exceções pode nos ajudar a compreender os quadros clínicos contemporâneos. Ele configura um obstáculo ao trabalho analítico, uma vez que este sempre envolve uma dose de renúncia ao prazer mais imediato:

Apenas se pede ao paciente que renuncie às satisfações que inevitavelmente trarão conseqüências prejudiciais. Sua privação deve ser apenas temporária; ele só tem de aprender a trocar uma dose imediata de prazer por uma mais segura, ainda que adiada. Ou, em outras palavras, sob a orientação do médico, pede-se a ele que avance do princípio do prazer para o princípio de realidade pelo qual o ser maduro se distingue de uma criança (Freud, 1916, p. 352).

A tese é que o primeiro tipo, o das exceções, seja hoje mais comum do que quando Freud escreveu esse texto (Azeredo, 2003). Entretanto, o fundador da psicanálise já percebia que juntamente com os degenerados, esses pacientes são muito mais difíceis de submeter à tarefa analítica. Para justificar nosso ponto de vista, sustentamos que a sociedade atual não se organiza mais segundo a dominância do modelo hierárquico3, quando o pai era o pólo repressor da sexualidade e objeto privilegiado da identificação do sujeito. Nesse contexto, o da hegemonia da organização opositiva fálico/castrado, as mulheres definiam-se pela inveja do pênis e os homens pela ameaça de castração. O modelo que domina nossa organização social é igualitário e não hierárquico. Pela mesma razão, os outros dois tipos de caráter também terão que ser revistos.

O tipo das exceções destaca-se por uma resistência maior em renunciar às satisfações mais imediatas. São pacientes, segundo Freud, que acham que já renunciaram a muitas coisas na vida, e por essa razão julgam-se no direito de serem poupados de quaisquer sacrifícios. Ressalta ainda que esse sentimento é universal, e todos gostariam de ser uma “exceção” à regra e terem uma posição privilegiada em relação aos demais. Mas, justamente por ser um sentimento presente em todos, Freud pergunta-se por que alguns não renunciam em se tomarem como exceção:

Deve haver uma razão específica, e não universalmente presente, para que alguém realmente se proclame uma exceção e se comporte como tal. (…) Suas neuroses se ligavam a alguma experiência ou sofrimento a que estiveram sujeitos em sua primeira infância, e em relação aos quais eles sabiam não ter culpa, podendo encará-los como uma desvantagem injusta a eles imposta (1916, p. 353).

A psicologia da vítima, com a conseqüente reivindicação sintomática de um direito à exceção é inanalisável, porque exclui justamente a cumplicidade do desejo. Para entendermos esse ponto basta fazer uma comparação com o trauma de sedução sexual na histeria. O que torna a histeria analisável é o reconhecimento da cumplicidade do sujeito no desejo edipiano. No caso das exceções não se trata também da perversão como o negativo da neurose4. Freud toma o exemplo emprestado ao personagem Ricardo III, de Shakespeare, que nasceu desprovido de beleza. Impedido de se fazer amante devido à sua feiúra, ele decidiu ser o vilão. Segundo Freud, o drama do Rei Ricardo III faz com que nos identifiquemos com seu direito à reparação.

Freud universaliza o desejo de ser uma exceção. Nossa hipótese, considerando o ensino de Lacan, é que há dois modos de subjetivação desse desejo: a identificação ao eu ideal e a identificação ao ideal do eu. Nas neuroses trata-se sempre do desejo de ser uma exceção no sentido da identificação ao traço do pai. A transmissão da castração, como a lei do pai que proíbe, tal como podemos depreender de Totem e tabu (Freud, 1913), dá lugar às diferentes identificações com aspectos parciais do pai morto. O assassinato do pai primitivo é uma metáfora da passagem do pai que proíbe tudo ao pai que permite. A identificação com o pai morto, se ela engendra o desejo de ser uma exceção, é marcada pela castração, pela parcialidade que resulta da realização do ideal do eu, o qual nasce de um traço, um aspecto parcial do pai. Não se trata, portanto, do direito a ser uma exceção no sentido de ser um eu ideal.

Podemos ainda estabelecer uma distinção entre “as exceções” e o segundo tipo de caráter, os “fracassados pelo êxito”. Trata-se da culpa que resulta da satisfação de um desejo incestuoso. O sujeito, em conseqüência de sua culpa edipiana, não suporta seu próprio êxito e termina por impedir-se de usufruir de suas conquistas:

O trabalho psicanalítico nos ensina que as forças da consciência que induzem à doença, em conseqüência do êxito, em vez de, como normalmente, em conseqüência da frustração, se acham intimamente relacionadas com o complexo de Édipo, a relação com o pai e a mãe – como talvez, na realidade, se ache o nosso sentimento de culpa em geral (Freud, 1916, p. 374).

Podemos perceber uma clara diferença entre esses dois tipos de caráter, o das exceções e aqueles que fracassam pelo êxito. Sem a culpa, o primeiro tipo não tem como fazer obstáculo ao desejo de ser uma exceção absoluta, e aspira ser tratado como um eu ideal. São sujeitos que acreditam ter sofrido alguma lesão da natureza. Justamente, não têm culpa disso. A culpa, então, é a culpa do Outro – da natureza ou de alguém.

Vamos agora à articulação que nos permite diferenciar o tipo das exceções e o terceiro tipo, o dos que cometeram um crime para aplacar sua culpa, quando esta é, na verdade, anterior ao crime. No caso dos criminosos devido ao sentimento de culpa, o sujeito sente-se endividado com o Outro, a culpa é dele, e o crime vem apenas para dar suporte simbólico a um sentimento inconsciente de culpa. Para compreender esse raciocínio precisamos nos valer da função paterna no Complexo de Édipo:

Por mais paradoxal que isso possa parecer, devo sustentar que o sentimento de culpa se encontrava presente antes da ação má, não tendo surgido a partir dela, mas inversamente – a iniqüidade decorreu do sentimento de culpa. (…) O resultado invariável do trabalho analítico era demonstrar que esse obscuro sentimento de culpa provinha do complexo de Édipo e constituía uma reação às duas grandes intenções criminosas de matar o pai e de ter relações sexuais com a mãe (Freud, 1916, p. 375-6).

Entre os três tipos de caráter, o das exceções é o único sobre o qual Freud não menciona qualquer relação com o complexo edípico. Em nossa opinião, isso não é uma coincidência; parecia já ser uma indicação de um modo de subjetivação do direito à satisfação pulsional, como um direito absoluto. Consideramos que após os movimentos de maio de 1968, que promoveram uma crítica generalizada a todos os modos de exercício do poder fundados na autoridade, esse tipo de caráter generalizou-se. O declínio da autoridade paterna é um conceito que se apóia simultaneamente na experiência da clínica psicanalítica, que ressalta o surgimento de novas patologias (Coelho dos Santos, 2004c), e nas análises sociológicas de uma ampla diversidade de autores sobre os efeitos do repúdio ao modo de organização social que privilegiava as diferenças sexuais e geracionais, na dispersão dos laços sociais (Coelho dos Santos, 2001a). Esses indivíduos consideram que não precisam renunciar a uma satisfação mais imediata em nome de uma dívida para com pai, o ideal do eu, ou com os laços fundados na diferença sexual e geracional. A renúncia ao direito a uma satisfação pulsional absoluta, ao direito de ser tratado com tratado como um eu ideal, e a identificação ao ideal do eu não é o modo de organização dominante da constituição subjetiva dos sujeitos contemporâneos. O Nome do Pai, conceito lacaniano que descreve a função do pai como metáfora da impossibilidade de uma satisfação pulsional absoluta (Lacan, 1955-56), não domina o modo de subjetivação contemporâneo.

Freud, com respeito às mulheres, ousa sugerir que se poderia generalizar essa posição de um direito à exceção como um traço normal do caráter. A inveja do pênis comanda o caráter das mulheres. Elas teriam o direito de ser uma exceção por terem sido lesadas ao nascerem desprovidas de um pênis. O que nos interessa em nossa pesquisa é o fato de que aparentemente a mulher é o protótipo de uma nova identificação. A ordem fálica, patriarcal e edípica tem sido questionada desde o advento da modernidade e da ciência. Os movimentos de liberação da sexualidade e o feminismo generalizaram esse questionamento, em especial depois de maio de 1968 (Coelho dos Santos, 2001b).

Contemporaneamente, recolhemos os efeitos da oposição ao pai como lugar de exceção. O direito à exceção, no tempo de Freud, era prerrogativa de Deus, do pai morto, e a função do pai no complexo edipiano era a de transmitir essa lei simbólica, a lei da castração. A presença do pai na família organizava a transmissão da impossibilidade de uma satisfação pulsional absoluta, fazendo valer a diferença geracional e sexual. Quanto mais o sujeito se afastava dessas referências, mais ele era tomado como degenerado, imoral ou infantil. Contemporaneamente, no rastro das ideologias individualistas pós-68, o sujeito reivindica “ser si mesmo”, afirmando seu direito de ser uma exceção à regra:

(…) a reivindicação de um direito absoluto à própria individualidade. O discurso que advoga a absolutização dos direitos do indivíduo inclui uma vontade cujos efeitos retornam como uma grande vulnerabilidade à depressão. Essa configuração de valores tomará corpo no crescimento de uma retórica psicologizante, cuja lógica profundamente individualista mal esconde uma vocação insistente para reivindicar que se seja tratado como exceção diante de toda e qualquer manifestação da lei. Toda lei é suspeita de mascarar, em princípio, interesses autoritários ou simplesmente alteritários, interesses de um outro que não sou eu (Coelho dos Santos, 2001b, p. 100).

Em que se funda o direito de “ser a si mesmo”? Será que é legítimo comparar a posição subjetiva dominante na cultura contemporânea com a do tipo freudiano das exceções? Ao homologar um e outro pretendemos precisar o que Jacques Lacan, em seu conhecido artigo sobre Os complexos familiares chamou de “a grande neurose caracterial contemporânea”. Como é que se generalizou entre nós essa espécie de direito generalizado à compensação? De que nos sentimos lesados? Esse direito à compensação apresenta-se também como um dever a menos. Significa acusar, denunciar a sociedade e os poderes públicos constituídos como devedores, insuficientes, inconsistentes. Essa atitude reivindicativa é, portanto, um prolongamento daquela que surgiu com as lutas pela emancipação feminina e pela liberdade sexual. Aparentemente não cessamos mais de nos declarar credores de um Outro (o Estado, o pai de família, a sociedade) autoritário e usurpador. Somos todos lesados! Esse bem poderia ser o lema do sujeito contemporâneo. O problema é: quando todos são lesados, quem deve pagar a compensação?

 

A “Era dos Direitos”

Para apresentar esse aspecto estrutural da civilização contemporânea, vamos revisitar os fundamentos da modernidade. O passo seguinte é demonstrar como se aprofundam alguns impasses da constituição subjetiva e do laço social na contemporaneidade. Segundo Norberto Bobbio, com o advento da modernidade e a declaração universal dos direitos do homem, há uma conversão dos até então súditos do poder soberano do Rei, na monarquia absoluta, à posição de cidadãos, no Estado de direito:

A inversão, característica do Estado moderno, ocorrida na relação entre Estado e cidadãos: passou-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos do cidadão, emergindo um modo diferente de encarar a relação política, não mais predominantemente do ângulo do soberano, e sim daquele do cidadão, em correspondência com a afirmação da teoria individualista da sociedade em contraposição à concepção organicista tradicional (Bobbio, 1990, p. 3).

O indivíduo era o súdito passivo diante das obrigações que lhe eram impostas pelo soberano. Há uma inversão na economia do poder, tal como foi descrita por Michel Foucault e recentemente retomada por Norberto Bobbio: os direitos, que até então eram do soberano, passam para os cidadãos:

Nessa inversão da relação entre indivíduo e Estado, é invertida também a relação tradicional entre direito e dever. Em relação aos indivíduos, doravante, primeiro vêm os direitos, depois os deveres; em relação ao Estado, primeiro os deveres, depois os direitos. A mesma inversão ocorre com relação à finalidade do Estado, a qual, para o organicismo, é a concórdia ciceroniana, ou seja, a luta contra as facções que, dilacerando o corpo político, o matam; e, para o individualismo, é o crescimento do indivíduo, tanto quanto possível livre de condicionamentos externos (p. 60).

É preciso distinguir a redução da soberania monárquica ao poder de Estado, que é a característica da modernidade, do crescimento da economia globalizada de mercado, que vem enfraquecendo a soberania dos Estados e nações que se verifica contemporaneamente. O individualismo moderno, bem como o capitalismo moderno, substituem o poder repressivo do Rei por um tipo de exercício da autoridade que fomenta o recalque, isto é, a interiorização da lei. Essa passagem é explicada magistralmente por Michel Foucault durante toda a fase de sua obra dedicada à genealogia do poder. A crítica antiautoritária que se expandiu nos movimentos pós-68 visa muito mais aos efeitos superegóicos da autoridade paterna do que a derrubar um poder de coação externa como se fez durante a Revolução Francesa. Contemporaneamente, assistimos ao declínio do poder do Estado, do pai de família e dos agentes educativos e normativos de edificar o superego, baseado na interdição e no ideal do eu. Trata-se de uma nova liberdade, que é distinta daquela que se conquistou na aurora da modernidade.

Os efeitos dessa nova forma de liberdade conquistada estão na raiz dos problemas enfrentados pelos sujeitos na contemporaneidade. Um sociólogo como Zygmunt Bauman, ao escrever sobre a pós-modernidade, tomou como eixo comparativo o texto de Freud sobre o “mal-estar na civilização”. Ele situa a modernidade como uma luta entre a liberdade e a opressão. Por “mal-estar na civilização” Bauman entende que Freud tratava do mal-estar na modernidade5.

Ele declara que para Freud a civilização – isto é, a modernidade –construía-se a partir da renúncia pulsional. “Esses mal-estares, que eram a marca registrada da modernidade, que resultaram do ‘excesso de ordem’ e sua inseparável companheira – a escassez de liberdade” (1998, p. 8-9). Esses sujeitos, divididos entre liberdade e opressão, ainda tinham como referência algum representante soberano (O Estado, o pai de família, a religião) para acusar de ser a fonte de suas angústias. Esses representantes do poder soberano, mesmo que fossem inimigos a serem enfrentados, serviam de pólo identificatório para os sujeitos que deste modo, ou estavam em conformidade com a norma ou eram rebeldes. Hoje não há mais necessidade de batalhas para a conquista da liberdade, ao menos não com o vigor que havia antes.

Passados sessenta e cinco anos que O mal-estar na civilização foi escrito e publicado, a liberdade individual reina soberana: é o valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados e a referência pela qual a sabedoria de todas as normas e resoluções supraindividuais devem ser medidas. Isso não significa, porém, que os ideais de beleza, pureza e ordem que conduziram os homens e mulheres em sua viagem de descoberta moderna tenham sido abandonados, ou tenham perdido um tanto do seu brilho original. Agora, todavia, eles devem ser perseguidos – e realizados – através da espontaneidade, do desejo e do esforço individuais (Bauman, 1998, p. 9).

Se esses representantes não são mais o obstáculo às realizações individuais, contra quem o sujeito reivindica o que lhe falta para ser completamente feliz? Aparentemente, o indivíduo tem mais liberdade, mas podemos deduzir que sua responsabilidade pessoal por seu sofrimento aumenta muito. A partir dessa perspectiva, Bauman revisita a lógica que regia a modernidade segundo Freud. Os sujeitos da modernidade renunciavam a uma dose de prazer imediato em nome de um prazer mais seguro, embora menos completo.

Os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca de felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais (1998, p. 10).

Segundo esse autor, Freud de modo algum supunha que essa relação à satisfação pulsional, que se verifica dominante nos dias de hoje, pudesse vir a se tornar hegemônica. O campo do direito à satisfação pulsional ampliou-se e não pode mais ser visto apenas como algo destrutivo:

Em sua versão presente e pós-moderna, a modernidade parece ter encontrado a pedra filosofal que Freud repudiou como uma fantasia ingênua e perniciosa: ela pretende fundir os metais preciosos da ordem limpa e da limpeza ordeira diretamente a partir do ouro humano, do demasiadamente humano reclamo de prazer, de sempre mais prazer e sempre mais aprazível prazer – um reclamo outrora desacreditado como base e condenado como autodestrutivo (p. 9).

Esse incremento de liberdade e de prazer tem uma contrapartida no campo das identificações. Enquanto o pai era na família o representante do lugar da exceção, a autoridade da lei encarnava a virtude simbólica. O sujeito poderia sujeitar-se à lei ou rebelar-se contra ela, o que de qualquer modo significava estar marcado por ela. Quando o pai de família não encarna mais de forma dominante o lugar de exceção, a organização fálica também não se impõe a todos igualmente. As diferenças sexual e geracional não são mais um modo hegemônico de ordenação do laço social. Todos são, igualmente, sujeitos de direito. Em contrapartida, não têm mais um porto-seguro, a partir do qual suas identidades diferentes possam constituir-se. Todos tornaram-se pares, todos iguais; é a guerra dos sexos e das gerações. Isso traz para o próprio sujeito uma liberdade e uma responsabilidade a mais, pois terá que inventar uma identidade para si. O sujeito hoje deve “ser si mesmo” (Coelho dos Santos, 2001b). O que é ser “si mesmo”?

Essa questão acerca da construção da identidade na contemporaneidade interessa-nos diretamente. Seguimos com Bauman:

O projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade herdada. Não tomou, porém, uma firme posição contra a identidade como tal, contra se ter uma identidade, mesmo uma sólida, exuberante e imutável identidade. Só transformou a identidade, que era questão de atribuição, em realização – fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do indivíduo (1998, p. 30).

A identidade não necessariamente se esvaziou, porém ela não está mais assegurada por um ideal coletivo e hegemônico. Podemos ter assim, tanto sujeitos que têm dificuldades em constituir para si uma identidade, como sujeitos cuja identidade não está em conformidade com qualquer ideal mais coletivo. Para Sennett, os sujeitos da sociedade atual não contam com uma estrutura identitária – na esfera do trabalho e da família – para o desenvolvimento do caráter. Essa visão também é expressa por Anthony Giddens:

À medida que a influência da tradição e do costume definha em nível mundial, a própria base de nossa identidade – nosso senso de individualidade – muda. Em situações mais tradicionais, o senso de identidade é sustentado em grande parte pela estabilidade das posições sociais ocupadas pelos indivíduos na comunidade (2000b, p. 57).

A corrosão do caráter relaciona-se, para Sennett, com o declínio da tradição. Coordena-se ao declínio do complexo de Édipo como estrutura que diferencia os sexos e as gerações. Daí podemos extrair a seguinte pergunta: será que sem o apoio no complexo de Édipo, o sujeito não tem caráter?

Freud moldou sua teoria do caráter a partir da identificação primordial ao pai, que após o período de latência geraria o caráter. É essa consciência moral que Freud valoriza, chegando mesmo a dizer que é preciso ter, em certa medida, um bom caráter para que a psicanálise possa fazer alguma coisa pelo sujeito. Aqueles que não o possuem são degenerados, e portanto, não são elegíveis para um tratamento analítico. O caráter positivado é o do menino, que herda na saída do complexo edípico, o superego – q ue nada mais é do que a internalização da moral paterna.

As crianças, as mulheres e os homossexuais eram justamente esses outros sujeitos que tinham “menos caráter”, isto é, menos superego. As crianças eram pequenos perversos, egoístas, apenas não podiam ser ainda responsabilizados por essa falta moral. O mais impressionante é que Freud repetidamente comparou o adulto perverso ao caráter infantil, declarando que quem mantiver o caráter infantil na vida adulta é perverso. As mulheres também fazem uso da formação reativa, que é o principal mecanismo formador do caráter, embora o façam em menor proporção do que o homem. Na verdade, é só com a saída do complexo de Édipo que sobrevém a consciência moral, e como as mulheres não chegam realmente a sair do Édipo, elas não chegam a desenvolver plenamente um caráter. O caráter delas está diretamente vinculado à inveja do pênis, que é uma espécie de sentimento inconsciente feminino universal. Já os homossexuais em geral compensam sua perversão – que é o fato de manterem um prazer de órgão, o anal, sem submetê-lo à formação reativa ou à sublimação –, com uma grande capacidade sublimatória. Há ainda os realmente perversos, que de fato não têm caráter. O que demarca a posição destes três – mulheres, crianças e homossexuais – em relação ao protótipo do caráter, que é o modelo do neurótico obsessivo, é um maior ou menor afastamento da consciência moral. O superego é o ponto de medida, porque quanto mais se está afastado dele, menos caráter se tem. É claro que Freud também aponta para os perigos desse mecanismo de defesa característico da neurose obsessiva. Porém, Freud demonstra que essa enorme culpa de que sofre o obsessivo é a base da civilização. O neurótico obsessivo desenvolve o superego mais do que qualquer outra modalidade clínica. Ele padece de seu sentimento inconsciente de culpa e sofre de uma eterna procrastinação. O neurótico obsessivo é também o protótipo da satisfação adiada.

O que Freud chama a atenção nas mulheres, nas crianças e nos invertidos? Eles mantêm uma satisfação mais direta preservada; há neles algo do infantil que não se submeteu à castração ou à ordem fálica. A satisfação imediata é inimiga do caráter. Podemos concordar com Sennett e pensar que em uma sociedade como a nossa, de capitalismo flexível, em que os vínculos são necessariamente mais frágeis e o eixo sólido da tradição vem se esvaziando, o caráter estaria sendo corroído também. Deste ponto de vista, ao declínio da função paterna estaria coordenado um declínio generalizado do caráter.

 

Sintoma e caráter

Dada a importância das transformações do sujeito e do laço social na civilização atual, não podemos nos satisfazer com um conceito de caráter que privilegia o sujeito da modernidade. É preciso atualizar esse conceito de acordo com um tempo de declínio da função paterna, tal como se dá nos dias de hoje a constituição subjetiva. Diferentemente do sintoma, o caráter não se oferece como um corpo estranho, algo a ser decifrado. O caráter é muito mais um modo de ser e de viver. Desde Freud sabemos que não é interpretável. A título de hipótese, podemos pensar que a distinção entre o campo do caráter e o do sintoma hoje talvez já não esteja tão nítida. O caráter é um sintoma integrado à personalidade (Miller, 1998-99, p. 60).

Freud situa o sintoma como algo a ser decifrado, do lado do inconsciente recalcado. Esse sintoma não é integrado à personalidade; pelo contrário, é daquele tipo que o sujeito leva ao analista solicitando que algo possa ser feito com ele, algo que parte da ignorância do analisando e deposita no analista a suposição de que ele possa resolver isso. O caráter, ao contrário, aparece do lado do real, daquilo que não se submete à interpretação – ao menos não à interpretação que se baseia no sentido recalcado. De acordo com Miller, no último ensino de Lacan, com a valorização do gozo o sintoma passa a comportar tanto a vertente de sentido – bedeutung – como a vertente de gozo – befriedigung. A essa nova conceituação do sintoma Lacan chamava o sinthome. Este, segundo Miller, comportaria tanto o sintoma quanto o caráter. Em seu Seminário Le Sinthome, Lacan apoia-se na obra escrita de Joyce para desenvolver a idéia de que o sinthome não é o efeito da metáfora paterna e sim uma espécie de suplência, justamente, à falha da função paterna.

Devemos abordar a clínica contemporânea com esse outro conceito de caráter. A vantagem que ele tem é a de não privilegiar o sujeito moderno, organizado segundo a hegemonia da função fálica, e sim o que o sujeito psicótico ensina sobre os limites da função edipiana do pai. O caráter é aquilo que não se oferece à interpretação. Em sua leitura do Seminário Le Sinthome de Jacques Lacan, Miller aproxima o caráter da pulsão. Trata-se da vertente de satisfação pulsional, de criação a partir do significante que revela o outro lado do sintoma. O caráter, assim como o fantasma fundamental, tem relação com um gozo que se alcança justamente em detrimento do ideal, ou até mesmo graças à impotência do ideal.

Não há travessia da pulsão, não há mais além da pulsão. (…) Certamente, há o estabelecimento de outra relação subjetiva com a pulsão e com a transferência, por exemplo, uma relação menos contaminada pelo ideal. Se nos fiarmos à oposição entre o I [Ideal] e o a do gozo, o sujeito no fim da análise se encontrará mais próximo da pulsão (Miller, 2000, p. 199).

Essas proposições precisam ser contextualizadas. Foram desenvolvidas no âmbito de uma discussão sobre o que se pode alcançar depois de uma análise. Elucidam qual é o modo de relação do sujeito analisado com a pulsão e com o ideal; contudo, não nos ajudam a saber qual a diferença entre um sujeito que ultrapassou o plano da identificação ao ideal e que se aproximou da pulsão devido à análise, daqueles que estão aderidos às novas formas de satisfação pulsional fora da organização genital da libido. Como se pode perceber, é preciso ainda um esforço a mais para saber em que uma psicanálise pode oferecer ao sujeito uma aproximação da pulsão diferente daquela aproximação que é fruto do capitalismo e da globalização. O sujeito, com a corrosão dos ideais tal como se vê hoje, ficou mais exposto a um outro tipo de superego, diferente daquele freudiano que demandava que os sujeitos, em nome de uma moral tradicional, renunciassem ao gozo:

O direito ao gozo substituiu os antigos imperativos superegóicos de renúncia. Os direitos tornaram-se deveres mais exigentes e mais imperativos do que todas as renúncias vitorianas que marcaram o advento do capitalismo industrial. Os laços sociais tornaram-se frouxos e precários. O indivíduo tornou­se um valor mais forte em oposição ao interesse social (Coelho dos Santos, 2001b, p. 301).

O sujeito hoje ficou mais exposto à deriva pulsional, é um sujeito que não pode mais contar com esse representante paterno como pólo de identificação e sentido para o sujeito:

Sem o anteparo do Nome-do-Pai, isto é, dos hábitos, da rotina e da tradição, os efeitos do Outro universalizante da ciência podem ser devastadores. É imensa, sem limite, a demanda do Outro contemporâneo. Ele requer a divisão do sujeito muito além do que o próprio corpo ou o aparelho psíquico podem suportar e subjetivar. O Outro contemporâneo é radicalmente liberal. Sua voz é um eco da palavra de ordem “é proibido proibir”. A oferta desmesurada de liberdade faz proliferar uma nova sujeição, ao imperativo do gozo. Quando todos têm direito a tudo, não há mais ninguém que possa, legitimamente, dizer não. Ninguém pode legitimamente, dizer o que se deve querer. O que é que serve então de referência para a constituição do sujeito? (Coelho dos Santos, 2001b, p. 302).

Contemporaneamente, já não se pode mais atribuir ao pai a causa do sofrimento. O Nome-do-Pai, antes concentrado no representante paterno onipotente, perde sua consistência e e dá lugar a uma série de parceiros possíveis. O tipo das exceções exemplifica isso, que o Outro pode ter falhado, que é um Outro “furado”, que pode até ser cobrado. O sujeito vê o Outro, quer dizer, o pai, as leis e as normas como um Outro “furado”. Vimos que o tipo das exceções trata o Outro como um parceiro, um igual que não o impede de gozar. O Outro cai desse lugar alteritário e se torna um entre outros. Essa tese da autonomia do sujeito, como já expusemos por meio de alguns autores, não é antinômica com a tese de que o sujeito agora está exposto a um Outro mais feroz que o anterior. Sennett (2000), por exemplo, mostra como esse Outro é menos evidente e pode dar a ilusão de uma liberdade maior, de uma ausência de um Outro constrangedor.

Esse Outro, na medida em que é um parceiro, um igual, não requer mais a renúncia pulsional; ao contrário, exige que os sujeitos obedeçam a um imperativo de gozo (Coelho dos Santos, 2001b, p. 326). Então o superego não se apresenta mais como a lei paterna internalizada, isso que se adquiria na saída do complexo de Édipo. Também o caráter não se reduz a um efeito da renúncia pulsional, pois o imperativo superegóico na era dos direitos nos determina a gozar. Hoje, o fracasso da metáfora paterna, a denegação maciça de seu valore impõe a cada indivíduo uma exigência muito mais árdua – a de construir um sintoma que lhe sirva de defesa contra o excesso e a deriva pulsional.

Nesse esforço de construir seu ideal, o sujeito contemporâneo aproxima­se mais do movimento de deriva próprio à pulsão. Na contemporaneidade também não há mais uma incitação à renúncia pulsional; pelo contrário, o imperativo atual é: “Goze!”. O superego em Freud implica em uma renúncia à satisfação pulsional. De fato, mesmo nas defesas como nos sintomas e no caráter, há sempre satisfação. Para Lacan, a pulsão alimenta-se justamente disso que não serve para nada. E essa posição teórica permite avançar que:

De fato, Freud descobre o inconsciente e a neurose como efeito das renúncias ao gozo impostas pela moral sexual civilizada. Para Lacan, por sua vez, o inconsciente e a neurose são índices de um mais-de-gozar ou de uma perda de gozo cujo efeito é de desperdício, de produção de lixo. O lixo, porque não serve para nada, pode revirar-se em luxo, em gozo a mais. Eis porque, de Freud a Lacan, o inconsciente é um resto inútil do grande esforço civilizatório do Ocidente moderno, e é com isso que se goza (Coelho dos Santos, 2001b, p. 185).

Podemos ver que de Freud a Lacan há um passo no sentido de valorizar isso que era tomado como pura inutilidade. A pulsão alimenta-se do inútil, há um mais-de-gozar justamente com aquilo que não serve para nada, aquilo que não é produtivo, uma tendência a reciclar o lixo. Nesse ponto o moderno e o contemporâneo distinguem-se nitidamente. O capitalismo triunfante que acompanhou a fundação do estado moderno requeria uma sociedade de renunciantes à satisfação imediata, de produtores e acumuladores. Contemporaneamente, o crescimento da indústria do lazer comanda uma sociedade de consumidores (Coelho dos Santos, 2002a). Assim podemos deduzir que o modelo da acumulação de capital do início do capitalismo ainda era baseado nos traços de caráter do neurótico obsessivo: obstinação, avareza e ordem. O que não servia para a produção era inútil. Uma sociedade de consumidores requer muito menos que saiba guardar, acumular em proveito do dia de amanhã ou das futuras gerações, e muito mais que saiba gastar. A capacidade de despender, gastar, viver cada momento, usufruir sempre e o mais possível, e sobretudo não adiar para amanhã o que se possa aproveitar hoje parece ser a relação dominante ao gozo nos dias de hoje.

O paradigma inverteu-se. No lugar da renúncia e da acumulação do gozo em benefício da utilidade, busca-se a satisfação pulsional mais direta e com menos consideração pela segurança ou utilidade. Foi por isso que apostamos que o tipo de caráter das exceções é hoje hegemônico na cultura – afinal, trata-se de uma inversão de paradigma assegurada em lei e sem retorno. Com o declínio de um ideal universalizante, o sujeito fica com a tarefa de encontrar, em si mesmo ou em algum parceiro, um Outro, um ideal. De todo modo, o ideal nesse caso passa a funcionar segundo uma lógica que não é mais a da oposição ao gozo e sim a de promover o mais-de-gozar.

O caráter pode trazer alguma luz para o modo como esses sujeitos contemporâneos lidam com os ideais e com a pulsão. O caráter exemplifica essa descrença no inconsciente recalcado que se apresentará em muitos pacientes, talvez mais e mais. Uma leitura que não desqualifique esses sujeitos a partir de um ideal edípico é a condição necessária para a sobrevivência da psicanálise. Necessária, mas não suficiente, podemos acrescentar. Não basta dizer que a psicanálise aproxima os sujeitos da pulsão, pois é justamente isso que se tornou o modo hegemônico de viver em nossa sociedade, seja no campo dos direitos do cidadão, seja na relação com o consumo que o capitalismo promove. Nesse sentido, o direito ao gozo pode converter-se em um “dever gozar”. Os sujeitos que não estão mais submetidos ao imperativo da renúncia ao gozo estão agora submetidos a um superego ainda mais feroz, que impõe o gozo como dever (Coelho dos Santos, 2001b, p. 253)

Para concluir:

A redução do ideal ao objeto do gozo, como efeito da corrosão dos sistemas coletivos de ideais, mostra que o preço da liberdade é o aprofundamento da servidão. O imperativo do Outro contemporâneo tornou o direito ao gozo um dever ético mais pesado. Quando desejo e gozo coincidem, responsabilizar-se pelo seu gozo e não abrir mão do seu desejo são tarefas que exigem do sujeito inventar parceiros, sintomas e laços sociais. O lugar ocupado pelo analista precisa estar à altura dessa mesma exigência (2001b, p. 333).

Por “estar à altura dessa exigência”, entendemos que o analista deve saber se servir dessa nova modalidade de laço social. Muitas vezes o sujeito que nos procura não quer saber, não associa livremente e não pede que seu sintoma seja decifrado. Ele não se endereça talvez a um sujeito suposto saber, e muito mais a alguém que sirva de meio de gozo. É talvez aceitando algo dessa posição de parceria em que um analisando hoje nos coloca que possamos repensar o lugar do analista e o papel da psicanálise.

 

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Endereço para correspondência
Tânia Coelho dos Santos
Rua Professor Júlio Lohman, 430 – 22611-170 – Joatinga – Rio de Janeiro/RJ
tel: (21) 9129-7072
e-mail: taniacs@openlink.com.br

Fabio André Moraes Azeredo
Rua Coronel Afonso Romano, 74/102 – 22281-010 – Botafogo – Rio de Janeiro/RJ
tel: (21) 2225-7345
e-mail: fabioazeredo@yahoo.com

recebido em 20/12/04
versão revisada recebida em 03/03/05
aprovado em 11/03/05

 

 

Notas

IPós-doutorado (Département de Psychanalyse/Paris VIII); Doutora em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica (IP/ UFRJ) e do Núcleo Séphora de Pesquisas sobre o Moderno e o Contemporâneo.
IIDoutor (Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ); Pesquisador do Núcleo Séphora de Pesquisa sobre o Moderno e o Contemporâneo; Diretor Técnico do Mote Serviços Psicológicos Especializados.
1Essa hipótese é um importante avanço com respeito às nossas pesquisas sobre a subjetividade contemporânea, e foi desenvolvida por Azeredo (2003).
2O Núcleo Séphora de Pesquisas Sobre o Moderno e o Contemporâneo prefere “contemporaneidade” a pós-modernidade, por entender que pós-modernidade não enfatiza o corte que há entre os dois tempos: um da hegemonia do complexo edípico e o outro dos laços inéditos, que se dão não mais necessariamente a partir da primazia do simbólico sobre o imaginário e o real.
3Sobre este ponto consultamos uma extensa bibliografia, com autores do campo da psicanálise, da sociologia que trata do tema da pós-modernidade, e de autores como Foucault e outros foucaultianos, dentre os quais cabe destacar: na psicanálise – Philippe Julien: O manto de Noé (1991), A feminilidade velada (1997) e Abandonarás teu pai e tua mãe (2000); Charles Melman: O homem sem gravidade (2003); na sociologia – Anthony Giddens: A terceira via (1998) e Mundo em descontrole (1999); Zygmunt Bauman: O mal-estar da pós-modernidade (1997); Richard Sennett: A corrosão do caráter (1998) e Respect in a world of inequalitiy (2003); Krishan Kumar: Da sociedade pós-industrial à pós-moderna (1195); Foucault e autores foucaultianos – Michel Foucault: A verdade e as formas jurídicas (1974), A vontade de saber (1976) e Microfísica do poder (1979); Robert Castel: O psicanalismo (1973) e A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo (1976); Jacques Donzelot: A polícia das famílias (1977); Gilles Deleuze e Felix Guattari: O anti-Édipo (1966); Gilles Deleuze e Claire Parnet: Diálogos (1997); e Jurandir Freire Costa: Ordem médica e norma familiar (1979). Incluímos Jurandir na lista dos foucaultianos por este livro, particularmente, estar atravessado pela pesquisa foucaultiana. Dentre a bibliografia que mencionamos aqui cabe destacar um ponto de convergência entre o livro de Jurandir e o de Donzelot no que se refere à aliança entre a medicina higienista e a mulher, marcando o início do declínio do pátrio poder. Vale também ressaltar a crítica de Foucault à psicanálise ao situá-la como a peça-chave da passagem entre o dispositivo de aliança e o de sexualidade, precisamente por apontar de um lado para a polimorfia das pulsões e de outro vinculá-la ao dispositivo de aliança.
4Veremos adiante, com Norberto Bobbio (1990), que os direitos do cidadão foram ganhando cada vez mais legitimidade em uma nova ordem, na qual os valores individualistas sobrepujaram os valores coletivos. Nesse sentido é que dizemos não se tratar aí de perversão, pois o que se vê avançar cada vez mais são os “sujeitos de direito”.
5Neste sentido, se concordamos com Bauman que civilização = modernidade, então o neurótico obsessivo é a base da modernidade, de modo que a contemporaneidade teria que ser pensada por outros critérios (Cf. Bauman, 1998).