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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.9 n.16 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Notas sobre a fruição estética a partir de sua experiência-limite: a Síndrome de Stendhal1

 

Notes on aesthetic fruition derived from an experience of being on the brink: the Stendhal Syndrome

 

 

Ines LoureiroI

Universidade São Marcos. Programa de Pós-graduação em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo explora aspectos metapsicológicos da fruição estética. Embora se situe em uma perspectiva freudiana, afasta-se de suas concepções mais estritas sobre a arte. Questiona os contornos do fenômeno estético e explora uma experiência-limite nesse terreno: a Síndrome de Stendhal, distúrbio que acomete turistas em visitação a Florença e outras cidades de arte. Por fim, expõe alguns paradoxos presentes na experiência estética comum, organizados em torno do eixo captura/desatamento.

Palavras-chave: Experiência estética, Síndrome de Stendhal, Estética e metapsicologia, Psicanálise e arte, S. Freud.


ABSTRACT

This paper explores metapsychological aspects of aesthetic fruition. Although my theoretical framework is located within a Freudian perspective, this paper moves away from his strict conceptions of art. It challenges the boundaries of the aesthetic phenomenon and inquires into the Stendhal syndrome: an experience of being on the brink. Stendhal syndrome is a disorder that befalls on tourists visiting Florence and other art- oriented cities. This paper exposes some of the paradoxes present in the common aesthetic experience which are organized around the capture/disengaging axis.

Keywords: Aesthetic experience, Stendhal syndrome, Aesthetics and metapsychology, Psychoanalysis and art, Freud.


 

 

Fruição estética: tentativas de contornar a teoria freudiana da arte

Este artigo deriva de uma pesquisa mais ampla sobre a questão da fruição estética tal como passível de ser repensada no âmbito estrito da obra freudiana. Ao retomar algumas problemáticas ligadas à estética e teoria da arte em Freud, tenho como intuito tentar discernir, nelas, a possibilidade de conceber o prazer estético em sua positividade já que, em geral, a ele é atribuído o caráter de prazer preliminar, superficial e subsidiário de outro tipo de satisfação.

Creio que boa parte da “estreiteza” desta concepção de fruição estética deve-se ao fato de que, em Freud, as formulações mais importantes sobre o tema são encontradas nos escritos sobre o chiste ou sobre a arte. Isto é, a reflexão sobre o prazer estético encontra-se fortemente atrelada a uma teoria da arte concebida nos moldes das formações de compromisso. Em síntese, Freud considera que a obra de arte é produzida tal como as demais formações do inconsciente; o substrato fantasmático do autor é submetido às deformações operadas pelo processo primário: condensação, deslocamento, figurabilidade – todos os recursos são mobilizados na tentativa de encobrir a origem pessoal e repulsiva daqueles conteúdos. A forma final da obra é tida como uma espécie de revestimento, uma embalagem que acaba funcionando como uma isca de atração para o público. Assim, em relação ao usufruto por parte desse público, o aspecto formal da obra seria responsável por um prazer preliminar, que abriria os caminhos para um prazer mais intenso e profundo obtido pela descarga resultante do levantamento das repressões (o público encontra elaboradas, na obra, as mesmas fantasias que tanta energia lhe consomem para serem mantidas reprimidas). Eis um resumo simplificado do modo pelo qual Freud compreende a dinâmica produção/recepção da obra de arte (Freud 1905-6/1942, 1908, 1913).

Ora, inúmeros autores vêm criticando a teoria freudiana da arte (e, por extensão, sua concepção de prazer estético) exatamente por essa insistência em reduzir a obra a um objeto a ser “interpretado”, uma vez que manifestação deformada de um desejo reprimido. Dentre os muitos exemplos das releituras críticas sofridas pela teoria da arte freudiana, destacaria os trabalhos de Ernest Gombrich e Jean-François Lyotard.

Simpático à teoria psicanalítica e lúcido em relação aos desatinos que podem ser cometidos sob a rubrica Psicanálise e arte, Gombrich (Loureiro, 1997) é um severo crítico daquilo que ele denomina “estética da expressão”, ou seja, daquela concepção que supõe um certo tipo de relação entre mente e obra, na qual a mente faz-se exprimir na e/ou através da obra. Pois bem, este tipo de argumento é grandemente fortalecido pela comparação entre obra e sonho, pois a primeira é assimilada a uma realização disfarçada de desejos reprimidos. Ora, Gombrich considera bem mais interessante a possibilidade, também presente em Freud, de conceber a obra de arte segundo o paradigma do chiste – no qual é decisivo o papel exercido pela forma. Um dos motivos pelos quais Gombrich prefere o paradigma do chiste ao do sonho é que, nele, a forma deixa de ser algo superficial, acessório, mera embalagem a ser descartada; ao contrário, os chistes mostrariam não apenas que é impossível distinguir forma e conteúdo (prova disso: são intraduzíveis), mas que também, no limite, a forma determina o conteúdo. Assim, inverte­se o postulado básico da estética da expressão, pois diz que é a arte que informa a mente, e não a mente que abre caminho através da arte. É isto que justifica uma afirmação recorrente nos artigos de Gombrich, segundo a qual o código é que geraria a mensagem – se é que temos que continuar aferrados à idéia de que forçosamente existe, em qualquer caso, uma “mensagem” em jogo. Gombrich revela o absurdo de nosso apreço pela decifração da mensagem quando compara a atividade artística à culinária e pergunta-se, afinal de contas, se um bom cozinheiro teria algo a nos comunicar através de um molho...

Provenientes da filosofia, e decerto mais virulentas, as idéias de Lyotard tentam desconstruir aquelas interpretações da psicanálise que vêem nela um instrumento de decifração de conteúdos discursivos, os quais permaneceriam ocultos e subjacentes aos vários tipos de manifestações do inconsciente. Crítico da concepção freudiana da obra como “substituto” de outra coisa, Lyotard sustenta que ela não abriga conteúdos secretos: é na forma que está o assunto da obra.

[as obras] não estão em lugar de nada, elas valem, isto é, elas operam por seu material e seu agenciamento; seu assunto é apenas uma organização formal possível, não necessária, ele não oculta nenhum conteúdo, nenhum segredo libidinal da obra, a potência desta reside inteiramente na superfície, só existe a superfície (1974, p. 13).

Com sua proposta de uma “econômica libidinal das obras”, julga desenvolver uma indicação anunciada por Freud em Além do princípio do prazer (1920): o projeto de uma estética de orientação econômica, proposta alternativa à hegemonia da ordem representacional e ao modelo da arte calcado no espaço teatral, que Lyotard reputa predominantes na psicanálise freudiana. Nesta nova estética, a obra seria concebida em sua positividade e especificidade:

as obras então não serão tratadas como simulacros; não se distinguirá entre sua forma e seu conteúdo libidinal; compreenderemos que seu poder de gerar fruição está inteiramente no trabalho formal que as produz (a montante), e nos trabalhos de toda natureza que elas suscitam (a jusante) (p. 14).

É por acreditar, então, que podemos encontrar vias mais profícuas para pensar a questão do prazer estético em Freud que proponho nos afastarmos do circuito mais “familiar” de seus pronunciamentos sobre a arte e perguntarmos o que ele tem a dizer – e mesmo se tem algo a dizer... – sobre outros terrenos ou modalidades da experiência estética. Nesse âmbito seria possível incluir, por exemplo, estados produzidos pela contemplação da beleza não-artística (paisagens e outros elementos do mundo natural, corpos e gestos humanos etc); ou ainda, por objetos/situações não belos que acionam experiências de caráter estético (objetos utilitários, cenas da vida cotidiana); poderíamos, por fim, perguntar sobre a natureza do prazer estético também no domínio das artes não representativas (música, arte abstrata).

O que me interessa aqui é começar a cernir a natureza do regime psíquico correlato à experiência estética; em outras palavras: seria possível descrever a experiência estética em termos metapsicológicos?

O problema é que neste terreno as armadilhas multiplicam-se sem cessar: é preciso extrema cautela, por exemplo, na escolha dos termos utilizados. Voltemos ao penúltimo parágrafo: o verbo “acionar” enfatiza o papel (e a qualidade) do objeto que vem a disparar a experiência estética; já a ênfase no “artístico” aponta que há um tipo de objeto considerado mais “apto” a desencadear tal experiência. Ora, nenhum desses supostos pode ser tomado por evidente. Basta dizer que, em uma visada mais kantiana, o objeto que se oferece imediatamente à percepção pouco tem a ver com a possibilidade de obtenção do prazer estético. Segundo Jean-Marie Schaeffer, “a experiência estética (...) não é, contrariamente à experiência cognitiva, uma experiência objetal: ela não me diz o que é o objeto, pois ela reside simplesmente no sentimento que provoca em mim minha própria atividade representacional (do objeto)” (1992, p. 31 – grifos meus); e acrescenta, o estético não está vinculado a um certo tipo de objeto (artístico, por exemplo), mas a um certo tipo de uso dos objetos dados. Do mesmo modo, e este é um dos pontos sobre os quais tenho insistido a partir da leitura de H. Damisch (1997), o estético é autônomo em relação à arte e ao artístico, tanto no caso de tratá-lo como sinônimo de beleza (presente em vários campos que não apenas o da arte), quer o tomemos simplesmente como forma (não necessariamente bela), capaz de promover (ou associada a) um certo tipo de experiência, caracterizada como estética.

Logo se vê que pisamos em terreno pantanoso, pois não há consenso quanto às definições, contornos e gama de fenômenos estéticos. Por isso torna-se indispensável estipular certas convenções. Com este propósito cabe resumir os dois sentidos que o próprio Freud atribui ao adjetivo “estético”, tal como detalhei em trabalho anterior (Loureiro, 2003): a) consideração aos ideais/ padrões de beleza; acepção que traz implícita a idéia de que a beleza é um valor elevado, socialmente compartilhado e que aponta a íntima conexão entre belo e recalque, na medida em que os padrões estéticos funcionam como um dos diques que se erguem contra o desenvolvimento das pulsões parciais; b) sinônimo de formal (Freud, 1908); é exatamente neste sentido de “prazer suscitado pela forma” que o estético comparece, por exemplo, como um organizador do livro sobre os chistes (Freud, 1904).

Como vimos, o prazer suscitado pela forma (estético) é considerado quase de “segunda classe”, em virtude de seu caráter substitutivo e também por ser de menor magnitude (já que a fruição mais profunda e intensa seria proveniente do conteúdo da obra/chiste, enquanto a forma possibilitaria apenas um prazer preliminar). Mas dificilmente o prazer formal continuaria a ser considerado como “de segunda” em casos como os aventados acima – beleza não-artística, arte não representacional, objetos/situações não-belos, enfim, formas desprovidas de “conteúdo” e, no entanto, associadas a um tipo especial de experiência.

Diante da dificuldade de circunscrever a experiência estética (circunscrição necessária para perscrutar um tal estado em termos metapsicológicos), decidi enveredar por um caminho ousado: por que não explorar aquela que seria uma experiência-limite nesse terreno e, a partir dela, tecer algumas considerações de ordem metapsicológica? Isto é, proponho que examinemos um “exemplo extremo”, uma espécie de paroxismo do gozo estético, na tentativa de extrair daí alguns indícios que caracterizem o regime psíquico correlato à experiência estética.

 

O “caso” Stendhal

Embora não conste – por enquanto... – das classificações internacionais de doenças gerais ou psiquiátricas, o termo “síndrome de Stendhal” tem comparecido com alguma freqüência em textos sobre estética e também, como veremos, na literatura sobre viagens. Começo por apresentar as principais experiências que, ao que parece, situam-se na origem da denominação de tal síndrome. São dois trechos curtos, extraídos de Rome, Naples, Florence (1826), cujo autor, Henry Beyle (1783 – 1842), tornou-se mundialmente célebre com o pseudônimo Stendhal.

O autor de O vermelho e o negro e de A cartuxa de Parma integra uma grande leva de escritores europeus absolutamente fascinados pela Itália. Embora não seja exatamente um escritor romântico, certamente partilha com os românticos (sobretudo ingleses e alemães) o encanto pelo “país dos limoeiros em flor” (Goethe); no imaginário dos viajantes, lá floresciam uma natureza solar e exuberante, um povo alegre e sensual, além dos tesouros da Renascença italiana.

O livro é a segunda versão do diário romanceado de mesmo título (cuja primeira edição é de 1817), remodelado e reescrito por necessidades financeiras, no qual o autor fundiu anotações de diferentes viagens à Itália. De uma versão para outra, “esticou” as estadas, mudou datas, remanejou itinerários, inventou parte do trajeto. Nada demais para quem declara: “Não pretendo dizer o que são as coisas; conto a sensação que elas me provocam” (1826, anotação de 3/ 12/1816). O epitáfio “milanesi”, inscrito em seu túmulo em Montmartre, faz jus a um apaixonado que, estima-se, passou em solo italiano cerca de um terço da vida.

Florença, 22 de janeiro de 1817:

a) Anteontem, descendo o Apenino para chegar a Florença, meu coração batia com força. Que criancice! Enfim, em uma curva da estrada meu olho mergulhou na planície e percebi, de longe, como uma massa escura, Santa Maria Del Fiori e sua famosa cúpula, obra-prima de Brunelleschi. Eu me dizia: “é aqui que viveram Dante, Michelangelo, Leonardo da Vinci! Eis esta nobre cidade, a rainha da Idade Média! É nesses muros que começou a civilização (...)”. Enfim, as lembranças se comprimiam em meu coração, sentia-me sem condição de raciocinar e entregava-me à minha loucura como junto de uma mulher a quem se ama (1826, p. 479).

b) Eu já me encontrava em uma espécie de êxtase pela idéia de estar em Florença e pela vizinhança dos grandes homens dos quais eu acabava de ver os túmulos [Michelangelo, Alfieri, Machiavel, Galileu]. Absorvido na contemplação da beleza sublime, eu a via de perto, eu a tocava, por assim dizer. Tinha chegado ao ponto da emoção onde se encontram as sensações celestes proporcionadas pelas belas-artes e os sentimentos passionais. Saindo de Santa Croce, meu coração batia forte, o que em Berlim chama-se nervos; a vida esgotara-se em mim, eu andava com medo de cair (p. 480 – grifos do autor).

São estes os principais (mas não os únicos) excertos em que o autor relata o mal-estar difuso correlato à contemplação da beleza, origem da denominação síndrome de Stendhal – um tipo de transe (êxtase, sensações celestes) acompanhado de taquicardia, fraqueza e tonturas.

As duas breves vinhetas colocam imediata e explicitamente em jogo alguns elementos tradicionalmente associados à experiência do prazer estético: a) prazer experimentado (quase se poderia dizer padecido) corporalmente – “meu coração batia com força”; “a vida esgotara-se em mim, eu andava com medo de cair”; b) afetos intensos e complexos: prazer extremo – “sensações celestes”, mas também um certo desprazer que chega às raias do doloroso (menções à loucura e à fraqueza); c) vizinhança próxima (para dizer o mínimo...) das experiências eróticas e sexuais – “entregava-me à minha loucura como junto de uma mulher a quem se ama”; “sensações celestes proporcionadas (...) pelos sentimentos passionais”; d) estado de suspensão, de concentração, relativo “corte” com o entorno imediato – “absorvido na contemplação da beleza sublime, eu a via de perto, eu a tocava, por assim dizer”; e) considerável diminuição do juízo/racionalidade – “Que criancice!”; “sentia-me sem condição de raciocinar”; f) intensificação da percepção quase até a produção alucinatória –”eu a tocava, por assim dizer”; g) participação de fatores, digamos, extra-estéticos como “indutores” da experiência – a admiração pelos “grandes homens” impregna tanto o enlevo quando da primeira visão de Florença quanto a visita aos túmulos dos heróis idealizados; h ) por fim, mas não menos importante, a menção à beleza sublime, expressão forte, enigmática, quase um oxímoro, se levarmos em conta que beleza e sublimidade são termos tradicionalmente contrastados nas discussões da Estética.

Detenho-me agora sobre a “síndrome de Stendhal”, tal como vem sendo descrita e tratada em um hospital de... Florença!

 

A síndrome de Stendhal

Graziella Magherini é uma psiquiatra e psicanalista que tem na escola inglesa suas principais referências – Klein, Bion, Winnicott, Meltzer são os autores mais citados nesse livro cuja primeira edição data de 1989 e que, ao que parece, permanece sendo a obra mais exaustiva já escrita sobre a “síndrome de Stendhal” (Magherini, 1989).

A autora situa a discussão do livro como estando ligada ao problema das viagens de turismo nas cidades das artes (Florença, Veneza, Roma) e a algumas características do funcionamento mental, principalmente no que tange à relação emoção/conhecimento. No encontro do viajante com a obra de arte há sempre um “invariante” – o deslocamento e o desenraizamento do entorno habitual, conhecido e familiar – e isto para ela é decisivo para o desencadeamento da síndrome, bem como para sua compreensão.

Magherini resgata o conceito de “fatto scelto” (fato selecionado), que toma de empréstimo a Bion:

O encontro com o objeto de arte é um evento que pode romper defesas caracteriais e fazer emergir aspectos mais remotos, às vezes demenciais, da própria história e também de áreas da mente mais profunda, jamais conhecida; alguma qualidade “daquela obra”, naquela “determinada pessoa” e “naquele dado momento” pode transformar-se em um potente “fato selecionado” pela mente do observador quando, do interior dos elementos que compõem a obra, emerge um que, naquele momento, confere um notável significado emotivo àquela obra e, simultaneamente, lança um facho de luz sobre algum aspecto da vida da pessoa (1989, p. 15-16).

Assim, não existe uma “obra-de-risco” em si mesma, porque esta varia de acordo com cada sujeito, dependendo de sua disposição emocional, do momento de vida em que se encontra, bem como do tipo de relação que se estabelece entre fruidor e criador através da obra.

Magherini afirma que o tema interessa de perto aos operadores de turismo e todo o primeiro capítulo do livro, O turismo da alma, versa sobre as modalidades de viagem e os tipos de viajantes ao longo da história. É quando se detém sobre grandes escritores viajantes, como Stern, Ruskin e James. Proust merece atenção especial por conta do célebre episódio da morte de Bergotte (em A prisioneira) diante do quadro Vista de Delft, de Vermeer, considerado pelo próprio Proust como o mais belo do mundo.

A psiquiatra italiana retoma algumas passagens dos escritos de Stendhal (como as aqui mencionadas no item anterior) e detecta nesses relatos um símbolo extensível a muitas situações análogas, em contextos e épocas diversas, cuja constante é a presença de um sujeito em uma cidade de arte, frente a uma imagem que lhe é perturbadora. A síndrome de Stendhal é um termo que designa, sobretudo, um quadro clínico relativo à “psicologia do turista”.

A autora percorre nove vinhetas clínicas (homens e mulheres de diferentes idades), como o caso de Franz (p. 67-69), um bavarês culto, amante da arte, cuja viagem foi longamente preparada e que começa a ter alguns sintomas na Galeria Uffizi, primeiramente com o conjunto das obras, depois com Baco, de Caravaggio. O comentário de Magherini centra-se em torno de uma “pulsão homossexual não aceita”, com a evitação da dor e do temor do risco de queda na respeitabilidade pessoal. Menciona também uma angústia advinda do contato com uma parte primitiva da mente que, apesar de toda erudição, constitui uma zona de conteúdo não codificado. A obra de arte que constitui para Franz um “fato selecionado” entra em consonância com o inconsciente e golpeia-o em uma “percepção primitiva” associada ao bebê, que não distingue claramente entre interno e externo. Claro que este exemplo é insuficiente para mostrar o pensamento clínico de Magherini em ação, mas creio que deixa entrever algo de seu raciocínio fortemente ancorado em um amálgama Klein/Bion: referências a fantasias sexuais e agressivas sempre remetidas a situações da história de vida (na linha do recalcado e seu retorno), mas também referências a uma área assimbólica do inconsciente, sede do não-pensado, do material informe e fragmentário, que permanece como carga emotiva potencial mas que ainda não acedeu à representação (p. 168-170).

Em seus dez anos de trabalho no hospital Santa Maria Nuova, em Florença, a psiquiatra pôde acompanhar um grande número de casos, alguns com internação hospitalar. Em todos eles, as pessoas partiram de seus países em boas condições de saúde; os sintomas surgiram repentinamente, foram de breve ou de brevíssima duração, com desenvolvimento benigno, e a razão do desencadeamento da crise só pode ser interpretada em relação à biografia singular do paciente. Do ponto de vista das manifestações clínicas, a autora entende que há uma vertente mental e outra mais “psicossomática”. A desorganização mental é predominante: distúrbio do sentido de realidade, alteração da percepção dos sons e das cores, sentimentos persecutórios em relação ao ambiente circundante, estado de ansiedade; em outros casos, angústia depressiva ou, ao contrário, euforia, exaltação, pensamento onipotente e falta de autocrítica. Quando a descompensação é de caráter psicossomático, nas palavras da autora, o corpo comunica o incômodo da mente: sudorese, taquicardia, sensação de desmaio iminente, dor e contração no estômago, acompanhada de angústia, da sensação de “não se sentir”, de estado confusional2.

Magherini entende que em cada caso está em jogo um evento interior complexo e conflituoso, ligado à singularidade de cada biografia. A presentificação da fantasia, a angústia e defesa manifestam-se em circunstâncias específicas, rompendo as barreiras de um eu incapaz de suportar o choque e o excesso de demanda. A autora refere-se, evidentemente, ao efeito traumático que a obra de arte pode provocar em certas circunstâncias.

O capítulo final, intitulado As férias da mente, traz um condensado dos principais marcos teóricos mobilizados ela autora. Dentro do universo mais estritamente freudiano, o destaque conceitual fica por conta da noção de “inquietante estranheza” (o perturbante). A imersão em ambientes carregados de história e de arte pode suscitar o sentido do perturbante, pois a mistura de passado/presente produz atração e inquietude.

Mas a ênfase recai sobre as contribuições pós-freudianas, como Winnicott e os fenômenos transicionais, terreno por excelência da experiência estética. Em situação ideal, a pessoa evolui para a experiência estética adulta, vivendo-a como jogo livre de partes do self. Ela pode se permitir o prazer estético, talvez o caso mais puro de “férias da mente” em relação ao cotidiano “pensar-para”, sempre canalizado para uma finalidade prática. Na experiência estética vai-se ao encontro de sensações novas, significativas por si mesmas. O prazer estético é, por natureza, gratuito, desinteressado, estimula percursos mentais não-estereotipados e não­lineares, “primaveris”, indiferentes às expectativas superegóicas (p. 166).

A autora também repassa rapidamente algumas idéias de Meltzer, para quem o “bombardeio” de estímulos sensoriais a que o bebê é submetido assim que tem contato com o mundo extra-uterino constitui a experiência estética primária. Meltzer fala ainda de um “impacto estético” entre mãe e bebê, origem do desejo de explorar o significado dos objetos. O bebê confronta-se com a beleza externa, que lhe golpeia os sentidos, e com a natureza misteriosa do objeto (aquelas dimensões que não aparecem aos sentidos); o “conflito estético” é a dúvida sobre a real natureza de um objeto que parece ser bom e belo. Magherini acrescenta que a tolerância para este conflito estético reside naquilo que Bion, inspirado em Keats, chamou de “capacidade negativa” – a possibilidade de permanecer na incerteza, de suportar o não-saber, a “nuvem do não-conhecimento”.

Por fim, Magherini envereda pelo pensamento de Bion, destacando o modelo continente/contido e a importância da rêverie materna para o desenvolvimento da função simbolizante do bebê. As emoções suscitadas por um evento (o contato com uma obra de arte, por exemplo) podem entrar em relação com a área simbólica ou com a assimbólica do inconsciente. O contato com esta última é potencialmente evocador de sentimentos persecutórios: o material não-pensado é sentido como ameaçador porque pode parecer ao sujeito como explosivo e capaz de destruir o continente. Porém, se o material da experiência emotiva é algo de novo e vivo, isto pode modificar o contentor, transformando-o. Seria como a entrada de um elemento novo em um sistema, que força o conjunto a um rearranjo. Na terminologia de Bion, isto chama-se “mudança catastrófica” – o material novo golpeia a mente como uma catástrofe. Em situações normais, tem valor de catástrofe evolutiva, pois propicia a expansão do eu e a ampliação do campo cognitivo. Entretanto, o sujeito pode perceber (em vários níveis e gradações) o temor de uma destruição, seja do conteúdo ou do contentor, estimulando uma “angústia catastrófica”; é a este segundo caso que a autora associa os sintomas da síndrome de Stendhal.

No viajante que se encontra em uma cidade de arte existe a possibilidade de desencadeamento destes processos: arte e viagem são potentes estimulantes do processo inconsciente, evocadores de vivências e de percursos do mundo interno. O contato com a obra de arte tem uma incidência particular quando a pessoa já está em situação de desestabilização pelo fato de estar fora de casa. No viajante, o novo espaço-tempo faz com que ele tenha uma relação com a obra diferente daquela que teria se ela fosse fruída em condições mais “familiares” (p. 171). Uma tese fundamental do livro é, justamente, que o sentimento de depaysement (“despaisamento”) é um dos indutores de crise.

Os pacientes acometidos pela síndrome são intensamente tocados pela beleza, mas necessitam retirar-se da experiência, refugiando-se na doença pela impossibilidade de tolerar a relação apaixonada com o objeto estético – o qual fascina por suas qualidades formais, mas que causa dor pelos enigmas que suscita.

Ao término desta breve apresentação do livro de Magherini, gostaria de retornar à experiência estética “comum” e à tentativa de começar a caracterizá-la em termos da metapsicologia freudiana.

 

Elementos para uma metapsicologia da experiência estética

No início deste artigo mencionei a dificuldade em circunscrever o fenômeno estético e, a título de frear uma especulação infindável sobre a natureza de “o estético”, acabei por fixar duas balizas freudianas: aquilo que diria respeito à beleza e à forma. Duplicidade que, ato contínuo, também se bifurca: o estético caracterizaria um tipo de experiência ligada à beleza ou à forma ou, mais especificamente, o prazer obtido com/a partir delas?

Há quem aposte em uma associação estrita entre estética e prazer (Schaeffer, 1992), embora admita que tal prazer possa mesclar-se a outros sentimentos. Porém, considero mais interessante pensar o estético como uma modalidade de experiência na qual, embora tenhamos a expectativa de que se “resolva” ou redunde em (ou contenha) algum tipo de prazer, pode ter no desprazer sua tonalidade dominante. Penso que esta posição tem, dentre outras vantagens, a de ser mais afim ao próprio pensamento freudiano. Basta recordar os parágrafos iniciais de O sinistro, no qual Freud afirma que as exposições estéticas não costumam tratar do tema do sinistro, pois “preferem ocupar-se do belo, grandioso e atraente, quer dizer, dos sentimentos de tom positivo, de suas condições de aparição e dos objetos que os despertam, desdenhando a referência aos sentimentos contrários, repulsivos e desagradáveis” (1919, p. 2483). Ou seja, não há dúvidas de que Freud inclui tais sentimentos de “tom negativo”, inclusive a “inquietante estranheza”, no rol das experiências de caráter estético.

É isto, inclusive, que permite apontar como escritos importantes para o estudo da experiência estética em Freud aqueles em que se detém sobre certos estados afetivo-ideacionais de caráter complexo e indefinido, como Sobre a transitoriedade (1916) e Um distúrbio de memória na acrópole (1936); acrescentaria à lista o início de O ‘Moisés’, de Michelângelo (1914) (quando se descreve como verdadeiramente “acachapado” perante a escultura do profeta – talvez um bom exemplo de Síndrome de Stendhal...), um artigo breve como A cabeça de Medusa (1922/1940), assim como demais trechos em que tenta descrever os efeitos que se passam em alguém que se encontra em determinadas condições de afetação. Por isso, textos como O poeta e o sonho diurno (1908), Personagens psicopáticos no teatro (1905-1906/1942) e outros escritos sobre arte estão longe de serem os únicos – ou mesmo os mais importantes – para compreender a natureza do regime psíquico correlato à experiência estética. Daí também a importância dos estudos sobre o chiste (onde a questão do efeito é abordada inclusive em sua dimensão inter-subjetiva) e sobre o humor (1928), este ainda mais apurado no que se refere à possibilidade de esboçar a metapsicologia de um certo tipo de atitude. E, dependendo de como se considere essas “determinadas condições de afetação” é claro que se pode incluir aí certas vivências transferenciais e contra-transferenciais3, de modo que também nos historiais clínicos ou ensaios como Construções em análise (1937) encontra-se passagens esclarecedoras sobre a experiência estética.

Tudo depende, evidentemente, do que se entende por experiência estética. O problema é que tal noção prima por seu “caráter escorregadio”: “mesmo se sua existência é inegável, ela não se dá como algo que podemos claramente isolar e definir” (Shusterman, 1998, p. 48). E é em busca deste algo “obscuramente alusivo e indefinível” (p. 48) que partiram autores tão variados como John Dewey a Maurice Merleau-Ponty. Porém, na tentativa de manter a “afinação” com a obra freudiana, irei deter-me sobre o texto de um psicanalista, Jean Guillaumin, em quem encontrei preciosas indicações sobre o tema.

A preocupação de Guillaumin é, especificamente, com a formulação do juízo estético, ou seja, com a transposição da experiência/sentimento estético para o plano discursivo, regido pela lógica do processo secundário. Seu ponto de partida, uma concepção (desenvolvida em textos anteriores) que considera a obra de arte como uma espécie de “exotópica”, isto é, a exteriorização do aparelho psíquico do autor e do público. Em termos da linguagem utilizada, assistimos um livre intercâmbio entre as expressões “experiência (ou sentimento) estética(o)” e “experiência (ou sentimento) da beleza”. É neste campo que ele conduz a investigação, embora saiba que os efeitos estéticos incluem uma gama muito maior de estados do que aqueles em geral associados à beleza e de caráter prazeroso. Guillaumin concorda que Freud está descrevendo experiências de cunho estético nos textos sobre a transitoriedade ou a inquietante estranheza.

(...) Mas ele [Freud] mais evocou fenomenologicamente os efeitos do afeto, de elação, de alegria (ou de tristeza) sutis, de emoção forte e repentina [saisissement]4 ou de espanto que comportam essas experiências – efeitos aos quais ele se sabia e se dizia muito sensível – do que examinou com rigor sua estrutura e teorizou seu funcionamento em relação à lógica do discurso e do pensamento simbólico (Guillaumin, 1998, p. 47).

É, pois, motivado pelo interesse pelo juízo estético que o autor irá examinar o sentimento estético. Trata-se do ponto “(...) onde a pulsão se aplica, deveria dizer, onde ela cola ao objeto (...). Quando falo de aplicação, tomo esta palavra no sentido de um tipo de aderência ou de adesão que mantém o investimento pregado [accroché], fixo à representação daquilo que é visado, tanto quanto ao que, naquilo que é visado, está em falta de representação” (p. 40).

Creio que este é um primeiro e importantíssimo característico da experiência estética: o objeto – uma cena, um gesto, uma paisagem, uma obra – nos mantém provisoriamente “amarrados”, presos, embora a sensação subjetiva possa ser inversa, de difusão e desatamento. E Guillaumin aponta muito bem que tal captura pode se dar por aquilo que o objeto é, ou representa, mas também (e quiçá principalmente) pelo o que ele não é, não traz, não diz – por algo para o que o objeto acena, remete ou deixa entrever, mas que efetivamente não representa. Eis um tipo de descrição do objeto estético que o considera em sua dimensão menos concreta, não-manifesta, em suma, de negatividade.

Por outro lado, Guillaumin sugere que o objeto pode ser mero suporte exterior de projeção de “complexos representativos pessoais”, e que tais complexos são passíveis de serem “(...) contemplados interiormente na ausência de toda materialização do objeto” (p. 43). Ou seja, se no parágrafo anterior parecia que o poder de “fisgar” o fruidor era um atributo do objeto (mesmo que pouco positivado), a ênfase agora é sobre uma psique que se derrama sobre os objetos, ou fecha-se em si mesma, prescindindo do mundo exterior. A meu ver, este tipo de oscilação nas ênfases (sujeito/objeto) e mesmo na manutenção de certas polaridades (interno/externo, material/ideacional) é, uma vez mais, índice da extrema dificuldade em transitar e firmar posições no ardiloso campo da experiência estética.

O sentimento de beleza já foi alvo de muitas análises cujos traços gerais o autor tenta condensar:

(...) um estar em suspenso, uma estase da atenção perceptiva, dos afetos e do pensamento, mantidos fixos, de qualquer modo, sobre o fundo de uma emoção sutil particular, sentida como desenraizando e desestabilizando o sujeito na contemplação representativa do “objeto estético” (p. 42 – grifos do autor).

Tais descrições costumam sublinhar características como as de

(...) leve elação (às vezes intensa), de momento de eternidade, de espanto, até o “saisissement” respeitoso, ou de abertura perturbadora sobre um tipo de transcendência etc. Essas disposições, ao que parece, são vistas como se ligando ao objeto estético como a alguma coisa que teria a ver com o eu simultaneamente do interior e do exterior, tornando assim inadequados ou proibidos os esquemas de classificação e de tratamento re-asseguradores de que dispomos e usamos nas experiências da vida corrente em relação a objetos, digamos, “comuns”, do mundo perceptivo e das representações que temos deles (p. 42 – grifos do autor).

De qualquer modo, a captura estética ocorre em três registros (afeto, percepção e pensamento), e é tão imediata e inquestionável que o autor chega a falar em crença, em uma íntima convicção acerca da beleza daquele objeto. Esta convicção encontra-se também na base de experiências semelhantes à da beleza: a do apaixonamento e a religiosa ou mística, todas promovendo uma espécie de “alargamento” dos limites do sujeito. Guillaumin não explicita, mas é certo que tem em mente a descrição freudiana do sentimento oceânico (Mal-estar na cultura que inclui, lembremos, uma comparação entre os sentimentos amoroso e religioso.

Penso que as breves linhas que Freud dedica ao sentimento oceânico contêm elementos fundamentais para a compreensão da experiência estética: a indicação de que a dissolução dos contornos do eu tem como correlato o sentimento fusional com o entorno, e a observação de que a sensação de enlevo resulta da recuperação momentânea de um narcisismo bastante arcaico.

Guillaumin acrescenta àquela descrição um fator que me parece específico da experiência estética, qual seja, a pregnância da presença de um objeto­forma, que de algum modo organiza, mesmo que virtualmente, a referida experiência estética. Poder-se-ia perguntar se a imagem da divindade não poderia cumprir este papel. Duas possibilidades de resposta: se a imagem divina, material ou psíquica, de fato tem este poder imantador, poderíamos falar em um componente estético da experiência religiosa; por outro lado, Guillaumin menciona que no caso da experiência religiosa o objeto tende a ser excessivamente especular (?!), o que seria uma das diferenças em relação ao objeto estético. Mas isto introduziria, sub-repticiamente, um diferencial entre os objetos, que não é trabalhado no artigo: o objeto estético caracterizar-se-ia por conservar algum grau de alteridade em relação ao sujeito da contemplação, o que é, convenhamos, absolutamente impossível de aferir (ainda mais em um quadro de referências psicanalítico).

Tentando avançar em relação à “simples” descrição fenomenológica da experiência estética – tal como julga ter acontecido com Freud –, Guillaumin arrisca algumas hipóteses metapsicológicas sem, no entanto, desenvolvê-las a contento.

A experiência estética é um estado transitório do eu, no qual interno e externo encontram-se em contato, por assim dizer, “osmótico”; o ego, afetado cognitiva e emocionalmente, tem sua economia modificada. É então que Guillaumin enuncia um importante paradoxo: a certeza (convicção) referente ao objeto estético reside, contraditoriamente, na incerteza na qual ele coloca e mantém o eu racional do sujeito, que se encontra “suspenso” no (e pelo) objeto de beleza, entre ligação/desligamento do afeto e da representação. Isto é, a “captura” pelo objeto acompanha-se de uma “soltura das amarras” racionais e críticas. Note-se, aliás, que tal apontamento é genuinamente freudiano: a forma seduz e “distrai” a atenção do público, o que abre caminho para o afrouxamento das repressões. Creio que o “ganho” em relação a Freud está em prescindir da referência às fantasias, do autor e do público, supostas em ação na obra.

“A experiência nuclear da beleza é, em todos os sentidos, uma parada dos processos lógicos de pensamento. (...) O ‘saisissement’ (o Bemächtigung freudiano?) pela beleza só se produz pelo ‘dessaisissement’ (‘Entbemächtigung’?) íntimo pelo qual, precisamente, ela vos toca” (p. 46). Eis aqui a sugestão mais interessante do artigo, que apesar de promissora permanece em estado incipiente (como indicam os próprios pontos de interrogação). Em outras palavras, a “captura” estética talvez esteja relacionada com a pulsão de dominação.

Infelizmente, o exame e desdobramento de tais indicações terão que ficar para uma próxima ocasião. Em todo caso, a descrição da experiência estética vinha sublinhando um regime especial de funcionamento do ego; a mim parece que há alguma dificuldade em conciliar a pulsão de domínio com uma situação em que o ego foi ele próprio dominado; a não ser, evidentemente, que consideremos pulsão de domínio como secundária – reação e tentativa de reversão do estado de apassivamento a que o sujeito se viu reduzido.

 

A título de inconclusão

Ante a necessidade de interromper nosso trajeto, cabe demarcar alguns de seus aspectos significativos: a) a problematização da natureza do estético, inclusive com o “descolamento” salutar em relação ao campo da arte; b) o contato com uma experiência-limite no campo da fruição estética – a síndrome de Stendhal. Ela nos forneceu uma ótima pista para pensar o “estado psíquico correlato à experiência estética” e suas condições: um certo depaysement, com a perda de referências e o estado regressivo que o acompanham, e o conseqüente incremento dos processos perceptuais/afetivos, capturados e postos em suspenso por um objeto/situação pregnante para aquele sujeito; c) o esboço de alguns avanços na caracterização metapsicológica da experiência estética, centrados em torno da dinâmica captura-desatamento.

Muito resta a explorar na investigação da metapsicologia da fruição estética – suas implicações com a problemática narcísica, com a questão da angústia, com a noção de fetichismo e, a partir da sugestão de Guillaumin, o papel nela desempenhado pela pulsão de domínio. Do ponto de vista da estética, é evidente que a síndrome de Stendhal requereria um aprofundamento em suas relações com o campo do sublime, sequer mencionado em nosso percurso. Aliás, a impressão de que a experiência estética assenta-se sobre algum tipo de curto-circuito psíquico – de intensidade variável, de qualidade incerta (amálgama dor/prazer), de caráter multiparadoxal (captura/desatamento, objetalidade/anobjetalidade, positividade/ negatividade, apassivamento/domínio) – parece mesmo sugerir que nos encaminhemos rumo às paragens vertiginosas do sublime...

 

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Endereço para correspondência
Ines Loureiro
R. Itacolomi, 576 / 111 – 01239-020 – Higienópolis – São Paulo/SP
tel: (11)3491-0522
e-mail: irblou@netpoint.com.br

recebido em 11/04/05
aprovado em 17/10/05

 

 

Notas

IDoutora em Psicologia Clínica (PUC-SP); Coordenadora do Programa de Pós­ graduação em Psicologia da Universidade São Marcos.
1Versão preliminar deste artigo foi discutida com os seguintes colegas, a quem a autora agradece as críticas e sugestões: Alfredo Naffah, Betty Fuks, Daniel Kupermann, Elisa Ulhôa Cintra, Luís Augusto Celes, Luís Cláudio Figueiredo, Marta Rezende Cardoso, Mauro Meiches, Nélson Coelho Jr., Octavio Souza, Paulo Carvalho Ribeiro, Pedro de Santi, Regina Charlier, Sergio Slotnik, Sidnei Cazeto e Vera Blum.
2Em 1989, a autora apresentou um estudo epidemiológico conduzido sobre uma amostra de 295 turistas e 106 pacientes (os que necessitaram de internação) atendidos entre 1977 e 1986. Foram agrupados de acordo com o tipo de sintomatologia prevalente: distúrbio de pensamento, de afeto ou crise de pânico/angústia psicossomática. Nas várias tabelas que apresenta como anexo constam dados curiosos:
• entre os pacientes, a maioria tem entre 26-40 anos (cerca de 40%); entre os turistas, a maioria é de mulheres com menos de 26 anos (52,5%);
• 37% dos turistas eram norte-americanos, 29% da própria Itália e 26% da Europa do Oeste;
• dentre os pacientes, 62% vêm da Europa Ocidental e nenhum italiano chegou à internação;
• a síndrome ocorre preponderantemente em viagens individuais e não organizadas; a grande maioria dos sujeitos tem rápida recuperação e as mulheres demoram mais a se recuperar: cerca da metade dos homens leva de 1-3 dias, enquanto a mesma proporção de mulheres demora de 4-8 dias;
• quanto à presença de antecedentes psiquiátricos: dentre os acometidos por distúrbios de pensamento, 62% tinham algum antecedente psiquiátrico; já dentre os que sofreram distúrbios afetivos, a porcentagem cai para 47%.
3Um ótimo exemplo de experiência estética na clínica pode ser encontrado em Zygouris, 1995.
4O termo “saisissement”, de difícil tradução, comparece várias vezes na descrição que Guilaumin faz da experiência estética. Definição do Petit Larousse: “impressão súbita e violenta causada pelo frio, uma emoção forte e repentina” (p. 911). O adjetivo “saisissant/e”: “que surpreende, que emociona vivamente”. O verbo “saisir” (apanhar, pegar; captar, compreender; etc) é bastante empregado na versão passiva (“être saisi”: “ser afetado, de modo forte e repentino, por uma sensação ou sentimento”) (p. 911). Em português, diríamos “ser tocado, ser pego” por alguma coisa.