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Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.9 no.16 São Paulo Dec. 2005

 

ARTIGOS

 

Da passagem ao ato à transferência: duas soluções em um caso de psicose1

 

From acting out to transference: two solutions for a case of psychosis

 

 

Renata Damiano RiguiniI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da clínica, apresentamos um caso de psicose que se valeu da transferência na direção de seu tratamento. Neste contexto, o caso aparece trazendo questões relevantes quanto às soluções que empreende que, primeiro, se caracterizavam por várias passagens ao ato, soluções indesejáveis, e depois vem se valer da transferência erotomaníaca que se faz possível como alicerce de uma estabilização por apaziguamento. Todavia, a estabilização se tornou viável ao contar com um manejo e uma direção da cura que privilegiaram as construções do sujeito, bem como a teoria psicanalítica, que sustentaram o percurso do paciente e da psicóloga. Assim, podemos visualizar a condução de um tratamento da psicose pela psicanálise e a construção de uma saída possível que inclui o analista.

Palavras-chave: Psicose, Estabilização, Transferência, Passagem ao ato, Saúde mental.


ABSTRACT

Our starting point is the description of the transference in the treatment of a case of psychosis. The erotomanic transference became a stabilizing and a pacifying factor in a treatment which declined into many undesirable effects, such as excessive acting out, etc. This perception was enabled by our theoretical frame of reference that includes psychoanalytical concepts such as the subject.

Keywords: Stabilization, Psychoses, Transference, Passing out the act, Mental health.


 

 

O presente artigo vem marcar o lugar de um analista no tratamento de um caso de psicose atendido em um hospital-dia localizado na região metropolitana de Belo Horizonte/MG. O caso convoca a buscar na teoria direções para suportar um manejo clínico que fará da transferência erotomaníaca, a princípio mortificante, um operador de gozo, uma possibilidade de estabilização. É parte de um projeto maior2, que trata dessa possibilidade de estabilização de um sujeito psicótico na transferência.

Apresento L.C., trinta e cinco anos, sexo masculino; profissão cabeleireiro. Recebeu diagnóstico de esquizofrenia paranóide desencadeada aos vinte e um anos, quando colocou fogo em sua casa ao desconfiar que sua esposa o estava traindo com seu amigo. Na ocasião foi internado e se divorciou, ocorrendo várias internações psiquiátricas desde então. Tem história de abuso de drogas desde nove anos. Aos dezenove fez uma tatuagem – “um escorpião, é o meu signo” – à qual responsabiliza a maior parte de seu sofrimento: “não é de Deus, fiz porque estava drogado e achei bonita a do meu colega que usava droga comigo”.

Chegou no Cersam dizendo-se insone e irritado. Às vezes agredia a mãe fisicamente, e se defendia: “minha mãe não me entende, quero uma Rebeca que me compreenda porque estou solteiro de novo”. Falava de pensamentos ruins, mas que seu problema não era “mentalmente”, era “obra de macumbaria”. Relatava vozes que o mandavam matar a mãe, mantendo-se delirante e persecutório com ela e com a avó. Dizia que seu problema é de família: “tô com este problema de morar com a família, pretendo me casar”. Nessa ocasião estava noivo.

O tratamento seguiu oscilante; ora aparecendo estabilizado, ora em crise. Ficou pouco tempo nos empregos que encontrou, estando sempre deprimido. Seu noivado durou cerca de dois anos, com ele se questionando se ela não estaria se encontrando com outro. Com a mãe estabeleceu uma relação ambivalente de amor e ódio. Em crise a agredia, pensando que estava fazendo macumba para ele. Apresentava delírios de conteúdo persecutório, trazendo alguns traços “perversos”, como exibição do corpo, tentativas de manter relações sexuais com pessoas idosas e deficientes. Dois anos após a primeira crise começou tratamento bem sucedido com uma psicóloga, logo estabelecendo uma transferência com fundo erotomaníaco. No entanto, por várias vezes houve interrupção do tratamento, por ter sido internado ou por ter voltado para sua cidade natal, no estado de São Paulo.Durante esses anos foram feitas várias tentativas de suicídio e várias passagens ao ato, tendo inclusive arrancado todos os dentes por causa de um “veneno” colocado pelo dentista.

Retornou ao serviço depois de dezoito meses de internação feita por um convênio. Chegou em crise, trazido pela polícia após ter ido para as ruas, tomado por uma “autoridade divina”, revistar as pessoas, “dar geral”. Não dormia, agitado, delirante, agressivo, alucinando. A esse gozo invasivo, que L.C. não conseguia dar fim, respondia da maneira que sabia: passando ao ato.

A passagem ao ato é uma das formas de estabilização na psicose isoladas por Lacan; e aqui faz-se necessário demarcar brevemente o que está sendo colocado sob o termo estabilização3. A estabilização na psicose poderá ser pensada em dois níveis: o apaziguamento e o sinthome. No apaziguamento concebemos que o sujeito encontrou alguma forma de moderação do gozo insuportável, que devido à não-extração do objeto a – objeto para sempre perdido na castração que marca o sujeito como faltante, como sujeito desejante, permanece no corpo do esquizofrênico, onde se aloja o gozo insuportável a ser golpeado4. O sinthome, por sua vez, seria uma solução bem talhada que pode dar conta de amarrar, pelo nó borromeu, os três registros – Real, Simbólico e Imaginário –, desconectados na psicose. O nó borromeu foi a saída topológica encontrada por Lacan para explicar a sustentação do sujeito na realidade ao se valer dos três registros psíquicos. Nesse nó os registros encontram-se em relação uns com os outros, e diferente da primeira clínica em que havia uma primazia do Simbólico, os registros são equivalentes, a primazia é do nó que é atado pelo sinthome (Lacan, 1975).

Esse conceito5 aponta que para todo sujeito haverá algo que sustenta a amarração desses três registros, e que será construído quando o sujeito tiver que se haver com a falta no Outro. Nesse momento, que podemos nomear como um encontro traumático, haverá para todos – independente da estrutura psíquica – uma foraclusão generalizada de um significante impossível de se escrever, um ponto de Real que precisa dessa amarração, precisa de um quarto elemento que possibilite fazer o nó borromeu, e somente dessa forma o sujeito se sustentará na realidade. O sinthome é um significante com estatuto de letra na medida em que coloca um modo de gozo singular: opera como dando forma ao gozo sem direção, localiza, circunscreve. Na neurose o sinthome é o Nome-do-Pai, significante capaz de apontar para o desejo e falta da mãe – o Outro primordial. Portanto, na neurose há um significante capaz de fazer as vezes de quarto elemento na amarração dos registros.

O sinthome será sempre singular, mas na neurose estará sempre articulado ao pai, ou seja, há uma premissa universal da neurose que dita que o sinthome, nesta estrutura, vai valer-se do significante Nome-do-Pai. Na psicose o sujeito não conta com o Nome-do-Pai, haverá então de buscar uma solução, um sinthome ainda mais particular, que possa dar conta de manter unidos os três registros6. Esta forma de pensar a psicose aponta para um caminho de um possível tratamento guiado pelo próprio paciente, e tira a psicose do âmbito do déficit, cabendo ao analista acompanhar o tratamento proposto pelo paciente.

Neste artigo as discussões circularam em torno do caso de L.C., que longe de haver encontrado sua forma de sinthome, anda por aí tentando apaziguar algo que o invade e o acomete, errando em torno das soluções possíveis que encontra, mas resistindo bravamente aos desalinhos de seu percurso na psicose. Nesse percurso encontramos L.C. privilegiando a passagem ao ato como forma de solução para o Real que retorna em seu corpo. Na esquizofrenia sabemos que diferente da paranóia – na qual o gozo localiza-se no Outro –, o gozo está no corpo. Talvez ele estivesse localizando esse gozo em sua tatuagem, que nessa ocasião tentou arrancar com faca e atear fogo. O objeto a, não extraído, estando como um excesso de gozo em seu corpo, estava localizado na tatuagem que ele tenta tirar. Tentou, como último recurso, fazer uma castração no real desse objeto, já que ela não operou pelo simbólico. Por vezes servia-se como o próprio objeto a, e caía, jogava-se no chão de forma desmedida, corria, pulava muros, nadava em córregos imundos: nada o parava.

A passagem ao ato foi uma das soluções destacadas por Lacan no auto­tratamento da psicose7. Para dar conta das passagens ao ato na psicose, Dutra aponta uma direção definindo o kakon – uma palavra grega que significa dor, desgraça. No âmbito das psicoses alguns autores definem que o kakon está na origem dos sentimentos de perseguição pelo mecanismo de projeção. Assim,

Os sentimentos corporais dolorosos e o mal-estar que atormentam incessantemente o psicótico, cuja fonte localizar-se-ia no exterior, obrigando-o a liberar-se deles através de reações que podem produzir-se mais ou menos violentamente, constituindo-se como reações inadaptadas de defesa do organismo contra o kakon (1999, p. 79).

Neste sentido, os atos do sujeito seriam pensados como defesa frente ao embaraço e à dor que o acomete, relacionados com o Kakon. Segundo Dutra (1999), em Lacan encontramos a referência ao kakon ao discutir o caso Aimée. Essa paciente valia-se da passagem ao ato para se liberar do kakon, um inimigo interno do sujeito. Posteriormente Lacan refere-se a ele de forma diferente dos autores que revelaram esse conceito – como algo que se refere ao próprio ser do sujeito8. Mais tarde o termo será abandonado por Lacan, provavelmente porque naquele momento haveria um conceito-chave capaz de dar conta desse ser do sujeito – o gozo (Dutra, 1999). Portanto, cabe-nos apontar a dimensão do gozo na passagem ao ato psicótica.

O sujeito psicótico, devido à não-extração do objeto a, permanece vítima de um gozo excedente. Dessa forma, o sujeito psicótico é, ele mesmo, o objeto a não extraído que se oferece ao gozo do Outro. O corpo do sujeito é assujeitado ao Outro; ele se oferece ao gozo do Outro no lugar da falta que não houve. Portanto, segundo Laurent (1995), a passagem ao ato pode ser vista como uma tentativa do sujeito de realizar a castração simbólica no real, separando-se do Outro. Esta separação produz a barra no Outro, feita no concreto pelo sujeito, que cai como o próprio objeto.

Dutra conclui que a passagem ao ato na psicose não está sustentada pelo mecanismo projetivo, uma vez que “o objeto a, objeto a ser golpeado, embora se encontre em posição de exterioridade, representa nada menos que o ser do sujeito” (1999, p. 83), o ser de objeto que nos é revelado pela psicose. A passagem ao ato na psicose obedeceria a uma lógica orientada pela posição do sujeito psicótico em relação ao Outro. Assim, a passagem ao ato é muito mais um “ato auto” (Dutra, 1999), do que um ato dirigido a outras pessoas.

Com efeito, a passagem ao ato, embora possa ser um recurso para o sujeito desvencilhar-se do gozo insuportável, não é definitivamente uma solução desejável, uma vez que não se sustenta no laço social. O analista que se dispõe a escutar um paciente psicótico deverá estar sempre pronto a acompanhar as soluções que ele mesmo constrói. Contudo, quando tais soluções conduzem o sujeito a uma passagem ao ato, devem ser redirecionadas conforme as possibilidades do paciente. No caso de L.C., ele aponta a transferência como uma nova forma de apaziguamento, valendo-se da erotomania.

Depois de muitas passagens ao ato, o paciente começou a andar pelo serviço pedindo aos técnicos para conversar, e para cada um contava uma história na qual se fazia culpado, parecendo pedir uma testemunha para seu arrependimento. Um dia escolheu sua psicóloga, que veio a ser sua “técnica de transferência”9. Esta foi a minha entrada no caso – L.C. escolheu-me como sua ouvinte, e talvez sua escolha estivesse pautada em uma de suas primeiras frases durante o atendimento: “quero ter uma esposa, uma Rebeca, mas deve ser uma mulher da medicina para compreender o meu problema10. Durante os atendimentos falou da tatuagem que o afligia, que falava com ele, que não o deixava dormir. Contou da mãe, que queria matá-lo, e da voz que dizia: “ela vai te matar, você tem que matar ela primeiro”. Pensamos que essa mãe estaria realmente “matando” o sujeito, na medida em que o assujeitava aos seus cuidados, à sua vontade de interná-lo, ao seu amor ou ao seu cansaço. A mãe foi encaminhada para psicoterapia com outra psicóloga do serviço. Na ocasião ele ficou em permanência-noite por vários dias. Mas ainda assim as passagens ao ato não eram bem controladas porque L.C. ainda quebrava, fugia, queimava-se. Na verdade, ainda era o único recurso, que apesar de não poder produzir uma estabilização via sinthome, dava-lhe algum tipo de apaziguamento, uma forma de contornar o Real, que retornava para o sujeito como impossível de suportar. Um apaziguamento fugaz, e na maioriadas vezes muito perigoso.

Aos poucos foi estabelecendo uma transferência, que sempre precisa de manejo, pois que está sustentada na erotomania. Mais uma vez a teoria vem para nos auxiliar no manejo da transferência e na direção da cura. Segundo Hanna (2000), a erotomania foi isolada por De Clérambault do grupo das psicoses passionais, que incluíam, além da erotomania, delírios de reivindicação e delírios de ciúmes. A erotomania tem como postulado básico uma certeza delirante que o outro o ama, que o sujeito é objeto desse amor, e a partir daí ele também passa a amar11.

Soler (1991) afirma que a erotomania é uma posição do sujeito psicótico, uma posição de objeto do Outro. Assim, esse postulado implica em: 1) uma relação com o Outro na qual o sujeito é tomado como alvo da libido; e 2) uma certeza, que constitui o saber psicótico.

Segundo Broca (1997), a erotomania aparece na transferência da psicose no lugar atribuído à neurose de transferência – na transferência neurótica. A erotomania de transferência seria, portanto, a modalidade do amor de transferência na psicose. Esse autor pontua ainda que a erotomania de transferência estabelece uma possibilidade de laço social na psicose, ou supre a dificuldade do sujeito psicótico em estabelecer esse laço. Bem sabemos que para esses sujeitos é impossível um laço social neurótico, ou como o presumimos, mas aqui está apontada a direção para um laço social possível. Singular, certamente, mas ainda assim possível.

Em Lacan vemos a erotomania ser caracterizada como um “amor morto” porque coloca o sujeito no lugar de objeto, em sua posição mortificante em relação ao Outro.

A que se deve a diferença entre alguém que é psicótico e alguém que não o é? Ela se deve a isto: para um psicótico uma relação amorosa é possível abolindo-o como sujeito, enquanto ela admite uma heterogeneidade radical do Outro. Mas este amor é também um amor morto (Lacan, 1955-56, p. 287).

A partir dessa colocação de Lacan, Soler apresenta novas questões a respeito desse amor, presumindo que devemos distinguir o registro do gozo e o do amor, perguntando-se, caso a caso, se tratar-se de mania de amor ou mania de gozo, alterando a condução do tratamento. Assim, o fenômeno de empuxo-à-mulher em Schreber dá um bom exemplo de mania de gozo, em que o Outro vem gozar do corpo do sujeito. Ainda segundo Soler, a função da mania de gozo nas erotomanias é de “reatar ao significante do sexo, o gozo, de início foracluído do simbólico, que retorna desde o real” (1991, p. 157).

No entanto, resta falar das erotomanias platônicas, as manias de amor. Pommier (1987) coloca que mantendo a margem do amor cortês, a paixão de um sujeito (psicótico) por alguém pode livrá-lo das garras de um gozo insuportável – esta seria uma forma de mania de amor. Estas se distinguem da anterior pela extinção do gozo – “o parceiro eleito pelo postulado ama, mas não goza” (Soler, 1991, p. 37). Muitas vezes o platonismo vem como um recurso último para o psicótico contra a ameaça de gozo, pois que o circunscreve no Outro, sob forma de amor que dele emana.

Não é, porém, mais do que uma aparência, já que o amor não tem a mesma função na neurose e na psicose. Na primeira ele é chamado para corrigir a ausência da relação sexual, enquanto na segunda, é mais invocado para evitar a iminência de uma relação mortífera (p. 158).

Soler termina colocando aos analistas, de forma muito interessante no que toca nosso caso, que essas duas modalidades de erotomanias são soluções autógenas da psicose, que têm um efeito de moderação de gozo incontestável – “o clínico encontrará nelas o próprio modelo de sua mira: a instauração de uma função de limite de gozo” (1991, p. 159). Portanto, na própria erotomania configura-se uma forma do psicótico estabilizar-se de forma frágil, no entanto eficaz, ao distanciar o sujeito do objeto. Sabemos que tais considerações são colocadas a respeito da paranóia. Contudo, pode-se afirmar que uma saída para a esquizofrenia é a paranóia, ou seja, a instituição de um Outro consistente, uma vez que está fadada à fragmentação e à esquize desorganizadora. Com efeito, a consistência de um Outro poderá circunscrever, de certa forma, o gozo do sujeito, direcionando-o para outro lugar.

Destas breves colocações a respeito da erotomania podemos entender que essa modalidade de amor estará presente em toda transferência que assim se estruturar. Cabe ao analista aí instaurado abrir para sua manobra, visando uma moderação de gozo. L.C. deu referências dessa transferência e do caminho a seguir em seu tratamento. Por vezes chamou-me de “donzela”, um significante que aponta para uma parte de sua indicação: “quero uma Rebeca”. A “donzela” seria uma mulher pura, que nunca teve um homem, capaz de assumir um lugar de esposa tal como se coloca na Bíblia, na figura de Rebeca. Essa mulher seria uma figura que poderia fazê-lo “autoridade”, já que o “marido é quem tem autoridade, a mulher deve obedecer”. Para L.C., o lugar desse significante apontou para sua tentativa de mudar de posição, deixar de ser objeto para ser sujeito, por meio do que ele chamava “autoridade” – sempre presente em sua fala –, por exemplo quando disse que queria ser pai: “eu já fui filho, agora quero ser pai (...). O pai tem mais autoridade que a mãe, ele é homem”. A masculinidade – que se figura para a psicanálise como atividade – é para ele também uma forma de “autoridade”. Há ainda mais uma forma de exercitar sua “autoridade”, na escolha de uma nova profissão: “quero ser policial, eu tenho uma autoridade que não sei explicar”, ou “vou ser pastor, um homem respeitado pelas pessoas, e poder pregar a palavra no Brasil e nos Estados Unidos”. Lembrando que a mesma “autoridade” apareceu na nova crise, quando revistava as pessoas na rua.

Durante os atendimentos ele era a “autoridade”, mesmo que por vezes vacilasse nessa posição, entregando-se como objeto para o gozo “da medicina”, e eu me transformando na “mulher que compreende”. De outra feita me chamou-me de “colega de profissão”, explicando que as nossas eram conversas de colegas, explicitando os efeitos da manobra definida por Miller (1996), “trivialização da transferência” como forma de advir o saber-fazer do sujeito. Tal manobra visa uma mudança efetiva de posição do sujeito, na medida em que ele terá um saber sobre o objeto (S2 = a) e não o analista, pois se assim for, o objeto será o próprio sujeito. Ora, a trivialização dá ênfase ao saber-fazer do sujeito, privilegiando soluções que dão acesso a algum laço social; desta forma traz como novidade uma relativização do delírio, a favor de uma aposta em um saber-lidar do sujeito com o Real.

O tratamento seguiu contando com uma gama de medicamentos. L.C. voltou para casa, mas ainda permaneceram os delírios envolvendo a tatuagem. As vozes ainda irrompiam, a tatuagem atormentando-o. As passagens ao ato diminuíram aos poucos. Enquanto isso, eram freqüentes os atendimentos longos, em que falávamos de assuntos triviais. As conversas que pedia para ter com toda a equipe também foram aos poucos se direcionando unicamente para mim, ao mesmo tempo em que se tornavam mais curtas e menos freqüentes. Em sua última grave passagem ao ato – quando se atirou na frente de um caminhão “por causa da tatuagem” –, a intervenção possível foi convencê-lo de que isto era loucura, e que cada vez que fizesse uma loucura as pessoas o tratariam como louco. Ele pediu-me para que viesse sozinho para o serviço: “eu tenho trinta e cinco anos, não sou louco e não preciso da minha mãe me carregando”. Foi articulado com a equipe e decidimos que daríamos essa chance, percebendo que seria mais perigoso ele andar com a mãe. Estabelecemos um laço de cumplicidade. Quando atormentado recorria ao serviço e discutíamos a melhor saída, naquele momento, para seu sofrimento. Ficar em permanência noite? Ficar na permanência-dia? Procurar emprego? Ficar em casa? Aumentar a medicação? Aumentar o número de atendimentos?

Muitas vezes foi complicado sustentar essa transferência, que aparecia como erotomaníaca. Ele dizia que a solução de seu problema seria encontrar uma esposa e sair da casa da mãe. Disse que está apaixonado por mim, que tivera uma revelação que eu seria sua esposa. Perguntou se era correspondido, e mediante a minha resposta negativa falou: “precisava saber”. L.C. me dizia, desta forma, que o meu não era importante, talvez para ele soubesse que não gozaria do corpo dele. Ainda assim a erotomania apareceu: “a gente não sabe o que está nos planos de Deus”; ele diz que nunca sentiu nada tão forte – “um dia você vai entender...”. Contou que só amou dessa forma uma pessoa, a “doutora Andréa”, sua psicóloga anteriormente.

Parece que L.C. nos dava uma pista sobre uma especificidade do “amor de transferência” na psicose. Para ele, que já fora casado e noivo, como o amor pelas psicólogas poderia ser maior, ou pelo menos diferenciado? Talvez esse “amor” fosse tão especial justamente por ter uma função: promover um apaziguamento e uma estabilização. O fato é que por meio da transferência, inaugurou um saber-fazer singular, que apesar de termos buscado na teoria algo que nos orientasse no manejo clínico, era estritamente particular, era sua forma de cifrar gozo, à qual só tivemos acesso ao escutá-lo, a direção era dele. Sabemos, também, que o próprio falar tem a função de carregar algo do sujeito, como se a palavra pudesse transpor, cifrar ou carregar gozo – “o gozo é proibido a quem fala enquanto tal” (Lacan, 1972-73, p. 86). Na psicose, saber como esse efeito opera é um pouco mais complicado, pois devemos antes perguntar sobre o estatuto dessa linguagem, dessa palavra e até mesmo desse gozo. No entanto, ele se fez prova viva de um esvaziamento pela palavra e pela transferência, tão questionado nos meios acadêmicos.

A certeza desse apaziguamento ele nos dava, estava presente em seu discurso. Esteve usando crack e estava sentindo vontade de usar novamente – “não sei o que me dá, não tem o que fazer, quando estou drogado fico bem”. O crack entrou como mais uma forma de passagem ao ato: o sujeito atua por falta de recursos outros que possam dar conta daquilo que ele não pode dizer, daquilo que o invade e o acomete. Na iminência de uma nova passagem ele procurou o serviço. Durante o atendimento disse: “Deus nunca manda uma tentação maior do que o homem pode agüentar. Está na Bíblia, acho que em João. Ele manda a tentação, mas manda também o escape”. Pergunto se ele tinha encontrado o seu “escape”. “Meu escape é estar aqui, é conversar com você”.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Renata Damiano Riguini
Rua Caratinga, 27 / 113 – 30310-510 – Bairro Anchieta – Belo Horizonte/MG tel: (31) 3225-0388
e-mail: riguini@uol.com.br
recebido em 09/08/04

versão revisada recebida em 20/09/04
aprovado em 28/09/04

 

 

Notas

IPsicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Núcleo Universitário Betim.
1Artigo produzido a partir da experiência de estágio extracurricular de extensão, supervisionado pelo professor Renato Diniz da Silveira.
2Trata-se do projeto de monografia Estabilização na transferência: uma possibilidade na corda bamba, de minha autoria e concluído em 2003 na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Núcleo Betim.
3Este tema tem sido trabalhado no projeto de pesquisa O sintoma como estratégia de estabilização na psicose: a função da obra, que fora desenvolvido na PUC-Betim pela professora Andréa Guerra e contou com a participação das alunas Renata Riguini e Rivany Lopes, e a colaboração da rede de saúde mental de Betim.
4Lacan conceituou o objeto a em 1964 no Seminário 11, ao enlaçar o gozo ao significante – “O objeto a é algo de que o sujeito se separou como órgão. Isto vale como símbolo da falta, quer dizer, do falo, não como tal, mas como fazendo falta. É preciso então que isso seja um objeto – primeiramente separável – e depois tendo alguma relação com a falta” (Lacan, 1964, p. 101).
5O sinthome é um conceito que Lacan começou a desenvolver a partir de um caso de psicose – o caso Joyce –, e que ganhou corpo com Jacques-Alain Miller. Esse conceito parte do conceito de sintoma na psicanálise freudiana e lacaniana, e percebe que há sempre algo de intransponível no sujeito, algo inarticulável pela linguagem, do qual o sujeito não pode se desvencilhar
6Em Lacan temos um caso paradigmático de sinthome na psicose. É o caso de Joyce, um escritor psicótico que nunca teve um desencadeamento de sua psicose tal como encontramos nos manuais de psiquiatria. Segundo Lacan, essa estabilização teve como suporte sua obra. Esse estudo deu origem ao seminário Joyce, o sinthome.
7Lacan estudou o caso Aimèe, um caso de estabilização na psicose via passagem ao ato, em sua tese de doutorado de 1932. Mais tarde, em 1955-56, no Seminário dedicado às psicoses, Lacan estuda o caso Schreber, estabelecendo a metáfora delirante como suporte na estabilização. Em 1975, o caso James Joyce torna-se paradigmático ao apresentar uma estabilização pela escrita.
8Segundo Dutra, o termo Kakon foi utilizado, além da tese de doutorado, nos textos A agressividade em psicanálise (1948) e Formulações sobre a causalidade psíquica (1946).
9O termo “técnico de transferência” foi usado por Wellerson Alkimin (2002) durante supervisão feita no Cersam, e faz um trocadilho com “técnico de referência”, que seria o profissional que acolhe o sujeito quando chega na instituição e torna-se responsável pela condução do tratamento. Segundo ele, e concordamos com seu argumento, o profissional de referência deveria ser o profissional de transferência, como garantia de um tratamento já guiado pelo sujeito, e portanto, melhor.
10Não podemos deixar de mencionar o papel que a mulher vem exercer nesse caso. Referimo-nos à Mulher tal como Lacan a concebeu: como não existente. L.C., como é o caso de muitos psicóticos, tenta fazê-la existir para que se coloque, instaure-se um lugar de exceção – que não adveio no Édipo, na figura do pai que goza como exceção à função fálica, exceção capaz de fundá-la – em seu caos psíquico. Contudo, não adentraremos esse campo neste artigo.
11Os psiquiatras clássicos descreveram alguns componentes da erotomania. O sujeito tem certeza de ser amado, e o amante do psicótico não é um indivíduo qualquer. Normalmente é um personagem socialmente definido por uma posição elevada, estruturada por poder, fama, posição institucional, prestígio, renome. Decorrente de sua certeza, o sujeito faz várias interpretações delirantes, que vêm geralmente acompanhadas por um sentimento amoroso do próprio sujeito. O lugar do desejo sexual é variável, podendo especificar-se como loucura de amor casto ou erótico. A erotomania seria uma forma temática de delírio, sem especificidade de estrutura, fazendo parte de diferentes quadros nosológicos. É de início rápido e mesmo brutal, dividindo-se em três fases: a inicial, de esperança ou orgulho; a atual, como fase de expectativa;e a final,de despeito, com possibilidade de agressividade (Franzini, 1987, p. 60).