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versión impresa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.9 n.16 São Paulo dic. 2005

 

ARTIGOS

 

O terapeuta/mãe, o paciente/bebê e os cuidados requeridos

 

Psychotherapist/mother, patient/baby and the required care

 

 

Haydée Christinne KahtuniI

Universidade Paulista

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa discutir alguns tópicos fundamentais acerca dos cuidados necessários para o êxito do processo psicoterápico a partir do referencial psicanalítico winnicottiano. Revendo conceitos como a preocupação materna primária, as principais funções maternas e a mãe suficientemente boa, utiliza-se uma analogia entre as unidades mãe/bebê e terapeuta / paciente, ressaltando similaridades, funções análogas e diferenças entre as condições e os papéis de cada um. Conclui-se que cabe ao terapeuta tanto a responsabilidade de ir ao encontro das necessidades do paciente como a de cuidar dos dispositivos necessários para o cumprimento desta tarefa, principalmente no atendimento de pacientes que sofreram falhas ambientais graves no início de suas vidas.

Palavras-chave: Winnicott, Mutualidade, Terapeuta/paciente, Transferência/contratransferência, Mãe suficientemente boa, Comunicação não-verbal.


ABSTRACT

This paper, based on Winnicott’s psychoanalytical theory, intend to discuss some fundamental topics on the functioning of the psychotherapy process in terms of primary maternal preoccupation, identification of the patient’s dependence type, pre-verbal communication and the counter–transference analysis. Some of his concepts as the main maternal functions and the good-enough mother are discussed in order to point some essentials psychotherapist ’s responsibilities and roles concerning the process of psychotherapy. An analogy between the unities mother/baby and psychotherapist/patient is used to discriminate some similarities, specific functions and different roles and conditions of each. We concluded that the psychotherapist has both responsibilities: to attend the needs of the patient and to look after and persecute his own necessary instruments in order to be able to fulfill this target of being “a good enough psychotherapist”.

Keywords: Winnicott, Psychotherapist and patient relationship, Primary maternal preoccupation, Good enough mother, Non-verbal communication, Mutuality experience, Transference-counter transference.


 

 

É com um misto de satisfação e preocupação que tenho lido ultimamente1 alguns trabalhos de estudantes de psicologia e de psicanalistas sobre seus atendimentos clínicos. Satisfação porque em geral o foco apresentado ultrapassa as fronteiras das discussões meramente teóricas sobre “os casos clínicos” e avança mais integralmente para o terreno dos processos e experiências relacionais que envolvem tanto o paciente como o terapeuta; preocupação porque constato, não por primeira vez, em alguns casos, a precariedade de certas condições, a meu ver, fundamentais para a prática da psicoterapia, principalmente com o chamado paciente borderline e com aqueles cuja essência do sofrimento está aquém do conflito edípico.

Sem entrar no mérito das diferenças entre a formação do psicólogo clínico e do psicanalista, que fugiria do tema central deste artigo, além de nos levar a uma maçante discussão sobre as distinções entre psicanálise e psicoterapia2, gostaria de discutir algumas questões concernentes aos cuidados necessários de pacientes, cujo sofrimento não se relaciona com questões edípicas, mas remontam às etapas iniciais do desenvolvimento biopsicosocial.

Preocupa-me perceber que o despreparo de alguns profissionais, inclusive bem intencionados, pode pôr a perder a oportunidade da recuperação da saúde de pessoas em estado de sofrimento psíquico. Quero crer, contudo, que, assim como a mãe devotada comum constitui a maioria das mães existentes, os profissionais despreparados sejam a exceção.

Penso que este é um assunto merecedor da atenção de todos aqueles envolvidos de algum modo na área dos cuidados psicológicos, e que precisaria ser bem mais e melhor discutido, tanto nas universidades como nas instituições de ensino de psicanálise – nas quais são exigidas e oferecidas as supervisões clínicas e sugeridas as terapias e análises pessoais, como nos institutos –, em que ambas, análises e supervisões, são uma exigência; o próprio caráter da obrigatoriedade e das condições de escolha do terapeuta e supervisor parece-me configurar um terreno impróprio para a realização de um processo terapêutico eficaz e criativo.

É então com a ajuda das idéias de Winnicott, autor que tem auxiliado a conduzir meus atendimentos clínicos e a responder várias das questões que nascem em meu trabalho como terapeuta, supervisora e professora universitária, que gostaria de aprofundar esta discussão.

O conceito da preocupação materna primária desenvolvido por Winnicott refere-se a um estado psíquico materno especial, que se inicia algumas semanas antes do bebê nascer e é responsável por fazer com que a mãe se devote completamente aos cuidados de seu bebê.

Este estado materno revela um tipo de apego sincero justamente porque a mãe que o exerce identifica-se com as necessidades básicas do bebê, colocando-se na posição de se dedicar a ele por saber da total dependência que o bebê tem em relação a ela, e de sua inconsciência sobre este fato. Na base da identificação materna e da empatia estão as experiências anteriores da mãe de já ter sido bebê um dia.

A mãe que desenvolve a preocupação materna primária devota-se amorosamente ao recém-nascido, muitas vezes de forma litúrgica até, por exemplo ao cumprir certos rituais e cultos maternos durante as mamadas. Ela embala seu bebê quando ele tem sono, canta e celebra cantigas de ninar e se preocupa em adaptar o ambiente às necessidades de seu bebê. Durante este período ela está envolvida com os cuidados de seu bebê de corpo e alma e toda sua atenção dirige-se a ele.

Por outro lado, para o bebê a mãe é um objeto subjetivo, ou seja, ela não foi ainda percebida objetivamente pelo bebê, que está fundido com ela em tal grau de indiferenciação, que todas as experiências são vividas por ele como se a mãe fosse uma mera extensão de si mesmo; um si mesmo proporcional ao próprio estágio de rudimento da capacidade perceptiva do bebê. Deste modo, tudo o que a mãe faz, seus comportamentos, atitudes, falhas, gestos etc são sentidos pelo bebê como acontecimentos que fazem parte dele, “são ele” por assim dizer. Ora, o bebê não sabe disso, mas a mãe precisa saber...

O aforismo “não existe esta coisa chamada bebê” é o motor da teoria clínica winnicottiana. O bebê não existe porque não pode vir a ser independentemente da presença da mãe ou de alguém verdadeiramente devotado, que a princípio atenda adequada e continuamente às necessidades corporais e psíquicas do bebê, alguém que cumpra as funções maternas incondicionalmente e suficientemente bem.

Quando Winnicott fala do desenvolvimento emocional em termos de dependência absoluta, relativa ou que ruma à independência é preciso que consideremos o ambiente do qual o bebê está dependendo e quais são suas necessidades em cada uma das fases de desenvolvimento. Como no início da vida o ambiente é prioritariamente representado pela mãe, é preciso saber sobre as qualidades do ambiente/mãe, sua disponibilidade empática, capacidade facilitadora ou não, capacidade que a mãe ou o responsável pelo bebê possua para exercer as principais funções maternas suficientemente bem e assim facilitar o desenvolvimento saudável dos processos maturacionais do bebê.

A partir dessa interferência materna o bebê desenvolve-se de um jeito ou de outro, dependendo de suas características inatas e da sustentação que ele encontra no meio em que vive. É importante lembrar que este bebê winnicottiano, o lactente no início da vida é um infante. Infans, do latim – Winnicott (1983, p. 41) faz questão de lembrar –, é um bebê que não fala. Portanto, estamos diante de um bebê que não usa as palavras como símbolos, nem possui recursos para fazer representações psíquicas. Entretanto, convém ressaltar, já é capaz de se comunicar com linguagens não-verbais.

Neste contexto, tal condição de incapacidade por um lado e capacidade por outro, é o que torna este bebê bastante semelhante, do ponto de vista do desenvolvimento psíquico, a muitos dos pacientes portadores de sofrimento que compõem nossa clínica.

Para que o bebê vá se diferenciando da mãe, realizando a necessária separação eu/não-eu e se personalizando, é necessário que a mãe comunique-se com ele, e inicialmente a maior parte dessa comunicação dá-se de modo não­verbal. Modos desse tipo de comunicação são a diversidade dos gestos maternos, a tonalidade de voz, a forma como a mãe manipula o bebê, carrega-o no colo etc.

Em relação à linguagem que se estabelece entre a mãe (ou aquele que exerce os papéis maternos) e o bebê, esta não é tão importante em si quando a mãe pode ir ao encontro das necessidades do infante. O que importa realmente é a ocorrência da comunicação e sua qualidade.

Há um belo exemplo desse tipo de comunicação no livro de Salinger (1984), o qual transcreverei adiante. No romance, o narrador em primeira pessoa, um garoto de quinze anos, relembra um episódio ocorrido com seu irmão Seymor, dois anos mais velho que ele, e a caçula Franny, um bebê. Para protegerem a pequena do surto de caxumba que contaminara o restante da família, os três irmãos dividiram o mesmo quarto temporariamente, e os dois mais velhos foram incumbidos de cuidar do bebê se ela acordasse à noite. Eis o recorte na íntegra da preciosa recordação do protagonista:

Lá pelas duas da manhã os berros da nova companheira de quarto me acordaram. Fiquei deitado alguns minutos sem me mexer, só ouvindo o choro, até que escutei ou senti Seymor movendo-se na cama ao lado. Naqueles dias nós deixávamos uma lanterna na mesinha de cabeceira entre as duas camas para uma emergência que, até onde posso me lembrar, jamais aconteceu. Seymor acendeu-a e saiu da cama.

– Mamãe disse que a mamadeira está em cima do fogão, eu disse.

– Eu dei faz pouco tempo, Seymor respondeu. Ela não está com fome.

Andou no escuro até a estante, espalhando os raios da lanterna pra frente e pra trás ao longo das prateleiras. Sentei-me na cama.

– O que é que você está fazendo? Perguntei.

– Pensei em talvez ler alguma coisa pra ela, Seymor respondeu, e pegou um livro.

– Pelo amor de Deus, ela só tem dez meses!, eu disse.

– Eu sei, ele respondeu. Mas ela tem ouvidos. Pode ouvir.

A história que Seymor leu pra Franny aquela noite, à luz da lanterna, era uma de suas favoritas, um conto taoísta. Desde esse dia Franny jura que se lembra de Seymor lendo pra ela (Salinger, 1965, p. 9-10).

Existem ocorrências importantes aqui, nessa experiência de mutualidade, a qual Winnicott descreveu como o início da comunicação entre duas pessoas.

Há um bebê intranqüilo, que se comunica chorando, e há o irmão que compreende a comunicação do bebê, discernindo o tipo de necessidade que se apresenta pelo choro – que não é a de comida –, e o tranqüiliza através do gesto de ler para ele. Não importa realmente o quê ele está lendo, mas como ele se comunica com o bebê, que recebe a comunicação como o gesto que correspondeu satisfatoriamente à sua necessidade de contato. O narrador prossegue salientando o alcance que esta experiência do bebê teve como um alicerçe em sua conformação psíquica – “desde esse dia Franny jura que se lembra de Seymor lendo pra ela”.

Para o desenvolvimento de sua organização psíquica, no início de sua vida o bebê precisa da presença de um ambiente, geralmente representado pela mãe, que se ajuste às necessidades dele, de modo a permitir seu crescimento pessoal. E neste momento, a comunicação também pode ser verbalmente silenciosa tanto em sua transmissão como em sua recepção, mas ela está ocorrendo constantemente, modelada em sua sonoridade, gestos, contatos físicos e silêncios.

Quando as condições ambientais são favoráveis e protegem desde o início os gestos espontâneos de bebê, a criança introjeta a confiabilidade do meio ambiente e pode-se dizer que houve uma boa comunicação entre a mãe e o bebê, que se supõe ter sido estabelecida em um ambiente de amor. Supomos que a mãe suficientemente boa geralmente pode confiar em seus próprios recursos maternos e contar com um holding, que inclui a presença de outras pessoas, como por exemplo o pai do bebê, que apóiem e defendam a unidade mãe-bebê.

A respeito das comunicações humanas, iniciais e exitosas, Winnicott diz:

Não é verdade que a mãe se comunicou com o bebê? Ela disse: “Sou confiável – não por ser uma máquina, mas porque sei do que você está precisando; além disso, me preocupo, e quero providenciar as coisas que você deseja”. Isto é o que chamo de amor neste estágio do seu desenvolvimento (1999, p. 87).

É interessante notar o verbo transitivo “querer” utilizado por Winnicott no trecho acima citado. Querer é definido pelo dicionário Aurélio como “ter vontade de; desejar; (...) ter afeição; gostar; ter necessidade ou ânsia de”, e ainda “amar-se mutuamente”. É o amor, penso eu, o sentimento predominante da mãe que desenvolve a preocupação materna primária. E salvaguardadas as devidas proporções, condições e diferenciações entre os pares mãe/bebê e terapeuta/paciente, essas formas de comunicação não-verbal entre o terapeuta e o paciente também são intensamente eficazes. Quando o amor, ou eros, também predomina sobre os sentimentos que o analista cultiva por seus pacientes, e pode ser terapeuticamente utilizado no manejo da relação transferencial/contratransferencial, os resultados terapêuticos são significativamente enriquecidos, porque os pacientes também se alimentam desse amor que eles percebem existir verdadeiramente através dos gestos do analista.

Como vimos com Winnicott, a idéia de que o ambiente é imprescindível para o desenvolvimento do bebê está na base de todo o seu pensamento. Para que o bebê possa se desenvolver de acordo com suas potencialidades maturacionais o ambiente precisa prover. E na maior parte das vezes isto acontece. De modo que quando a mãe pode adaptar-se sensivelmente ao seu bebê, identificando-se com ele em relação às suas necessidades básicas, esta mãe/ambiente vai funcionar como um ego auxiliar que ajuda o bebê a desenvolver suas principais funções egóicas, que inicialmente são:

1. A integração do eu no tempo e no espaço – facilitada pelo holding, que corresponde à sustentação que a mãe faz do bebê e que é tanto física como psíquica.

2. A personalização (unificação entre a vida psíquica e o corpo ou a “psique que habita o corpo”) – facilitada pelo handling, que é complementar ao holding e se refere à manipulação do bebê feita pela mãe enquanto ele é cuidado.

3. O encontro e o relacionamento com os objetos do mundo externo – facilitado pela apresentação do objeto, que tem como modelo o oferecimento do seio exatamente no momento em que o bebê necessita, criando a sensação de que foi ele quem criou o objeto de sua necessidade.

É importante ressaltar que com estas funções maternas iniciais Winnicott está reportando-se às necessidades primárias do bebê em sua dependência absoluta do ambiente e à importância de que sejam satisfeitas. Tais necessidades, é importante assinalar, não se tratam de desejos no sentido freudiano, que podem ser frustrados ou ter como destino a repressão. Sobre a diferenciação entre o desejo e a necessidade, Winnicott escreveu:

É correto falar dos desejos do paciente, por exemplo o desejo de ficar em silêncio. Com o paciente regredido, porém, o termo desejo revela-se inadequado. Em seu lugar usamos a palavra necessidade. Se um paciente regredido precisa de silêncio, nada se poderá fazer se este não for conseguido. Quando a necessidade não é satisfeita a conseqüência não é raiva, mas uma reprodução da situação original da falha que interrompeu o processo de crescimento do eu. A capacidade do indivíduo de “desejar” sofreu uma interferência, e testemunhamos então o ressurgimento da causa original do sentimento de inutilidade (2000, p. 385).

Essas experiências iniciais de ilusão e onipotência fornecidas graças às ações maternas de provisão, permitirão ao bebê relacionar-se com os objetos e integrar sentimentos de amor e ódio, sem que estes o ameacem ou transformem-se em causa de angústias que podem ser insuportáveis.

Bem, quando pensamos a partir da idéia de que o bebê não existe sozinho, mas somente junto e na dependência do cuidado materno, encontramos essa mesma conjuntura de unidade interdependente na clínica.

Do mesmo modo como “there is no such a thing as a baby”, não existe um paciente sozinho, tampouco existe um terapeuta sozinho. O paciente só existe quando está acompanhado dos cuidados de seu terapeuta, e este por sua vez, existe apenas quando, e se, puder prover o paciente dos cuidados indispensáveis ao seu desenvolvimento.

Penso que a idéia de holding desenvolvida por Winnicott tem um alcance bastante abrangente, e que ao transpassar as fronteiras do relacionamento mãe/bebê envolve não apenas a história pregressa de relações objetais do paciente – considerando-se tanto os objetos internos como os externos –, mas dirige-se inclusive, e não com menor importância, às vivências relacionais e de abastecimento do terapeuta.

Assim como se espera que as melhores condições de desenvolvimento do bebê possam ser alcançadas na medida em que ele encontre um ambiente externo favorável que o acolha e o atenda no que for preciso, também precisamos cuidar das condições e qualidades que o terapeuta encontra e possui para exercer suas funções terapêuticas.

Retrospectivamente, imagina-se que o terapeuta tenha tido constante e solidamente – em algum momento de sua formação, seja ela a de um psicólogo clínico ou de psicanalista –um holding multifacetado, suficientemente adequado às suas múltiplas necessidades profissionais e pessoais, e cujo nível de abrangência e profundidade possa ter ido muito além da sustentação teórica, didática, cognitiva, técnica e intelectual.

Entre outras necessidades, o terapeuta precisa passar pela experiência de uma análise ou terapia terminada que culmine não somente com a dissolução do superego parental, mas com a desconstrução do superego analítico e com a aquisição da capacidade de ser criativo. Quando a análise é “terminada”, segundo a concepção cunhada por Ferenczi (1992), e o analista for movido predominantemente por Eros, ele geralmente está em condições de ir ao encontro das necessidades do paciente. Tem melhor possibilidade de controlar seu narcisismo, e ao mesmo tempo, é capaz de fazer uso da elasticidade técnica e da criatividade que se ramifica principalmente a partir da essência de sua própria pessoalidade.

Penso que o terapeuta também precisa mais do que isso. Ele precisa ter um quantum de libido estocada, fruto de um processo genuíno de “narcisação analítica”. Refiro-me à concepção de narcisação cunhada por Bleichmar, responsável pela identificação consciente das características e dos valores pessoais do sujeito, a partir da valoração positiva por parte de um outro significativo – neste caso, o terapeuta do terapeuta ou analista do analista.

Na clínica, cuidar de nossas relações para que possamos prover nossos pacientes é responsabilidade e compromisso nosso. Como a mãe que já foi bebê um dia, o terapeuta já foi também um paciente e esteve sob os cuidados de alguém que, supostamente, estaria em condições de fornecê-los.

Sob essa perspectiva, a análise é um processo fundamentalmente relacional que envolve ambos, paciente e terapeuta, em um plano de relações que é tanto horizontal como vertical. Nos casos em que os problemas tratados são anteriores às questões edipianas, triangulares, e remontam às etapas primárias de desenvolvimento do sujeito, o terapeuta suficientemente bom é aquele capaz de adaptar os dispositivos terapêuticos e o setting às necessidades de seu paciente.

Em muitos casos trata-se mais do cuidado em relação ao manejo do setting, da adaptação do terapeuta às necessidades do paciente e da elasticidade da abstinência do que de intervenções interpretativas. A precisão do paciente aqui é de um terapeuta sensível, empático e verdadeiro, capaz de utilizar sua função de holding. E ele fará isso de vários modos. Adaptará o ambiente do consultório levando em conta as suscetibilidades do paciente; se comunicará com ele também por meio de linguagem não-verbal; compreenderá seu silêncio, discernindo o momento de se calar ou falar; utilizará o tom de voz ajustado aos ouvidos vulneráveis de seu paciente etc.

Como salienta Safra, o analista precisa estabelecer um setting de confiança para que o paciente realize as regressões necessárias às elaborações posteriores. O analista precisa oferecer um holding que proteja a integração da personalidade do paciente. Em suas palavras:

Se a atitude do analista não for suficientemente adequada para levar em conta as necessidades psíquicas do seu paciente, este terá que reagir contra a invasão realizada e o eu verdadeiro do paciente permanecerá oculto, sem a possibilidade de vir a ser resgatado. Passa a ocorrer um processo de submissão às teorias do analista, sem que nenhum processo de crescimento verdadeiro seja realizado (1995, p. 32 – grifo meu).

Penso que essa é uma situação que se transporta para o processo da formação do terapeuta/analista. E talvez a melhor provisão que o ambiente representado pelos terapeutas e supervisores possa fornecer durante o processo de desenvolvimento do futuro terapeuta/analista, seja compreender e valorizar às necessidades pessoais e de crescimento dos potenciais terapêuticos deles.

Winnicott disse que em geral os bebês encontram-se em condições favoráveis quando estão em um estado de dependência absoluta, mas para alguns bebês isto não acontece. E quando não recebem os cuidados necessários não se realizam sequer como bebês, pois os genes não são suficientes. É preciso que ocorra um encontro entre as tendências inatas do bebê com o ambiente facilitador do desenvolvimento dos processos maturacionais. Caso contrário, dependendo da intensidade e variedade das falhas maternas e do modo como cada bebê lida com tais falhas, o desenvolvimento psíquico evoluirá para algum nível de organização patológica da personalidade.

Na melhor das hipóteses, prossegue Winnicott, a criança terá que desenvolver um ego em condições prematuras e será constantemente acompanhada, em algum grau, de uma agonia primitiva que poderá ser avassaladora. Neste ponto, vamos deixar o leitor livre para imaginar as possíveis conseqüências que as falhas ambientais podem provocar no self funcional de nosso terapeuta que não obteve, principalmente durante o período de sua formação, os cuidados suficientemente bons.

Outro assunto de fundamental importância, relacionado aos cuidados da mãe com o seu bebê e que também pode ser observado na clínica, refere-se aos erros cometidos pela mãe, que inevitavelmente ocorrem em sua relação com o bebê. A mãe suficientemente boa, assim como o terapeuta, não é perfeita – a perfeição, como assinala Winnicott, é característica das máquinas –, e em sua condição humana a mãe comete erros. Entretanto, quando está intimamente sintonizada com o bebê e apropriada de seu papel nessa relação dual, a mãe tem condições de reparar os erros e poderá tirar vantagem deles para favorecer a capacidade discriminatória de seu filho, ajudando-o ainda mais no complicado trabalho de separação e individuação.

Ainda a propósito dos erros cometidos pelo terapeuta e das vantagens que se poderia tirar deles, Ferenczi já alertava que como a análise não é um procedimento sugestivo, sua única pretensão deveria ser a da confiança na franqueza e na sinceridade do analista. Para Ferenczi, quando o analista reconhece um erro perante o paciente, a confiança deste em seu analista aumenta ainda mais.

Além disso, o que tenho verificado com freqüência é o proveito psicoterápico que o terapeuta pode conseguir com seus erros. Lembro-me de uma ocasião em que me atrasei para o atendimento de uma paciente e o quanto minha falha assumida pôde ser fecundamente aproveitada para que ela relacionasse vivências anteriores nas quais havia sido negligenciada, à situação atual. Ao reconhecer um erro diante do paciente este poderá recordar-se das falhas originais vividas precocemente, e que não estavam sob seu controle onipotente, e trazê-las para a situação transferencial cujo manejo será então oportunamente cuidado pelo terapeuta.

É parte do holding que o terapeuta oferece a seu paciente propiciar um espaço potencial na área de ilusão, um espaço para a experiência e para a transicionalidade. Para isso contamos com instrumentos que nos permitam atender às necessidades e urgências de nossos pacientes. É preciso compreender aqui o que não se realizou na história do desenvolvimento do paciente, por quê e de quê está sofrendo, qual é sua necessidade maturacional, e procurar satisfazê-la. É isto o que queremos, é esta nossa preocupação terapêutica primária: oferecer um holding adequado a cada paciente e funcionar como um ambiente suficientemente bom, que seja ora reparador, ora facilitador do desenvolvimento dos processos evolutivos que se congelaram no passado de nosso paciente.

Uma das principais virtudes da mãe suficientemente boa – e que não é uma mãe “boazinha”, ressaltou Winnicott – é a possibilidade dela “ser ela mesma”. Isto nada tem a ver com seu desempenho materno, com sua performance assistencial, mas com sua pessoalidade, com suas características naturais, com suas idiossincrasias.

Para que possamos continuar exercendo nosso trabalho, nosso ofício, também com uma dose de criatividade e com a espontaneidade necessária (que justamente por ser verdadeira acaba sendo exemplarmente terapêutica), equilíbrio entre o manejo técnico e os gestos pessoais terapêuticos formam uma combinação eficaz no tratamento de certos pacientes.

A tônica recai, portanto, nos cuidados devotados de uma mãe/terapeuta que também é real e cujas características de personalidade são percebidas pelo paciente, podendo adquirir uma importância que transcende os meandros da relação transferencial para servir como modelo de identificação para o paciente, e mais ainda, como oportunidade de constituição.

Após estas considerações é preciso fazer um esclarecimento. Há uma diferença fundamental entre a mãe e o bebê que precisamos considerar A mãe suficientemente boa não precisa ser douta, mas tem que se apropriar das funções maternas. A mãe pode identificar-se com seu bebê porque outrora foi um bebê. Passou pela fase de dependência absoluta e adquiriu sua autonomia aos poucos. Já brincou de ter sido um bebê, de ter sido mamãe, papai, passou por regressões, pode ter lido livros sobre maternagem, pode ter observado sua mãe ou outras mães cuidarem de bebês.

Mas como já vimos, o bebê nunca foi um bebê antes e muito menos uma mãe. Ele não tem referências, parâmetros. Tudo acontece pela primeira vez. Sua noção temporal vai se formando inicialmente pelos ritmos distintos que ele indiscrimina, tanto os ritmos maternos (batimentos cardíacos maternos, respiração) como os ritmos próprios (pelo aumento ou queda das tensões instintivas etc). A mãe pode retroceder a formas de experiência infantil, mas o bebê não, nem os pacientes que sofreram falhas ambientais graves em idade precoce.

Então há uma diferença essencial que caracteriza o relacionamento entre o bebê e a mãe e entre o paciente com falhas ambientais precoces e o terapeuta. De um modo ou de outro, ambos, bebê e paciente, “submetem-se” aos cuidados respectivos da mãe e do terapeuta. O primeiro porque imperiosamente não lhe resta alternativa, e o segundo porque geralmente acostumado que está a adaptar-se ao outro, costuma repetir na transferência com o analista a posição de colocar-se à sombra das necessidades do outro e simplesmente reagir às atitudes que lhe são impostas. Soma-se a isto a confiança a priori depositada no terapeuta, incrementada pela indicação que recebeu. Afinal de contas, a indicação geralmente é feita por alguém conhecido ou de confiança, e o crédito na autoridade e competência profissionais do terapeuta ou analista (e do médico, do professor, dos paisetc) costuma ser fato consumado para aqueles que não conseguem confiar em suas próprias percepções.

Deste modo, para o infante que não pode escolher e que se encontra em estado de absoluta ou relativa dependência, a empatia materna tanto pode ser facilitadora como perigosa para o desenvolvimento de seus processos maturacionais. Tudo vai depender em parte das características e história de vida da mãe, e em parte da sorte do bebê de ser filho desta ou de outra mãe capaz de desenvolver a preocupação materna primária e dedicar-se ao bebê de modo suficientemente bom.

No caso da relação que envolve o par terapeuta e paciente, não é muito seguro contar com a sorte. O paciente que está revivendo os estágios precoces de desenvolvimento na situação transferencial precisa de um terapeuta empático e que faça uso dos movimentos contratransferenciais como instrumentos de trabalho e de comunicação. Precisa de um profissional que lhe ofereça um holding consistente, que faça um bom manejo do setting, que permaneça atento à sua própria sensibilidade e aos movimentos psíquicos que se desenvolvem como uma resposta à imaturidade psíquica e ao tipo de dependência do paciente.

Cabe ao terapeuta o cuidado de manter um pé na realidade externa e outro na identificação que faz com seu paciente. Também é sua responsabilidade equilibrar, no manejo da transferência e da contratransferência, sua autenticidade e capacidade criativa com os afetos genuínos que sente pelo paciente (sim, o terapeuta sente afetos por seus pacientes, e precisa gostar verdadeiramente deles para exercer as funções maternas no processo analítico quando for necessário, pois o trabalho com esses pacientes exige muita dedicação). Nessa relação é necessário ser sensível e estar atento às necessidades do paciente, reconhecer, valorizar e legitimar suas qualidades positivas, assumindo um novo modelo de figura materna que possa ser internalizada no lugar daquela que falhou ou inexistiu em determinados aspectos.

Ao discutir a contratransferência Winnicott disse que entre o paciente e o terapeuta existe a atitude profissional do terapeuta, sua técnica e o trabalho que ele realiza com sua mente. Existe um esforço de sua parte, um trabalho mental que precisa ser consciente. O terapeuta é empático em relação a seu paciente, tem sentimentos, pensamentos e fantasias em relação a ele, mas tudo isso passa por uma malha fina e requer elaboração antes de voltar para o paciente em forma de comunicação, intervenção ou manejo. Esse trabalho de elaboração é função e responsabilidade do terapeuta. Requer não apenas conhecimento teórico e técnico, mas treinamento prévio, e é facilitado ou dificultado por suas experiências e vivências pessoais, sua análise pessoal e auto-análise, suas supervisões e características pessoais.

Estas são as ferramentas que se entrelaçam dinamicamente e que o terapeuta dispõe e precisa para cuidar de seu paciente e manter-se em seu papel e lugar de terapeuta. A capacidade empática apenas não basta, o conhecimento teórico sozinho não basta, tampouco são suficientes as indispensáveis análises pessoais e as supervisões técnicas se não tiverem sido vividas emocional, intelectual e cognitivamente. Se não tiverem sido assimiladas, elaboradas e integradas às vivências pessoais, possibilitado ao terapeuta a aquisição de um espaço terapêutico potencial para ser oferecido a seus pacientes.

Ao integrar essas experiências, e principalmente saber fazer uso delas – trabalho que será enormemente facilitado se ele tiver vivenciado uma análise suficientemente boa, ou na definição de Ferenczi, uma análise terminada3 – o terapeuta sente-se recompensado pelo trabalho realizado. Caso contrário, como disse esse autor, há casos em que o paciente que vivenciou uma análise completa está em melhores condições de ser um analista do que aquele que simplesmente cumpriu sua agenda com uma análise didática.

Consideradas essas relações e questões discutidas, penso que o manejo do setting requer não apenas um consistente conhecimento teórico, técnico e experiencial, mas também habilidade empática do terapeuta, e a utilização de seus sentimentos contratransferenciais que podem funcionar como valiosos guias ao longo processo terapêutico.

Tenho observado que nas situações em que esses dispositivos aliam-se favoravelmente para o uso que tanto o paciente como o terapeuta possa fazer deles, e quando as comunicações são ampliadas e bem sucedidas, os resultados são visíveis na vida prática do paciente. Isto significa uma melhora substancial na qualidade de vida do sujeito que se traduz pelo desenvolvimento de um self integrado, por sua capacidade de se relacionar, produzir criativamente, ajustar-se de acordo com sua verdadeira essência e se desenvolver nos vários aspectos da vida.

Sobre a comunicação entre a mãe e o bebê, aqui estendida para o par terapeuta/paciente, Winnicott escreveu:

Encontro você;
Você sobrevive ao que lhe faço à medida que
a reconheço como um não-eu
Uso você;
Esqueço-me de você;
Você, no entanto, se lembra de mim;
Estou sempre me esquecendo de você;
Perco você
Estou triste (Winnicott, 1968, p. 92).

E como em um jogo de rabiscos iniciado com as palavras de Winnicott, continuo a rabiscar com as minhas, a fim de ilustrar o que penso ser o resultado de um(a) terapeuta/mãe suficientemente bom(a) introjetado(a):

Lembro-me de você
E porque existindo como um não-eu,
você cuidou de mim,
Sei quem sou e sinto-me vivo;
Posso me esquecer de você, posso amar,
Posso reencontrar você, e também posso odiar
Amo o que você significou para mim
Estou sempre me lembrando de mim e não te esqueço
Por isso não me perco, e posso cuidar
Sou feliz.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Haydée Christinne Kahtuni
Rua Souza Ramos, 98 – 04120-080 – Vila Mariana – São Paulo/SP
tel: (11) 5572-7521
e-mail: haydeeck@terra.com.br

recebido em 25/03/04
versão revisada recebida em 13/12/04
aprovado em 14/12/04

 

 

Notas

IPsicanalista; Mestre e Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP); Professora Titular, Líder da Disciplina Psicologia da Personalidade e Supervisora Clínica (UNIP/1997-2004); Membro da Sándor Ferenczi Society.
1Nas condições de supervisora clínica de alunos de quinto ano de formação em psicologia e de integrante de banca examinadora de dissertações e teses em psicologia e psicanálise em nível de pós-graduação.
2Muito já se discutiu sobre esta questão, e quem se interessar encontrará farto material a respeito. Recomendo porém, a interessante leitura do artigo de Bollas (2001), onde ele propõe o fim da distinção entre a psicanálise e a psicoterapia analítica, por reconhecê-las como psicanálise.
3Vale lembrar uma das últimas recomendações freudianas em Análise terminável e interminável (1937), artigo no qual ele sugere, entre outras coisas, que todo analista “sem se sentir envergonhado por tomar esta medida”, deve fazer sua re-análise a cada cinco anos.