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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.9 n.16 São Paulo dez. 2005

 

RESENHAS

 

A convocação de Freud

 

 

Ramon José Ayres SouzaI

Universidade São Marcos

Endereço para correspondência

 

 

BERLINCK, Manoel (org). Obsessiva neurose. São Paulo: Escuta, 2005. 448p. ISBN: 85-7137-237-3.

Freud, no caso do Homem dos ratos (1909, p. 214), convoca “outros estudiosos para que forneçam mais esclarecimentos sobre a neurose obsessiva”. Segundo ele, uma discussão como esta contribuiria para uma maior compreensão “a respeito da natureza do consciente e do inconsciente” (p. 198).

Nunca foi tão necessário, nos atuais tempos em que a psiquiatrização toma conta do discurso cotidiano, a psicanálise seguir o apelo freudiano e se debruçar obsessivamente sobre essa estrutura intrapsíquica. A retomada dessa linha de pensamento aponta, acima de tudo, para o resgate de um sujeito implicado por seus desejos, em detrimento do sujeito mero portador de um transtorno-síndrome.

É seguindo esta concepção, e dando voz ao apelo freudiano, que o corpulento livro Obsessiva neurose, organizado por Manoel Berlinck e publicado pela Escuta, busca mergulhar no complexo universo metapsicológico desse tipo de neurose.

Logo no prefácio, Berlinck apresenta­nos ao texto Neuroses de transferência: uma síntese1, escrito por Freud em 1914/1915 e dado de presente a Ferenczi. Nesse trabalho, baseando-se no argumento de que as neuroses seriam fases do estado da humanidade, Freud distingue obsessividade” e “neurose obsessiva”, como coloca Berlinck: “enquanto aquela, voltada para o entendimento e o controle do mundo hostil por meio do pensamento, da pesquisa, da linguagem e da criatividade técnica é a manifestação civilizadora, a neurose obsessiva, na repetição empobrecida desses traços, é uma tragédia”2 (p. 09).

A coletânea é constituída por catorze importantes trabalhos. Karl Abraham faz a abertura com os dois primeiros textos – A valoração narcísica dos processos excretórios nos sonhos e na neurose (1920) e Contribuições do caráter anal (1921). Esse último, juntamente com o texto de Ernest Jones, Traços do caráter anal-erótico (1918), contribui para expandir os traços caracterológicos anais, abordados pela primeira vez por Freud em 19083. Tanto o trabalho de Abraham quanto o de Jones (que curiosamente não foi disposto no início do livro) elucidam detalhadamente a caricatural sintomatologia obsessiva.

Outro bloco interessante de textos é aquele que pretende abordar a neurose obsessiva a partir da comparação com outras estruturas clínicas. O trabalho de Flávio Carvalho Ferraz, por exemplo, A religião particular do neurótico: notas comparativas sobre a neurose obsessiva e a perversão, baseia-se nas afirmações feitas por G. Rosolato e Janine Chasseguet-Smirgel, em que comparam a neurose obsessiva a uma religião de tradição ritualizada/privada, e a perversão a uma religião gnóstica/diabólica. Uma analogia aos “tipos libidinais” é feita pelo autor (Freud, 1931): a figura do herói ou do criminoso estaria mais próxima, por exemplo, do tipo narcísico; em contraposição, a figura do santo estaria mais relacionada ao tipo obsessivo.

Mais um texto que se encaixa no bloco dos estudos comparativos seria Neurose obsessiva e histeria: suas relações em Freud e a partir de Freud. Estudo clínico, crítico e cultural, publicado em 1964 por André Green. Após percorrer minuciosamente o campo psicanalítico freudiano e pós-freudiano em busca da oposição “neurose obsessiva­histeria”, Green defende a posição estrutural clara entre os dois tipos de neurose, propondo um modelo de estrutura para ambos.

A relação de objeto e a visão de ego na neurose obsessiva é extensamente caracterizada por Maurice Bouvet no texto de 1952 O ego na neurose obsessiva. Relação de objeto e mecanismos de defesa: “procurei demonstrar a necessidade de mantê-la [a relação de objeto] e a impossibilidade fundamental da realização do desejo que a sustenta, e sua estabilização em uma solução de compromisso: a distância” (p. 121). No entanto, a visão de “clínica total” é criticada por Green, ao afirmar esta ser um “modo confusional, de uma clínica que se esforça em “ultrapassar” o ponto de vista estritamente analítico para tentar chegar a uma visão sintética” (p. 188).

Já em Metapsicologia da neurose obsessiva (1967), André Green expande as contribuições aos estudos obsessivos iniciadas a partir do estudo de 1964, reafirmando o indiscutível papel da analidade na “caracterologia” dessa neurose. Contudo, o autor alerta que “não basta pôr em relação o conteúdo anal dos sintomas obsessivos nem descrever os mecanismos que lhes seriam comuns, mas é preciso esboçar um paralelo que aproximaria a situação da obsessão no pensamento do sujeito ao do objeto anal no ventre” (p. 219).

Há ainda os artigos: A enfermidade dos tabus: do querer gozar a um querer dizer, de Vera Lopes Besset e Susane Vasconcelos Zanotti, sobre a importância e o peso que as palavras têm para o funcionamento obsessivo; Pensando a neurose obsessiva a partir de “Atos obsessivos e práticas religiosas”, de Freud, de Sérgio de Gouvêa Franco, que faz uma leitura sincrônica e diacrônica do texto freudiano de 1907; Ódio e inação: o negativo na neurose obsessiva, de Décio Gurfinkel, sobre a negatividade presente nesse tipo de estrutura (interessante também é a relação que o autor traça entre o “delírio de tocar” e o medo obsessivo da Aids na clínica atual).

Dentre os últimos quatro trabalhos – Notas sobre a neurose obsessiva em Freud e Lacan, de Urânia Tourinho Peres; A mulher obsessiva entre a tragédia e o humor, de Maria Anita Carneiro Ribeiro; A objetivação do tempo no mundo obsessivo, de Maria Lucrecia Rovaletti; Mecanismos de defesa na neurose obsessiva: formação reativa, anulação e isolamento, de Vera Stela Telles –, destaco o texto de Ribeiro sobre o humor como uma saída possível no final de análise com um paciente obsessivo.

O leitor certamente perceberá que as “dimensões verdadeiramente grandiosas dos fundamentos da neurose” (p. 11), como sugere o próprio Berlick no prefácio, são realmente fornecidas pelo livro, mas não esgotadas. Felizmente. O apelo de Freud continua ecoando obsessivamente.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund (1909). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. vol. X.

________. (1931). Tipos libidinais. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. vol. XXI.

 

 

Endereço para correspondência
Ramon José Ayres Souza
e-mail: ramon.vandick@globo.com

 

 

Notas

IMestrando do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade São Marcos.
1“Visão de conjunto das neuroses de transferências” seria o título mais apropriado, segundo Berlinck.
2É interessante pensar na figura do tragicômico, trazida em alguns momentos do livro.
3Com o artigo Caráter e erotismo anal.