SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 número17Sobre a necessidade de crerConsiderações a respeito da violência intra-psíquica na prática psicanalítica índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Psychê

versión impresa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.17 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS

 

O amigo, um outro si mesmo: a Philia na metafísica de Platão e na ética de Aristóteles

 

The friend, another one self: the “Philia” in the metaphysics of Plato and in the Aristotle’s ethics

 

 

Zeferino RochaI

Universidade Católica de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Depois de recordar brevemente de que modo os gregos viam a philia antes de Aristóteles, e de resumir o que sobre ela disse Platão no diálogo Lysis, o presente ensaio tem como objetivo refletir sobre o essencial daquilo que Aristóteles ensinou sobre a philia nos livros VIII e IX da Ética a Nicômaco, tanto para definir-lhe a natureza e suas principais formas, quanto para pôr em destaque a “amizade virtuosa” como a mais perfeita de suas formas, na qual o amigo desdobra-se em “um outro si mesmo”.

Palavras-chave: Philia, Amizade, Virtude, Amor de si mesmo, Outro si mesmo.


ABSTRACT

After a brief report on the ways Greeks used to see philia before Aristotle and resuming what Plato expound about it the dialogue “Lysis”, we reflect on Aristotle teachings about philia in books VIII and IX in the “Nicomachean Ethics”, to define its nature and its main forms, and to emphasize the “virtuous friendship” as the most perfect of its forms, in which a friend becomes “another self”.

Keywords: Philia, Friendship, Perfect friendship, Oneself love, Another self.


 

 

Introdução

το αγαθον φιλον
[O objeto do amor é o bem]
(Platão).

Inegavelmente, Platão é o filósofo do Amor. No Banquete, sem dúvida, encontram-se algumas das mais belas páginas que já foram escritas sobre Eros em toda a História da Literatura Universal. Mas coube a Aristóteles o merecimento de ter resumido o que de melhor o pensamento grego nos legou sobre o amor de amizade, sobre a philia.

Na Cultura Ocidental, a palavra φιλια geralmente foi traduzida por “amizade”. Todavia, nos escritos da Grécia Arcaica, o termo tinha uma conotação semântica muito mais ampla e era empregado para traduzir um vínculo de união ou de interesse entre os homens, quer este fosse devido ao sentimento de mútua simpatia, quer fosse fruto de uma vantagem específica, ou até mesmo do próprio acaso. Daí porque eram amigos (φιλο i): os camaradas de jogo, os colegas de viagem, os companheiros de navegação, os colegas de armas, os associados no comércio, os pais, esposos, irmãos, parentes e os cidadãos em geral.

Nos textos filosóficos, mesmo na Grécia Clássica e do próprio Platão, ainda não existe uma distinção clara entre as palavras “amor” (eros) e “amizade” (philia). Em Aristóteles, porém, já se encontra uma tentativa de definir a amizade (φιλια), designando-a como uma convivência íntima, agradável e, sobretudo, benéfica, capaz de fazer da vida humana uma vida “bela e boa”, digna, portanto, de ser vivida1.

Por duas razões principais, Aristóteles deu um destaque especial à philia em seus escritos sobre a Ética. Em primeiro lugar, porque a verdadeira amizade era para ele uma autêntica virtude, entendida no sentido da αρετη grega; e em segundo lugar, porque a amizade tinha, para os gregos, uma função importante na vida da Cidade (pólis), pois tinha o valor e a dignidade de uma “virtude política” (πολιτικη αρετη).

Portanto, como o eixo em torno do qual gira tudo o que Aristóteles ensina sobre a Philia é a noção de virtude (αρετη), bem como o seu papel fundamental tanto na vida dos indivíduos quanto na vida da Cidade (pólis); oportuno se faz lembrar de que modo a Grécia Antiga definia a virtude (αρετη), para avaliar devidamente o que Aristóteles entendia quando afirmava que a amizade era uma virtude.

Para ele, a virtude é uma “disposição interior”, um “costume” (εθος), ou ainda um “hábito” (εζις)2 que aperfeiçoa os seres humanos, tornando-os capazes de agir, quase sempre3, de um modo excelente. Nesta perspectiva, os hábitos tornavam aptas as pessoas a construírem um estilo próprio de vida, o que poderia ser visto como a própria finalidade da ética. Desse modo, o homem virtuoso possuía, de um modo excelente, as virtudes do “belo” (καλος) e do “bem” (αγαθος), que resumiam o essencial do ideal ético da cultura helênica. No dizer de Léon Robin (1957, p. 1270), a expressão καλος και αγαθος (belo e bom) sintetizava o ideal helênico de um “homem realizado”, ou seja, o ideal de “un homme accompli”.

 

A Philia na Grécia Arcaica

O valor da amizade já era enaltecido tanto nos poemas épicos quanto nos poemas líricos, e sobretudo nos poemas trágicos. Ela era um dos mais expressivos vínculos capazes de reunir os homens, dispersos pela singularidade de suas vidas e de seus interesses individuais, em formas ordenadas de comunidade, como as famílias, as seitas religiosas, as instituições filosóficas e as instituições políticas.

Mas antes de Aristóteles, nenhuma teoria fora elaborada para definir-lhe a natureza. A esse respeito, Gauthier e Jolif observam que até o século V a.C., o sentido do termo φιλος (amigo) era ambíguo, e nele predominava a significação jurídica. A palavra remetia ao adjetivo possessivo “meu”, e por isso os “amigos” (φιλοι) de alguma pessoa eram todos os seus. A esposa, por exemplo, era a φιλη (amiga) do marido, porque este a levava para casa e ela lhe pertencia (1959, p. 655-6).

Depois este sentido jurídico foi adquirindo, pouco a pouco, uma modalidade psicológica e uma conotação afetiva. E nesse novo contexto, o termo “amigo” (φιλος) passou a ser atribuído às pessoas em virtude de sua bondade e amabilidade. De fato, só se ama o que é amável, por isso ninguém pode ser amado se não for primeiramente amável. Mesmo quando se ama o mal, este reveste para quem ama a aparência de uma coisa boa, e por conseguinte, amável. Aristóteles, porém, não se contentou em destacar essa dimensão psicológica da Philia e colocou-a no centro do seu pensamento ético e político.

Como já foi dito, mesmo nos diálogos platônicos existe uma ambigüidade semântica no emprego das palavras “eros” e “philia”. Por isso, embora o diálogo Lysis tenha o subtítulo “sobre a amizade”, seu ponto de partida é o amor apaixonado de Hypotales por Lysis. Por não distinguir o amor (eros) da amizade (philia), Platão terminou o diálogo fazendo Sócrates dizer que não sabia o que era a amizade, e preanunciou aquilo que, no Banquete, escreveu sobre Eros. Por esta razão, Leon Robin adverte que, no Banquete e no Fedro, Platão responde às principais questões que ficaram abertas e sem resposta no Lysis.

Essa ambigüidade terminológica, no entanto, é apenas um aspecto da dificuldade maior que os pensadores de todas as épocas, mesmo os maiores filósofos, sempre enfrentaram ao se debruçarem sobre o enigma do amor e da amizade. Poder-se-ia dizer que semelhante dificuldade era devida e se deve, ainda hoje, ao fato de que o amor transcende o registro de nossas representações conceituas, seja quando se trata de definir a sua natureza mais íntima, seja quando queremos descrever as principais formas de suas manifestações. Sabemos todos o que as palavras amor, amizade significam, mas sempre lamentamos a pobreza de nossos conceitos quando queremos definir-lhes a natureza.

Platão nos dá um belo exemplo desta dificuldade quando, no Banquete, aceita o desafio de revelar a natureza de Eros, e termina lançando mão da linguagem simbólica do mito para alcançar seu objetivo. Se para ele inicialmente a linguagem mítica levantava suspeitas pelo fato de não ser um discurso racional, pouco a pouco ele passou a ver no mito uma forma autônoma de pensamento, diferente do discurso racional, mas não necessariamente em contradição com ele.

De fato, no Mito existe uma nova forma de representação, que nos convida a pensar. Como diria Paul Ricoeur: “o mito nos faz pensar (le myhte donne à penser)”. O mito exprime, em uma linguagem simbólica, aquilo que o entendimento só com muito esforço e em uma linguagem indireta pode alcançar (Rocha, 2003, p. 92-102). Dir-se-ia que nossas representações conceituais são pobres demais para traduzir a riqueza semântica tanto do amor quanto da amizade.

 

A Philia no Lysis de Platão

O diálogo Lysis tem todas as características dos diálogos aporéticos da juventude de Platão. Esses diálogos, também chamados socráticos, oferecem-nos um belo exemplo do “método maiêutico”, no qual Sócrates, sob a forma de um “não-saber” metodicamente assumido, procura, conversando com seus interlocutores, uma “nova forma de saber”, que a inteligência só consegue alcançar quando, mediante as exigências de uma rigorosa definição lógica, encontra o sentido daquilo que procura conhecer.

Aceitando o convite que lhe fizeram Lysis e Menexeno para participar de uma reunião de jovens, na qual se queria discutir o discurso amoroso, Sócrates usa seu método maiêutico para tentar definir a amizade. E, não sem uma certa ironia, confessa logo no início que não possui o dom da amizade, e por isso pede a Menexeno que lhe diga de que modo um homem se torna amigo de outro4. Mas o que nos diz Platão sobre a amizade no diálogo Lysis? Duas são as principais aporias levantadas por Sócrates e seus interlocutores quando tentam esclarecer a natureza da amizade. A primeira diz respeito à reciprocidade e a segunda indaga se a amizade fundamenta-se na semelhança ou na dessemelhança dos amigos.

 

Amizade e reciprocidade

A questão da reciprocidade surge com a pergunta: quem é amigo de quem? O amante do amado ou o amado do amante? O que ama ou o que é amado? A pergunta, aparentemente ingênua, é pertinente, porque há casos inegáveis em que o amor não somente não é correspondido, mas pode até mesmo ser retribuído com o ódio. E isto não é raro nas histórias de amor. Ora, não se pode conceber que alguém seja verdadeiramente amigo quando não corresponde ao amor do amigo, e muito menos se responde a esse amor com ódio. Nesse caso, o amigo seria amigo de seu inimigo, o que para os gregos era uma contradição. O amor dos inimigos não é uma virtude grega, mas um dos mandamentos da religião cristã.

A conclusão, portanto, seria afirmar que a reciprocidade do amor entre amigos faz parte da natureza da amizade, pois é impossível conceber a amizade sem reciprocidade. Mas Sócrates lembra os casos dos seres irracionais e imateriais que não podem responder ao amor de amizade que lhes é dedicado pelos homens. E o diálogo, então, prossegue por outros caminhos.

Aqui Platão dá um passo decisivo no sentido de definir a natureza da amizade, ao afirmar que não pode haver amizade sem uma relação de reciprocidade entre os amigos. Aristóteles não esqueceu jamais esta lição da Academia, e quando define a natureza da amizade faz da reciprocidade uma de suas características essenciais. Poder-se-ia também dizer que aqui Aristóteles oferece uma razão para uma possível distinção entre amor e amizade.

Quando se trata do amor-desejo, do amor erótico, pode-se conceber que ele seja unilateral. São inúmeros os casos na história da literatura de grandes paixões amorosas incorrespondidas. No caso da amizade, porém, isto seria inconcebível. Não pode haver uma verdadeira relação de amizade sem reciprocidade.

Quanto aos supostos casos de amizade com os animais e os objetos inanimados, esses não podem ser classificados como uma verdadeira forma de amizade. Por mais que se diga que “o cão é o melhor amigo do homem”, com ele não se pode ter uma relação de reciprocidade propriamente dita, e por isso, não se pode dizer que a relação que com ele se estabelece seja uma verdadeira amizade. Posso afeiçoar-me ao meu cão, ou até às rosas de meu jardim, mas não posso amá-los com amor de amizade.

 

Amizade e diferença

Outra aporia, abordada no Lysis, é aquela que indaga se a amizade tem como fundamento a semelhança ou a dessemelhança dos amigos. Parece evidente que a amizade ou encontra ou torna semelhantes os amigos, e foi precisamente por causa dessa afinidade que a sabedoria popular forjou a máxima: “dize-me com quem andas e eu te direi quem tu és”.

Todavia, como na reciprocidade os amigos mutuamente se enriquecem, esse enriquecimento recíproco parece exigir que entre eles haja alguma diferença e dessemelhança. Em uma relação unívoca entre iguais e semelhantes, ou em uma relação especular na qual o amado não é mais do que o espelho do amante, nada se acrescenta ao que já se conhece e se tem. Na relação intersubjetiva, o outro não apenas é um desdobramento do Eu, ele é outrem, e como tal, enriquece com sua diferença a relação intersubjetiva.

Para solucionar a aporia, Platão apela, no Lysis, para a noção do “intermediário” (μετιξυ), segundo a qual o objeto da amizade parece participar tanto da semelhança quanto da dessemelhança dos amigos. Aristóteles, como veremos depois, prefere o conceito de analogia, na qual os termos que se confrontam, em virtude de uma semelhança na dessemelhança, tornam-se proporcionalmente semelhantes sem deixar de ser diferentes. Platão, porém, recorre ao conceito de “intermediário”, o qual tem um lugar de destaque em sua teoria do Eros.

 

O intermediário [μετιξυ]

Não é de estranhar, portanto, que a noção do “intermediário”, em vez de solucionar o impasse do Lysis, anuncie aquilo que, no Banquete, será dito sobre a natureza “demoníaca” de Eros, intermediário entre o mundo sensível e o inteligível, e entre os deuses e os homens. É da natureza do “intermediário”, na teoria do Eros platônico, verticalizar a relação entre o sensível e o inteligível. Eros, como intermediário, abre a rota da “segunda navegação”, na qual se faz a grande escalada do sensível para o mundo inteligível das Idéias.

Nesta perspectiva, e partindo da premissa que “o objeto do amor é o bem” (το αγαθον φιλον), Platão vê o amor como a busca do bem que falta para afastar o mal resultante de sua privação. Assim, todo bem que se busca na experiência amorosa remete para um bem ulterior. Tudo o que se ama é amado em vista de um bem maior.

 

O primeiro amigo [πρωτος φιλος]

Platão conclui que deve existir um “primeiro amigo” (um prótos phílos), que é o amável por excelência, em vista do qual tudo é amado. Esse amável por excelência, amável em si mesmo, é o objeto primordial de nossos desejos. E é precisamente tendo esse “amigo primeiro” como referência primordial que Platão elabora a sua teoria do Eros.

Basta lembrar o modo como, no Banquete e no Fedro, ele descreve a ascensão dialética da alma humana do mundo sensível ao mundo inteligível. As carruagens das almas dos mortais, puxadas por cavalos alados, também participavam das carreatas celestes. Todavia, desde que tiveram suas asas partidas pela inabilidade dos cocheiros e caíram do céu do mundo inteligível nos limites da realidade do corpo sensível, elas não mais puderam participar das caminhadas pelas estradas do céu. Depois que a Beleza fez de novo crescer as asas partidas, a alma humana pôde novamente se elevar desse mundo sensível até a contemplação mística da Beleza, que resplandece na Idéia do Bem5. Este Bem é amado por si mesmo, tudo o mais que se ama é ordenado ao seu amor.

Platão, no entanto, não venceu o desafio enfrentado no Lysis para definir a natureza da amizade. De modo semelhante a muitos dos diálogos aporéticos, esse também termina sem alcançar seu objetivo. Não é de admirar que ele se encerre com as seguintes palavras, que Sócrates dirige a seu interlocutor: “essas pessoas [referindo-se aos que aparecem no fim do diálogo] dirão que nós nos imaginamos mutuamente amigos (...) quando, na realidade, não conseguimos sequer descobrir o que é um amigo”6.

Comentando esta passagem, León Robin observa: “foi, portanto, impossível definir a amizade e, sem dúvida, será preciso procurar alhures, ou diferentemente, caso se queira descobrir esta definição e estar em condição de dizer qual é o verdadeiro princípio da φιλια” (Robin, 1964, p. 7). Não tendo encontrado em Platão uma definição da amizade, vamos tentar encontrá-la na filosofia de Aristóteles.

E é precisamente este o principal objetivo do presente ensaio. Para consegui-lo, vou primeiramente perguntar qual, para Aristóteles, a natureza e as principais formas de amizade. Em seguida, veremos como, na mais perfeita forma de amizade, que é a virtuosa, o amigo desdobra-se em um “outro si mesmo” (ετερος αυτος). Este desdobramento do sujeito em um outro si mesmo leva-nos a descobrir, já presente na metafísica aristotélica, a mediação do outro como elemento indispensável para a constituição da subjetividade, que a filosofia, as ciências contemporâneas do homem e particularmente a psicanálise vêm destacando de modo todo especial.

 

A Philia na Ética aristotélica

Aristóteles começa o estudo da amizade dizendo, no Livro VIII da Ética a Nicômaco, que ela é “uma das necessidades mais prementes da vida”7. Não se pode viver sem amigos. Nenhum homem − nem mesmo aqueles que se consideram os mais felizes − diria sim à vida ou, mesmo na suposição de que lhe fosse dado todo o ouro do mundo, escolheria viver sob a condição de permanecer sozinho e sem amigos. O que não é de estranhar, pois “o homem é um animal político (ζωον πολιτικον)”, diz Aristóteles, “cuja natureza o destina a viver com os outros”8. Para o homem, pois, viver (ζην) é viver-com-os-outros, é conviver (συζην)”.

 

O conviver [συξην]

Se naturalmente o homem é destinado a viver em comunidade, a vivercom-os-outros, a “con-viver” (συζην), não é possível imaginá-lo vivendo sem amigos, pois nas horas de infortúnio ele encontra nesses amigos um refúgio, e quando se sente feliz, deles precisa para partilhar sua alegria. Dizendo isto, Aristóteles está em perfeita sintonia com a velha tradição helênica, que Eurípides tão bem resume quando escreve:

É um prazer poder partilhar a felicidade com amigos, mas – que Deus não o permita! – se uma desgraça sobrevier, é doce mergulhar o olhar nos olhos de um amigo”9.

Portanto, para “viver bem” e alcançar o ideal ético de uma vida “bela e boa”, o homem não pode prescindir da amizade, pois mesmo os mais felizes precisam de amigos para suprir o que sozinhos não poderiam fazer por si mesmos. Ou para dizê-lo com as palavras de Aristóteles: “o amigo, sendo um outro si mesmo, fornece o que não se pode prover pelo seu próprio esforço”10.

Procedendo desse modo, o Estagirita coloca a amizade no centro de seu pensamento ético e político. Para ele, a amizade não é apenas um sentimento de benevolência ou um intercâmbio sentimental, mas uma verdadeira virtude. A virtude da amizade, porém, não é apenas uma virtude individual, mas também uma virtude política (uma πολιτικη αρετη), com um papel fundamental na vida da Cidade (Pólis)11.

 

Amizade e alteridade

Essa dimensão ética, que caracteriza a doutrina aristotélica da amizade, fundamenta filosoficamente uma tese, hoje unanimemente aceita pelas diversas correntes da antropologia filosófica, segundo a qual o homem só realiza as virtualidades e possibilidades de sua natureza humana, bem como só consegue efetuar uma avaliação adequada de suas ações e realizações, quando conta com a mediação de um outro, ou seja, na medida em que se abre para a alteridade. Pela reflexão ele pode penetrar em seu mundo interior, e conhecendo-se a si mesmo, afirmar-se no que tem de próprio e de insubstituível, pois cada um é único naquilo que o define e lhe confere sua identidade. Mesmo assim, homem nenhum é uma ilha.

Dir-se-ia que na amizade essa abertura para a alteridade se dá, na medida em que o Eu se desdobra na pessoa do amigo, sob a modalidade de um outro Eu. Se nos lembrarmos do que escreve Heidegger sobre o “cuidado” como uma exigência constitutiva do Dasein, será preciso desdobrar o ser-aí (o Dasein) em um ser no mundo (In der Welt sein) e em um ser-com-os outros (Mitanderensein).

A esse propósito, é muito oportuno e sugestivo o comentário que Paul Ricoeur faz das palavras de Heidegger (2001, p. 114) no Sein und Zeit: “o Ser cada vez mais é de mim” (Das Sein je meines)12. Se há um processo de integração na ação de apropriação que torna cada vez mais “de mim”, ou meu, o que eu sou; então, esse “cada vez mais”, comenta Ricoeur, “se fundamenta na referência não-dita ao outro” (1991, p. 212). Dir-se-ia que eu devo fazer cada vez mais meu, ou de mim, o ser que se manifesta naquilo que sou, e isto não pode ser feito senão pelo reconhecimento do outro. A afirmação de si passa pelo reconhecimento do diverso de si13. Talvez pudéssemos dizer que Aristóteles de algum modo intuiu que, no exercício da amizade, o homem está continuamente fazendo seu o seu modo de ser, e que para tanto faz-se necessária a mediação do amigo, como outro si mesmo, ou como outro diverso de si. Eu só posso fazer cada vez mais meu o ser que sou por meio da mediação e do reconhecimento do outro diverso de mim. Para Aristóteles, esse outro é o amigo.

 

Uma tarefa que não termina nunca

Neste contexto, talvez fosse oportuno lembrar que, para Aristóteles, o trabalho de realização desse ideal ético de felicidade, vale dizer, daquele “viver bem” − no qual se realizam as capacidades e virtualidades do homem e cuja atualização a amizade favorece − não significa necessariamente a obtenção da perfeição de um ato acabado, que atinge seu fim, seu τελος, ou seja, uma perfeição que se apresenta como a realização de uma “entelécheia” (εντελεχεια), mas antes como a atualização (a enérgeia) de um devir, cuja capacidade nunca termina de se atualizar, pois está sempre em movimento14.

 

A natureza da amizade

Posto isto, juntamente com Platão, mas indo além do que seu mestre disse no Lysis, Aristóteles descobre na reciprocidade a essência da amizade, mas reveste essa reciprocidade com uma nova significação ética, na medida em que dela faz uma verdadeira e íntima “con-vivência”, vale dizer, aquilo que em grego exprime-se com a palavra “συνηθεια”, a qual poderia ser traduzida por “vida em comum”. Segundo esta “vida em comum”, os amigos convivem procurando o bem uns dos outros, e amam-se uns aos outros como se estimam a si mesmos. E nessa “con-vivência” eles estão empenhados em um aperfeiçoamento mútuo que jamais termina de ser realizado.

Trata-se, como já foi dito, de um “viver junto” (de um συζεν) que não é simplesmente um “estar junto”, ou estar um ao lado do outro (“como o gado no pasto”, para lembrar o exemplo dado pelo próprio Aristóteles), mas de um “estar junto”, ou de um “viver junto”, de um “viver com” ou “con-viver”, em que os amigos, partilhando reciprocamente dos sentimentos de estima e admiração, trocam entre si o que lhes parece bom, útil e agradável 15. A amizade, na relação de reciprocidade que a define, desdobra o desejo de “viver junto” (συζεν) em um desejo de “viver bem” e de “viver feliz” (ευζεν).

 

Objeto e principais formas de amizade

Para definir a amizade, Aristóteles procura, antes de tudo, esclarecer a natureza do objeto, no qual se esconde o motivo da sua escolha, pois como já foi dito, só um objeto amável pode ser amado, ou ser objeto de amizade. E o que torna um objeto amável? Primeiramente, e sobretudo sua bondade intrínseca e seu valor, adquiridos pelo exercício da virtude; em seguida, o prazer que ele proporciona e a utilidade que oferece. Eu só posso verdadeiramente amar com amor de amizade aquele que, por causa de sua bondade, torna-me melhor e mais virtuoso, e além disso, pode também me dar prazer e me ser útil.

Portanto, em virtude do “objeto”, ou seja, daquilo em que a amizade se especifica, Aristóteles distingue três espécies diferentes de amizade: a útil, a prazerosa e a virtuosa. Todas merecem o nome, mas só a virtuosa é a amizade propriamente dita, ou dizendo melhor, a amizade perfeita (τελεια φιλια), porquanto as outras duas só podem ser consideradas como amizade na medida em que visam tornar “boa” a vida e a existência do amigo.

 

A amizade, um conceito análogo

O conceito de amizade, portanto, não é unívoco, nem equívoco, mas análogo. As três formas de amizade não são iguais nem inteiramente desiguais. Há entre elas uma semelhança na dessemelhança, e uma dessemelhança na semelhança. Mesmo quando a amizade se fundamenta naquilo que o amigo é em si mesmo, ou naquilo que ele é essencialmente, como acontece na amizade virtuosa, não deixa de ser verdade que semelhante amizade é também útil e prazerosa.

Esta semelhança na dessemelhança justifica que Aristóteles tenha dito que entre as diversas formas de amizade exista uma relação de analogia.

Por isso nós também devemos afirmar que existem várias formas de amizade – primeiramente e em um sentido próprio a amizade daqueles que são bons enquanto bons, e por analogia, as outras formas; pois é em virtude de algo bom e semelhante ao que se encontra na verdadeira amizade, que estes são amigos, visto que o agradável é bom para os amantes do prazer16.

Já sabemos que na tradição aristotélica a perspectiva do “viver bem” (ευξην) define o ideal ético, pois nele esconde-se o segredo da “felicidade” (ευδαιμονια). Por isso, um prazer que fosse nocivo, bem como uma utilidade que fosse prejudicial ao amigo, não seriam dignos do nome de amizade. Vamos dar um passo além e aprofundar o sentido da relação que Aristóteles estabelece entre a amizade e a virtude (αρετη), da qual resulta a amizade virtuosa como a mais perfeita de suas formas.

 

A perfeita amizade [τελεια φιλια]

Para Platão, a mais perfeita forma de amizade é aquela com a qual se ama o “próton phílon” ou seja, o “primeiro amigo”, o Bem em si, amável por si mesmo e para o qual toda forma de amor se ordena. Em Aristóteles, a amizade primeira (proté philia) desce do Mundo divino das Idéias platônicas e se instala na vida individual e cívica do homem virtuoso. No capítulo terceiro do Livro VIII da Ética a Nicômaco, ele esclarece que o segredo da amizade perfeita consiste em ser ela a amizade dos homens que são “bons em si mesmos”, vale dizer, cuja bondade vem de dentro e não está incidentalmente relacionada a uma outra coisa, como por exemplo, ao interesse ou ao prazer. Os verdadeiros amigos são semelhantes na virtude, e por isso desejam igualmente o bem uns aos outros enquanto são bons. E como a bondade que vem de dentro é duradoura, a amizade virtuosa é também aquela que mais dura17.

Dizendo que as pessoas virtuosas são “boas em si mesmas”, Aristóteles revela o fundamento filosófico da amizade no próprio ser da pessoa amiga, naquela bondade que vem do mais íntimo do seu ser. Com efeito, a virtude entendida como αρετη significa, como já sabemos, uma excelência ou uma modalidade excelente de ser e de agir.

Ora, o homem virtuoso, diz ainda Aristóteles no capítulo quarto do Livro IX da Ética a Nicômaco, está sempre de acordo consigo mesmo e não procura para si senão o bem, ou aquilo que lhe parece tal, e o realiza. Com efeito, “é característica do homem virtuoso, realizar o bem em favor de si mesmo”. Mas este “bem” (αγαθον), ao invés de fechar o amigo em si mesmo, em um amor de si egoísta, leva-o a desejar também o bem para seu amigo. Por isso, Aristóteles continua: “todavia, tudo o que ele sente por si mesmo, sente-o também em relação ao amigo”. Compreende-se, portanto, que na virtude assim considerada o homem encontre a realização das virtualidades de sua natureza, e que para Aristóteles, amar alguém virtuoso significa amá-lo no que ele tem de mais próprio, de mais ele mesmo, de mais autêntico e de mais verdadeiro.

Para o Estagirita, embora a virtude propriamente dita não seja uma “disposição natural”, pois não nos é dada pela própria natureza, mas adquirida pelo exercício dos atos e pela força dos hábitos, ela aperfeiçoa o homem no mais íntimo de seu ser. A bondade virtuosa marca o homem naquilo que ele é. Quando é bom e virtuoso, o homem é de modo excelente aquilo que é, vale dizer, realiza de modo mais perfeito o humano do homem. Portanto, na amizade virtuosa os amigos estão unidos por aquilo que têm de mais essencial. O que o amigo virtuoso ama em si mesmo é o melhor de si, vale dizer, a sua parte intelectiva, a sua parte pensante e não a parte desejante, que motiva a amizade utilitária e prazerosa. Compreende-se que Aristóteles tenha concluído que a amizade que une os amigos virtuosos seja a mais perfeita e a mais duradoura.

 

A amizade virtuosa é duradoura

Na amizade útil, o amigo não é amado em si mesmo nem por si mesmo, mas por causa da utilidade que proporciona. O mesmo poder-se-ia dizer dos que procuram a amizade por causa do prazer que nela encontram. Nos dois casos, o amigo não é amado por aquilo que ele é nele mesmo, nem por aquilo que é essencialmente, mas pela vantagem ou pelo prazer que proporciona. Se eu me torno amigo de alguém porque sua riqueza me é útil ou sua companhia me é prazerosa e agradável, caso ele venha a perder a riqueza ou a beleza do corpo, e sua companhia não for mais nem agradável nem útil, a amizade deixará de existir. Na bondade que define o homem virtuoso e na virtude, que é estável, o otimismo aristotélico vê o fundamento da verdadeira amizade e de sua durabilidade, pois para ele a “bondade” que tem suas raízes no próprio ser é uma bondade duradoura, diferente daquela que se fundamenta em coisas que são efêmeras.

 

O amigo, um outro eu [ετερος εγω]

Tudo isso leva Aristóteles a dizer que na amizade virtuosa, o bem do amigo não é outro nem diferente do próprio bem daquele que ama, porque “o amigo (φιλος) é um outro (ετερος) si mesmo (αυτος)”18. Em uma passagem semelhante da Grande Moral, a mesma coisa é afirmada com as seguintes palavras: “o amigo é um outro eu (ετερος εγω)”19. Não deixa de ser notável que Aristóteles tenha intuído na sua doutrina sobre a Philia essa abertura do si mesmo para a alteridade, definindo o amigo como “um outro si mesmo”.

Isto é tão mais notável porque, em geral, os especialistas dizem que a temática do outro, como outro, era desconhecida do pensamento grego20. De fato, a Metafísica grega, ao que parece, tudo centralizou na luminosa e irradiante unidade universal do Logos, deixando na sombra a singularidade dos indivíduos, como outros singulares, diferentes entre si. Este perigo inegavelmente existiu, e toda a História da Filosofia mostra que no decurso da história do pensamento os filósofos sempre alternaram posições, nas quais ora o particular perde-se nas brumas do universal, ora é o universal é aprisionado nas malhas do particular. O platonismo e o aristotelismo na antiguidade, o racionalismo e o empirismo na filosofia moderna, e finalmente o idealismo e o existencialismo na filosofia contemporânea podem ser disto um exemplo. Como quer que seja, o que nos interessa aqui é mostrar que Aristóteles viu na amizade essa abertura para o outro, que passou a ser constitutiva do próprio Eu.

 

Auto-estima do homem virtuoso

Quando afirma que os homens virtuosos assemelham-se na virtude e são “bons em si mesmos”, Aristóteles poderia induzir-nos a pensar que para ele o ideal ético do homem virtuoso é um “ideal egoísta”, caracterizado pela auto-estima e auto-suficiência daquele que é “bom em si mesmo”. O homem feliz, por ter realizado seu ideal de perfeição, encontraria em si, na sua auto-estima, o segredo de sua felicidade (ευδαιμονια). Mas é precisamente a amizade e o caráter essencial que nela tem a reciprocidade que impedem que o homem feliz se feche em uma mônada egoísta, pois o bem visado pela amizade virtuosa não se consegue senão pela reciprocidade, que é sua característica essencial. Na dimensão ética, o amor de si é correlativo do amor que se tem pelo amigo.

 

Auto-estima e egoísmo

Portanto, a φιλαυτια, ou seja, a auto-estima do homem virtuoso, ao invés de fechá-lo em uma forma egoísta de amor de si, que nutrir-se-ia de uma ilusória auto-suficiência, orienta-o para aquilo que é “bom” (το αγαθον), para uma bondade ontológica que define a qualidade do “viver bem”, e o “viver bem” implica em um “viver com”, que como vimos é a essência mesma da amizade.

A esse respeito talvez fosse oportuno lembrar a distinção aristotélica entre duas diferentes formas de egoísmo. No capítulo oitavo do livro IX, ele define primeiro o egoísta que afirma sua ambição ou abandona-se às suas paixões, e por conseguinte, à parte irracional de sua alma. Uma tal forma de egoísmo é desprezível e não poderia ter lugar no ideal ético do homem virtuoso. Diferente é o egoísmo daqueles que procuram as coisas mais belas e os bens superiores para contentar a parte mais nobre de sua alma. Um tal egoísmo é diferente do precedente, e dele se distingue como a vida conforme à razão difere de uma vida submetida e regida pelas paixões21. Mas, como já foi dito, esse egoísmo do homem virtuoso que é conforme à razão, em vez de fechar o si mesmo em uma falsa auto-suficiência, abre-o para a alteridade no e pelo jogo da reciprocidade.

 

Amizade e igualdade

No contexto da dialética do uno e do múltiplo, do mesmo e do outro, da universalidade e da particularidade, da auto-suficiência do si mesmo e de sua abertura para o outro, a problemática da igualdade e da desigualdade adquire um novo enfoque e uma nova dimensão para o estudo da amizade. Lembrando que na amizade virtuosa os homens buscam o próprio bem e ao se tornarem amigos tornam-se também um bem para o amigo, Aristóteles conclui: “ambos, portanto, amam o que é bom para si mesmos e mutuamente se querem bem e são agradáveis, pois diz-se que a amizade é igualdade, e isto se encontra principalmente na amizade virtuosa”22.

Na virtude os amigos, por mais desiguais que sejam entre si, tornamse iguais. Nesta forma de igualdade, porém, Aristóteles vê a condição de possibilidade da reciprocidade, sem a qual não se poderia conceber a amizade. Breve, a igualdade não exclui a diferença; pelo contrário, ela a inclui em uma dialética na qual o si mesmo só se afirma pela mediação do diverso de si.

Foi por essa razão que Aristóteles excluiu do campo da amizade tanto as coisas inanimadas como os escravos e os próprios deuses. No que se refere às coisas inanimadas, nenhuma dúvida pode existir, porquanto para o Estagirita seria impensável uma relação de reciprocidade dos homens com as coisas inanimadas. Quanto aos escravos, por mais doloroso que seja admiti-lo, sabe-se que para Aristóteles eles não eram considerados verdadeiros seres humanos, ou “seres racionais”, nem “animais políticos,” mas “instrumentos animados” que a natureza colocou a serviço dos cidadãos livres. Que nos baste lembrar esta passagem do Livro sobre a Política: “portanto, eis o que é evidente: a natureza divide os homens em homens livres e escravos e, para esses últimos, a escravidão é, ao mesmo tempo, útil e justa”23. Quando se medita em palavras como estas, não se pode deixar de concluir que por mais genial que seja o espírito humano, ele é marcado pelo tempo em que vive, muito mais do que se gostaria que fosse. Nesse contexto, não se poderia falar de verdadeira amizade entre os senhores e os escravos.

 

A amizade dos deuses

E no que diz respeito à amizade dos deuses, Gauthier e Jolif nos lembram que embora em muitas passagens Aristóteles mencione, no contexto das narrações míticas, a amizade dos deuses pelos homens e destes pelos deuses, rigorosamente falando, sobretudo se nos colocamos em uma perspectiva metafísica, para ele não se poderia admitir a possibilidade de uma verdadeira amizade entre os deuses e os homens, muito menos entre estes últimos e os deuses24.

De fato, no Livro da Metafísica, Deus é definido como o Pensamento que não tem outro objeto senão a Si mesmo. Por isso, uma de suas definições diz que Ele é o “Pensamento do Pensamento”. Um Pensamento que só pode encontrar em Si Mesmo o objeto de seu pensar, pois só um objeto infinito pode ser objeto de um Pensamento Infinito. Assim sendo, nenhuma semelhança poder-se-ia encontrar entre os deuses e os homens, nem entre a amabilidade dos deuses e a dos homens, pois nenhuma semelhança existe entre eles. A idéia do homem criado à imagem e semelhança de Deus não é grega, é bíblico-cristã..

Na Metafísica clássica, tanto de Platão quanto de Aristóteles, não se pode afirmar rigorosamente que exista um amor de amizade entre os deuses e os homens. Como vimos, Platão descreve, no Banquete, a dialética ascensiva da alma do mundo sensível para a contemplação mística com a Idéia do Bem em si, na qual poder-se-ia querer ver uma forma de amor entre os seres inferiores e o Divino (to Θειον). Mas daí não se segue que exista entre eles uma relação de reciprocidade, em que se fundaria a possibilidade da amizade.

Na Metafísica aristotélica algo de semelhante existe. Quando trabalha o lugar do desejo (ορεξις) no conjunto de seu livro Sobre a alma (Περι ψυχη), Aristóteles também termina assentando as bases do que se poderia chamar uma metafísica do desejo25. No ápice da Metafísica aristotélica, o Ato Puro que é o Supremo Inteligível, é também o Supremo desejável, na medida em que é o desejo que impulsiona não só o agir humano, mas todo o movimento do Universo.

Mas ao invés de colocar a felicidade do homem na contemplação ou na fruição contemplativa do Bem em si, em um mundo inteligível além do mundo sensível, o Estagirita defende que a realização humana faz-se mediante a excelência da virtude no mundo em que ele se encontra inserido. Pelo desejo, o homem é também atraído pelo Supremo Desejável como a totalidade do Kósmos, mas uma vez que entre ele e Deus não existe uma relação de reciprocidade, não se pode falar de uma verdadeira amizade entre eles.

 

Considerações finais

À guisa de conclusão, que não é uma verdadeira conclusão, pois estas considerações nem de longe esgotam os aspectos mais importantes da questão da amizade no pensamento de Aristóteles, vejamos como o amor de amizade, na perspectiva aristotélica, distingue-se das duas outras principais formas de amor que nos foram transmitidas pela tradição greco-romana e pela tradição bíblico-cristã.

 

Philia, Eros e Agape

A philia não pode ser identificada nem com aquela forma de amor que Platão definiu como Eros, nem com aquela outra forma de amor que se constitui pela doação de si, inteiramente gratuita e desinteressada, à qual a tradição bíblico-cristã deu o nome de “agape” (αγαπη).

O amor de amizade não se identifica, como já vimos, com aquela forma de amor a que Platão deu o nome de Eros, e da qual descreveu o mito do nascimento e a natureza metafísica no Banquete e no Fedro. Como Eros o amor é desejo, e o desejo, ao menos na perspectiva platônica, é a busca daquilo que falta a quem deseja e cuja falta é sentida como um mal, ou seja, como uma privação ou frustração. No Banquete, Platão diz que Eros é sempre desejo de alguma coisa (ερως τινος)26.

É precisamente a falta que marca fundamentalmente a natureza de nosso ser finito e limitado, que torna infindável a busca do desejo, porquanto mesmo quando atinge seu objeto e nele encontra a satisfação que almeja, esta satisfação em lugar de ser o ponto de chegada que põe fim à procura do desejo, é o ponto de partida de novas buscas e de novos desejos. Daí porque, para Platão, Eros nunca se satisfaz e está sempre na procura de um Bem superior, que só pode ser encontrado na contemplação mística do Bem em si no Mundo das Idéias.

Na perspectiva cristã, o “amor-agape” define a especificidade do amor divino que Deus tem pelos homens e o amor que os cristãos, segundo o mandamento divino, devem ter entre si e até para com os seus inimigos. É uma forma de amor que a teologia cristã explica como sendo possível apenas com a ajuda da “graça” divina. Não é desta natureza o amor que os gregos denominaram de Philia.

Portanto, a Philia, tal como Aristóteles a concebe, é uma forma de amor sui generis, uma forma de amor construído na troca e no intercâmbio em que se desenvolve a relação de doação recíproca, e na qual se nutre a relação intersubjetiva e a “con-vivência” dos amigos. Pode-se concluir, a partir desta tentativa de definição, que para Aristóteles, a amizade é uma forma de amor especial, diferente tanto do amor-desejo, que é a mola propulsora do Eros platônico, quanto do amor-doação-gratuita na forma de uma “benevolência desinteressada e infinita”, que é a definição da agape bíblico-cristã.

 

Amizade, respeito e ternura

Nessa forma de amor própria da Philia, ainda poder-se-ia ressaltar o respeito e a ternura como duas características que lhe dão uma conotação especial e uma tonalidade afetiva particular nas diversas formas em que se manifesta. Como esclarecem Gauthier e Jolif (1959, p. 673), Aristóteles quando fala do amor de amizade emprega não somente o verbo “amar” (φιλειν), mas dois outros verbos,” αγαπαν” e “στεργειν”, que têm também o significado de amar.

No verbo “αγαπαν”, porém, o ato de amar é envolvido em uma aura de admiração e de respeito. É este, por exemplo, o amor dos filhos pelos pais e dos alunos pelos mestres. Por sua vez, o verbo “στεργειν” reveste o verbo φιλειν (amar) com uma conotação amorosa feita com muita afeição e ternura e tem um correspondente latino no verbo “diligere”. Deste verbo origina-se a palavra “dilectio”, uma forma de amor na qual predominam o carinho e a ternura. Ama-se, assim, aquilo que é muito caro e precioso, ou aquele por quem se tem uma forma especial de predileção.

Em resumo, o que foi dito parece justificar que, para Aristóteles, a Philia é uma forma de amor particular e especial, cuja essência encontra-se naquela modalidade de “viver junto” (συζεν) e de “viver na intimidade”, na qual os amigos, tomando consciência de seus sentimentos mais profundos e do desejo de mútuo bem-querer, criam um tipo de relação amorosa, na qual ao mesmo tempo dão e recebem, ajudam e são ajudados, amam e são amados, e tudo isso em um espaço afetivo no qual sempre haverá lugar para a admiração e o respeito, bem como para o carinho e a ternura. Foi assim, em meu entender, que Aristóteles concebeu a Philia.

 

Referências Bibliográficas

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1995.        [ Links ]

COSTA REGO, Pedro. Hábito e liberdade: algumas considerações sobre a natureza do éthos. Síntese. Nova Fase. Belo Horizonte. 22(69): 179-192, 1995.        [ Links ]

FRÉRE, Jean. Les Grecs et le désir de l´Être. Des Platonniciens à Aristote. Paris: Les Belles Lettres, 1981.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. (1916[1915]). Vergänglichkeit. In: FREUD, Sigmund. Sutdienausgabe. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1969.        [ Links ]

GAUTHIER, René Antoine; JOLIF, Jean Yves. L’Ethique à Nicomaque. Introduction, Traduction et Commentaire. Tome II. Louvain-Paris: Publications Universitaires de Louvain et Éditions Béatrice Nauwelaerts, 1959.

HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Max Niemeyer Verlag. Tübingen. Achtzehnte Auflage, 2001.        [ Links ]

JOWET, Benjamin. Politics. In: McKEON, Richard. The Basic Works of Aristotle. New York: Random House, 1941.        [ Links ]

MacDOWELL, João A.(org). Saber filosófico, história e transcendência. Homenagem ao Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz no seu 80° aniversário. São Paulo: Loyola, 2002.        [ Links ]

McKEON, Richard. The Basic Wosrks of Aristotle. New York: Random House, 1941.        [ Links ]

PLATON. Oeuvres Complètes. Tome I-II. Paris: Gallimard, 1957.        [ Links ]

PUENTE, Fernando Rey. Breves considerações sobre o tema da φιλια em Aristóteles na Obra de H.C. de Lima Vaz. In: MacDOWELL, J. (org). Saber filosófico, história e transcendência, 2002.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. Campinas: Papirus, 1991.        [ Links ]

ROBERTS, W. Rhys. Rethoric. In: McKEON, Richard. The Basic Works of Aristotle. New York: Random House, 1941.        [ Links ]

ROBIN, Léon. Comentário ao diálogo Lysis. In: PLATON. Oeuvres Complètes. Tome II. Paris: Gallimard, 1957.        [ Links ]

ROBIN, Léon. La théorie platonicienne de l´amour. Nouvelle Édition. Préface de Pierre Máxime Schul. Paris: Presses Universitaires de France, 1964.        [ Links ]

ROCHA, Zeferino. O Eros no “Banquete” de Platão. Mito e Teoria. Indivisa. Boletin de Estudios e Investigación. Madrid. La Salle. Centro Superisor de Estudios Universitários. 4: 92-102, 2003.

ROCHA, Zeferino. O desejo na Grécia Arcaica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo. II(4). dez/1999.        [ Links ]

ROSS, W.D. Ethica Nicomachea. In: McKEON, Richard. The Basic Works of Aristotle. New York: Random House, 1941.        [ Links ]

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1988.        [ Links ]

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de Filosofia VI: Ontologia e História. São Paulo: Loyola, 2001.        [ Links ]

VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política. São Paulo: EDUSP, 2001        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Zeferino Rocha
Rua Conselheiro Portela, 139 / 502 – Espinheiro
52020-030 Recife – PE
Tel.: =55-81 3244-7647
E-mail: zephyrinus@globo.com

Recebido em 14/03/05
Aprovado em 10/06/05

 

 

Notas

I Professor Titular Aposentado do Departamento de Psicologia (UFPE); Professor Responsável pela Linha de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise no Mestrado em Psicologia Clínica (UNICAP); Coordenador do Laboratório de Psicopatologia Fundamental (UNICAP); Membro Fundador e Honorário do Círculo Psicanalítico de Pernambuco.
1 As principais fontes bibliográficas do presente ensaio foram os livros VIII e IX da Ética a Nicômaco. Na leitura e interpretação dessas fontes, minha referência principal foi o magistral estudo de René Antoine Gauthier e Jean Yves Jolif – L’Ethique a Nicomaque. Introduction, Traduction et Commentaire. Tome II (1959). Consultei os livros da Ética a Nicômaco de Aristóteles na tradução de W.D.Ross, os da Política na tradução de Benjamin Jowett, e os da Retórica na tradução de W. Rhys Roberts, aos quais tive acesso na coletânea de Richard McKeon. The Basic Works of Aristotle (1941).
2 O “hábito” (εξις) acrescenta ao “costume” (εθος) um domínio do agente sobre sua ação. Ver a respeito o que diz Vaz (1988, p. 38). Ver também Costa Rego (1995, p. 179-192).
3 Comparando a “Héxis” com a “Physis”, Aristóteles diz que a Physis é o domínio do “sempre” e a “héxis” do “quase sempre”. Cf. Retorica. Livro I. 11. 1370. a 7. Na tradução de W. Rhis Roberts: “habit is a thing not unlike nature; what happens often is akin to what happens always, natural events happening always, habitual events often” (McKeon, 1941, p.1362).
4 Platão. Lysis, 212 a – na tradução de Leon Robin: “Mais moi, je suis tellement loin de posséder ce bien, que je ne sais même pás de quelle façon um homme devient ami d´un autre homme! Et c´est ce que j´ai au contraire, Ménexéne, l´ intention justement de te demander, à toi qui es au courant” (p. 333).
5 Permito-me enviar o leitor ao que escrevi sobre isto em meu artigo O Eros no “Banquete” de Platão. Mito e teoria (2003).
6 Platão. Lysis, 223 b. – na tradução de Léon Robin: “nous ne sommes pas encore à même d’avoir réussi à découvrir ce que c’est qu’un ami” (p. 350).
7 Aristóteles. EN. Livro VIII. 1. 1155a 4-5.
8 Aristóteles, Ética a Nicômaco. IX, 9, 1169 b 15-18 – na tradução de Ross: “for no one would choose the whole world on condition of being alone, since man is a political creature and one whose nature is to live with others”.
9 Eurípides. Íon. 730-732.
10 Aristóteles. EM. IX. 9 1169 b 7-8 – na Tradução de Ross: “while a friend, being another self, furnishes what a man cannot provide by his own effort”.
11 O que Aristóteles diz sobre a dimensão política da amizade não será objeto do presente ensaio.
12 Ver igualmente o comentário de Paul Ricoeur (1991, p. 212-214).
13 Na perspectiva psicanalítica, poder-se-ia dizer que sem o reconhecimento do outro, a identidade do si mesmo não teria consistência e poderia ficar para sempre ameaçada pelas fantasias do corpo despedaçado. É na fase do espelho que o ego encontra o primeiro esboço de sua unidade psíquica. É na alegria do rosto do outro materno que a criança tem o reconhecimento da descoberta da imagem unitária de seu corpo que acaba de fazer.
14 Lembremos rapidamente de que modo Aristóteles, em sua Metafísica, descreve o sentido dos conceitos de potência (δυναμις) e de ato, seja na forma de uma entelécheia (εντελεχεια), seja na forma de uma atualização (ενεργεια). A potência é uma possibilidade que não tem em si a capacidade de atualizar-se por si mesma, ela só é atualizada pela mediação do ato. O bloco de mármore, no qual dorme em potência a estátua que o artista sonhou, só se transforma em uma estátua real por meio do trabalho do artista. Terminado o trabalho, a estátua realiza aquilo que o artista teve a intenção de fazer, atinge seu fim e torna-se um ser em ato, uma perfeição, uma εντελεχεια. Mas uma “perfeição” do tamanho do ser em que ela se realiza. Nos seres finitos ela é uma perfeição finita e limitada. Todavia, entre os estados da potência e do ato encontra-se a atualização (ενεργεια), ou seja, o movimento de atualização das virtualidades do ser em potência, o qual vai sempre além de si e nunca termina de se realizar, precisamente porque são infindas as suas possibilidades de atualização enquanto está em movimento.
15 Aristóteles. EM. VIII. 6. 1157 b 19-20. Na tradução de Ross: “For there is nothing so characterictic of friends as living together (since while it is people who are in need that desire benefits, even those who are supremely happy desire to spend their days together; for solitude suits such people least at all); but people cannot live together if they are not pleasant and do not enjoy the same things, as friends who are companions seem to do”.
16 Aristóteles. EM. VIII. 4. 1157a. 30-35 – na tradução de Ross: “Therefore we too ought perhaps... and say that there are several kinds of friendship – firstly and in the proper sense and something akin to what is found in true friendship that they are friends, since even the pleasant is good for the lovers of plesure”.
17 Aristóteles. EM. VIII. 3. 1156 b 7-13 – na tradução de W. Ross: “Perfect friendship is the friendship of men who are good, and alike in virtue; for these wish well alike to each other qua good, and they are good in themselves. Now those who wish well to their friends for their sake are most truly friends; for they do this by reason of their own nature and not incidentally).
18 Aristóteles. EN. IX. 9. 1170 b 6-7 – na tradução de W. Ross: “and if as the virtuous man is to himself, his is to his friend also (for his friend is another self)” (McKeon, 1941, p. 1090).
19 Aristóteles. Grande Moral, II. 15. 1213 a 11.
20 Cf. Vaz (2001, p. 233). Como mostrou Fernando Rey Puente, Henrique de Lima Vaz atenuou essa afirmação nos seus últimos textos em que aborda o estudo da Philia em Aristóteles. Cf. Puente (2002, p. 41-47).
21 Aristóteles. EN. IX. 7. 1168 b 12-19.
22 Aristóteles.EN. VIII. 5.1157. b 36.
23 Aristóteles. Politics. Livro I. Cap. 5. 1255a. 1-2 – na tradução de Benjamin Jowet: “It is clear, then, that some men are by nature free, and others slaves, and that for these later slavery is both expedient and right” (Mckeon, 1941, p.1133).
24 Cf. a este respeito os comentários de Gauthier e Jolif (1959, p. 673).
25 Sobre isso recomendo a leitura do magistral livro de Jean Frère. Les Grecs et le désir de l´être. Des Pléplatoniciens à Aristote (1981). Em uma abordagem muito mais simples e restrita, referi-me à questão em meu artigo sobre “O desejo na Grécia arcaica”, publicado em dezembro de 1999 na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.
26 A leitura psicanalítica do Banquete, sobretudo depois de Lacan, costuma freqüentemente ressaltar esta dimensão “faltante” no ser de desejo que é o homem, consagrando, assim, esta maneira de olhar o desejo como falta. Inegavelmente esta dimensão existe, porque só se deseja o que não se tem. Mas daí não se segue, necessariamente, que o desejo se reduza a essa dimensão da “falta”. A própria psicanálise parece-me questionar esse modo de ver o desejo, quando o articula intimamente com a pulsão. Assim visto, o desejo não é só falta, ele é também, e essencialmente, uma “tendência”, um “impulso”, ou para dizê-lo com Spinoza, ele é um “conatus”, uma “força de existir” (vis existendi) e uma “potência de agir” (potentia agendi). Quando encontra o “bem” que procura, essa tendência transforma-se em uma “alegria prazerosa” ou em um “prazer alegre”, uma “satisfação”, que não esgota, certo, a capacidade de desejar, mas nem por isso deixa de ser alegre e prazerosa, vale dizer, nem por isso deixa de ter uma dimensão positiva. Freud diria: “se uma flor, apenas por uma só noite floresce, nem por isso o seu esplendor nos parece menos belo” [Wenn es eine Blume gibt, welche nur eine einzige Nacht blüht, so erscheint uns ihre Blütte darum nicht minder prächtig” (Freud, S. Vergänglichkeit [1916]. Studienausgabe. Band X, 226). Ver também a esse respeito as interessantes considerações de André Comte-Sponville, quando escreve sobre o “Amor” em seu belo livro Pequeno tratado das grandes virtudes. (2002, p. 241-312).