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Psychê

versión impresa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.17 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Considerações a respeito da violência intra-psíquica na prática psicanalítica

 

Reflections concerning intra-psychic violence and in groups

 

 

Claudio Castelo FilhoI

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tema da violência no mundo interno e no mundo externo é abordado por meio de três situações clínicas. Na primeira, um homem jovem e seu funcionamento no consultório, em que se evidencia uma grande confusão entre ser e aparentar. É feita uma analogia entre sua situação e violentos contextos descritos por Norbert Elias e por St. Simon, da Corte de Versalhes. Na segunda, atitudes de violência e desconsideração entre aspectos da própria cliente observados na sessão são associados a um episódio de crueldade e falta de compaixão percebidos e narrados por ela no decorrer de sua análise. Na terceira situação, a experiência evidencia um método de aprendizagem calcado na truculência e ausência de simpatia pela condição humana e compaixão.

Palavras-chave: Violência, Compaixão, Simpatia humana, Transformações, Experiência emocional.


ABSTRACT

Three clinical situations approach the theme of violence in the inner and external worlds. In the first, a man shows a great confusion between being and simulating. An analogy of violent situations described by Norbert Elias and by St. Simon of the Court at Versailles and the patients’ is made and offered to the patient. In the second, violence and contempt between different parts of another patient’s personality is associated to an episode of cruelty and lack of compassion testified and narrated by the patient herself in previous times of her analysis. The third clinical fragment concerns a method of learning that is based in brutality and has no sympathy for the human condition and no compassion at all.

Keywords: Violence, Compassion, Sympathy for the human condition, Transformations, Emotional experience.


 

 

Faço neste trabalho um paralelo de situações de violência no mundo interno e no mundo externo. No material a seguir valho-me do referencial de Klein (1946) das posições esquizoparanóide e depressiva, das teorias sobre o pensar (função alfa) e das transformações de Bion (1970), destacando a operação de transformações em alucinose.

Para falar de violência recorro a três situações clínicas1. Ressalto que as descrições clínicas são em grande parte ficções do escritor, pois a experiência da dupla propriamente é intransponível. Bion tentou resolver essa problemática relativa à comunicação das experiências emocionais de maneira científica por meio de sua Grade (Bion, 1963). Considero que, no entanto, deu-se por vencido e procurou outras maneiras de transmissão e comunicação, mediante a procura do que chamou de uma linguagem de êxito (a que me refiro mais adiante), sobretudo valendo-se de meios estéticos em seus livros “autobiográficos” e na trilogia A Memoir of the Future (1990). A Grade, entretanto, permanece como um precioso instrumento para o exercício e desenvolvimento da intuição do analista, e da reflexão sobre sua prática.

Certamente o que se segue não é uma descrição que se pretenda objetiva. No Summary of Contents do livro Elements of Psychoanalysis, Bion (1963) comenta os métodos ditos objetivos de registro. Ele diz que o registro de uma sessão é sabidamente uma falsificação. Todavia, uma falsificação menor do que a decorrente de registros mecânicos como o da fotografia, pois a fotografia da fonte da verdade é a imagem da mesma depois de enlameada pelo equipamento do fotógrafo. Além da escolha de ângulos, filtros etc, em última instância sempre há o problema de quem a interpreta. A falsificação feita por um registro mecânico (ou que se pretenda equivalente a tal) é sempre mais grave, pois dá verossimilhança àquilo que já foi falsificado – aumentando ainda mais a falsificação.

O relato clínico deve ser percebido como um estímulo para desenvolvimento de idéias e pensamentos, não com pretensões de retratar a verdade dos eventos.

 

Primeiro caso clínico

Trata-se de um homem entre trinta e quarenta anos, que veio inicialmente queixando-se de estar muito só e com dificuldades de estabelecer uma relação afetiva mais consistente. Pouco depois do início do trabalho, segundo seus relatos, envolveu-se com outro homem de sua idade. Contou-me diversas situações com o companheiro, que revelavam atitudes bastante insensatas de sua parte. Parecia estar envolvido com um príncipe encantado, com uma criatura perfeita: “tudo o que sempre quisera na vida”. Pouco tempo depois, mostrou-se chocado por verificar, com o evoluir do caso, que o homem com quem se envolvera mostrara-se muito diferente do que parecia ser no início. O paciente não se conformava (e ainda não se conforma) que aquele por quem estava apaixonado pudesse não existir, salvo na sua imaginação, e que a pessoa real fosse algo muito diferente daquela que existe em seus pensamentos. Para sua sorte, segundo meu ponto de vista, esse indivíduo – considerando-se que exista mesmo, pois este é o relato do paciente – não seria mau-caráter, pois as conseqüências, principalmente financeiras, que poderiam ter se abatido sobre meu cliente eram potencialmente muito graves, caso o companheiro fosse de má índole. Todavia, penso que o próprio companheiro teria se envolvido com um personagem que o paciente vive, confunde consigo mesmo e apresenta-se como tal. À medida que algum tempo transcorreu, a experiência revelou ao parceiro uma pessoa diferente do grão-senhor encarnado e encenado pelo meu cliente. Segundo minhas conjecturas, quando o namorado deu-se conta da diferença do que lhe era apresentado daquilo que foi constatando, desencantou-se do relacionamento e rompeu com o paciente. Uma vivência parecida também ocorreu em mim, visto que a primeira impressão que tive do paciente foi a de uma pessoa muito bem estabelecida financeiramente, relatando viagens e gastos consideráveis, com modos afáveis e gentis, tal como um fidalgo de outrora. Suas condições reais, como se poderá verificar, eram bem diversas. Em minha observação, o paciente acredita ser o grão-senhor que interpreta.

O cliente não tolera o rompimento e ainda insiste em retomar um relacionamento com esse homem, mesmo percebendo, sem contudo efetivamente enxergar, que o alvo de seus afetos, conforme suas próprias descrições, não corresponde em praticamente nada àquilo que quer encontrar. Sua experiência parece não ter qualquer efeito sobre suas idéias e condutas. Ao contrário, parece haver uma convicção de que se fizer um grande esforço, os fatos curvar-se-ão às suas expectativas, não importando quantas vezes a realidade mostre o oposto. Ele não pára de dar murros em ponta de faca.

Também procurei evidenciar para ele a maneira com que se envolveu comigo: partindo para uma intimidade imediata e intensa, que me parecia destoante de uma certa sensatez. Desde que me viu – se é que se pode dizer que realmente consiga me ver ou a qualquer outra pessoa real –, mostrou-se sem reservas, expondo sua intimidade sem qualquer cautela. Geralmente em uma primeira entrevista, as pessoas apresentam-se com um certo pudor, e este vai cedendo à medida que a confiança possa ir se estabelecendo por meio da experiência. Com este paciente parecia não haver qualquer receio do que eu poderia fazer com o que ouvia, contrariamente ao que costumo observar em pessoas que nunca me viram antes. A confiança costuma se estabelecer com certa rapidez, mas também verifico, mais amiúde, que isto se dá com um certo olhar de quem nos procura. Disse que não me parecia que ele tinha se permitido observar-me, sondar meus pensamentos, idéias e condutas antes de entregar-se daquela forma. Jogava-se dentro de uma piscina sem verificar se ela estava ou não cheia de água, se tinha ou não profundidade suficiente para atirar-se de cabeça do jeito que fazia, visto que o fato de eu ser psicanalista e ter uma série de titulações não garantia nada a respeito de meu caráter e condição pessoal – coisas que precisaria verificar no seu contato comigo, e que nenhuma recomendação que tivesse poderia substituir aquilo que somente sua experiência poderia informar. Parecia-me que da mesma forma que funcionava com o namorado, funcionava comigo, ou seja, partindo de um pressuposto, de um desejo, e por eles se orientando. Eu também disse que considerava que ele assim procedia devido a um enorme desespero, a uma imensa necessidade de encontrar algo que atendesse suas necessidades. Contudo, este mesmo proceder acabava privando-o de poder perceber como e por meio de quê poderia realmente ter suas necessidades atendidas, e também de verificar quais elas realmente seriam. Acrescentei igualmente, com um certo humor, que o considerava afortunado, pois segundo meu critério, eu me achava um sujeito bom-caráter, pois caso não o fosse, o que ele fazia comigo (atirar-se às cegas e entregar-se em minhas mãos sem qualquer cautela) poderia levá-lo a sofrer sérios reveses. O paciente concorda e se mostra assustado, porém não me parece que seu entendimento vá além do racional, sem conseqüências mais profundas2.

Cabe salientar por que introduzi a questão do meu pressuposto bom caráter. Primeiro, considero ser esta uma condição para o analista ser um analista e para ser capaz de ajudar quem quer que seja. Se ele for um gênio com uma intuição fenomenal, mas for um mau-caráter, quem quer que caia em suas garras (em seu consultório) estará em péssimos lençóis. Como penso não ter me aproveitado das fraquezas do paciente, considerei ser útil apresentar esta questão para ele, pois o próprio não se dá conta de quão importante isto é em suas relações, nas quais entra de chofre. Tenho a presunção de não ser um mau-caráter – e é melhor para o paciente que eu não o seja –, e penso que isto precisa ser claramente percebido como vital pelo paciente. O cliente precisa ser alertado quanto à sua responsabilidade por si – o tempo todo –, sem excluir qualquer contexto. Ele precisa estar atento à sua relação com o analista. Ninguém pode substituí-lo nesta tarefa. Portanto, o segundo fator, o mais relevante, é a importância do paciente verificar ser potencialmente trágico não reconhecer sua responsabilidade para consigo.

Antes de prosseguir, um pequeno comentário: é relevante notar que considero que apenas o que ocorre no consultório durante as sessões é passível de verificação pelo analista. Tudo o mais que possa ser referido pelos pacientes são histórias por eles contadas e que não devem ser tomadas concretamente. É preciso verificar qual a função destas narrativas no contexto do encontro. Inúmeras vezes prestam-se primordialmente a afastar a observação do contato com os eventos que efetivamente se desenrolam diante do analista, que por sua vez fica entretido com os enredos e acaba, de fato, enredado. Histórias passadas não esclarecem o presente; além do mais, memórias não são confiáveis – Freud já havia se dado conta disso desde o famoso caso Dora. A observação do funcionamento do analisando no consultório, ao contrário, pode iluminar o que o leva a ter muitas de suas dificuldades fora dele.

Mais recentemente, o paciente mostrou-se muito assustado por perceber que sua maneira de se conduzir, no que tange às finanças, levou-o a um rombo monumental em suas contas. Digamos que ele ganha N e as dívidas que fez recentemente somam 10 N. A quantia é considerável! Ele não possuía a menor idéia de que tinha toda essa dívida até esse momento. Ao contrário, vinha gastando de maneira muito pródiga. Sua percepção e reconhecimento de sua dívida também me surpreenderam, causaram-me um impacto, pois nada de sua conduta e de sua aparência poderia denotar um tal estado de coisas. Sempre compareceu às sessões trajando roupas, sapatos e relógios muito caros. A quantia em dinheiro devida era, para os meus padrões, muito preocupante. Seu funcionamento lembrava-me o de Maria Antonieta e Luís XVI às vésperas da Revolução Francesa.

Apesar da surpresa mencionada e vivida pelo paciente, ele diz que não é a primeira vez que isto lhe ocorre, sendo que nas vezes anteriores foi resgatado pelos pais. Desta vez também conta com o salvamento por parte deles. Seu espanto e sua surpresa com sua situação parecem genuínos, não obstante a contradição revelada por sua lembrança de que comportamento é reincidente. Sua experiência parece ficar (mal) registrada em algum nível ou recanto remoto, enquanto suas idéias e seu comportamento estão em outro universo em sua mente. Não têm contato e estão separados por distâncias infinitas. Malgrado o susto, não muda o trem da vida e não se mostra disposto a se desfazer de qualquer um dos objetos de luxo que adquiriu, e segundo seus relatos, levaram-no a esse estado, e tampouco do estilo de vida a que está acostumado. Relata que diversas vezes levou grupos de amigos a restaurantes muito caros e fez questão de pagar toda a conta, de maneira a usufruir o prazer de ver os amigos acreditarem que é um homem muito bem-sucedido. Os pais não são milionários, mas ele vive como um verdadeiro lorde. Saliento que os recursos provenientes de seu próprio trabalho para arcar com a análise são muito pequenos, os pais assumem a maior parte, segundo o que me informa. Cabe uma conjetura: se, de fato, sua história corresponde aos acontecimentos, ter sido poupado das conseqüências de seus atos contribuiu de maneira considerável para seu estado de alienação.

Em uma sessão posterior chegou com vinte minutos de atraso e pediu desculpas por sua demora. Eu não disse nada, pois considero que a sessão era dele e, conseqüentemente, o prejuízo também. Ao desculpar-se, poder-se-ia entender que eu é que havia sofrido uma perda por seu atraso. Não achei que valia a pena estender-me sobre isso nesse momento, e eu já fizera comentários nesse sentido em outras ocasiões, sem maiores repercussões.

Ao deitar-se, passa a narrar que retomou o namoro com o companheiro anteriormente referido, apesar de verificar que não é quem que gostaria que fosse. Ao mesmo tempo, diz que gosta muitíssimo dele. Contudo, ao descrever as atitudes do namorado, evidencia que são, em sua maioria, muitíssimo frustrantes para suas expectativas ou francamente desrespeitosas para sua pessoa. Considero a situação algo semelhante a uma drogadição – parece não poder sobreviver sem essas ilusões. Ele mesmo sente-se assustado e deprimido com o reatamento, mas considera igualmente que não pode proceder de modo diverso. Ao mesmo tempo em que se mostra deprimido com o reatamento, pois na prática o relacionamento revela-se muito desgastante, com um desencontro após o outro, também se mostra deleitado com a possibilidade de reaver seu príncipe encantado (esta denominação é minha, não dele, com o intuito de descrever o estado que percebo). O deleite e a depressão não fazem contato e se manifestam paralelamente, sem que um afete a outra ou vice-versa.

Ele fala que está bastante aliviado com a possibilidade acenada pelo pai de nos próximos dias ter suas dívidas sanadas com seu socorro. Diz que está assustado com o próprio funcionamento e que precisa parar de fazer o que tem feito, “caindo na real”. Ao ouvi-lo, no entanto, considero ser algo “da boca para fora”, e delicadamente digo isso a ele. O paciente fica se reassegurando que vai mudar e as coisas vão se ajeitar. No meu modo de ouvir, continua sendo um reasseguramento de que assim fará, mas não me parece, pela entonação, que haja qualquer verdade em seus enunciados. Ele concorda com o que estou dizendo, mas retoma a ladainha de que vai mudar, ou melhor já mudou, que não está mais gastando nem se portando como sempre fez.

Comunico ao paciente a dificuldade que eu tinha de me fazer ouvir ou perceber, pois parecia que ele estava envolto em uma nuvem muito densa, que o impedia de perceber qualquer coisa que estivesse fora dela. Ele aparentemente me escutava e respondia, mas na prática eu verificava que ele não percebia minha existência, não podendo dessa forma ouvir-me ou levar em conta, realmente, o que eu procurava lhe mostrar. É tarefa minha encontrar uma maneira de fazê-lo perceber-me ou desconfiar de minha existência real, de modo a ajudá-lo a notar o mundo, a dimensão em que me encontrava, da qual ele não tem a menor desconfiança ou percepção.

Em seguida, fala com a maior naturalidade que está dando uma festa em sua casa em homenagem a alguns amigos. Digo-lhe que me parecia espantoso alguém que estava “quebrado”, “devendo mundos e fundos”, dar uma festa, ainda mais em homenagem a terceiros. Ele responde com naturalidade, como se não houvesse o problema que eu lhe estava indicando, que se tratava de um pequeno grupo de pessoas, portanto os gastos não seriam exagerados. Prossigo dizendo que dentro dos parâmetros de uma pessoa comum, como eu, para quem estava “quebrado” e devendo o que ele dizia dever, qualquer gasto naquele sentido parecia-me fora de propósito. Comento que, se fosse eu que estivesse em sua situação, estaria bastante preocupado. Observo, porém, que aquilo que era evidente no universo em que eu habito carecia completamente de sentido naquele em que se encontra. O paciente fica silencioso. Uma imagem ocorre-me, e eu a ofereço. Digo que ouvir seu relato remetia-me a essas reportagens de colunas sociais em que uma pessoa oferecia em sua casa a festa de aniversário de outra pessoa e coisas similares. O paciente concorda, satisfeito e orgulhoso. Eu continuo dizendo que sua história lembrava-me a descrição feita por um sociólogo3 da nobreza francesa dos séculos XVII e XVIII. A nobreza estava falida e sem dinheiro, todavia, para manter-se como tal, precisava aparentar a grandeza que lhe era atribuída. As grandes famílias, salvo exceções, viviam nas mãos de agiotas ou na dependência das benesses do rei. De qualquer maneira, o que pretendo ressaltar – prossigo comentando com o paciente – era a necessidade daquelas pessoas aparentarem o que deviam ser, independendo ou não dos recursos que dispunham, e a meu ver ele, o paciente, mesmo não sendo um duque, funcionava como um e encontrava-se na mesma situação daqueles cortesãos que viviam à mercê de agiotas ou na expectativa da graça ou da desgraça real.

Indago-lhe se o que eu dizia fazia algum sentido. O paciente diz que sim e comenta que não quer que os amigos saibam que ele mudou de padrão financeiro. Não pode suportar que seus conhecidos percebam que sua condição não é a que aparenta. Faço a observação de que ele falava em deixar de gastar, mas os seus “amigos” não poderiam saber de sua mudança financeira. Sua resposta revela que ele acompanha a história que eu lhe conto, sem todavia perceber o sentido que eu procurava comunicar com ela.

Tento fazer uma abordagem evidenciando o ângulo em que me parecia questionável que ele tivesse amigos de fato, ou soubesse o que era isso, uma vez que os “amigos” não podiam saber de sua situação. Ele mesmo não acreditava que aquelas amizades pudessem sustentar-se caso a pessoa que “apareça” não seja aquele personagem grandioso e magnânimo que ele apresenta.

O paciente fala tentando convencer-se de que havia alguns conhecidos que sabiam de seu momento econômico. Todavia, seu tom é mais uma vez de reasseguramento, e eu assinalo. O paciente, meio desalentado, reconhece o que eu digo, mas em seguida vejo-o novamente convencendo-se de que logo estará tudo bem, ou seja, que logo sua situação poderá ser restabelecida, visto a ajuda que o pai vai lhe dar etc. Por fim, deprime-se um pouco e comenta que realmente teme que os amigos o abandonem caso percebam sua condição. Comento que ele mesmo acha-se inaceitável caso não corresponda às suas próprias expectativas e não possa dar-se tudo o que deseja. Ele permanece em silêncio.

Recorro, para referir-me à sua idéia de “amizades”, a outro episódio narrado por um memorialista4 sobre a morte do Grande Delfim, filho de Luís XIV, e o apresento ao analisando. No episódio, St. Simon descreve que todos os bajuladores da Corte estavam nos aposentos do príncipe, que se encontrava acamado, aparentemente muito solícitos e preocupados com sua saúde, pois se tratava do futuro rei. Todavia, tão logo o príncipe foi desenganado pelos médicos e sua morte tornou-se iminente, foi impiedosamente abandonado sozinho nos aposentos do castelo em que a Corte se encontrava. O rei, pai do príncipe, foi aconselhado a ir para outro castelo para evitar ser contaminado pelo mal do filho5. Todos acompanharam o monarca, deixando o Delfim completamente só. Quando morreu, apenas um único cortesão, que parecia ter alguma relação mais verdadeira com o morto, permaneceu a seu lado. O corpo ficou se decompondo, abandonado durante vários dias, e ninguém dentre todos aqueles que o cercavam quando vivo se lembrava mais dele. Esse único cortesão foi quem acabou providenciando os funerais, aos quais ninguém compareceu. Todos já tinham corrido atrás do rei e do novo Delfim6.

O paciente ouve-me atentamente e diz que os amigos contam-se nos dedos de uma mão e sabia que precisava mudar. É uma frase clichê em que aparentemente algum insight teria sido alcançado. Penso que na verdade é apenas uma fala de efeito, que procura simular uma percepção que deveras não ocorreu. Observo, por outro lado, que ele a diz sem efetivamente conformar-se, e prestes aembarcar novamente em seus devaneios de grandeza. Digo que a atmosfera grandiosa e de prazeres infindáveis com que se envolvia parecia ser algo sem o qual não poderia sobreviver; que a vida sem aquilo não teria sentido para ele. O paciente confirma e ao mesmo tempo sente que precisaria ser capaz de ver as coisas de modo diverso. A compreensão se dá, mas ao mesmo tempo o “personagem” que se comporta daquela maneira grandiosa age independentemente dele mesmo. Este “personagem” não é alcançável por aquele aspecto que obtém alguma compreensão intelectual da situação. Ao contrário, o personagem rapidamente engolfa tudo.

Penso comigo, mas não digo ao cliente, pois a sessão estava se encerrando, no comentário de Norbert Elias: a perda da nobreza, ou seja, do reconhecimento da Corte, era equivalente à perda da honra e isto, para um nobre, era pior que a morte.

 

Comentário

O paciente funciona como se fosse duas (ou mais) pessoas distintas. Talvez seja mais adequado dizer fragmentos de pessoas. Há um aspecto/ fragmento que existe para servir ao outro. Aquele que tem alguma consciência da situação não tem qualquer ascendência sobre o outro. O outro se lembra da existência do primeiro somente na hora de lhe passar as contas a pagar. Quando digo “lembra da existência” é apenas um modo de falar, pois na prática haveria algo indefinível, e que não interessa saber do que se trata, que forneceria os meios para que se possa agir da maneira que bem quiser. O mesmo tipo de situação reproduzir-se-ia na relação do paciente com o pai – que é alguém ou algo indefinível, que existe para prover de forma infinita as necessidades e desejos do paciente. O próprio paciente, por sua vez, coloca-se de um modo em que existe apenas para prover as necessidades, expectativas e desejos de seu(s) companheiro(s), pagando e sustentando as despesas dele(s) e vice-versa. Não há verdadeira percepção da existência de alteridades. O outro é algo indefinível e vago, incumbido de providenciar o que for solicitado no atendimento das vontades. A relação do paciente consigo próprio é da mesma ordem. Ele não consegue mudar isto porque um aspecto e outro vivem em universos diferentes. Quando o que está em uma dimensão procura falar com o outro, não consegue porque o “outro” está em um universo paralelo inalcançável. As leis da natureza do universo paralelo onde o “outro” vive são diversas daquelas onde vive o primeiro. Quando são ponderadas as limitações de um universo, estas não fazem sentido no outro universo e assim por diante. Decisões de natureza intelectual são completamente inócuas.

No que diz respeito ao uso do livro de St. Simon na observação feita ao analisando, considero que o analista deve procurar uma linguagem de êxito, tal como propõe Bion (1970) em Attention and Interpretation. É recomendável que o analista tenha uma razoável cultura literária, científica, musical e artística de maneira que possa encontrar modos de exprimir uma situação que perceba e para a qual não encontra palavras próprias, tomando emprestado modelos oferecidos pelos poetas, que encontram meios de expressão que mais raramente estão ao alcance daqueles que não o são. Ofereci a citação como modelo – o paciente não é nobre, mas funciona como um nobre da Corte de Luis XIV ou Luis XVI, e como eles tende à bancarrota ou a perder a cabeça (loucura). Este modelo procura reportar-se diretamente à maneira de viver do paciente. O modelo poderia ter a vantagem de proporcionar uma certa distância, tal como fazem as peças de teatro ou filmes que não se referem diretamente à vida dos expectadores, mas lhes permite eventualmente se reconhecerem nas situações dramatizadas, mesmo que se passem na Grécia Antiga, no Egito, na Inglaterra, ou em um futuro distante ou em séculos passados. Embora não digam respeito diretamente ao ambiente atual (no teatro, no século XXI), nem por isso deixamos de nos reconhecer em Hamlet, Édipo, ou nos romances de Balzac, Proust etc –, ou ainda no Bentinho, no Quincas Borba de Machado de Assis, no Rio do século XIX.

Não considero que o mais importante seja “interpretar”. A interpretação, no sentido clássico que lhe foi atribuído em psicanálise, implica na descoberta de conteúdos latentes reprimidos. Ela diz respeito aos aspectos neuróticos da personalidade. Na interpretação de uma escrita arcaica, como os hieróglifos, procura-se um significado que existe, contudo, esquecido ou perdido. No trabalho psicanalítico que opera para além da transferência, ou seja, em transformações em –K, projetivas e em alucinose, como proposto por Bion no livro anteriormente referido, ou em dimensões das quais não temos qualquer conhecimento, não cabe interpretar, pois não há sentidos reprimidos ou esquecidos. Nas transformações projetivas – relativas ao campo em que operam as identificações projetivas, busca-se um continente que possa dar significados psíquicos que não puderam ser alcançados. Em transformações em alucinose há um impasse na operação das identificações projetivas, pois há a expulsão e destruição não só conteúdo da mente, mas igualmente da mesma – há uma devastação do próprio equipamento perceptivo e para pensar. Não há de onde as projeções possam sair nem para onde possam ir. Não há o que ser projetado, pois é negada a existência do que seria projetado, a despeito dos órgãos dos sentidos permanecerem sendo estimulados por aquilo que “não existe”. Não há realidade interna ou externa. As identificações projetivas não podem operar. Não cabe, nessas dimensões, interpretar a transferência (restrita por Bion às transformações em movimento rígido). Cabe, quando possível, encontrar um sentido que nunca foi dado, que nunca existiu. Uma situação é um arqueólogo procurar refazer uma cidade destruída por um terremoto, outra é o arqueólogo procurar reconstruir algo que nunca saiu dos alicerces, sem perceber o engano. O trabalho do analista, tendo isto em conta, quando opera no campo das transformações projetivas, em –K (menos conhecimento), e em alucinose, não é refazer ou restabelecer uma situação que existiu e se perdeu (ou ficou recalcada); cabe a ele e ao analisando a tarefa de construir o equipamento e os sentidos que não se desenvolveram – não a de recuperá-los por meio de interpretações. Verifique-se que a maior parte das observações que faço e comunico aos pacientes visam mostrar-lhes situações, fenômenos e comportamentos que estão evidentes, porém completamente desapercebidos e desconhecidos deles. Antes que se possa atribuir ou verificar um sentido para esses fenômenos e comportamentos evidentes, é preciso que estes sejam percebidos, vistos pelos pacientes. Não adianta interpretar o sentido de algo do qual o cliente não sabe da existência, a despeito de ser perceptível para o analista. Em Cogitations, Bion (1992) destaca a importância da análise do consciente tanto quanto da do inconsciente. Ressalta a importância de se verificar aquilo que esteja óbvio, porém não percebido. Em um sentido mais amplo, contudo, toda e qualquer percepção ou idéia que formulamos é sempre uma interpretação, visto não termos acesso à realidade última e às coisas-em-si; tudo o que percebemos ou pensamos haver percebido é sempre uma interpretação subjetiva do que deve existir. A diferença de um funcionamento mental psicótico faz-se neste quesito: o que o psicótico pensa ou vê não é o seu pensamento ou sua visão da coisa (interpretação), mas é a própria coisa.

Considero estar explícito no texto que a minha tentativa com o modelo de St. Simon não foi frutífera, cabendo a mim como analista buscar outros meios de “tocar” o paciente. Ele teve, quando muito, algum entendimento intelectual, mas nada além disso.

O dilema do analista é encontrar uma fresta7 em meio à densa atmosfera alucinatória que envolve o analisando, para que possa penetrá-la. A violência dos modos de funcionar do analisando também pode ser verificada dessa forma. Há praticamente uma barreira intransponível entre ele e eu, e entre ele e ele mesmo. Qualquer coisa que tente fazer uma ponte é sistematicamente incinerada, ou reduzida a partículas subatômicas.

Cabe descobrir um meio de achar um universo comum em que as diferentes partes possam encontrar-se e se perceber pela primeira vez. O meu esforço está direcionado para descobrir um terreno em que possamos nos encontrar, e não apenas estar na mesma sala do ponto de vista físico mas não do mental. O paciente pode acreditar que me encontra, mas do vértice em que observo, isto não ocorre. Ele encontra algo, mas não é a mim, assim como ele aparentemente lida com os fatos, mas não com o que acontece de fato. Apesar de falarmos, ainda não foi possível haver uma conversa real, entre duas pessoas existentes. Ele escuta o que eu digo, mas faz usos peculiares do que é dito, e o que ele registra não parece mais corresponder ao que eu procuro lhe apresentar. Portanto, já não é mais o que eu digo ou disse. Minhas palavras são agregadas e transformadas pelo sistema em que ele opera, sem que haja reconhecimento das dimensões que elas originalmente procuraram evidenciar. O “x”da questão é encontrar um canal, uma brecha para que isso ocorra, caso contrário ficaremos sempre paralelos um ao outro, sem que haja contato real. Este é um longo e paciente trabalho de parte a parte.

Tendo em vista a educação e as maneiras gentis do paciente, não é difícil haver engano e o analista achar que está tratando de um paciente mais sofisticado do ponto de vista mental. A não percepção da dimensão que procuro ressaltar pode levar a uma pseudo-análise em que ambos podem entreter pseudo-conversas durante anos a fio. O reconhecimento de que a conversa real ainda está para ocorrer em algum tempo futuro, e após longo e laborioso esforço, pode deixar aberto o espaço para que isso possa efetivamente emergir. Caso haja uma necessidade de precipitar os eventos devido a angústias de ambas as partes, falsos substitutos serão produzidos de maneira a tranqüilizar momentaneamente a dupla. Isto, todavia, impedirá o atendimento das verdadeiras necessidades do paciente e o encontro com algo real que ele veio procurar, ou que nós possamos verificar que ele necessita. Se o paciente não sabe disso, nós precisamos saber.

Na dimensão em que o paciente acha-se imerso, não é possível que ele tenha um encontro e um relacionamento profícuo com quem quer que seja, e nesse sentido, sua queixa inicial é totalmente procedente, a despeito de ele não verificar porque isto é assim. Interpretações de conteúdo são completamente estéreis neste contexto, e desprovidas de sentido real. Antes de tudo é preciso que ele possa encontrar uma brecha na redoma em que se encontra – que é produto de sua própria mente – que lhe permita perceber algo que está além dela.

Na observação feita durante as suas sessões, verifico que eu “existo” apenas na medida em que possa propiciar-lhe o que gostaria de arrancar de mim, ou seja, uma realidade que correspondesse e obedecesse às suas expectativas. Nesse sentido, toda sua ação sobre mim, a despeito de sua extrema delicadeza e gentileza de modos (etiqueta de Corte), é de grande violência. Sua postura é sempre a de ver o que consegue do outro, e não existe o que ele poderia oferecer nas relações. O mesmo, certamente, ocorre em todos os seus contatos sociais. Na maneira em que considero que ele opera, sou absorvido por suas produções mentais e passo a dar-lhes substrato sem que haja reconhecimento de minha existência como algo diverso daquilo que para ele eu sou. Vejo-me em uma dimensão que ele não alcança e sequer percebe ou desconfia que possa existir. Eu próprio não tenho necessidades, assim como os pais, namorados e amigos. Percebo-o como um ser dentro de um minúsculo aquário, que acredita que o mundo é aquilo que percebe de dentro desses limites. A vida que leva, conforme sua imaginação, é sentida como libertária e superior, sendo que na prática ele fica extremamente prejudicado. Esta percepção, contudo, só é possível de fora do aquário e ele só poderá tê-la se puder sair, ou pelo menos pôr sua cabeça para fora dele.

A realidade que eu me esforço para que perceba seria vivida como restritiva e escravizante, pois teria de levar em conta as frustrações. A percepção das frustrações e da vida “como ela de fato é”8, conforme minha percepção, poderia libertá-lo do mundo restrito de suas produções mentais e capacitá-lo a reconhecer e usufruir aquilo que a vida realmente oferece. Um seio real pode parecer insignificante diante de todas as maravilhosas capacidades de um seio idealizado. Todavia, o primeiro tem uma qualidade não rivalizável pelo segundo: a existência e a substância. O paciente vive mergulhado em um mundo de delícias e prazeres, contudo, sua efetiva experiência que o traz à análise, que todavia não realiza, é de vazio, fome e desespero. Quanto mais “rico” é o mundo que produz, mais pobre torna-se sua vida real.

 

Segunda situação clínica

A paciente, uma mulher de quarenta anos, deita-se e permanece vários minutos em silêncio. Percebo um enorme sofrimento de sua parte. Vejo dois distintos movimentos, como se fossem duas pessoas. A primeira, muito aflita, desesperada, faz um esforço para dizer algo. A segunda, uma pessoa altaneira, olha feio para a pessoa desesperada e sufoca o que esta última ia dizer, fazendo com que se cale. Isto se repete inúmeras vezes. Digo à paciente que me vinha à mente um episódio que ela havia relatado tempos antes, em que, chocada, contou-me os modos de conhecidos seus, oriundos, segundo seus próprios critérios, de família pretensiosa e decadente. Eles haviam feito um churrasco em um sítio. Todos se fartaram, mas ainda assim dois animais inteiros haviam sobrado no braseiro. Nenhum dos familiares ou convidados tinha mais disposição para ingerir qualquer coisa. Um dos presentes propôs que aquela carne toda que sobrara fosse entregue aos funcionários miseráveis que habitavam o local. Ouvindo isso, um dos parentes, indignado, protestou veementemente e disse que se eles assim fizessem aquele “povo” poderia acostumar-se com aquilo e colocar em risco a ordem natural das coisas. A paciente, horrorizada, não pôde dizer qualquer coisa, sentiu-se submetida àquilo tudo e observou, dolorida, os dois animais virarem carvão no braseiro, sem que nenhum dos famintos da propriedade pudesse ingerir uma fatia sequer.

A paciente diz que estava justamente pensando nesse episódio e no absurdo do mesmo, quando eu, coincidentemente, falei dele. Digo-lhe que eu a estava observando e percebia que ocorria ali na sala, diante dos meus olhos, a mesma coisa. Estávamos ali em três. Primeiro havia eu. Tinha também uma pessoa faminta, desesperada, ávida para comer, para falar comigo, para ser atendida; e havia ainda uma outra, altaneira, superior, que toda vez que via a faminta mexer-se para expressar alguma necessidade fazia-a calar-se, sufocava-a, abafava-a. Lembrava também aquelas situações em países ditatoriais, em que na visita de alguma personalidade de país estrangeiro estabelecia-se um serviço policial com a finalidade de impedir que qualquer manifestante pudesse aparecer com algum protesto, reivindicação ou pudesse entregar um documento ao estrangeiro narrando os desmandos do governo ditatorial. A paciente reconhece a situação e a conversa pôde se estabelecer. A sessão prosseguiu em outro clima.

 

Comentário

A paciente trata-se como se ela mesma devesse corresponder aos produtos de suas decisões mentais. Ela deveria ser de determinada maneira e não de outra. Aquela que observa existir, sofrer e ansiar por ver suas necessidades atendidas deve ser exterminada, desaparecida, é-lhe negada a existência. O horror se produz à medida que ela continua sofrendo e percebendo o que “não existe”, e em relação a que não pode tomar qualquer providência devido à “não existência” do que precisaria ser lidado. Ali comigo, ela “tem de ser” aquela que deveria existir: altaneira, superior, auto-suficiente. O clima é de extrema violência e crueldade. O mesmo impacto de seu relato anterior – que surgiu espontaneamente em minha mente, sem que eu fizesse qualquer esforço para lembrá-lo9 – ocorreu-me diante da crueldade com que a vi destratar-se em minha presença, à medida que observei sua movimentação no divã. A paciente horroriza-se com os modos dos conhecidos, sem todavia levar em conta a própria violência em relação a si. Por sua vez, ela dificilmente pode oferecer àqueles que vivem ao seu redor tratamento muito diverso deste que se dá, pois desconsiderando e negando a própria realidade e suas verdadeiras vivências, ela se impossibilita de ter alguma percepção ou consideração real por terceiros. Isto que estou comentando não é uma avaliação moral que permita qualquer desqualificação da paciente. Essa violência não é verificada por ela, e o trabalho de análise pode permitir que isto venha a ocorrer. Muitas vezes observamos clientes que se lamentam da desconsideração e desrespeito que sofrem de seus convivas, sem que se dêem conta de quão desrespeitosos e cruéis são para consigo, e conseqüentemente para com os demais.

Considero que em análise observamos as relações do grupo interno e as relações com os grupos externos do paciente – na sua relação com o analista. A situação descrita pela paciente (do churrasco) revela como vive suas relações nos grupos intra-psíquicos e extra-psíquicos. A paciente oferece uma imagem que explicita a qualidade dessas relações, dela com ela mesma, dela com o analista, e provavelmente dela com seu grupo externo, pois acho improvável, para não dizer impossível, que uma pessoa possa funcionar de uma maneira no nosso consultório e de outra fora dele. Com a análise, existe a possibilidade de se pensar aquilo que no cotidiano tende a provocar ações e reações. Nosso consultório, por sinal, serve de laboratório para o cliente. O analisando tem a chance de perceber, em suas vivências com o analista e nos sentidos que possam ser dadas a estas, algo que não teria chance de verificar em qualquer outro contexto. A percepção desse “algo” pode mudar toda a concepção de si mesmo, dos outros e do mundo, e por sua vez pode levar a uma mudança de procedimentos e de maneiras de lidar com os fatos.

 

Terceira situação clínica

A paciente, uma moça universitária, apresenta-se muito chorosa e queixa-se de uma série de impedimentos. Todo o encontro se dá em um clima de lamúrias e recriminações (para consigo mesma, principalmente). Reclama de não conseguir dirigir seu carro porque teme os imprevistos que possam ocorrer; considera que não saberia o que fazer. Fazendo uma síntese, a conversa desenvolve-se em uma linha que destaca o horror que tem de se perceber sem controle dos eventos, de que os fatos se sucedam seguindo os ditames da natureza, se é que se pode falar assim, mas não os de sua vontade. Percebo o ódio e o repúdio que ela tem por não ser uma deusa capaz de determinar os eventos de maneira a que nada saísse diferente de seus desígnios. Chorosa, reconhece a situação.

Destaco um momento em que se queixava violentamente de haver estudado muito para determinadas provas, mas apesar de todo o esforço, seu rendimento foi muito aquém de sua expectativa. No desenrolar da conversa vou evidenciando que seu problema parecia ser seu método de aprendizagem, pois verificava que aquilo que íamos comentando não se tornava, para ela, material de reflexão. As dificuldades que percebia em si logo deveriam ser corrigidas, e nossas observações eram tornadas expectativas implacáveis a seu respeito, fazendo com que nosso próprio contato ficasse algo muito penoso para ela, pois tudo que era ou fosse percebido constituía-se em algo a ser executado, uma forma em que ela deveria enquadrar-se. Se não ocorresse o enquadramento imediato, “baixava o sarrafo” com toda a violência. Digo que ela tinha um método de aprendizagem do Uday Hussein, filho do Sadam. Ele (ela se lembra) aterrorizava os jogadores da seleção de futebol do Iraque. Caso perdessem uma partida, eram violentamente torturados. “Você pode ter uma idéia e se perguntar se dá mesmo para aprender desse jeito?”, indago. “Fica complicado você querer aprender na faculdade ou na vida em um clima de terror dessa ordem e com tal nível de exigência que não contém qualquer compaixão humana”. Ela reconhece o que estou dizendo, mas percebo pelo seu tom de voz, e por seus comentários seguintes, que mudar esse método educacional que usa para si (e para os demais) já havia se tornado uma exigência imperativa, e que ela já estava se recriminando por não estar mudando imediatamente. Digo isto a ela, que na sua tentativa de mudança estava aplicando para mudar o próprio método que, segundo sua apreensão, deveria deixar de lado. Informo-a que minha intenção, ao mostrar-lhe o que eu via, não era criar uma obrigação de mudança ou estabelecer o que seria uma conduta correta, mas verificar se aquilo que eu lhe comunicava poderia tornar-se um estímulo para reflexão, algo para se pensar a respeito, o que já seria muita coisa. A paciente, um tanto emocionada, parece dar sentido ao que lhe digo. Nesse momento encerro a sessão.

A compaixão e a simpatia humana não são desenvolvidas como tema principal deste artigo, mas fazem parte intrínseca dele. É ressaltada a problemática da falta delas. Uso estes termos no sentido coloquial. A compaixão e simpatia humana estão evidenciadas na condição necessária ao analista para que ele próprio não funcione de modo violento e superegóico em relação ao paciente e a si mesmo. Se o analista não for capaz de compaixão, sua atuação estará mais para a de Santo Inquisidor do que para qualquer outra coisa. Ele mesmo não poderá ter consideração por suas limitações, e muito menos aprender com sua experiência. O prejuízo no aprender com a experiência pode ser verificado nas relações desta paciente com ela mesma.

 

Comentário

Verifica-se nos três quadros clínicos uma situação característica da posição esquizo-paranóide, com predominância do funcionamento de aspectos psicóticos da personalidade que se valem dos aspectos neuróticos para operarem (Bion, 1967). A atmosfera é de transformações em alucinose (Bion, 1970). Os elementos perceptivos são engolfados pelas produções mentais e tratados como se delas fizessem parte. A vida deve obedecer às leis da mente e não às da natureza. Tudo o que se contrapõe a este ditame deve ser eliminado. Não havendo consideração pelos fatos, a violência predomina, mesmo que de modo sutil. Todavia, não obstante essa sutileza, pode ser muito eficaz e devastadora para os próprios pacientes e para quem estiver em torno deles. A ação violenta dos pacientes em relação a seus convivas deve, por sua vez, estimular reações violentas por parte deles, em uma reação em cadeia que não poderá ser pensada, e muito menos interrompida, antes que haja a percepção de seus elos.

Cabe um assinalamento. Verifico que estas descrições clínicas e a nomenclatura que as descreve ainda costumam impactar alguns leitores. Cabe ressaltar que nelas não há juízo de valor e tampouco qualquer depreciação dos pacientes por operarem nestas condições. São estados mentais muito mais corriqueiros do que se costuma reconhecer e fazem parte de nossas experiências cotidianas. As análises a partir de Klein, e sobretudo com Bion, passaram a enfocar e se ocupar muito mais dos aspectos psicóticos dos pacientes neuróticos. Este é o caso aqui. Estamos lidando com os aspectos psicóticos de pacientes neuróticos. Um analista precisa ter plena noção e reconhecimento de situações análogas em seu próprio funcionamento mental para poder reconhecê-las nos demais. Evidencia-se, desta maneira, a necessidade de uma análise muito extensa e profunda para que ele possa estar habituado com essas dimensões e não temê-las, sobretudo em si mesmo. Mais louco do que o louco é aquele que não sabe que é louco. Quem o sabe tem a oportunidade de se cuidar. É notável como a “insanidade” é muito mais normal (a norma) do que a “sanidade”. Basta abrir qualquer jornal e ler as manchetes para se verificar isto. O preconceito quanto a perturbações mentais ainda é de monta, da mesma maneira que há não muito tempo as pessoas escondiam que tinham câncer, como se isso revelasse algo de abjeto em suas naturezas. O câncer é um problema sério e precisa receber o nome que tem e ser reconhecido em suas especificidades para que possa ser tratado de modo pertinente. Dizer que uma pessoa tem câncer não é um xingamento, mas isto só tem se tornado mais claro bem recentemente. O câncer pode atingir qualquer pessoa, sem qualquer tipo de discriminação quanto ao “valor” moral ou de qualquer outra espécie. As mesmas considerações valem para o reconhecimento, denominação e cuidados das condições mentais que encontramos.

 

O trabalho na Experiência Emocional

O trabalho na experiência emocional não corresponde ao uso da contratransferência. Esta não pode ser utilizada no trabalho do analista, pois conforme o vértice explicitado por Bion (1970), e ao qual me associo, há um equívoco de terminologia. Como ele ressalta, a contratransferência foi um termo cunhado por Freud para denominar a transferência do analista – portanto, assim como a transferência do analisando, também é inconsciente. Sendo assim, não é passível de uso por parte do analista. A contratransferência, escreve Bion, é assunto da análise do analista e não da análise do analisando. Este é um pressuposto teórico-prático.

O trabalho que envolve o uso da experiência emocional diz respeito às emoções reconhecidas, conscientes, do analista. Sei que muitos colegas analistas sérios, e por quem tenho profundo respeito, valem-se da “contratransferencia” no sentido que dou ao uso da experiência emocional. Considero o uso do mesmo termo, que evidenciaria “actings” do analista, e também em outro momento, uma condição pensante dele, contraproducente. Melanie Klein, por sua vez, não ficou de acordo com esta proposta feita por Paula Heimann. Há um episódio em que uma supervisionanda sua foi dizer que estava confusa porque o paciente a tornava confusa. Ao ouvir isso, Klein disse que não, que ela, a analista, é que era confusa. Portanto, trabalhar na experiência emocional também não implica em viver as emoções e estados mentais do paciente. Implica no analista ser capaz de perceber o que a situação e as atuações do analisando mobilizam nele, ou melhor, reconhecer as próprias vivências emocionais em curso, e desta forma buscar verificar o que se deu que as mobilizou.

 

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Endereço para correspondência
Claudio Castelo Filho
Rua Carlos Sampaio, 304 / 72 – Bela Vista
01333-020 São Paulo - SP
Tel.: +55-113284-0424
E-mail: claudio.castelo@uol.com.br

Recebido em 17/02/05
Versão revisada recebida em 29/06/05
Aprovado em 07/07/05

 

 

Notas

I Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; Doutor em Psicologia Social (USP); Mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP).
1 Todos os dados sofreram distorções suficientes, tendo em vista impedir o reconhecimento dos analisandos.
2 Funcionamento característico de transformações em alucinose. O “pensamento” arrogante do paciente prescinde de observação e verificação dos fatos. A realidade pela qual se orienta é determinada por ele. Não há distinção entre fatos e o que ele “pensa”/imagina. Escrevo “pensa” entre aspas por considerar ser uma atividade diversa do verdadeiro pensar, que é indissociável da consideração pelos fatos, e só é possível havendo tolerância a frustrações.
3 Elias (2001).
4 Saint Simon (1990).
5 Segundo St. Simon, ao sair de onde estava o filho à beira da morte certa, prestes a subir na carruagem amparado por duas damas da Corte, o rei dirige-se a alguns de seus ministros para marcar a reunião do Conselho para o dia seguinte. Os ministros, espantados, indagam ao rei se convinha manter a reunião tendo em vista a morte iminente de seu filho. Nesse momento, o rei parece lembrar-se do filho e decide adiar a reunião para dali a dois dias.
6 Outro episódio de grande violência e crueldade narrado por St. Simon refere-se a uma passagem em que Luís XIV faz questão de que sua neta predileta o acompanhe na mudança de um castelo real para outro, a despeito das recomendações médicas devidas à gravidez da princesa. Seriam muitas horas chacoalhando dentro de uma carruagem. Ao chegar a Fontainebleau a neta aborta e não mais pode engravidar. O rei, ao ser informado, irrita-se e diz que não poderia funcionar de um jeito em que suas vontades não fossem atendidas, pois além do mais, a princesa já tinha um filho e não precisava de outros. Vale ressaltar que nesse contexto, o rei conta com enormes recursos para substanciar estados de alucinose. Toda alucinação precisa de algo que a substancie, diferentemente da crença de que as alucinações são percepções na ausência de objetos, estas precisam encontrar elementos nos fatos que lhe dêem consistência para que possam se manter. Palácios e catedrais são construídos para substanciar estados alucinatórios, da mesma forma que trajes de gala, jóias, coroas etc. O mundo também é movido e construído por alucinações. Nessas condições de mente, as relações não são com pessoas ou entre pessoas, mas as pessoas são apenas parte do “pensamento”, ou melhor, da produção mental, não sendo reconhecidas como tendo autonomia ou existência própria. A violência é a praxe, mesmo que em ambientes aparentemente sofisticados.
7 Ver Rezze (1997).
8 Albert Einstein afirmou em 1931 que “a crença em um mundo externo independente do sujeito que o percebe é a base de todas as ciências naturais”.
9 Uma evolução conforme proposta de Bion (1970).