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Psychê

versión impresa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.17 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Fora de vista: sobre imagem e montagem na clínica psicanalítica

 

Out of sight: on image and montage in psychoanalytic practice

 

 

Pablo Bergami Goulart BarbosaI; Tania RiveraII

Universidade de Brasília. Departamento de Psicologia Clínica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo constrói uma reflexão acerca do lugar da imagem na clínica psicanalítica. Apresenta-se brevemente a questão do olhar e da imagem na teoria psicanalítica por meio de dois conceitos primordiais: o de fantasia e o de fetiche. Ambos são construções imagéticas que carregam em sua estrutura as marcas das tensões intrapsíquicas que os moldam e caracterizam a dimensão da imagem na análise. Propõe-se uma concepção do tratamento psicanalítico como incidindo no espaço entre imagem e palavra, e aproxima-se tal concepção do conceito de montagem cinematográfica. O tratamento analítico teria por visada, por meio do manejo da transferência, remontar a narrativa sintomática do sujeito em análise.

Palavras-chave: Psicanálise, Imagem, Transferência, Cinema, Montagem.


ABSTRACT

The present article analyses the role of image in the psychoanalytic practice. The subject of image is dealt with through two main concepts: fantasy and fetish. Both are constructs of images that contain in their structures the marks of the inner psychic tensions that shape them, and through that they characterize the dimension of image in psychoanalysis. A conception of the psychoanalytic treatment as a form of clinic that dwells in the space between images and words is proposed, as well as a parallel between such practice and cinematographic montage. The goal of psychoanalytic treatment would be, thus, remaking the montage of the symptomatic narrative of the subject undergoing psychoanalysis, through the handling of transference.

Keywords: Psychoanalysis, Image, Transference, Cinema, Montage.


 

 

É digna de nota, e com certeza provocadora ainda de um certo estranhamento, a disposição espacial de um tratamento analítico. O analisando deita-se em um divã. Na poltrona, atrás dele, aloja-se o analista que escuta sua fala (que é endereçada a quem?) em estado de peculiar invisibilidade.

Pode-se imaginar que em uma época em que “ser visto” tornou-se quase sinônimo de existir – se é que em algum momento houve total independência entre esses termos – e em que a escopofilia encontra-se em um provável pico histórico, não sejam poucos os analisandos, e talvez também os analistas, que sintam certo desconforto em tal situação1. Não são poucas nem periféricas as questões levantadas por essa “invisibilidade” analítica. Tentaremos aqui lidar brevemente com algumas delas no intuito de delinear o papel da imagem e do olhar na clínica psicanalítica e a função que o arranjo do divã viria cumprir nesse enquadre.

Pode-se dizer, de saída, que o divã protege o analista. Freud já o declara na única passagem de sua obra que trata diretamente dessa questão “prática”, cuja ascendência histórica remonta ao método de tratamento hipnótico iniciado com Breuer: “ele [o divã] merece ser mantido por muitas razões. A primeira é um motivo pessoal, mas que outros podem partilhar comigo. Não posso suportar ser encarado fixamente por outras pessoas durante oito horas (ou mais) por dia” (1913, p. 176). Além da função de esconder as expressões faciais do analista ou poupá-lo do olhar suplicante ou crítico de seus pacientes, ou do que quer que seja que incomodava Freud nesse olhar, há também um segundo benefício prescrito no mesmo texto. O analista, colocando-se atrás do paciente, promoveria de certa forma um isolamento da transferência. É no intuito técnico de “impedir que a transferência se misture imperceptivelmente às associações do paciente”, para “isolar a transferência e permitir-lhe que apareça, no devido tempo, nitidamente definida como resistência” (p. 176), que o analista “esconde-se” em sua poltrona.

Mas o que quer dizer, efetivamente, “isolar a transferência” e “impedir que ela se misture imperceptivelmente às associações” (p. 176). Freud parece esperar que o compreendamos sem maior dificuldade, já que não volta mais ao assunto. Devemos então explorar essa afirmação, interpretá-la, trabalhá-la, na tentativa de compreender a função do dispositivo espacial analítico. Essa tentativa exige um sobrevôo teórico sobre a questão do olhar e da imagem em sua incidência no âmbito da teoria freudiana.

 

Pulsão escópica, fetiche e fantasia

A compreensão psicanalítica da imagem e do olhar relaciona-se intimamente a dois conceitos: o fetiche e a fantasia. Vamos abordá-los a partir de um texto fundamental, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905), no qual se estabelecem as balizas teóricas que orientarão todo o desenvolvimento futuro desses objetos teóricos e o conceito de pulsão escópica, a pulsão que constitui o olhar, é pela primeira vez enunciado em sua especificidade.

Freud trata a questão do olhar em harmonia com suas demais reflexões acerca da constituição da sexualidade humana, tomando como ponto de partida a perversão em que este é o componente central, a escopofilia, e seu complemento, o exibicionismo. Estes, em conjunto com várias outras correntes pulsionais perversas, são as fundações que podem vir a constituir a sexualidade humana “normal”. Assim, ele propõe o olhar constituído pulsionalmente como extensão do toque, a serviço da atividade erógena de contemplação dos próprios órgãos genitais, a qual ocorre via de regra acompanhada da exibição dos mesmos, e complementarmente da atividade de contemplação do sexo de outras crianças. Essa busca do objeto sexual pelo olhar direciona-se de saída ao outro, e não mais se volta apenas para o próprio corpo da criança. Isso é digno de nota, uma vez que ocorreria em uma fase ainda pré-genital do desenvolvimento psicossexual, cuja característica mais marcante é a busca de satisfação sexual por meios predominantemente auto-eróticos. A pulsão escópica é também o que garante, promove e suporta a pulsão de saber. A curiosidade infantil funda-se a partir da curiosidade sexual, e o olhar que começa como atividade erótica poderá com o tempo, caso o curso de desenvolvimento psicossexual aponte a sublimação como um de seus destinos privilegiados, transfigurarse até o extremo da observação científica. Não há olhar que não seja, portanto, fundamentalmente um olhar sexual.

A curiosidade acerca do enigma do sexo e a via de satisfação fundada pelo prazer de natureza escopofílica são os primeiros passos libidinais que eventualmente podem levar à construção do fetiche – tanto na perspectiva de uma hipotética psicogênese individual quanto no fazer teórico psicanalítico.

O fetiche, presente em graus variados em toda escolha de objeto amoroso, e não apenas no extremo da perversão fetichista, é constituído pelo próprio olhar. É o movimento congelado do olhar que o erige, esse monumento à castração que agrega a aceitação e a negação em uma coexistência tensa e imagética (Freud, 1927). O deparar-se com a ausência do pênis materno, imagem (ou melhor, não-imagem, ausência de imagem) aterrorizante que torna efetiva a ameaça de castração é quase insuportável; é necessário algum escape diante disso, uma fuga para o olhar antes que advenha a cegueira2. Na fuga apressada os olhos pousam sobre o que estiver mais próximo, sobre a imagem à beira do abismo: botas, meias, pés, tapa-sexo etc. A lista é tão extensa quanto forem os fetichistas – e vale lembrar que em algum grau todos nós o somos – e os possíveis deslocamentos da imagem salvadora (ainda que não garanta salvação alguma), agora “fossilizada”. Já apontamos em outro trabalho a natureza substitutiva dessa operação, que vem explicitar o caráter de descontinuidade entre o símbolo e o que é simbolizado no fetiche (Rivera, 1997).

O fetiche é, assim, uma tentativa fracassada de esconder o real da castração, tentativa que ao buscar ocultá-lo torna-se o testemunho mais convincente de que “há algo lá”. Ou melhor, torna-se evidência de que algo não há. É justamente a falta que ele, o fetiche, tenta anular pela recusa (Verleugnung). Nesse movimento oscilante entre recusa e aceitação dá-se a inscrição do sujeito no simbólico. É uma operação de simbolização, que permite substituir precariamente a falta e dar início ao infindável deslize do desejo, modo de funcionamento que garante sempre um certo desconhecimento da realidade da falta e permite a criação do mundo pelo psiquismo. É nesse ponto de tensão que o fetiche aproxima-se e ao mesmo tempo se afasta da fantasia. Ambos vêm se sobrepor à falta originária, mas por vias diversas.

A fantasia é uma formação psíquica que busca realizar um desejo que não pode ser diretamente satisfeito pela ação motora. É uma tentativa de “enganar” a interdição que pesa sobre o desejo. A fantasia é composta de elementos conscientes e inconscientes, e está ligada em sua origem à atividade masturbatória da fase fálica (Freud, 1908). Um trabalho do início da carreira de Freud dá ótimas indicações do que seria a lógica da fantasia na teoria freudiana. Em Lembranças encobridoras (1899) ele trata da natureza da memória, mais especificamente de imagens mnêmicas que contêm em si duas correntes antagônicas da vida pulsional. Uma delas busca fixar na memória eventos de grande importância para o indivíduo, enquanto a outra tende a recalcá-los devido à natureza aversiva dos afetos despertados por eles, ameaçadores à unidade do eu. Trata-se então de uma conflituosa mescla de recalque e desejo na criação de imagens mnêmicas, que não são exatamente o evento ocorrido, mas um episódio que guarda íntima relação com aquilo que foi recalcado. Freud utiliza, para o desenvolvimento de sua argumentação, a análise de uma lembrança própria (que no texto é atribuída a um paciente) concernente a um episódio de sua primeira infância, quando teria dois ou três anos de idade, e que lhe parece estranha, principalmente devido à sua banalidade.

Trata-se de uma cena campestre na qual o pequeno Sigmund e um primo roubam um buquê de flores amarelas da menina que com eles brincava, e em seguida comem um delicioso pão preto que lhes é dado por uma camponesa. O delicioso sabor do pão e o intenso amarelo das flores destacam-se nessa imagem como elementos aberrantes, exagerados. Através da interpretação dessa cena, ocasionada pelo remetimento de sua manifestação consciente a um tempo posterior, chega-se à conclusão de que não se tratava necessariamente de um episódio real e sim de uma lembrança encobridora, que vinha ocultar fantasias de defloramento de uma jovem e de obediência à determinação paterna de buscar uma profissão mais “ganha-pão”. Também se insere na cadeia associativa de Freud sobre essa “cena” a revolta contra a perda do idílico lar campestre, inconscientemente atribuída ao pai. Tais fantasias recalcadas acharam sua expressão na formação de compromisso oferecida pela memória encobridora, que se pôs a serviço de dois mestres, o recalque e o desejo. Essas fantasias ter-se-iam originado em um momento muito posterior ao da lembrança, mais precisamente no fim da adolescência de Freud, quando ele fez uma viagem de volta à sua terra natal e hospedou-se com uma família na qual havia uma menina de cerca de quinze anos de idade, por quem ele então se apaixonou.

É de memória e fantasia que Freud nos fala nesse texto, ensejando a possibilidade de haver entre elas uma relação de equivalência. A partir da lembrança encobridora e da amnésia infantil pode-se pensar que grande parte, senão a totalidade, daquilo que aceitamos como nossa memória autobiográfica é uma ficção construída sobre uma verdade não-objetiva3. A narrativa que nos garante respostas mais ou menos estáveis para as perguntas “quem sou?” e “de onde venho” é, em sua dimensão consciente e imagética, tão ficcional quanto um conto literário. O que resta ao sujeito são traços mnêmicos, marcas, sobre as quais serão feitas imagens. Imagens essas que perdem, após a interpretação psicanalítica, a garantia de uma pretensa objetividade, mas que então possibilitarão em troca a aproximação vacilante de uma verdade bem menos utópica – a verdade do sujeito que aí se inscreve.

Esses desenvolvimentos indicam o abandono por Freud de sua teoria da sedução, e apontam para a primazia da realidade psíquica como constituinte do sujeito e também do sintoma, que caracterizam daí em diante seu pensamento. É a fantasia que vem construir o que se apresenta como lembrança, como realidade acontecida, e uma fantasia posterior à época do evento lembrado, o que deixa entrever o entrelaçamento temporal na fantasia, em que presente, passado e futuro misturam-se sem exclusão, subvertendo a ordem cronológica. A cena interpretada aponta para a atemporalidade do inconsciente, ao mesmo tempo em que se cristaliza em uma seqüência cronológica linear, como narrativa de si. Freud aborda ainda nesse mesmo texto a proximidade, na confluência de duas correntes da vida psíquica conflitantes, que se verifica entre o mecanismo da fantasia e o mecanismo de formação de sintomas neuróticos. É também uma formação de compromisso, uma tentativa tensa e fadada ao fracasso de servir a dois mestres, que ocasiona o surgimento do sintoma neurótico.

É importante, por fim, ressaltar o que distingue essas formações psíquicas. Fantasias e sintomas guardam uma relação íntima, já que as primeiras conformam os últimos (Freud, 1908). Estão entrelaçados de forma inextricável no psiquismo e se constituem pela mesma operação, são formações de compromisso entre pulsão e recalque. O fetiche, contudo, é produto de uma operação psíquica de outra ordem. Não se enquadra no padrão de funcionamento mental que dará origem aos sintomas neuróticos, já que é uma recusa – e não uma conjugação – a operação que ele busca efetivar. Com ele não se trata de achar um meio termo, um ponto na batalha pulsional em que os dois lados da disputa tenham cedido algum terreno e atingido um ponto de impasse dinâmico – como poderiam ser caracterizados o sintoma e a fantasia. O fetiche é imagem fixa em oposição à cena, a breve narrativa da fantasia sobre a qual o sintoma pode ser erigido. O fetiche é a própria imobilidade, a imutabilidade que mantém presentes na recusa, em oscilação, as duas possibilidades em jogo: aceitação e não-aceitação da falta do falo materno. Na fórmula de Mannoni (1969), o fetiche aponta, contudo, para o “eu sei... mas mesmo assim” neurótico, que faz com que a coisa perdida seja articulada sempre de outra forma, por substituição.

 

A imagem em transferência

Seria óbvio tratar do sonho ao se abordar a imagem na teoria psicanalítica. Parece-nos, contudo, que o sonho dá mostras de uma lógica de construção de imagens análoga à da lembrança encobridora. Seriam fenômenos psíquicos idênticos, não fosse a crença na realidade da cena que falta ao sonho (apesar de alguns sonhos parecerem durante o sono ou logo após o despertar, de forma análoga à lembrança encobridora, absolutamente reais). Tanto o sonho como as fantasias são cenas construídas sobre o desejo, uma tentativa de satisfação deste, que cede terreno ao recalque. Suas formas narrativas e figurativas finais são determinadas por esse jogo de forças intrapsíquico, e em ambos há um atravessamento dos registros da imagem e da palavra. Freud propõe, muito antes de indicar que a matriz da fantasia é uma sentença, que os sonhos figuram um pensamento inconsciente em que um desejo é articulado no modo optativo (1901). Assim, o processo de estruturação onírica está suficientemente próximo ao da fantasia para justificar que abordemos apenas a última, considerando a ênfase que desejamos colocar em sua importância para a clínica, sem que haja grandes prejuízos ao desenvolvimento de nossa reflexão.

Pode-se neste momento propor que o ponto de contato entre as distintas formações psíquicas que abordamos acima está em seu caráter imagético e no jogo de forças psíquicas conflitantes subjacentes a elas. Todas plasmam significantes, que serão o emblema das tensões que sustentam. Essas estruturas só nos são dadas a conhecer na clínica sob a chancela da transferência. É esse movimento, que traz em si outro par antitético – fonte de maior resistência ao tratamento e força motriz do mesmo –, que nos permite pensar o lugar da imagem e daquilo que poderia ser pensado como um recalque desta, no dispositivo psicanalítico.

A transferência já foi (e ainda é) pensada por meio da noção do transporte das imagos parentais. Lacan (1998) problematiza o termo e demonstra o papel criador (e alienante) que a imagem do próprio corpo tem para a função do eu, e que é a abertura mesma de todas as possibilidades posteriores de identificação (definida aí como “assumir uma imagem”) que se fazem presentes de alguma forma no processo analítico. Isso sublinha a importância do registro da imagem na constituição psíquica humana. Tal registro é colocado, com Lacan, na aurora da constituição subjetiva, no estádio do espelho. Isso nos permite relançar a questão, tornando-a mais contundente: por que então nos escondemos da visão do paciente, ou seja, qual é a relação entre a “invisibilidade” preconizada pelo setting analítico e a natureza da transferência? A resposta a ela está em parte contida no que foi dito anteriormente, mas antes vamos tentar delimitar com um pouco mais de apuro o que se quer dizer com o termo transferência.

O conceito de transferência carrega consigo as idéias de transporte e movimento. Mais do que um “colocar sobre o analista” as imagos parentais, ou transferir afetos e idéias de um passado infantil, em um sentido linear, do analisando ao analista, ela indicaria um movimento pendular e contínuo do qual não se pode ver um ponto de chegada. É também um movimento temporal no qual o passado infantil vem se atualizar. O “amor transferencial”, diz Freud (1915), guarda uma identidade com as paixões da vida real em sua dimensão de repetição, mas provocado pela situação analítica – aí reside sua peculiaridade e sua possibilidade terapêutica.

Freud apresenta, no já citado Observações sobre o amor transferência, uma preciosa metáfora que será mais tarde retomada e expandida por J.B. Pontalis (1991). A transferência é caracterizada aí como o fogo que irrompe no teatro no meio da encenação de uma peça. Essa imagem (é disso, em certa medida, que se trata em uma metáfora, fazer imagens) convoca-nos a reconhecer o que há de real na transferência e o que há de ficcional em toda a existência humana. Como nota Jean Laplanche, o analista encontra-se na estranha posição de receber uma carta anônima da qual desconhece o destinatário, mas que lhe é entregue, a ele e a mais ninguém (1993). Aí está a precária posição que ele deve ocupar: sem negar-se a receber tal mensagem, saber que é apenas um destinatário transitório, e não o destinatário, sendo a atualidade desse recebimento o que pode conferir algo de novo ao ciclo imposto pela repetição. É por essa via que se abre a possibilidade do novo feito do velho, de re-editar a mensagem. Essa re-edição só ocorre sob a condição de que o analista consiga garantir esse lugar da “transferência em vazio” (Laplanche, 1993), esse lugar onde o analista não-é, não toma lugar como sujeito de seu próprio sintoma, mas faz falta. Essa peculiar posição corresponde ao que foi chamado por Freud de “abstinência” (1915), e é a definição própria da atitude do analista para com a transferência. É só em abstinência que se realiza uma análise. É ela que vai permitir ao analista não se tornar mais um ator no teatro transferencial.

Agora que o percurso teórico foi apresentado, devemos retomar a afirmação de Freud acerca do divã que motivou nossa interrogação. Vejamos, novamente, as razões que ele nos dá para o uso do arranjo do divã:

a primeira é um motivo pessoal, mas que outros podem partilhar comigo. Não posso suportar ser encarado fixamente por outras pessoas durante oito horas (ou mais) por dia. Visto que, enquanto estou escutando o paciente, também me entrego à corrente de meus pensamentos inconscientes, não desejo que minhas expressões faciais dêem ao paciente material para interpretação ou influenciem-no no que me conta. [...] Insisto nesse procedimento, contudo, pois seu propósito e resultado são impedir que a transferência se misture imperceptivelmente às associações do paciente, isolar a transferência e permitir-lhe que apareça, no devido tempo, nitidamente definida como resistência (1913, p. 176).

É claro que a transferência é seu eixo central. Não deixar que o paciente veja as expressões faciais do analista é uma forma de reafirmar a necessidade da “atenção livremente flutuante” que se propõe como complemento da atividade de associação livre. É claro que o analista é humano e, como Freud aponta, será tomado também no curso da análise por seus próprios conteúdos inconscientes, comparecerá como sujeito do inconsciente (a abstinência é um horizonte e não um estado permanente). Começa, então, a ficar mais claro como o divã prestar-se-ia a isolar a transferência.

Uma outra possibilidade de aproximação desse “estar fora da vista” do analisando, e que vem ao encontro do que foi exposto anteriormente, é enfocar o que representa para a constituição do sujeito a teoria do fetiche. A cena construída por Freud indica um dos (já que o inconsciente é atemporal e é “só depois” que a neurose se constitui) momentos fundadores da neurose ou da perversão por ser o próprio embate do sujeito com a castração, e assim definidor de sua relação com o mundo. Pode-se imaginar uma equivalência simbólica entre o lugar do analista, e conseqüentemente o do dispositivo psicanalítico, e sexo materno, o lugar da falta. Um analisando aponta isso agudamente quando um dia diz à sua analista, de chofre: “você é um buraco”. É a isso que pode se propor uma psicanálise, à recolocação do conflito, à re-encenação desse momento de confronto com a falta, do qual emerge o sujeito e o sofrimento. É a re-encenação que pode incidir sobre a disjunção significante e promover a reescrita dessa história infantil, e que permitirá, talvez, colocar novamente em movimento o que foi anteriormente fixado, congelado no tempo. A análise trabalha, quando é eficaz, nesse espaço de descontinuidade entre o símbolo e o termo simbolizado. Aponta a falha da recusa, a impossibilidade de esconder a falta que o fetiche tenta tamponar, levando o sujeito a se haver com isso.

Essa busca da atualização do arcaico da construção subjetiva parece estar também na base daquilo que uma análise tenta efetuar sobre as fantasias. Elas surgem como aquilo que permite a satisfação do desejo, a despeito ou mesmo a partir da restrição que pesa sobre ela. É da renúncia à satisfação pulsional imposta pelo complexo de Édipo que a fantasia deriva sua estrutura conflitiva. Ela compartilha uma ascendência comum com o fetiche, emblema negativo da castração, e como já apontamos, constitui o núcleo dos sintomas neuróticos. Pontalis nos diz que “a histérica não é uma doente imaginária, mas uma doente do imaginário” (1991, p. 73). Trata-se principalmente de fantasias em uma análise, esse é o registro no qual o paciente deve ser introduzido para estar em análise, é no registro da fantasia que ele falará no divã na maior parte do tempo, como bem lembra Versiani (1995). Será também sobre esse registro que a maior parte das interpretações do analista serão feitas. É então uma impossibilidade de manter a repetição exigida pela fantasia que o analista presente-ausente vai impor com sua escuta específica, promovendo uma transformação da cena em associação livre.

Tomando o problema por outro ângulo, se a fantasia é imagem e ocupa um lugar central no tratamento analítico, poder-se-ia propor que este seja, por excelência, um tratamento de imagens. A disposição espacial do tratamento, longe de ser uma negação do registro do visual, configurar-se-ia como uma ferramenta que busca fazer a análise agir justamente sobre os princípios desse registro. Estranha caracterização para o método definido pela máxima da “cura pela fala”, e no qual os participantes efetivamente não se vêem. Caracterização que, no entanto, torna-se menos estranha se lembramos que a fantasia é imagem e frase.

Em Uma criança é espancada (Freud, 1919), ficamos sabendo que a fórmula da fantasia é uma frase. É um enunciado que origina a imagem. Quase como o roteiro de um filme ou de uma peça determina a sua mise-en-scène. Mas o mesmo Freud nos ensina, aí e em outros textos, dos quais se pode citar Construções em análise (1937) como fonte principal, que esse enunciado, essa frase que produz a fantasia não segue a ordem cronológica da produção dramática. Na seqüência temporal da produção de um filme, por exemplo, o primeiro passo é a escrita do roteiro. Com a fantasia, no entanto, o roteiro se escreve “só-depois”, ele é construído a posteriori. Há então uma relação entre frase e imagem que constitui a matriz da fantasia, e por conseqüência também a matriz do sintoma. A análise propor-se-ia a trabalhar esse espaço entre a enunciação e a imagem que dela deriva ou que, ao inverso, a conforma (a relação não é linear), em uma tentativa de dar contornos e remontar essa relação que conforma o desejo.

 

Imagem, montagem e análise

Tomemos uma idéia de Miriam Chnaiderman, que pode nos ajudar a pensar a dimensão imagética/textual da psicanálise. Ela afirma: “para escutar o desejo é preciso transformar o discurso em imagem, é preciso ter uma escuta que olha” (1988, p. 6). Essa peculiaridade da escuta analítica reenviaria o discurso à ordem da imagem, na qual as conexões significativas podem se desfazer e refazer. A análise seria análise (vale lembrar: a etimologia da palavra remete a “quebra”) de imagens. O analista entrega-se à contemplação dessas imagens que o analisando lhe oferece em transferência, toma-as em sua materialidade significante, o que permite quebrá-las em seus componentes. Segue-se aqui a lógica proposta para a interpretação dos sonhos, e que pode servir como paradigma de toda intervenção analítica.

Levado adiante, esse raciocínio permite também reverter a afirmação de Chnaiderman: a escuta não só faz imagem do discurso como propicia que se faça discurso das imagens do inconsciente. Ao se quebrarem as fixações significativas, surge a possibilidade de que se rearranjem os fragmentos, permitindo novas aberturas de montagem que podem levar a várias enunciações originárias (a fórmula da fantasia que será construída na análise), que por sua vez podem novamente abrir possibilidades de se (re)fazer cenas, de recriá-las, colocando em movimento aquilo que se encontrava fossilizado, mortalmente imobilizado no sintoma.

O termo montagem que usamos acima é tomado emprestado da teoria cinematográfica. A montagem, recurso técnico e expressivo mais essencial à arte cinematográfica, oferece um interessante paralelo com a técnica psicanalítica. Um filme se faz pela junção de pedaços, fragmentos, fotogramas que são emparelhados de forma a estabelecer uma narrativa. A relação que será estabelecida entre esses fragmentos não é regida por qualquer princípio natural que regule e limite as possíveis junções. Ainda que a crença em um naturalismo e realismo narrativos tenha sido pressuposto de grande parte da produção cinematográfica desde seu início, diversos autores e realizadores apontaram o caráter de reinvenção do contínuo espaço-temporal que o cinema, por meio da montagem, comporta.

A narrativa é sobredeterminada pela concepção do cineasta e não pela “realidade objetiva” capturada pela câmera. Os fotogramas podem ser combinados, por exemplo, colocando-se lado a lado imagens de lugares geográfica e historicamente distantes, de forma a criar uma nova unidade intelectual, emotiva ou perceptual. Unidade que é mais que a mera soma das percepções dos fragmentos individuais e que se efetiva como tal apenas no momento de sua fruição pelo espectador de cinema. A cronologia linear de uma narrativa pode ser invertida ou embaralhada, o espaço físico representado na película pode estar distorcido por inúmeros recursos óticos, ou meramente pela seleção dos ângulos e quadros que serão mostrados. O close-up, a câmera lenta, a dupla exposição, entre outros recursos, constituem alterações na percepção do mundo, ou mesmo na construção de uma realidade, que servem a uma espécie de naturalismo de outra ordem. Promovem uma verossimilhança não a uma realidade objetiva concebida sob a lógica cartesiana, mas uma aproximação à verdade do inconsciente.

O grande cineasta russo Sergei Eisenstein, um dos primeiros, e até hoje um dos mais importantes teóricos da montagem, propunha que a verdadeira potencialidade criativa do cinema está em uma montagem que tenha por força motriz o conflito. O conflito entre diferentes campos sensoriais, diferentes estímulos nesses diversos campos, dentro do quadro e no âmbito da montagem, e mesmo o conflito ideológico contido na narrativa cinematográfica. Acerca de um pretenso realismo na montagem Eisenstein escreve: “a descrição não proporcional de um evento é organicamente natural para nós desde o início (...) O realismo absoluto não é de modo algum a forma correta de percepção. É simplesmente a função de uma determinada forma de estrutura social” (1990, p. 39). A linguagem do cinema parece aproximar-se mais da lógica do processo primário do que da lógica diurna, linear do processo secundário. Suas imagens guardam uma analogia estrutural com as imagens oníricas e as cenas da fantasia.

Tomando as idéias acima apresentadas como ponto de partida podemos propor o dispositivo analítico como uma espécie de sala de montagem, na qual analista e analisando tomam esses fotogramas alinhados pela neurose e põem-se a “quebrá-los”, recortá-los. Então, e ao mesmo tempo, busca-se deixar que uma nova montagem, uma re-montagem (cujo roteiro escreve-se simultaneamente ao fazer) se estabeleça. Sem objeto final pré-concebido, mas seguindo as aproximações que o próprio material aponta. Deve-se ressaltar que o resultado final não é uma narrativa linear bem estabelecida da história do sujeito, que lhe garantirá as respostas necessárias a uma existência ideal e livre de sofrimento. E muito menos que a narrativa sintomática que foi inicialmente trazida ao consultório, seja totalmente desintegrada, seu engodo desfeito de forma quase mágica. Talvez tudo o que essa remontagem possa atingir seja justamente colocar em foco, incluir no quadro a própria estrutura de montagem da cena com que se começou o trabalho. Apontar as linhas mestras de sua construção, expor o conflito que lhe dá forma, já é transformá-la um tanto.

Essa imagem pode informar um dos aspectos mais essenciais do trabalho psicanalítico, as interpretações e construções que são feitas sobre e na relação transferencial. É somente agindo sobre a transferência e a partir dela que o trabalho do analista abre possibilidades de atualização da montagem (remontagem) da narrativa da neurose.

Acreditamos ser essa uma boa aproximação do que seria o movimento pendular de uma análise ao qual nos referimos anteriormente, e também do que caracterizaria o trabalho do analista em tal movimento. Trabalho de despedaçamento e montagem que só se faz graças a esse fogo no teatro – ou na sala de projeção? – que estilhaça ele mesmo a cena e possibilita a criação de uma nova ficção, na qual espera-se que os significantes possam permanecer em movimento.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Pablo B.G. Barbosa
SQN 407 / bl. B / 302
70855-020 Brasília - DF
Tel.: +55-61 340-9401
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Tania Rivera
SHIS QI 23 / Chácara 16
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Recebido em 06/04/05
Versão revisada recebida em 17/08/05
Aprovado em 18/08/05

 

 

Notas

I Psicólogo e Mestrando em Psicologia Clínica (UnB).
II Psicanalista; Professora do Departamento de Psicologia Clínica (UnB); Doutora em Psicologia (Université Catholique de Louvain, Bélgica); Pesquisadora Bolsista do CNPq.
1 Freud já advertia, em Sobre o início do tratamento (1913), da resistência inicial de seus pacientes a deitarem-se no divã – resistência que era mais forte quanto mais central à sua neurose fosse a pulsão escópica.
2 Identificada por sua vez com a castração em uma equivalência simbólica em que “olhos” se emparelham com pênis. Essa equivalência ecoa o mito de Édipo em sua reconstrução psicanalítica, e é abordada em O estranho (Freud, 1919).
3 É claro que essa compreensão da memória diz respeito aos fragmentos de memória dos primeiros anos da infância, antes da inscrição efetiva do sujeito no campo da linguagem, operação que lhe permitiria estabelecer uma narrativa mais coesa e estável sobre sua própria história. Não se trata da memória operacional, ou de curto prazo, como a chamam as neurociências. Vale ressaltar, no entanto, que mesmo os neurologistas e os neuropsicólogos propõem que, por uma questão de otimização do armazenamento e da recuperação, dados de menor importância sejam apagados regularmente de nossa memória. Essas lacunas deixam espaço para a “falsificação” e alteração dos registros mnêmicos, mesmo após a idade adulta, o que apresenta uma interessante proximidade com as concepções freudianas sobre a memória e a noção de aprés-coup em relação às formações psíquicas. Sobre a perspectiva neurobiológica da consolidação da memória ver Dudai, 2004.