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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.17 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Delírio: contorno do real

 

Delusion: outlines of the real

 

 

Sonia Leite1

Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pode-se dizer que o ponto de origem do sujeito é o trauma. O trauma é um encontro com o Real na medida em que implica em um inassimilável. Se na neurose é a fantasia que faz suplência a esse impossível, na psicose é o delírio que tenta responder ao traumático inassimilável. No primeiro caso algo é simbolizado, compondo o aparelho psíquico, enquanto no segundo, o que se repete é a impossibilidade da assimilação de algo que diz respeito à ação do Outro sobre o corpo do sujeito. A partir da clínica, este trabalho destaca a falha no recalque originário, o aparecimento do delírio como tentativa de cura na psicose e de contorno do encontro com o Real como traumático.

Palavras-chave: Trauma, Fantasia, Delírio, Psicose, Real.


ABSTRACT

One can affirm that trauma is the starting point of subject. Trauma encounters the Real as far as it implies a non-assimilating factor. If fantasy, in neurosis, provides such impossibility, delusion in psychosis, is an effort to respond a non- assimilating trauma. In the first case, psychic system is symbolized constituting the mental apparatus whereas, in the second, there is the repetition of non-assimilation of something related to Other’s action on subjective body. From clinical experience, this paper tries to consider failure in original repression and the non establishment of fantasy in psychosis. It also highlights what Freud calls cure attempt in psychosis, meaning delusion production in order to outline traumatic Real.

Keywords: Trauma, Fantasy, Delusion, Psychosis, Real.


 

 

Ser psicanalista é simplesmente abrir os olhos para essa evidência de
que não há nada mais desbaratado que a realidade humana
(Lacan, 1955-56, p. 99).

 

Pode-se dizer que o ponto de origem do sujeito é o trauma. Encontro faltoso com o Outro, encontro com a falta real do objeto. O trauma é um encontro com o Real na medida em que implica um inassimilável para o sujeito. Se na neurose é a fantasia que faz suplência a esse impossível, na psicose, é o delírio que tenta responder ao traumático inassimilável. No primeiro caso algo é simbolizado, compondo o aparelho psíquico, enquanto no segundo, o que se repete é a impossibilidade da assimilação de algo que diz respeito à ação do Outro sobre o corpo do sujeito. Daí advém a experiência de total exterioridade do delírio do sujeito psicótico.

A partir da experiência clínica, este trabalho pretende tecer reflexões sobre o trauma em Freud e Lacan, a questão da falha no recalque originário e a não instauração da fantasia na psicose, destacando o que Freud denomina tentativa de cura na psicose, isto é, a produção delirante como tentativa de contorno do encontro com o Real traumático.

 

Com Rosana

– “Eu vi a coisa horrível!”.

Assim Rosana começa a sessão, relatando o inabordável que permeia cotidianamente sua vida. E prossegue:

“Quando ele (o ator Marcos Paulo) começa a acionar os meus ouvidos, tenho a impressão de que vou morrer e deito na cama. Este estrondo no meu ouvido é perigoso... outro dia caí na rua... Ele dá gritos estrondosos e de maneira estúpida e violenta nos meus ouvidos. Ele me tortura com esses gritos e falatórios”.

Quando as vozes são fortes demais, não consegue sair de casa, fica paralisada, tem medo de morrer. Esse encontro violento repete-se várias vezes por semana.

Como nos sonhos dos neuróticos de guerra, relatados por Freud no texto de 1920, Além do princípio do prazer, algo de inassimilável retorna para Rosana, só que nesse caso, não como nos sonhos – isto é, não como algo que seja da ordem da subjetividade –, mas pelos fios de eletricidade da rua que atingem seus ouvidos. Ou seja, como algo totalmente externo a ela. Nesse momento, ao deparar-se com o que denomina a coisa horrível, ela, literalmente perde o sentido.

As crises de Rosana tiveram início na adolescência, momento de assunção da vida sexual e social. Lembra-se de que quando começou a sair sozinha costumavam ocorrer o que ela denomina episódios de apagamento, que a levavam a se perder pelas ruas, precisando que um de seus pais fosse buscá-la.

Antes de se formar professora, todo movimento de Rosana para fora do ambiente familiar era permeado de ameaças, sustos, perigos – tudo apontando para uma impossibilidade. O pai teme a violência nas ruas, os crimes; a mãe teme a prostituição, o sexo sem limites.

Aos vinte anos formou-se professora, e ao ter que assumir sua primeira turma diz ter sido tomada por um grande temor, uma angústia em relação à possibilidade de ensinar aos alunos. Ia, enfim, ocupar um lugar definido, trabalhar, ser independente, e muitas expectativas convergiam. Como se posicionar? Nesse momento o impossível aí se corporifica, na função social que é chamada a ocupar. O momento da eclosão da psicose é exatamente aquele em que o sujeito é chamado a responder ali onde não pode.

 

Com Freud e Lacan

Pensar a questão do trauma na obra freudiana coloca-nos diante da importância do chamado ponto de vista econômico na estruturação do psiquismo. Desde o Projeto (1950[1895]), Freud destacara o papel decisivo da presença de quantidades excessivas de excitação, que podem conduzir o aparelho psíquico à vivência de desamparo, configurando-se uma experiência de cunho traumático. Tais experiências devem sua força patogênica ao fato de produzirem quantidades de excitação que não são passíveis de processamento pelo aparelho psíquico.

Já no Projeto Freud identifica, a partir do princípio da inércia, uma tendência originária, segundo a qual os neurônios visam o nível zero de estimulação. Mais adiante supõe que o sistema neuronal é forçado a abandonar essa tendência devido à ocorrência de uma modificação em seu modo de funcionamento, que passa a ser regido pelo princípio da constância, base da teoria econômica freudiana.

Esses pontos colocam-nos diretamente em contato com aquilo que Freud considera a própria função do aparelho psíquico – a homeostase do sistema. É o encontro com o Outro, em suas diferentes encarnações, que possibilitará ao organismo a criação de formas complexas de funcionamento, que se constituem à medida que aquele corpo torna-se erogeneizado, isto é, marcado pelo prazer-desprazer.

No capítulo VII d’ A interpretação dos sonhos (1900), Freud desenvolve a hipótese de um aparelho psíquico primitivo, cujo trabalho é regulado pela tendência a evitar a acumulação de excitação. Esse princípio do prazer-desprazer é caracterizado pelo escoamento livre das quantidades de excitação, sendo regulador do funcionamento psíquico inconsciente. Nesse período, Freud nomeou de Pcs o sistema que tem a função de inibir o livre escoamento, utilizando-se, para tanto, das representações de palavra. Essas questões serão retomadas mais tarde, em 1911, a partir de uma discussão sobre os dois modos de funcionamento mental – o princípio do prazer e o princípio da realidade.

Nesse trabalho, Freud considera o princípio do prazer como a tendência a manter a zero a quantidade de excitação no aparelho psíquico, e o segundo, isto é, o princípio da realidade, como a tendência a mantê-la constante, a partir de investimentos representativos mais estáveis. Indica a existência de uma tendência econômica geral de apego às fontes de prazer primárias, e de uma dificuldade para renunciarmos a elas. Trata-se, também, de um estudo sobre a importância da fantasia como suporte do desejo, isto é, como estratégia psíquica para que o sujeito suporte a realidade faltosa. O texto em questão revela que a fantasia expressa, em última instância, a insatisfação inerente à pulsão sexual e à insistência do desejo sexual.

Como afirma Jorge (2003), esse trabalho vem completar um extenso período de reflexão em torno do tema, que se inicia em 1907. Chama a atenção para o fato de que é somente ao cabo desse processo que Freud consegue extrair a complexa lógica inerente ao delírio na psicose, publicando, também em 1911, o caso Schreber.

No capítulo III do artigo, Freud desenvolve a idéia de que o delírio é uma tentativa de reconstrução após a catásfrofe, após o momento de eclosão da psicose propriamente dita. Faz, assim, uma importante distinção entre delírio e psicose.

O delírio não é, portanto, a psicose, mas uma tentativa de cura desta – tentativa de restabelecimento das relações libidinais com os objetos anteriormente abandonados. É também um modo de expressão do apego e afirmação da força das fontes de prazer primário.

Podemos considerar que o delírio apresenta-se, portanto, como tentativa de recobrir um fosso, que a expressão freudiana fantasia de fim de mundo tenta ilustrar. Sabemos que os casos mais graves de psicose, as chamadas esquizofrenias, constituem-se também nos casos mais difíceis de abordar analiticamente, pois o total retraimento da libido em direção ao eu impediria, em princípio, o estabelecimento da transferência. Já nos casos em que o delírio apresenta-se de forma mais sistematizada é possível a escuta analítica do fragmento de verdade aí presente, viabilizando-se a reconstrução histórica do sujeito.

Somente em 1920, no texto Além do princípio do prazer, Freud refere-se claramente ao princípio da constância como o fundamento econômico do princípio do prazer, e da possibilidade de sua transformação em princípio da realidade. Este último aponta para o reconhecimento da realidade como faltosa e tem como efeito a constituição da fantasia, pois a realidade como tal é em si mesma incognoscível, sendo necessário recobri-la com aquilo que é da ordem psíquica.

Nesse texto, porém, Freud mantém ainda uma certa contradição ao considerar como equivalentes a tendência para a redução absoluta e a tendência para a constância. Apenas em 1924, no artigo O problema econômico do masoquismo, é que ele faz uma clara distinção entre as duas abordagens, apontando que a tendência à constância é o que fundamenta a pulsão de vida regida pelo princípio do prazer, enquanto a tendência à redução absoluta seria regida pelo princípio do nirvana, substrato da pulsão de morte.

Não é, no entanto, o fato da morte do ser vivo que leva Freud a considerar a idéia da pulsão de morte, mas sua observação que algo coage o homem a sair dos limites da vida. Algo, portanto, além do princípio do prazer, que reconduz o homem ao estado de desamparo inicial, que tem como protótipo o trauma do nascimento.

Ao introduzir a noção de pulsão de morte, Freud dá à noção de pulsão seu verdadeiro estatuto – de pressão na direção de uma satisfação absoluta, nomeada por Lacan de gozo.

Isto significa considerar que a experiência traumática relaciona-se diretamente com a incapacidade do aparelho psíquico fazer vigorar o princípio da constância, sendo obrigado, em função de um excesso de estímulos, a tender ao nível zero, ou seja, a uma descarga excessiva, visando livrar o aparelho da situação desagregadora.

Lacan (1964), no Seminário 11, a partir da leitura do texto freudiano Além do princípio do prazer, vai diferencia dois modos de repetição: tiquê e autômaton. O primeiro refere-se à repetição como encontro do real, o qual está para além do autômaton, do retorno, isto é, da volta comandada pelo princípio do prazer.

Na origem da psicanálise, com a idéia de trauma, Freud inscreve tiquê como princípio, isto é, o real como inassimilável – que se opõe ao princípio do prazer e da realidade –, insistência que reaparece com o rosto desvelado e precisa ser tamponado pela homeostase subjetivante.

É interessante ressaltarmos que é no mesmo ano de 1924, quando estabelece de fato a diferença entre princípio do nirvana e principio do prazer, que Freud publica os dois importantes estudos sobre as estruturas neurótica e psicótica. O trabalho intitulado A perda da realidade na neurose e na psicose (1924), escrito três meses depois de Neurose e psicose (1924[1923]), visa retificar a idéia de que somente na psicose haveria perda da realidade. Considera que “a neurose e a psicose diferem uma da outra muito mais em sua primeira reação introdutória do que na tentativa de reparação que se segue” (1924, p. 231).

O que se destaca é a diferença entre uma estrutura e outra não se estabelecer devido ao fato da perda da realidade, já que esta é comum a ambas. A diferença estrutural verifica-se em função dos diferentes tempos míticos em que essa perda se estabelece, definindo a partir daí sua radicalidade e as possibilidades estratégicas de recompô-la.

A neurose propriamente dita diz respeito ao afrouxamento da relação com a realidade, que ocorre em um segundo tempo devido ao fracasso do recalcamento, e a fantasia é o que se constitui como suplência capaz de recobrir o impossível na relação com o objeto. Freud demonstra que a perda da realidade diz respeito àquele fragmento de realidade relacionado ao objeto de desejo, sendo a neurose exatamente esse segundo tempo, do retorno do recalcado e da constituição da fantasia, revelador do fracasso na aceitação da realidade faltosa.

Já a psicose define-se em um primeiro tempo mítico, quando ocorre a perda da realidade, a qual apresenta a radicalidade de um repúdio, de uma foraclusão, como ensina Lacan. O segundo tempo da psicose também comporta o caráter de uma reparação, como na neurose, e o delírio é como uma peça posta no lugar de uma rasgadura que se produziu na relação do eu com o mundo.

Freud conclui que a diferença no tempo primordial de uma e outra tem efeitos na produção do desfecho; no caso de uma psicose a reparação comporta também o aspecto de uma radicalidade, pois o psicótico tenta colocar seu mundo imaginário no lugar da realidade faltosa; enquanto na neurose o mundo imaginário, assim como o brinquedo da criança, liga-se a um fragmento da realidade, emprestando-lhe um significado simbólico.

Estas questões podem ser abordadas, tendo-se em vista a questão da teoria freudiana do recalcamento, em três tempos (Freud, 1915). O primeiro tempo, presumido, pois logicamente necessário, é nomeado de recalque originário e produz o que Freud denomina uma fixação. Este tempo primordial, denominado juízo de atribuição, é um tempo mítico de admissão prévia – Bejahung –, que possibilita a assunção de um corpo de significantes transmitido pelo Outro.

Para que ocorra o segundo tempo – o recalque propriamente dito –, é preciso que se conjuguem os efeitos de atração do que foi anteriormente recalcado e da repulsa, que a partir do consciente, atua sobre o que deve ser recalcado. Para que esse momento se efetive é necessário que já tenha entrado em ação o chamado juízo de existência. O juízo de existência é o que vai determinar, do ponto de vista daquele sujeito, um dentro e um fora, assim como todas as antinomias conjugadas a partir de uma mesma matriz inicial, representada pelo primeiro corpo de significantes. É apenas em um terceiro tempo que se pode falar de conflito e sintoma neurótico: trata-se do retorno do recalcado.

Na neurose, a fantasia, como efeito do recalque originário, é o que possibilita ao sujeito fazer face ao real traumático, sustentando em seu lugar uma relação de desejo com o objeto faltoso (Jorge, 2003). O que era furo real torna-se borda, zona erógena, atravessada pela palavra e pela imagem com a qual o sujeito pode se haver.

Na psicose supõe-se um estilhaçamento do recalcamento originário, o qual constituiria, em um primeiríssimo tempo lógico, o corolário da delimitação do universo do discurso e também da disjunção dos sistemas psíquicos.

O mecanismo da psicose – Verwerfung – nomeado por Lacan (1955-56) de foraclusão, significa a falha desta Bejahung inicial, ocorrendo a rejeição de um significante primordial nas trevas exteriores, de onde eventualmente retornará. Nesta perspectiva, a projeção na psicose é o mecanismo de fazer retornar de fora aquilo que foi excluído da simbolização geral estruturante do sujeito.

 

Finalizando com Rosana

Podemos considerar que Rosana, saindo pelas ruas, perde o sentido porque vive a ausência de uma via principal, como Lacan nomeia o significante fálico primordial, ou seja, aquele que como uma avenida em uma grande cidade possibilita a todas as outras vias assumirem um sentido. É esta ausência que é vivenciada repetidamente como um encontro com a coisa horrível, como afirma; com o non-sense da sua existência.

Trata-se de uma falha radical na estruturação do Édipo, que vai impossibilitar uma tomada de posição diante do significante fálico e dos amores, que em substituição aos primeiros objetos, possam inscrever-se na vida do sujeito. Diante dessa total impossibilidade, o que reaparece no delírio é a história de um crime de que ela se sente vítima; crime este que em sua expressão impede o sexo, visto que, como afirma Lacan: “a realização da posição sexual no ser humano está ligada (...) à prova da travessia de uma relação fundamentalmente simbolizada, a do Édipo, que comporta uma posição que aliena o sujeito, isto é, o faz desejar o objeto de um outro, e possuí-lo por procuração de um outro” (Lacan, 1955-56, p. 203).

O crime é a palavra-chave nesse discurso delirante, cuja significação tem a prioridade de remeter a algo inefável, irredutível – é o elemento que retorna insistentemente de fora, sob a forma de injúria.

São as moedas de desejo do Outro que são transmitidas e apropriadas, possibilitando a chamada constituição do sujeito. Lacan (1957-58) considera que alguns destes signos são signos constitutivos, através dos quais a criação do valor é assegurada; esse algo do real que é implicado a todo instante nessa economia é atingido pela bala que faz dele um signo.

Quando se trata da fantasia inconsciente, esta é desde sempre dominada, estruturada pelas condições do significante, pois o discurso inconsciente estrutura-se à medida que sua mola última não é outra coisa senão o desejo de reconhecimento do sujeito. Já o delírio impõe ao sujeito uma significação impossível de ser simbolizada, e por isso retorna do mundo externo.

E assim, afirma Rosana: “Eles querem impedir o sexo... por isso fiquei solteira... eles me vigiam para ver o sexo e não me deixam encontrar os estrangeiros...”. Em um outro momento, indaga: “Existe alguma anestesia pra fazer sexo sem dor?”.

O que se explicita aqui é uma impossibilidade de encontro com o sexual, cuja face real se sobrepõe, tornando-se algo inabordável pelo sujeito. O encontro com o objeto torna-se encontro com das Ding, a coisa horrível, como afirma Rosana, pois o que se presentifica é a ausência total de palavra e de imagem, o que vem a impossibilitar a experiência sexual.

Em um certo período de seu tratamento traz revistas com cenas explícitas de relações sexuais, verdadeiros manuais de posições, com os órgãos sexuais expostos. Dizia, aos gritos: “Isto é um horror, isto não pode ser sexo. Isto eu não quero, prefiro ficar solteira, porque isto não tem beleza, nem poesia...”.

Lacan considerará enigmaticamente que não há outro trauma do nascimento do que nascer desejado. Considera a seguir que desejado ou não, dá no mesmo... Esta afirmação coloca-nos diante do paradoxo humano, que é a presença irreversível do trauma, na medida em que ele aponta para a presença de um mal entendido fundamental atrelado à origem do sujeito, visto que ele faz parte de uma linhagem em que já vigora o mal entendido, isto é, o inconsciente estruturado como linguagem.

É por isso que a inserção da criança em uma dimensão histórica é um processo fundamental para que o sujeito possa ser reconhecido como elo, vindo a se inserir em uma cadeia significante. É este primeiro corpo de significantes que vem recobrir o non-sense original, favorecendo uma primeira identificação imaginária e permitindo um primeiro dom libidinal. Aqui se introduz um além da relação mãe-filho, possibilitando o acesso do sujeito ao circuito simbólico.

A entrada do sujeito no mundo humano diz respeito, portanto, à possibilidade dele se apropriar das condições que lhe são impostas, de tal forma que elas se apresentem como se fossem feitas para ele, isto é, encontrando os meios de se satisfazer com elas e por meio delas. É este fato que possibilitará a construção de um mito individual a partir dos significantes herdados, matéria prima para a construção de algumas respostas para o enigma da existência.

Quando se trata da verdade, a psicanálise nos ensina que no campo do sujeito, esta é sempre da ordem da ficção – a característica do prazer, como dimensão do que encadeia o homem, encontra-se totalmente no lado do fictício. O fictício, efetivamente, não é por essência o que é falso, mas o que se denomina de simbólico. Neste sentido, o homem está sempre em busca do retorno de um signo, e a questão que se coloca é a da distância entre o prazer esperado, imaginado, e o prazer possível, realizável.

De qualquer modo, a vida não é um sonho, como indica Lacan (1964). E é exatamente por isso que é preciso sonhar, fantasiar e também delirar, quando ao sujeito não restar outro recurso. Delírio como tentativa de cura, como afirma Freud; delírio, como tentativa de contorno do Real.

 

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Endereço para correspondência
Sonia Leite
Rua Conde de Bonfim, 289/702 – Tijuca
20520-051 Rio de Janeiro - RJ
Tel.: +55-21 2264-8819
E-mail: soniacleite@uol.com.br

Recebido em 08/07/05
Versão revisada recebida em 14/09/05
Aprovado em 21/09/05

 

 

1 Psicanalista; Membro do Corpo Freudiano do RJ; Doutora em Psicologia Clínica (PUCRJ); Coordenadora do Estágio em Psicanálise e Saúde Mental do IASERJ (Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro).