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versión impresa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.17 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Assinalando tempos, contornando espaços: sexualidade e metapsicologia em Winnicott

 

Signalizing times, surrounding spaces: sexuality and metapsychology in Winnicott

 

 

Janete Frochtengarten1

Instituto Sedes Sapientiae. Departamento de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A metapsicologia e a sexualidade na teorização de Winnicott tem despertado, cada uma por si, pontos de vista bastante diferentes entre os estudiosos. Neste trabalho, através de um percurso por alguns aspectos da obra desse autor, realiza-se uma proposta de articulação entre metapsicologia (pensada em seus aspectos de espaço e tempo) e sexualidade. Também ficam propostas linhas possíveis para a continuidade da reflexão sobre o tema.

Palavras-chave: Integração, Personalização, Elaboração imaginativa, Colapso, Relação de ego.


ABSTRACT

Metapsychology and sexuality in Winnicott’s theorization, each one by itself, urged on quite different points of view among experts. In this paper, through a course by some aspects of the author’s work, there was worked out a proposal of a linkage between metapsychology (as in space and time aspects) and sexuality. It was also pointed to possible paths for continuity on reflexion about the theme.

Keywords: Integration, Personalization, Imaginative elaboration, Breakdown, Ego-relatedness.


 

 

Comecemos com o que nos fundamenta, deixando registrado, como referência a permanecer presente, a definição de Metapsicologia,

termo criado por Freud para designar a psicologia que fundou, considerada em sua dimensão mais teórica. A metapsicologia elabora um conjunto de modelos conceituais mais ou menos distantes da experiência, como a ficção de um aparelho psíquico dividido em instâncias, a teoria das pulsões etc. A metapsicologia toma em consideração três pontos de vista: dinâmico, tópico e econômico (Laplanche e Pontalis, 1970, p. 361).

“Elaboração” e “ficção” – uma dupla que marca a produtiva tensão entre, por um lado, um trabalho rigoroso de abstração, que vai além da experiência clínica, e um imaginário/ficcional que fornece matéria prima para este trabalho. Basta-nos evocar, entre tantos, a pulsão, caracterizada como uma fantasia mitológica, e o sistema de lentes, do qual Freud lança mão para teorizar a memória e o sonho, para formularmos a relação de metapsicologia e fantasia como a de duas vertentes de um mesmo processo (Mezan, 1995).

Toda vez que lidamos com as origens – origem do pensar humano, origens do existir humano – estaremos nesse universo, em um universo de construções no qual Freud evocava nada mais nada menos do que uma feiticeira! A feiticeira metapsicologia. E para além das considerações sobre a metapsicologia, ou através destas, somos lançados em plena complexidade de nosso campo de trabalho, que desde sua conceitualização é rebelde, recusando-se a caber em uma única modalidade do pensar e em um único enfoque teorizante.

Todas as teorizações têm seus restos, resíduos daquilo pelo qual se interessou e do que pôde abranger, e resíduos do que não pôde – toda teorização tem as entrelinhas, os choques entre as linhas, as contradições. É justamente porque a obra de Freud nos legou, entre tantas incomensuráveis riquezas, instigantes restos produtores, é que continuamos a trabalhar, nela e com ela. Caso contrário, caso a metapsicologia não fosse esta propulsão à criação, caso ela fosse um sistema bem acabado de lógicas irrefutáveis, estaríamos em nosso dia-a-dia na clínica a reproduzir, vezes e vezes, uma técnica extraída de uma teoria e... só!

Este enfoque está diretamente relacionado com minha forma de pensar e questionar a questão da sexualidade em Winnicott, e é a razão de eu prosseguir pesquisando. Este escrito corresponde às minhas elaborações e perplexidades neste momento.

Winnicott: podemos estudá-lo, eu diria, sem restos. E aí, até bem ancorados em alguns de seus textos e cartas, afirmar que ele era avesso à metapsicologia, e que para ele a sexualidade é secundária, na medida em que ocorre com posterioridade ao ser, à garantia da continuidade da própria existência. “Após ser – fazer e deixar-se fazer” (Winnicott, 1975, p. 120) é, de fato, uma formulação de evocada, com razão, para marcar a anterioridade do ser face ao pulsional e aos investimentos objetais. Em uma carta para Anna Freud, encontramos uma declaração dele de que tem um modo irritante de dizer as coisas a seu próprio modo, em vez de aprender a usar os termos da metapsicologia.

Mas aí é que entra a outra possibilidade de leitura de Winnicott, que é a de cotejar afirmações que ele faz em diferentes momentos de sua obra, prezar as brechas, as lacunas, e considerar que ele, como outros, adota por vezes estratégias para poder pensar – estratégias de construção teórica. Assim, para enfatizar algo novo que está introduzindo, a questão das necessidades psíquicas, o autor deixa um outro aspecto, o da pulsão sexual, para um segundo plano ou um segundo tempo. O próprio Winnicott adverte para classificações que não devem ser encaradas demasiadamente a sério e para o artificialismo de seqüências temporais. Em uma nota de rodapé de um texto de 1960, encontramos: “lembrete: para enfocar o estado real inicial de dependência do bebê, separo-o das relações de objeto e da gratificação pulsional, limitando artificialmente a minha atenção às necessidades corporais de tipo geral” (Winnicott, 1982, p. 48).

Ou ainda, em outro texto, ao discorrer sobre o que ele considera ser a etapa de aquisição de integração, a posição depressiva, diz: “não é necessário determinar uma idade exata; talvez alguns bebês atinjam um momento de conquista da posição depressiva antes dos seis meses, talvez até bem antes disto” (1982, p. 439).

Cito esses fragmentos para inscrever meu lembrete: que as divisões e a cronologia, embora presentes em Winnicott, não abarcam tudo, e é preciso matizá-las, relativizá-las.

Nestas outras possibilidades de leitura, então, a questão temporal, do que vem antes do que, não indica tudo, e sobretudo não indica necessariamente a sexualidade como secundária em importância.

Ainda há mais uma coisa a considerar: uma obra percorre, ao longo de sua feitura, caminhos que ultrapassam ela própria e suas intenções expressas, e é por aí, percorrendo os caminhos que chamo de desviantes em relação aos propósitos manifestos, que é possível extrair elementos do que chamamos de uma metapsicologia. Assim, Winnicott utiliza, sim, a despeito de sua declaração, termos da metapsicologia – o que seria Id, Ego, Inconsciente, repressão, dissociação, senão termos oriundos da metapsicologia? Ele diz que não aprendeu, mas penso que aprendeu, e até gostou um tanto, pois denominou um de seus escritos de Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no setting analítico (Winnicott, 1978, p. 459).

Para entrar na questão da sexualidade metapsicologicamente problematizada, é preciso abordar a questão, essencial em Winnicott, de espaço e de tempo. Para tanto, vou circular pelo pensamento do autor, especificamente na abordagem que faz dos primeiros tempos de vida de um bebê, do nascimento até aproximadamente os seis meses de idade. No percurso assim realizado considerarei, em íntima imbricação, as questões de tempo, espaço e sexualidade.

Para Winnicott, o bebê, o recém-nascido, não habita em si mesmo, pois ainda não há um si mesmo. Não há sequer um corpo vivido como corpo próprio. O pediatra Winnicott contribui aqui de uma forma muito singular, na medida em que seu olhar traz para o centro da teorização psicanalítica o corpo como sensorialidade, como movimentos corporais, como vibrações de prazer pelo seu próprio funcionamento. Diz Winnicott: “o bebê tem: uma constituição, tendências inatas de desenvolvimento, motilidade e sensibilidade e pulsões, que por sua vez fazem parte da tendência ao desenvolvimento, com mudanças na dominância de zonas” (1978, p. 495). Escutamos aqui o “corpo das pulsões” e o corpo da sensibilidade e da motilidade, o representacional, mas também o experiencial. E escutamos, com isto, que uma das dificuldades de trabalhar Winnicott, de pesquisá-lo, é transitar entre, respeitando o assinalamento dos dois pelo autor.

Bem, o bebê inatamente possui essas possibilidades. Mas são, sobretudo, potencialidades que podem ou não se atualizar, efetivar-se. Do que dependeriam as tendências para resultar em um bom desenvolvimento, um desenvolvimento não patológico? Dependem da qualidade de presença da mãe, do ambiente, da chamada preocupação materna primária, particular, singular, única para cada bebê. Para Winnicott, há por parte do bebê uma dependência absoluta, a demandar uma atenção muito ajustada. Não há tal coisa como um bebê, diz Winnicott, de diferentes formas ao longo de todos seus escritos. Há um espaço só, único, que é o espaço mãe-bebê. É a mãe, identificada com o bebê, que ao segurar, ao manejar, ao alimentar, vai apresentando o bebê a si próprio e ao mundo. Falar de mãe suficientemente boa não é postular que é o amor materno quem cria uma criança, pois isto seria deslizar para uma psicologização, e até mesmo para um sentimentalismo teoricamente oco. Nem é supor uma mãe confundida com o bebê. É, sim, postular uma mãe que também suporte, sustente o ganho crescente de autonomia do bebê, e que saiba e queira ir retirando aos poucos seu ajustamento a ele.

Em Winnicott, a concepção dos primeiros tempos de vida tem como característica o predomínio da suavidade, do gradativo no percurso da criação de um espaço ao longo de um tempo. Esta concepção é incompatível com o acontecimento pulsional desde os primórdios, uma vez que o movimento pulsional é sempre excessivo, irruptivo? Discutiremos isto mais adiante.

Por ora, pensemos em termos de espaço, de duas lógicas em presença: a lógica do espaço do ambiente materno e a lógica do espaço do desenvolvimento do bebê. Esquematicamente podemos dizer que quando as coisas decorrem de uma maneira satisfatória, a lógica do espaço materno apóia-se sobre o reconhecimento da existência de um espaço que pertence ao bebê. É por isso que falamos da mãe identificada com o bebê e não da mãe confundida com o bebê, sobreposta ao espaço do bebê. É próprio do espaço materno adaptar-se ao espaço do bebê, “enquanto este não puder distinguir o espaço que o contém daquele que é o seu próprio espaço” (Macedo, 1999, p. 27). Para que o bebê possa dispor do espaço que irá contendo suas sensações, seu funcionamento somático e suas pulsões, é preciso que ele esteja em um lugar físico-psíquico que o tenha contido.

Da dependência absoluta, nas boas condições, a criança evolui para a dependência relativa e para a independência, esta jamais absoluta. Neste complexo trajeto, Winnicott mapeia três realizações principais: integração, a partir da não-integração inicial, personalização e início de relações objetais. Vou abordar apenas as duas primeiras, lembrando que estas realizações não são necessariamente consecutivas – são interdependentes.

Winnicott afirma que o bebê vive estados diferentes, estados de calma e de excitação, e que a princípio ele não tem consciência de ser o mesmo quando usufrui de um banho e quando grita desconfortável, esfomeado, e também não tem consciência de ser o mesmo quando está dormindo e quando está acordado. E quando assim está posto, o que está posto é que há uma progressiva construção deste existir em continuidade consigo mesmo. A continuidade é um pensamento norteador para Winnicott. Ele considera que:

a base para todas as teorias sobre o desenvolvimento humano é a continuidade da linha de vida que, presumivelmente, se inicia antes do nascimento real, continuidade esta que traz consigo a idéia de que nada do que foi parte da experiência do indivíduo é ou pode ser, em qualquer época, perdido para este indivíduo, mesmo que, de formas muito variadas e complexas, se torne não disponível à consciência (1994, p. 79).

Quando Winnicott fala em integração, pensa particularmente na integração do ego. A integração tem como fundamento esta continuidade da linha de vida, garantida pelos cuidados em sua constância, em sua monotonia previsível. É a experiência vivida do continuar a ser que vai conduzindo em direção a um estatuto unitário, a uma individualidade – no contexto específico do holding, do suporte para o ego imaturo do bebê, em uma relação, que Winnicott denomina de “relação de ego” com a mãe. Esta relação dá-se assim: o bebê, como vimos, não permanece o mesmo em relação a si próprio ao longo das horas de um dia; a mãe tem um ego integrado, de forma tal a fazê-la permanecer idêntica a si mesma nas mais diversas circunstâncias; ela dispõe desse ego, colocando-o a serviço do bebê. Ela é o ego-auxiliar do bebê, e do ponto de vista do bebê é seu próprio ego.

Personalização é o termo utilizado por Winnicott para descrever a trama, a amarração psicossomática, ou a “psique residindo no soma”. É a segunda das realizações que mencionei. A base para este “residir” é a progressiva vinculação das experiências motoras, sensoriais e funcionais do bebê, com o estado de “estar sendo”. Intimamente ligada a este estado de criação de unidade, a existência psicossomática do bebê vai adquirindo forma, na medida em que a mãe vai protegendo contra as agressões, respeitando a sensibilidade auditiva, visual e a às mudanças de posição do corpo.

Mais do que a pediatria, o trabalho com psicóticos revelou a Winnicott o quanto integração e personalização são aquisições que podem ocorrer ou não. Um psicótico não vive o seu corpo como seu, podendo inclusive senti-lo como uma máquina alheia a si, que ele, em contínua tensão, precisa dirigir. A trama psicossomática, o sentir-se na morada do corpo próprio é, então, também uma conquista, fruto de um processo em um espaço e em um tempo.

É preciso agora lembrar que a mãe-ambiente é uma pessoa, uma pessoa viva, não mecanizada ou indiferente mas, diz Winnicott, a mãe sabe que deve adiar seus impulsos até o momento em que a criança esteja em condições de utilizar, de forma positiva, a existência separada dela. Esta qualidade de vida da mãe, que implica em adiamento de impulsos, será posta em questão no final deste escrito.

Na contramão destes delicados cuidados pró-integração, temos a questão das invasões traumáticas. Vamos a elas. Em virtude da falta de apoio egóico, ou da ausência de proteção, o ambiente se impõe ao bebê de modo tal, que o bebê é obrigado a reagir. O ambiente, ao invés de estar a serviço do bebê, zelando pelo seu espaço, violenta-o de algum modo, levando-o a ter que se auto-proteger da forma que lhe for possível, e interrompendo, assim, a continuidade adaptativa que lhe é essencial. Exemplifiquemos com alguns tipos de invasão: ruídos altos, falta de apoio para a cabeça, mudanças repentinas de técnica de manejo, e abandono por um tempo maior que o tolerável. Um acúmulo de invasões traumáticas na etapa da dependência absoluta pode pôr em risco a estabilidade psíquica do bebê. É nesse contexto que Winnicott define o trauma: o trauma é uma invasão do ambiente, e é principalmente a reação que o bebê é obrigado a realizar.

No início da vida os traumatismos recorrentes, que não permitem uma recuperação seguida de longo período de estabilidade, geram o que Winnicott chama de ameaça de aniquilamento, uma ameaça que é tingida por angústias impensáveis, que são angústias de despedaçar-se, de sentir-se caindo para sempre, de não ter relação com o próprio corpo e de estar em isolamento total, com perda dos suprimentos do ambiente. Frente a essas angústias restam possibilidades drásticas de defesa: despersonalização, retraimentos autistas, desintegração.

Vimos toda a delicadeza, toda a consideração, em termos de tempo e de espaço, para que o bebê se integre e participe com atividade própria do mundo ao seu redor, e toda a atenção para a evitação de traumas desestruturantes, para a proteção contra a imprevisibilidade.

Agora, vamos para o âmbito da sexualidade. Winnicott explicita o reconhecimento da importância da sexualidade infantil do ponto de vista freudiano. Ele assim escreve.

quase todos os aspectos do relacionamento entre pessoas totais foram abordados pelo próprio Freud. Freud fez por nós toda a parte desagradável do trabalho, apontando para a realidade e a força do inconsciente, para a dor, para a angústia e para o conflito que se encontram na raiz da formação de sintomas, anunciando a importância das pulsões e do caráter significativo da sexualidade infantil. Qualquer teoria que negue ou ignore estas questões é inútil (1990, p. 54).

E no âmbito da sexualidade infantil, as configurações pré-edípica e edípica, bem como as mudanças no predomínio das zonas erógenas são por ele inequivocamente endossadas, clínica e teoricamente.

Mas como é, para Winnicott, a incidência da sexualidade nos primórdios, nos tempos sutis da construção da integração, da construção de uma pessoa como uma totalidade? Ele nos fala:

deve-se ressaltar que ao me referir a satisfazer as necessidades do bebê, não estou me referindo à satisfação pulsional. Na área que estou examinando, as pulsões não estão ainda claramente definidas como internas ao bebê. As pulsões podem ser tão externas como o ruído de um trovão ou uma pancada. O ego do bebê está criando forças e, como conseqüência, está a caminho de um estado no qual as experiências do Id serão sentidas como parte de si próprio, não como ambientais. As excitações do Id podem ser traumáticas quando o ego ainda não é capaz de incorporá-las (1978, p. 498).

Winnicott faz esta equivalência:

• quando há maturidade do ego, quando há integração, as pulsões contribuem, enriquecendo a personalidade;

• enquanto há imaturidade do ego, enquanto predomina a não-integração, as pulsões produzem traumas.

Se a sexualidade é traumática, como ela vai integrando-se à vida psíquica nos tempos iniciais, sem causar severas distorções? Se a continuidade do ser é essencial e o pulsional é traumático – e um traumático necessariamente recorrente, por seu inerente caráter de imprevisibilidade – então a sexualidade aniquilaria, colocaria em risco a integridade do uno, do indivíduo?

Vou desenvolver dois encaminhamentos para esta indagação. Um deles é mais linear, despojado das sinuosidades do que chamei de restos, de choques entre colocações diversas, e um segundo mais inquieto, mais questionador.

Embora Winnicott tenha um olhar e uma escuta muito sensíveis para com o corpo real, ele não se refere a uma pura experiência física; qualquer experiência é ao mesmo tempo física e não-física. As idéias acompanham e enriquecem a experiência do corpo, e por sua vez o funcionamento do corpo acompanha e torna vivo o pensamento. Esta é, como Winnicott a considerava, sua teoria sobre a fantasia, que ele denomina de “elaboração imaginativa da função”. E exemplifica: quando o bebê coloca o dedo na boca, não é apenas polegar-na-boca; imaginativamente o polegar representa todos os outros objetos, que são reunidos e colocados em contato com a boca.

Esta teoria é uma alavanca para se pensar a passagem do pulsional/ inato para o pulsional incorporado ao mundo psíquico do bebê. Usando-a, podese conceber um espaço no qual as pulsões vão sendo imaginarizadas, e a partir disto, poderão ser reconhecidas como existentes, como próprias.

Este, em resumo, é o primeiro encaminhamento que mencionei. Por esta via, é como se o pulsional fosse chegando aos poucos, na medida do bebê, das possibilidades de elaboração do seu psiquismo em desenvolvimento. É no tempo e na medida da construção de um universo de fantasias que as pulsões, apesar de “trovões”, poderiam não ser vividas como traumatizantes.

Há também uma outra condição na qual o movimento pulsional pode não incidir traumaticamente. Em um texto de grande importância e beleza, A capacidade de estar só, Winnicott escreve:

Penso que haverá acordo de que o impulso do Id só é significativo se estiver contido na vivência do ego. Um impulso do Id fratura um ego fraco ou fortalece um ego forte [e] pode-se dizer que as relações do Id fortalecem o ego quando se produzem em um contexto de relação-de-ego (1982, p. 35).

Ou seja, quando o bebê ainda não está integrado, a mãe-ego possibilita que o “trovão” não seja destrutivo, e pelo contrário, seja um incrementador de consistência egóica.

Enfatizo aqui a simultaneidade, os movimentos que interagem, o entrelaçamento de espaços na situação bebê-mãe, pois na medida em que há relação-de-ego com a mãe, os impulsos do Id fortalecem o ego, propiciando a vivência de um momento de integração em pleno contexto de não-integração.

Bem, seja por um ou por outro ângulo de abordagem, trabalhamos nesse encaminhamento com a teoria mais coerente com ela própria, menos acidentada.

O segundo encaminhamento é mais dissonante e conduz a um outro diálogo com a teoria, confrontando-me com suas dificuldades – dificuldades que sabemos, não deixam de ser inerentes quando se teoriza a sexualidade. Vale lembrar que Freud manifesta, até o final de sua obra, que a doutrina das pulsões é um campo obscuro, impreciso, chegando mesmo a evocar esta opacidade como uma característica inerente à própria pulsão.

E em Winnicott? Encontramos, em diferentes textos, vários sentidos para a pulsão. Há muita polêmica quanto à tradução – não só em Winnicott, diga-se de passagem – por instinto ou por pulsão. Limito-me a dizer que opto, atualmente por usar o termo pulsão, salvaguardando com cuidado os diferentes usos que surgem ao longo dos escritos de Winnicott.

Encontro o mesmo termo, pulsão, seja para referir-se aos impulsos, às movimentações psíquicas no bebê não-integrado, portanto não sexualizadas, seja para referir-se à criança mais crescida, que se tornou uma pessoa total e que investe libidinalmente os pais, no contexto do Complexo de Édipo. Isso cria um atrito conceitual, na medida em que a pulsão é marcada pelo não sexual na teoria sobre os primeiros tempos de vida, e é marcada pelo sexual no endosso que Winnicott faz ao “Édipo freudiano”.

Algo semelhante ocorre com o termo erotismo, que surge como erotismo muscular, denotando o prazer da sensação vivida no corpo, o prazer com a vitalidade e como auto-erotismo. E quando encontramos referência ao autoerotismo, deparamo-nos com dois sentidos – auto-erotismo é usado por Winnicott ora para indicar a atividade vital de prazer oral com a sucção do dedo, sem conotação sexualizada, ora no sentido de zona erógena, como nesse momento, que menciono textualmente: “estamos familiarizados com o aspecto da sucção do dedo que o termo auto-erótico engloba. A boca é uma zona erógena, especialmente organizada no início da infância, e a criança que suga o dedo sente prazer, tendo também idéias prazerosas”. Se há prazer no corpo e simultaneamente idéias, trabalho de fantasia, na fantasia, elaboração imaginativa, já não estaríamos na vigência do registro sexual? Ao falar da boca como zona erógena, investida auto-eroticamente, estaríamos falando de pulsão/vitalidade ou do sexual?

No mesmo texto em que Winnicott desenha este percurso através da elaboração imaginativa da função, lemos o seguinte:

primeiro encontramos no bebê todo o tipo de excitação, e até mesmo excitações genitais localizadas, mas não existe ainda a fantasia de natureza genital. [E ainda] existe uma progressão do tipo de pulsão ao longo da infância, culminando na dominância da excitação e da fantasia erótica genital (1990, p. 58-59).

Teríamos, então, duas linhas. Uma que vai do não-pulsional em direção a uma existência pulsional, e outra, que é a da progressão do tipo de pulsão, culminando na genitalidade. É interessante pensar nestas duas linhas se compondo, confluindo.

A respeito do amor inicial do bebê pela mãe, Winnicott fala de um amor primitivo, mesclado de ataques canibalísticos, um amor voraz, próprio da vitalidade amorosa. E em um texto sobre a sexualidade infantil, encontramos o seguinte:

no estudo da sexualidade infantil pode-se observar o modo pelo qual as excitações mais específicas se constroem a partir de excitações corporais de todos os tipos, para caminhar na direção de sentimentos e de idéias sexuais que reconhecemos facilmente como tais. O que é o mais maduro se desenvolve a partir do que é mais primitivo, a sexualidade, por exemplo, a partir das tendências canibalísticas. Pode-se dizer que uma capacidade de excitação sexual está presente desde o nascimento nos dois sexos, mas a capacidade primária, de excitação, de partes do corpo, tem uma importância limitada enquanto a personalidade da criança não está integrada e, pode-se dizer, que é a criança, enquanto pessoa total que é excitada. O bebê crescendo, o tipo sexual de excitação adquire, pouco a pouco, importância, em relação a outros tipos de excitações (uretrais, anais, orais, epidérmicas) e, com a idade de 4 ou 5 anos – e também na puberdade – o sexual pode, em um desenvolvimento sadio, dominar as outras funções (1972, p. 137-138 – tradução nossa).

Lendo e relendo os diferentes momentos da teorização, duas coisas chamam a atenção, e para elas não encontro possibilidades de composição – a primeira é a de que há duas idéias em presença: a idéia de excitações primordialmente esparsas e a de excitações genitais localizadas; e uma segunda, mais importante por suas implicações – que é uma equivalência, nas entrelinhas, entre sexual e genital, pois o oral, uretral, anal, não seriam propriamente sexuais.

Aqui temos, no estudo nada simples da sexualidade humana, uma turbulência tipicamente winnicottiana, uma dificuldade no cerne de seu pensamento sobre a sexualidade infantil. Dificuldade gerada, em parte pelo menos, pelo fato de que ele precisou artificialmente, como ele próprio reconhece, isolar o pulsional ou minimizar seu efeito traumatizante para poder ressaltar a importância das necessidades psíquicas. A mãe/ambiente, tão imprescindível no que concerne às necessidades do bebê, permanece inativa, neutralizada nas pulsações de sua feminilidade para além da maternidade? No que consistiria o seu “adiar de impulsos”? Sim, podemos pensar que a mãe, por cansada e irritada que esteja, não vai agredir o bebê, mas como poderíamos pensar que ela se aparta de sua singular configuração edípica? Pode ela, quando alimenta, troca, estar cuidando tão somente das necessidades, isolando o sexual que a constitui como mulher? E o Complexo de Édipo? Seria resultante apenas das transformações no mundo psíquico da criança?

Deixo aqui estas perguntas, com todos os seus pontos de interrogação, e prossigo ensaiando idéias, experimentando sulcar possíveis caminhos de pesquisa.

Há dois trabalhos de Winnicott, publicados postumamente, que são: O medo do colapso e A psicologia da loucura. Nestes textos, loucura e colapso se equivalem naquilo que apontam para um vácuo – uma total ausência de possibilidades de defesa, um fracasso na organização defensiva. Cito agora o segundo desses textos:

a teoria não envolve a idéia de uma fase de loucura no desenvolvimento infantil mas, apesar disto, deve-se deixar aberta a porta para a formulação de uma teoria em que certa experiência da loucura, seja o que for que isto possa significar, é universal, e isto quer dizer ser impossível pensar em uma criança que tenha sido tão bem cuidada em sua primeiríssima infância, que não houvesse tensão excessiva de sua personalidade, tal como se achava integrada em determinado momento (1994, p. 96).

A isto Winnicott acrescenta que, muito grosseiramente falando, existem dois tipos de seres humanos: os que não carregam consigo uma experiência significativa de colapso na primeiríssima infância e aqueles que a carregam.

O que importa para mim, neste momento, é enfatizar que o cuidado não pode evitar o inevitável, ou seja, nem que fosse por uma fração de segundo, a ameaça de loucura foi experienciada, na proximidade de angústias impensáveis. Mas como novas defesas organizam-se de imediato, pode-se pensar com Winnicott, “que a loucura, em si, não foi experienciada, sem deixar de ser, potencialmente um fato” (1994, p. 100). Como é isto? Isto que é, sem ser? Winnicott faz aqui uma bela analogia – com um bulbo de flor. Há, diz ele, um perfume delicioso trancado no bulbo, embora não haja um lugar específico onde esteja trancado. A dissecação do bulbo, na tentativa de achar o suposto lugar, não traria o cheiro do perfume, mas apesar disso existe no bulbo um potencial que acabará se tornando o bom perfume quando a flor se abrir. Ou seja, a loucura ou o colapso das defesas, se viesse a ser vivido, seria insuportavelmente doloroso, mas ao mesmo tempo, a loucura é uma potencialidade. Enfatizo: o colapso, como potencial, encontra um registro em algum lugar não situado, em um topos, metapsicologicamente falando.

Aqui temos uma direção que aponta para o que necessariamente falha, para o negativo como contraparte de toda a positivação possível, aquela fornecida pelos melhores dos cuidados. Que aponta para o que escapa, para o imprevisível, para o momentaneamente sem defesa.

Incluo o colapso neste momento, pensando em uma conferência da psicanalista Radmila Zygouris (1999), na qual apresentou uma concepção preciosa: a concepção de passarelas transversais entre teorias, de passagens não diretas, pontos nos quais diferentes teorizações se encontram, configurando algo em comum, sem de forma alguma tornar comum a trama conceitual particular de cada teoria. Usando esta idéia, penso que o colapso – posto que universal – faz um ponto de contato com a concepção freudiana de pulsão, com o que sempre surpreende, com o que desestabiliza, com o que é afim da concepção de trauma. E em Winnicott, como vimos, existência psíquica da pulsão e trauma caminham juntos. Uma passarela possível – de um lado Winnicott, o colapso e a pulsão/trauma, e de outro a pulsão em Freud.

Aqui, atravessando os restos, seguindo as férteis idéias de loucura e colapso, seria possível pensar na incidência dos trovões, do sexual, provocando abalos, mas não terremotos – abalos, mas não fragmentação do ego? Por aí haveria um caminho para se postular a participação do sexual desde os inícios, como quase-rupturas – rupturas que não chegam a ser, porque há imediatas reconstituições?

Nesses textos, Winnicott ocupa-se ao mesmo tempo com a abrangência do que chamamos de Inconsciente, um inconsciente que não é o inconsciente do recalcado, é um inconsciente que aponta para algo que o ego não pode abranger em sua integração, um aquém, aquém do ego, um lugar potencial. Também a idéia que expusemos, da linha de continuidade da vida, pressupõe que o acontecido em qualquer época não se perde, ficando registrado em algum lugar. Teríamos aqui outra passarela entre teorias? Entre esse Inconsciente winnicottiano, o irrepresentável em Freud, e concepções atuais, como a de André Green (1996), que propõe pensarmos em um registro psíquico embrionário, próprio à pulsão, sem acesso até mesmo à representação inconsciente?

Assim, termino em algum lugar, um lugar longe/perto na metapsicologia, para o qual conduzi e fui conduzida neste trabalho, em que sexualidade e trauma se articularam, e prezando Winnicott da melhor forma que tenho para prezá-lo – continuando a pensar, a aprender, a me comover e a dialogar com seus escritos – e ousando até imaginar que ele bem que gostaria disto!

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Janete Frochtengarten
Rua Jericó, 255 / 117
05435-040 São Paulo - SP
Tel.: +55-31 3032-9033
E-mail: janfro@terra.com.br

Recebido em 25/03/04
Aprovado em 29/04/2004

 

 

1 Psicanalista; Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.