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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.18 São Paulo set. 2006

 

ARTIGOS

 

Contornos e fragmentação do eu na psicose: reflexão a partir do acompanhamento terapêutico de uma adolescente

 

Contours and fragmentation of the self in psychosis: reflection based on the therapeutic accompaniment of an adolescent

 

 

Clarissa MetzgerI

Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto faz uma reflexão sobre os papéis da dor e do ego como entidade de superfície na constituição do eu, a partir de elementos do caso clínico de uma adolescente psicótica atendida em acompanhamento terapêutico. Para tanto, além das concepções freudianas de constituição do eu, utiliza a noção de Eu-pele concebida por Dider Anzieu. Finalmente, aponta algumas questões pertinentes à constituição e unificação do eu e aos possíveis elementos de “escoragem narcísica”, que ganham relevo no momento da entrada na adolescência.

Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Psicanálise, Dor, Constituição do eu, Psicose, Adolescência, Contornos, Fragmentação do eu.


ABSTRACT

This paper reflects on the roles of pain and of ego as a surface entity in the constitution of the self, based on elements of a clinical case of a psychotic adolescent undergoing therapeutic accompaniment. As such, it relies not only on the Freudian concepts of the constitution of the self, but also on the notion of the skin-ego, conceived by Didier Anzieu. Finally, it addresses some issues relating to the constitution and unification of the self and to the possible elements of “narcissistic dependence” that come to the surface upon entering adolescence.

Keywords: Therapeutic accompaniment, Psychoanalysis, Pain, Constitution of the self, Psychosis, Adolescence, Contours, Fragmentation of the self.


 

 

A questão para a qual desejo chamar a atenção neste texto surgiu a partir do acompanhamento terapêutico de uma adolescente que apresentava um comportamento auto-agressivo: bater em si mesma. Minha idéia é discutir algumas questões relacionadas com o que podemos chamar de fronteiras, contornos do sujeito. Dentro dessa temática, o corpo aparece com destaque. Freud, em uma afirmação conhecida, postula que o eu é antes de tudo um eu corporal. Retomarei essa noção em breve.

Para falar em contornos vale a pena retomar alguns aspectos da constituição do eu, já que é nesse processo que se delineia um sujeito e surgem os limites entre eu/outro, dentro/fora. Em conformidade com seu método de partir do patológico para compreender o normal, não nos esqueçamos que Freud interrogase e busca compreender como se constitui um sujeito precisamente a partir da psicose (Freud, 1914). É na constituição cheia de percalços do psicótico que as questões relacionadas a essa constituição ficam mais em evidência.

Acompanhando o pensamento de Freud, podemos dizer, de modo bastante geral, que enquanto na neurose a problemática central do sujeito tem a ver com o valor do eu ou auto-estima dentro de um contexto edípico, na psicose a problemática gira em torno da unidade do eu (Hornstein, 1989): a questão crucial da psicose é justamente a fragmentação do eu. Mas será possível pensar em contornos de um eu fragmentário, que não chegou a se constituir como unidade? Nesse caso, quais seriam os contornos possíveis? Que modalidades de relacionamento com o outro e com o mundo poderá o sujeito estabelecer a partir da maneira como se deu esse desenvolvimento precoce, já que para haver o outro é preciso primeiro existir um eu?

Antes de continuar, é importante esclarecer sobre qual corpo estamos nos referindo, ao destacá-lo na constituição do eu. Trata-se do corpo pulsional, que deve ser diferenciado do corpo biológico. Este último é o que chamamos de organismo, objeto de estudo e intervenção das ciências biológicas, dentro da tradição ocidental moderna que o separa do psiquismo, cujos fenômenos, não sendo observáveis ou quantificáveis dentro do modelo científico-biológico, não têm interesse (Birman, 1999).

Ao interrogarmos a psicanálise, é do corpo pulsional que ela nos fala, é este corpo que lhe concerne, o corpo sexual, percorrido pelas pulsões, pela libido. Freud diz que a pulsão tem origem no corpo biológico, mas a psicanálise não está interessada nas origens da pulsão e sim em seus destinos (Freud, 1915). O corpo pulsional estrutura-se na relação com o outro, a partir das marcas que este outro produz, muito precocemente; não um outro qualquer, mas o outro cuidador, que pode ser a mãe ou alguém que faça sua função (porque é da função que se trata e não da pessoa). Grosso modo, poderíamos dizer que a estruturação do corpo pulsional se dá de acordo com os sentidos, significados, tanto conscientes como inconscientes que a mãe atribui a seu bebê e transmite por meio dos cuidados e da atenção que lhe dedica, de acordo com o lugar subjetivo que esse bebê ocupa para sua mãe. Não é nossa intenção aqui aprofundar a discussão das questões relativas à relação mãe-bebê, mas apenas apontar sua importância para a constituição do eu.

Em seguida, pretendo recorrer à teoria psicanalítica a partir de Freud e autores freudianos, para me auxiliarem na reflexão sobre o caso clínico de Vanessa1, que à época do início do acompanhamento terapêutico tinha doze anos de idade. Por causa do comportamento de bater em si mesma e devido a outras características particulares que pretendo evidenciar, trata-se de um caso que chama a atenção para questões relativas às fronteiras do corpo, este corpo pulsional de que falávamos, e para o que pode acontecer com estas fronteiras no momento em que a adolescência se apresenta.

Sou chamada para iniciar o trabalho de acompanhamento terapêutico com Vanessa, por indicação de sua analista. Em conversa com a família, fico sabendo que ela tem poucos interesses, é socialmente muito isolada e tem muitas “manias”, que haviam se intensificado muito nos últimos tempos. As “manias” são atitudes como verificar várias vezes se algum objeto está em determinada gaveta ou se a janela e a porta de seu quarto estão bem fechadas. Desde mais ou menos oito meses antes dessa primeira entrevista com a família, Vanessa vinha perdendo o interesse em ver TV e ouvir rádio, atividades a que se dedicava antes; não queria mais sair de casa nem conversar. Atestava não querer sair porque as pessoas na rua ficavam olhando para ela. Dizia que tinha vontade de perguntar, quando a olhavam: “eu estou pegando fogo?”. Ficava com muita raiva dessas pessoas. Ela também batia em si mesma, dando-se tapas e socos no rosto e no corpo. No decorrer do tempo em que a acompanhei, era freqüente a presença de marcas roxas em seu rosto e em seus braços e pernas, feitas por ela ao se agredir. Mais raramente, Vanessa batia nos outros, principalmente na mãe, mas também no pai e na irmã. A mãe chegou a conversar com o marido sobre levá-la a um psiquiatra, mas tinha medo dos “exageros dos médicos”, receando que a filha fosse excessivamente medicada.

Conversando a sós com Vanessa, ela conta sobre a fonoaudióloga e a fisioterapeuta que a atendem. Elas lhe dizem para que não se bata, mas não estão de fato preocupadas; a analista diz que se ela se bate é problema dela, e não segura suas mãos para que não se bata, como fazem a fono e a fisio. Pergunta-me porque a analista diz isso. Respondo que não sei e retorno a pergunta para ela, que fica em silêncio por alguns instantes até me responder: “acho que ela diz isso porque é no meu corpo que eu bato”. Na escola os colegas a provocam sempre, pedem que ela se bata, riem muito quando ela o faz. Ela mesma ri ao me contar isso.

Antes de me bater, fazia perguntas idiotas”. Indago o que são “perguntas idiotas” e ela exemplifica, fazendo perguntas sem nexo. Vanessa dirigia as perguntas às pessoas de sua convivência com pais, irmã, empregada, fisioterapeuta e fonoaudióloga. Quando pergunto por que fazia tais perguntas, fica pensativa e diz “pra encher o saco, porque eles irritam (...). Antes de me bater, fazia perguntas, mas antes das perguntas, o que será que eu fazia? Não me lembro”.

Fala sobre a empregada da casa, que “é feia e boba”; xinga-a e provoca-a fisicamente. Fala das roupas da empregada, normalmente saias e shorts curtos e blusas justas e diz: “a blusa justa da Elisa bate em mim”. Vai até a cozinha atrás da empregada, belisca-a, dá tapas, tenta passar a mão em seus seios, depois volta correndo para seu quarto, rindo, e fechando a porta. Ela própria, em contraste com a empregada, só usa roupas largas, como calças de abrigo e camisetões, e mesmo no calor, dificilmente tira o agasalho de mangas longas.

Um dia conta que achava a vida “um saco”, que era “só sofrimento”. Diz que Deus fica fazendo caretas para ela, não a ajuda. Xingou Deus; disse que Ele só a repreende, não ajuda. Revela que existe uma outra menina, muito parecida com ela. Esse seu “alter ego” chama-se Vicentina. Conta que ela “enche o saco”, xinga-a, mas “também serve para ter alguém com quem falar mal dos outros”. Pergunto onde está essa menina e ela aponta o outro lado do quarto, onde fica sua escrivaninha. “Ela está ali?”. Vanessa confirma e fala: “a vida é um saco: chega em casa, faz lição, se bate, tem as ‘manias’, aí esfrega a almofada (masturbação), aí provoca a Elisa (empregada). Não tem nada de legal”.

No início, os acompanhamentos com Vanessa acontecem em sua casa, pois ela não quer sair. Porém, pouco a pouco, podemos nos aventurar; primeiro vamos a uma praça perto de sua casa, onde há um comércio de bairro; depois um passeio à biblioteca pública, à locadora de vídeos, depois ao shopping center. A rua é uma sucessão de imprevistos, repleta de estímulos de todos os tipos; ruídos de carros, de pessoas falando; em um momento é um cachorro que passa perto demais, assustando Vanessa; no outro é uma pessoa que nos pede uma informação... Nessas situações inesperadas, muitas vezes ela retesa o corpo; às vezes olha para mim, mas não diz nada, respondendo minhas perguntas com monossílabos ou acenos de cabeça.

Quando estamos na rua, caminha sempre muito próxima de mim, mas sem me tocar. Como em um balé, acompanha meus movimentos com precisão milimétrica: se paro de andar, ela imediatamente pára também; se acelero o passo, ela faz o mesmo. Faz pensar em uma sombra, tal é a rapidez e a precisão com que me segue. É como se para conseguir caminhar por essas ruas habitadas por tantos imprevistos e por transeuntes que a olham de um modo estranho, para enfrentar esse ambiente tão inóspito, Vanessa precisasse de muito suporte; é possível supor que, para isso, seja necessária uma proximidade concreta muito grande comigo, embora (este detalhe parece importante) sem me tocar.

Voltemos um pouco à noção de eu corporal enunciada por Freud ao falar sobre a constituição do eu, e tentemos avançar mais um pouco.

A psicofisiologia examinou plenamente a maneira pela qual o próprio corpo de uma pessoa chega à sua posição especial entre outros objetos no mundo da percepção. Também a dor parece desempenhar um papel no processo, e a maneira pela qual obtemos novo conhecimento de nossos órgãos durante as doenças dolorosas constitui talvez um modelo da maneira pela qual em geral chegamos à idéia de nosso corpo (...). O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície. [Acrescenta em nota de rodapé:] (...) o ego, em última análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície do corpo. Ele pode assim ser encarado como uma projeção mental da superfície do corpo, além de, como vimos acima, representar as superfícies do aparelho mental (1923, p. 39-40).

Gostaria de destacar dois pontos levantados por Freud: o ego como entidade de superfície, derivado das sensações corporais, e o papel da dor no processo de constituição do ego, relacionado ao masoquismo primário. Em breve voltaremos à questão do eu como entidade de superfície. Por enquanto cabe notar que as sensações dolorosas têm papel fundamental naquilo que Freud apresenta como conhecimento sobre si, mesmo em uma etapa muito primitiva do desenvolvimento; nesse momento, através da dor, o sujeito consegue ter alguma noção de si mesmo.

No artigo Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud afirma que muitos processos internos contribuem para a excitação sexual tão logo atinjam certo grau de intensidade; o sofrimento físico seria um desses processos. Em 1915, no texto Os instintos e suas vicissitudes, o interesse pelo papel da dor surge novamente:

temos todos os motivos para acreditar que as sensações de dor, assim como outras sensações desagradáveis, beiram a excitação sexual e produzem uma condição agradável, em nome da qual o sujeito, inclusive, experimentará de boa vontade o desprazer da dor (p. 149).

A partir desses entendimentos da dor introduzidos por Freud como aspecto constitutivo do eu e como produtor de uma excitação próxima da excitação sexual, é possível pensar no bater em si como aparece no caso de Vanessa, além de um modo da satisfação pulsional, como tentativa de sustentação, por primitiva e mínima que seja, de um eu que conta com poucos recursos psíquicos de outra ordem para se constituir e se manter como tal.

Para além do aspecto puramente quantitativo da descarga da excitação, a atitude fisicamente auto-agressiva de Vanessa parece ter uma outra função, bastante específica, que pode não estar diretamente relacionada ao fator econômico, à satisfação libidinal. Tanto o bater em si quanto o bater nos outros ou nos objetos pode ser compreendido como uma tentativa de mínima discriminação, de um mapeamento rudimentar dos limites do eu, que estão muito precariamente delimitados. As marcas roxas que ela produz em seu corpo podem ser pensadas como produto dessa tentativa de delimitação, uma produção de marcas distintivas entre o corpo e o não-corpo, e avançado um pouco mais, entre eu e não-eu. Parece que o bater em si permite que ela se reconheça; é a partir dessa característica que ela apresenta-se para mim: ela é aquela que bate em si (antes era a que fazia “perguntas idiotas”). Como reagem os colegas, a fisioterapeuta, a fonoaudióloga, a analista, os pais frente a esse ato? É contando sobre essas reações que ela também fala de si, não apenas em nosso primeiro contato, mas aí de forma marcante. É a partir do bater em si que ela propõe um tipo peculiar de aproximação com o outro.

Um dia, convido Vanessa para brincar de “tapão”. Nessa popular brincadeira infantil, uma pessoa apóia suas mãos, com as palmas viradas para baixo, sobre as mãos do adversário, cujas palmas estão viradas para cima. A pessoa que está com as mãos embaixo precisa tentar bater no dorso das mãos da outra pessoa, que por sua vez deve evitar que isso aconteça, tirando no momento preciso suas mãos de cima das mãos do outro. No decorrer da brincadeira alterna-se quem fica com as mãos embaixo e quem fica com as mãos em cima.

Ela estava especialmente agitada nesse dia, movimentava-se muito, cantava suas “músicas” (que consistiam em um cantarolar cujas letras eram compostas pelas “perguntas idiotas”), mexia-se muito, chegando mesmo a aplicar-se um soco no rosto diante de mim, o que nunca havia acontecido. Quem sabe a brincadeira não a ajudaria a sair do “curto-circuito” em que parecia estar metida nessa movimentação ininterrupta? No entanto, o resultado que obtive foi bem diferente do que imaginava: no início ela pareceu estranhar, ficar um pouco assustada; mal encostava as mãos nas minhas, parava a brincadeira no meio e ficava olhando para mim. Depois fizemos a brincadeira lentamente, umas poucas vezes. Ao fim de alguns (poucos) minutos, sua agitação era ainda maior que antes.

Anzieu formula a noção do Eu-pele como um “envelope narcísico” que asseguraria um bem-estar de base ao aparelho psíquico. Tratar-se-ia de uma representação que a criança teria de si mesma nas fases precoces do desenvolvimento, como um eu contendo conteúdos psíquicos a partir de sua experiência da superfície do corpo. O envelope psíquico originar-se-ia apoiado no envelope corporal. Dentre suas várias funções, o Eu-pele teria três básicas: ser o continente que retém as boas experiências; ser a interface que delimita o dentro e o separa do fora, formando uma barreira de proteção contra as agressões exteriores; e ser um lugar de comunicação com os outros, ao mesmo tempo em que seria lugar de inscrição de traços deixados pelas relações significativas estabelecidas. Esse Eu-pele teria, assim, a possibilidade de estabelecer barreiras, e ao mesmo tempo efetuar trocas. Segundo o autor, “a constituição do Eu-pele é uma das condições da dupla passagem do narcisismo primário ao narcisismo secundário e do masoquismo primário ao masoquismo secundário (1989, p. 46)”.

Assim, se o Eu-pele, essa entidade primária e essencial, não se formou a contento, haverá um prejuízo no desenvolvimento libidinal do sujeito, que sofrerá reveses nas passagens citadas. No caso de Vanessa, parece que as dificuldades em sua constituição começaram antes da possibilidade do estabelecimento de um narcisismo primário, quando já poderíamos supor algum nível de unidade e integração do eu. Pensando com Anzieu, podemos dizer que Vanessa desenvolveu um Eu-pele “frágil”, capaz de exercer precariamente suas funções de contenção psíquica (capaz de manter as boas experiências), de interface/barreira entre dentro e fora, e de mediador/lugar de registro das trocas com os outros.

Para formular a noção de Eu-pele, Anzieu baseia-se em Freud, que anteciparia esta noção em sua formulação de aparelho psíquico feita em 1895, no artigo Projeto para uma psicologia científica, em que utiliza a formulação das “barreiras de contato”. Anzieu acompanha o desenvolvimento da concepção de aparelho psíquico na obra freudiana, na qual se baseia sua compreensão do Eu-pele. Em O ego e o id (1923), ficamos sabendo que “a dupla arborescência [representação anterior do aparelho psíquico] cede lugar à imagem e à noção de uma vesícula, um envelope. A ênfase é deslocada dos conteúdos psíquicos conscientes e inconscientes para o psiquismo como continente” (Anzieu, 1989, p. 84).

A partir da idéia do psiquismo como continente, é possível pensar o apoio do Eu sobre a pele; o psiquismo não é mais visto apenas do ponto de vista econômico, um sistema de transformação de forças, como Freud parecia pensar quando escreveu a monografia sobre as afasias e o Projeto, ainda no século XIX. Na ocasião, sua função ainda estava bastante apoiada nos esquemas neurológicos e anatômicos. Agora, o psiquismo encontra sua base em um modelo topográfico, que inclui a projeção da superfície do corpo, modelo que Anzieu utilizará em sua concepção do Eu-pele. Segundo o autor, haveria uma correspondência entre o eu em seu estado originário, conforme aparece na obra de Freud, e sua noção de Eu-pele. A ênfase na importância da experiência tátil dar-se-ia pelo estatuto de interface, sua dupla possibilidade de percepção, tanto interna quanto externa.

Enquanto Freud interessava-se em pensar sobre o “núcleo” (o inconsciente como núcleo do psiquismo, o complexo de Édipo como núcleo da cultura e da neurose), seu discípulo e contemporâneo, Paul Federn, interessou-se pela “casca”, pelos limites. Federn concebe um “sentimento de Eu”, primário, de natureza real mas subjetiva, que seria o investimento narcísico original, do qual o sujeito não tem consciência, a não ser quando ocorrem falhas. Esse sentimento de Eu seria composto por três elementos: o sentimento de unidade no tempo (que implica continuidade), sentimento de unidade no espaço e o sentimento de causalidade. Tal sentimento consistiria no núcleo do Eu, enquanto o sentimento de fronteiras do Eu consistiria em sua porção periférica. O sentimento do Eu poderia ser dividido em sentimento mental e sentimento corporal, embora normalmente não seja possível distingui-los, a não ser nos processos de adormecer e despertar, quando pode haver descompasso entre ambos, de tal forma que um se destacaria momentaneamente do outro; ou no caso de patologias graves (Anzieu, 1989, p. 84).

O sentimento das fronteiras do Eu sofreria variações de investimento de libido. Cada vez que mudasse o investimento do sentimento de Eu, o sujeito teria o sentimento das fronteiras. Assim,

cada vez que uma impressão somática ou psíquica entra em colisão, ela se choca com uma fronteira do Eu que é normalmente investida de sentimento de Eu. Se não existir nenhum sentimento de Eu nesta fronteira, temos o sentimento que a impressão em questão nos é estranha. Não havendo colisão entre uma impressão e as fronteiras do sentimento de Eu, ficamos sem a consciência dos limites do Eu (p. 84 – grifo nosso).

O sentimento de Eu, de que nos fala Federn, pode ser pensado em íntima relação com um investimento narcísico original, primário. Assim, é possível pensar que Vanessa tenha um sentimento de Eu precário, resultado de falhas no processo de narcização precoce e que a deixa vulnerável em muitos pontos quanto aos sentimentos de fronteira do Eu; como se fosse um corpo totalmente permeável, sem barreiras que a protegessem e regulassem suas trocas com o ambiente e com os outros. A ameaça de invasão é constante onde não há bordas que delimitem o dentro e o fora. Na rua, essa ameaça pode ficar ainda mais evidente e o perigo de esfacelamento do eu torna-se iminente. Nesse contexto, o AT pode representar um possível suporte, mas chegar perto demais, tocar, também pode ser perigoso, pois provavelmente coloca as mesmas questões quanto às fronteiras egóicas. Por outro lado, o tocar também pode ser fonte de uma excitação insuportável para Vanessa no momento, hipótese que retomarei em breve.

A auto-agressão que Vanessa se impinge é justamente de um tipo que incide sobre a superfície de seu corpo; ela não se corta, não se fura, não ingere substâncias que lhe façam mal, mas sim, dá tapas e socos em si; seu objeto de investimento é a superfície corporal, ali onde está o representante concreto de uma noção psíquica, que parece ter desenvolvido precariamente. Esta noção relaciona-se às fronteiras do eu e ao continente, que é representada pelo Eupele, essa entidade de superfície que abarca os conteúdos psíquicos. As fronteiras mal delimitadas são tanto as do corpo, representado pelo psiquismo, quanto do próprio psiquismo. O continente não proporciona continência, pois não se produziu como tal. Uma brincadeira como a do “tapão”, descrita acima, pode soar como um convite à indiscriminação e à confusão com o outro, geradora de tensão porque toca justamente no ponto sensível que é a demarcação dos limites.

Vanessa vive a puberdade, a entrada na adolescência, momento propício para que questões relativas à constituição primeira do eu venham à tona novamente. As transformações corporais, as transformações nas demandas sociais e familiares que acontecem nessa fase trazem a necessidade de uma nova tomada de posição em relação a essas mesmas demandas, que são tanto externas quanto internas: como responder a elas? Quando fala “a vida é um saco: chega em casa, faz lição, se bate, tem as ‘manias’, aí esfrega a almofada (masturbação), aí provoca a Elisa (empregada). Não tem nada de legal”, Vanessa elenca os fatos, mas não parece possível ainda construir um sentido mais consistente ou propor alguma integração entre eles; são vivências fragmentárias que para ela compõem a vida. A fragmentação aparece também no uso de sujeito e verbo em seu relato: o sujeito dos verbos é indeterminado; aqui, como acontecia também em outras ocasiões, Vanessa não fala na primeira pessoa, como se não integrasse as ações e o sujeito que causa as ações, como se não fosse ela que realizasse as ações. Se por um lado o questionamento do sentido da vida, tal como podemos observar no relato de Vanessa, é temática freqüente na adolescência, para Vanessa ela ganha uma coloração mais dramática.

Vanessa sofre transformações que de forma geral poderíamos chamar de “típicas” da adolescência. No entanto, as mudanças têm um impacto de outra ordem em alguém que já tem um sentimento de eu, para utilizar a expressão cunhada por Federn, supostamente precário; o grau de desestabilização a que fica sujeito é muito maior do que outros adolescentes poderiam viver, o que traz o risco de uma crise iminente. A adolescência, por ser a fase de passagem da infância para a vida adulta, é caracterizada por grandes perturbações narcísicas, que acontecem em dois níveis: uma mudança da representação corporal de si mesmo, que acompanha a mudança fisiológica da puberdade, e uma crise das figuras de referência intra-psíquicas. Se não há um narcisismo bem estabelecido, há o risco de colapso, da invasão pela angústia de fragmentação (Penot, 1995).

A crise identitária que envolve o corpo do adolescente e sua representação também atinge os referenciais intra-psíquicos ou imagos parentais. A conseqüência dessa crise é o desvelamento da incompletude do sujeito; os referenciais antigos já não são eficientes, e ainda não há outros prontos para substituí-los; a acentuação da diferença física entre moças e rapazes, que se dá mediante o desenvolvimento dos caracteres sexuais ditos secundários, coloca em evidência o que falta nesse corpo, porque o define inequivocamente: homem ou mulher. Aqui, o sujeito se depara com a castração, ou no mínimo, é chamado a isso; ele não é tudo, não é completo, há o imperativo (interno, da família, do ambiente social), reforçado pelas mudanças corporais, de uma definição, que delimita, gera contornos, mas que implica também em uma renúncia ao ego ideal, em um reconhecimento por parte do sujeito de que ele não é tudo: precisa escolher.

Ora, se a questão crucial na psicose é precisamente o repúdio à castração (Verwerfung), que impede a ruptura da fusão com o outro e tenta preservar o sujeito na posição de ego ideal, de não-castrado; então é exatamente o fato de esse sujeito ser convocado a se confrontar com a castração, na forma das escolhas propostas pelo adolescer, que é potencialmente disruptivo. Neste sentido, a percepção da mudança corporal que acompanha a adolescência pode ser sentida como excessivamente ameaçadora para a integridade do eu; podemos pensar nas roupas largas, nas blusas de mangas longas que Vanessa usava até mesmo no verão.

Tal vivência, como ocorre no caso de Vanessa, pode descompensar um narcisismo já precário, desencadeando a crise psicótica. Segundo Penot,

a ruptura da “escoragem” narcísica é tal que ela vai necessitar, efetivamente, da introdução da neo-realidade do delírio, o qual é definido por Freud como uma “peça aplicada ali onde originalmente aparecera uma falha na relação do Isso com o mundo exterior”. A função inicial dessa “colagem” delirante seria então fazer o trabalho de solução provisória, de remendo, de tapa-buraco (1995, p. 35).

Ao questionar a consistência das figuras internas de referência, que até então bem ou mal estiveram ali, Vanessa possivelmente vive seu desmoronamento.

Ao me contar que ao sentir-se observada quando sai na rua, sente vontade de perguntar aos transeuntes “eu estou pegando fogo?”, penso que a pergunta pode ser escutada a partir da associação entre fogo e sexualidade: “pegar fogo” no sentido da excitação crescente que vive, da qual se tem notícia pelas provocações físicas que impõe à empregada (ela belisca e passa a mão nos seios e nádegas de Elisa, após o que fica em estado de grande agitação motora, acompanhada de gargalhadas estridentes), da masturbação freqüente, do bater em si mesma, e talvez da sua agitação que se segue à nossa brincadeira do “tapão”.

Mas essa vivência aparece a partir de fora, não integrada a seu eu; os outros olham como se ela estivesse pegando fogo; não se trata de uma sensação de Vanessa de estar “pegando fogo”, de estar sexualmente excitada. A sexualidade que irrompe pode ser encontrada também na afirmação: “a blusa justa da Elisa bate em mim”. A sensualidade da roupa da empregada a agride. Por outro lado, Elisa tem uma presença marcante no cotidiano de Vanessa, que a procura na cozinha várias vezes por dia, e refere-se a ela com freqüência em suas falas; a roupa justa bate, mas “bater” nesse contexto pode significar também “atrair”: pensemos novamente na aproximação que Freud faz entre as sensações de dor e a excitação sexual, e também na prevalência do “bater” para Vanessa.

Vicentina surge, então, como possibilidade de sobrevivência psíquica frente à falência de referências que foram, desde sempre, frágeis. Ali, onde não há uma imagem corporal consistentemente constituída, qualquer alteração do precário equilíbrio adquirido pode levar ao colapso, como parece estar acontecendo. O fato de Vicentina ser muito parecida com a própria Vanessa sugere uma duplicação, que poderia ser resultante de uma cisão do eu, na qual uma parte é projetada para fora, remetendo-nos novamente a uma integração do eu que falhou. Mas, por outro lado, esse duplo “lhe faz companhia”, é “alguém com quem falar mal dos outros”, ou seja, Vicentina pode cumprir também um importante papel de sustentação narcísica onde parece não ter havido investimento narcísico suficiente para que se constituísse um eu consistentemente unificado.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Clarissa Metzger
Rua Rodésia, 139/Cj 12 – 05435-020 – Vila Madalena – São Paulo/SP
Tel.: (11) 3812-4474
E-mail: clametzger@superig.com.br

Recebido em 21/04/06
Aprovado em 30/05/06

 

 

Nota

IPsicanalista; Acompanhante Terapêutica; Especialista em Psicologia da Saúde (UNIFESP/ Escola Paulista de Medicina); Mestranda (IPUSP); Coordenadora do Setor de Cursos da Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Instituto A CASA.
1Nome fictício.