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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.18 São Paulo set. 2006

 

ARTIGOS

 

O acompanhamento terapêutico e as relações de objeto em pacientes-limites

 

Therapeutic accompaniment and the borderline object relations

 

 

Carlota Maria Oswald Vieira Zilberleib1

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste estudo, pretendemos articular os elementos que compreendem as bases metapsicológicas do funcionamento borderline, segundo Andre Green, com a clínica do acompanhamento terapêutico. Isto se dá por meio da ilustração de um caso clínico, com um enfoque especial voltado para certas dimensões das relações de objeto, quais sejam, as relações com o “objeto absolutamente necessário”. Nosso interesse neste estudo parte dos impasses surgidos no atendimento clínico como acompanhante terapêutico, em função da problemática diagnóstica e da especificidade do tipo de enquadramento. Compreende um desenvolvimento teórico acerca dos mecanismos primários de defesa, ou seja, os mecanismos de negação – Verdrangung, Verneinung, Verleugnung e Verwerfung – descritos por Freud, e repensados por Andre Green, aos quais denominou de trabalho do negativo.

Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Relações de objeto, Trabalho do negativo, Borderline, Enquadramento.


ABSTRACT

In this study, we articulate the elements which comprehend the meta-psychological basis for the functioning, according to Andre Green, of borderline patient vis-à-vis the therapeutic accompaniment clinic. In order to achieve this, a study case is presented, with specific focus geared towards certain dimensions of the object relations, namely the relations with the “absolutely necessary object”. Our interest emerged from the impasses arisen during the therapeutic accompaniment clinic and the problematic specificities of this kind of setting. It comprehends a theory development around the primary defense mechanisms, which means the denying mechanisms – Verdrangung, Verneinung, Verleugnung and Verwerfung -, created by Freud, and rethought by Andre Green, which he called “denying work”.

Keywords: Therapeutic accompaniment, Object relations, Denying work, Borderline, Setting.


 

 

A prática do acompanhamento terapêutico é um campo privilegiado de reflexão sobre a operacionalidade do conceito de relações de objeto, em função da ênfase que dá ao manejo da interação entre a dupla, oferecendo um tipo de enquadramento vantajoso – o enquadramento aberto – para a observação da dinâmica intersubjetiva. Por sua vez, pensar essa modalidade clínica através do enfoque nas relações de objeto pode ampliar a compreensão de muitos aspectos envolvidos no tratamento: além de proporcionar uma maior compreensão da dinâmica intersubjetiva, contribui para um melhor entendimento da gênese de constituição do sintoma e para a dinâmica do sofrimento do paciente, a partir do tipo de aproximação que oferece na relação acompanhantee acompanhado. Dentro do campo das relações objetais, entretanto, uma determinada dimensão desse conceito é privilegiada no funcionamento psíquico do paciente grave, e por isso será enfatizada neste artigo a relação com o objeto absolutamente necessário.

Essa noção foi descrita por André Green, psicanalista franco-egípcio, que desenvolveu uma ampla pesquisa sobre as relações de objeto a partir de um outro referencial, que supõe as bases da constituição do aparelho psíquico assentadas sobre a relação com o objeto absolutamente necessário, que para ele é representado pela mãe. Trata-se de um pressuposto que por sua vez norteará sua teorização acerca dos casos-limite, ou borderline.

Neste artigo pretendemos articular os principais elementos que compreendem as bases metapsicológicas do funcionamento borderline, segundo André Green, com a clínica do acompanhamento terapêutico, por meio da ilustração de um caso clínico com um enfoque especial, como mencionado acima, voltado para as relações com o objeto absolutamente necessário. Tratase do acompanhamento de uma mulher cujo sofrimento consideramos estar organizado em torno das falhas em sua relação com a mãe de forma enfática e persistente, fazendo-se presente e atual durante o tempo do atendimento.

Nesse caso, a complexidade da questão diagnóstica borderline correspondeu a dificuldades no manejo clínico, a começar pelas dúvidas quanto ao diagnóstico sentidas por médicos e familiares – uma característica dessa categoria diagnóstica – até a alternância entre a manifestação de sinais de desorganização da personalidade e aspectos integrados, o que levou a uma instabilidade bastante expressiva na relação terapêutica. A família acreditava tratar-se de um caso de “possessão”, face à oscilação entre estados de normalidade e estados em que ela parecia estar possuída. Mesmo estes poderiam passar por impostura para o observador leigo; para a família, funcionavam como mais um fator para negar a existência da doença. Por parte dos médicos, as incertezas quanto ao diagnóstico eram um ponto de ancoragem das dúvidas familiares face à enfermidade, a brecha para a justificativa religiosa. Alguns parentes imputavam ao marido o adoecimento, outros acusavam os médicos por ela não estar “curada”. Com a evolução do acompanhamento, começaram a responsabilizar o acompanhante terapêutico por suas crises e por seu comportamento bizarro.

Nesse primeiro fragmento do caso já nos é possível observar que a proximidade da relação terapêutica da vida familiar do paciente, no acompanhamento terapêutico, permite-nos ter um contato maior com aspectos da patologia de tal forma que levam a uma potencialização do tratamento. No caso dessa paciente, a implicação da família fica explícita, principalmente face à negação desse envolvimento – exatamente por estar a família por demais implicada –; trata-se de desdobramentos do mecanismo de negação, que discutiremos mais à frente. Isso nos leva a supor que a questão das relações de objeto influi desde a origem do distúrbio – nas relações familiares – até as possibilidades de consecução da “cura”, em função da relação com o terapeuta, como objeto. A paciente estava com trinta e sete anos à época do atendimento; casada, com uma filha pré-adolescente; havia sofrido sua primeira internação no ano anterior, mas já desde o nascimento da filha começara a ter crises de depressão. Com o passar dos anos as crises se intensificaram, com o aparecimento de traços de personalidade de aspectos maníacos e dissociativos, tendo sido diagnosticado transtorno bipolar. Contudo, a paciente não havia apresentado, até aquele momento, sinais produtivos do transtorno psicótico, como delírios ou alucinações, e sim certa inadequação de caráter. Havia sofrido uma grave depressão, cuja descompensação a teria levado a uma tentativa de “matar sua filha”, sedando-a, e em seguida tentando o suicídio.

Desde o nascimento da filha ela começara a ter crises de depressão. Com o puerpério é possível assinalar o início de seu distúrbio – o nascimento teria sido o fator desencadeador. Na fase em que a filha ainda era bebê, de certa forma ela demarca o início de seu sofrimento; de um lado, a angústia de cuidar do bebê e se sentir incapaz para isso, de outro a privação de liberdade imposta pela maternagem. A paciente relatou a angústia de ficar só com o bebê, e era assim que ela permanecia a maior parte do tempo. Falou também de seus pensamentos em relação a matar a filha, jogando-a do alto de seu apartamento.

Desde o primeiro contato por telefone fiz um alerta à família para os prejuízos de se adiar o início do tratamento: a moça já estava em crise há semanas. Ela fora internada devido a uma grave ocorrência (atuação) na rua em que morava, agredindo uma pessoa desconhecida, sendo necessária inclusive a intervenção da polícia.

Após a desinternação, com o transcurso do acompanhamento, seu aspecto foi se modificando acentuadamente; sua aparência física se deteriorou, assim como a maneira de se vestir – tornou-se bizarra. Um dos pontos centrais dessa mudança consistiu justamente em seus cabelos. Em nossa primeira ida ao cabeleireiro, ela iniciou um processo de corte; dizia que o marido iria rejeitá-la, mas que fazia questão de aparar o cabelo. Cortou-o várias vezes, e dali a dois meses raspou totalmente a cabeça.

Contrariamente às expectativas do médico, a moça não apresentou melhora efetiva com a desinternação. Segundo a família, ela parecia não ter se recuperado completamente do surto, pois ainda apresentava episódios de dissociação e outros comportamentos inadequados.

A família concebia sua doença como um distúrbio que oscilava com uma depressão, graças ao diagnóstico médico de transtorno bipolar. Após nosso primeiro mês de convivência, em que ela se manteve em um estado de muita agitação, houve a ocorrência de episódios dissociativos e um profundo sofrimento, que sugeriam ao observador a agonia de estar só – principalmente ao nos despedirmos – como uma “angústia intolerável de separação”.

Creio entender o que chamam de angústia de separação; é o resultado do que se criou efetivamente no interior do sujeito; uma intrusão intolerável. Isto acontece quando o objeto se encontra numa situação de excesso de presença em função de sua falta (Green, 1993, p. 387).

Em seguida, a moça iniciou um processo depressivo, que rapidamente se caracterizou por um estado que se assemelhava a um quadro melancólico. Pareceu-me uma oscilação de humor abrupta e radical entre estados de euforia e melancolia. Durante esse período muitos encontros ocorriam em que a paciente se mantinha deitada em sua cama, virada na minha direção; eu permanecia sentada em uma cadeira diante dela, e ficávamos nos olhando quase todo o tempo de sessão. Seu olhar era impassível, constante, plácido e razoavelmente vazio; demorávamo-nos assim longamente, sem alteração. Às vezes ela falava: “me mata, não agüento mais”; ou ainda: “você sabe o que estou sentindo”. Houve uma tarde em que e me levou até a cozinha, abriu a gaveta de talheres de cozinha e disse: “minha mãe escondeu as facas, ela gosta de mim”.

A mãe demonstrava hostilidade em relação a mim, e a partir de uma intensificação dessa postura em relação à minha presença, passamos a marcar nossos encontros fora de casa. As brigas entre as duas, causadas por críticas sem rodeios da mãe, à filha e a mim, criavam um clima impraticável de interação e convivência.

Houve uma outra internação, que ocorreu em função de uma crise desencadeada, entre outras coisas, por uma tentativa de “matar a filha”. Essas “tentativas de matar a filha” parecem pertencer a uma interpretação dos fatos ou da realidade recheada de fantasias e eventualmente de atuações – como encenações de suas angústias ou desejos extremamente angustiantes –, e dessa forma, as consideramos questionáveis em seu estatuto de realidade. Afinal, era sempre ela quem relatava que tentara cometer o ato; sobre sua última atuação, foi ela quem julgou seu ato como tal.

Essa última crise eclodiu após longo tempo de um estado de humor melancólico, como uma reação, uma “conjuração” a uma situação opressiva. As brigas entre a mãe e ela eram freqüentes, em qualquer situação, tanto depressiva quanto eufórica. Segundo seu relato, ela teria corrido em direção à mãe e apertado seu pescoço; depois, quebrara os copos da cristaleira – copos, segundo ela, que pertenceram à família do marido –, e em seguida correra atrás da filha e da sobrinha. Fui chamada às pressas para atendê-la; quando cheguei, ela estava amparada por vizinhos e amigos da família. Os familiares e amigos diziam que deveríamos levá-la para uma rezadeira; penso que agiam dessa maneira em função da impressão ambivalente que ela causava – até em uma situação de crise, não parecia “louca”. Mas aceitaram facilmente minha sugestão de um atendimento de urgência psiquiátrica. E ela me disse: “eu sabia que você iria me internar, por isso que eu não te liguei”.

Apesar de a crise envolver outros elementos além do impulso instintivo hostil que ela afirmava sentir contra a filha, o fato é que seus impulsos não sofriam distorção. Possivelmente podemos pensar em um deslocamento da meta original, a mãe, para um outro objeto, a filha. O deslocamento para a filha pode ser considerado um tipo de distorção, mas não há um abrandamento da violência; pelo contrário, ocorre seu acirramento.

Podemos localizar – em sua história de vida, na relação remota com a mãe – a existência de adversidades, ou seja, de experiências traumáticas vividas de fato, e não fantasiadas, na infância. Com o passar do tempo, passaram a ser mais freqüentes suas queixas em relação ao desejo de imputar violência à filha, a quem, em contrapartida, queria proteger. Ao dar à luz, em torno dos trinta anos, o processo depressivo se inicia, evoluindo desde então. Os conteúdos vivenciados por ela em função dessas idéias eram extremados, e com uma lucidez implacável.

Ao descrever sua dor, referia-se sobretudo a um vazio, como se não houvesse trégua para esse “nada” no qual estava imersa. Havia momentos em que ela comentava envolver-se com alguns afazeres domésticos e pequenas atividades, mas tudo de pouca duração.

O acompanhamento foi interrompido exatamente no momento em que a família da paciente não suportou enfrentar seu processo regressivo, ou “enlouquecimento”; pois, desde o início, a existência do distúrbio foi negada, seja pela saída religiosa – representada pela possessão –, seja por seu abandono, pois a moça foi deixada à própria sorte, decidindo sua vida, demitindo a enfermagem etc. Podemos, entretanto, articular seu processo de “enlouquecimento” à regressão desencadeada pela função analítica da continência oferecida pelo acompanhamento.

O estado melancólico da paciente parecia refletir a contenção de um impulso destrutivo endereçado provavelmente à mãe, e possivelmente com o sentido de uma retaliação à opressão, à qual ela sempre esteve submetida. A propósito, antes da eclosão do estado melancólico, houve uma briga muito feia entre as duas, em razão da necessidade da mãe ir embora para sua própria casa; vale lembrar que a mãe minimizava o distúrbio da filha.

A última crise, com a perseguição e a explosão (quebra dos copos da cristaleira), parece corresponder a uma reação radical, uma conjuração a esse estado de submissão, seja em relação à mãe, em virtude do caráter atual de sua “absoluta necessidade” dela como objeto; seja em relação à filha, como atualização da compulsão à repetição da cena traumática vivida na infância.

Entretanto, ao longo de vários encontros (sessões), observei que a paciente parecia estabelecer uma atitude ambivalente em suas trocas, já que ela se apresentava com uma aparente integridade, ou mesmo estabilidade, na expressão e aparência do discurso, no colocar-se diante do outro, na forma como se conduzia; entretanto, o conteúdo daquilo que ela exteriorizava era muitas vezes absurdo e quase sempre inadequado.

O enquadramento do acompanhamento terapêutico, por sua vez, parecia oferecer uma moldura para que o caráter disruptivo de suas comunicações tivesse expressão. Portanto, é possível fazer um paralelo entre o enquadre terapêutico e a “prótese” egóica com a qual ela se re-vestia, provavelmente para viabilizar certo nível de pertinência ao ambiente. Entre o interior e o exterior havia, assim, uma cisão, que levava a uma duplicidade – possivelmente para que ela mesma se oferecesse proteção contra invasões ou esvaziamentos (eliminações).

Essa duplicidade revela, uma certa proeza – ainda que paradoxal – na construção de um estranho equilíbrio de forças antagônicas.

A intimidade surgida entre a dupla favorecia a expressão dos conteúdos cindidos, ou negados, da paciente. Esse tipo de enquadre se estabelece por força de um enquadre implícito na subjetividade do acompanhante. Se o compararmos ao enquadre do consultório, a partir dos princípios técnicos clássicos do setting analítico, a rigor encontramos seu protótipo, ou seja, o da função terapêutica do enquadramento.

A psicanálise do paciente grave constitui um campo de pesquisa e experimentação desde que, em meados de 1920, alguns psicanalistas colocaram-se diante do desafio de aceitar em seus consultórios pacientes que não se submetiam aos moldes de tratamento padrão – especificamente, que não entravam em transferência com seus analistas segundo o modelo clássico de setting. Esse modelo compreendia a interpretação da transferência ao analista das injunções desiderativas infantis do analisando, a regra fundamental da associação livre, a atenção flutuante do analista e sua reserva diante das demandas e atuações do paciente, e o uso do divã. Tais procedimentos inscreviam-se na rígida observância de um contrato, em que horários e honorários eram também estabelecidos.

Nesse sentido, alguns quadros patológicos não eram passíveis de se beneficiar da psicanálise. As psicopatologias incluídas no campo das psicoses eram, em sua maioria, quadros não psicanalisáveis em função do comprometimento narcísico envolvido, se mantido estritamente o modelo de setting acima descrito, pois o enraizamento narcísico impede o paciente de entrar em transferência com o analista em função do pouco deslocamento de interesse para outros objetos. O investimento volta-se para a própria pessoa, conseqüentemente levando a um empobrecimento das possibilidades de simbolização.

Nessa época, os distúrbios mentais inseriam-se dentro de um espectro mais ou menos simplificado, em que de um lado estavam as doenças incluídas nos quadros da neurose. Essas doenças caracterizavam-se por apresentar uma sintomatologia formada por um conflito psíquico – a partir de uma operação de simbolização – oriundo da história infantil do sujeito, cuja raiz refere-se a um desejo inconsciente incestuoso em relação à dupla parental e às defesas para interditá-lo. Tais defesas, segundo sua organização, vão caracterizar os três tipos principais de neurose: a histérica, a obsessivo-compulsiva e a fóbica – todas passíveis de serem psicanalisáveis. De outro lado estavam os quadros psicóticos, dentre eles as esquizofrenias, com seu comprometimento narcísico, em que a capacidade de simbolização – e conseqüentemente a elaboração do paciente – estaria prejudicada, e de forma tão severa, que se impediria a utilização dos princípios básicos da psicanálise como tratamento. Entre esses dois vetores psicopatológicos – neuroses e psicoses –, encontra-se a perversão, que ora faz parte de um campo, ora de outro, temperando-os com seus elementos. Sua principal característica, segundo Freud, é ser o oposto da neurose, ou seja, perverter o curso normal dos acontecimentos, seja de um instinto, seja da norma. Nesse sentido, englobaria atos ou comportamentos que subverteriam a interdição do incesto e a diferença sexual, assim como o funcionamento instintual (como nos distúrbios alimentares – a bulimia, por exemplo), ou até algumas formas de somatização. Esses aspectos seriam às vezes passíveis de ser psicanalisáveis, ou não.

O acompanhamento terapêutico surge, por sua vez, em meados de 1960, da prática psiquiátrica com pacientes graves hospitalizados, como uma alternativa para a conduta terapêutica até então utilizada nas instituições, sob a nova ordem terapêutica preconizada pelas comunidades terapêuticas. Essa nova ordem seguia os princípios de abertura relativamente à exclusão à qual esses pacientes estavam submetidos, e apresentava técnicas de interdisciplinaridade e propostas de convivência comunitária, frutos de uma modificação da técnica psicanalítica, com a articulação democrática entre os saberes e as técnicas. O acompanhamento terapêutico seria também uma forma de reintroduzir o paciente recluso no meio social extra-clínica.

A partir de uma perspectiva psicopatológica psicanalítica contemporânea, iniciada a partir dos rumos trilhados pelas mudanças iniciadas nos anos 20, o que vemos acontecer é uma constante revisão das referências psicopatológicas tradicionais, para dar conta de uma forma atual, e por isso mais eficiente, da variabilidade dos conflitos psíquicos. Assim sendo, assistimos também a uma crescente transformação da própria teoria psicanalítica. E a clínica, por sua vez, por ser o campo privilegiado dos acontecimentos que vão mobilizar o teórico e o pensador da psicanálise, tem apresentado alterações técnicas nuançadas com a prática tradicional, abrangendo certa variabilidade de condutas. A esse respeito podemos ler nas palavras de Green uma contribuição:

As limitações do enquadre analítico, as proibições que restringem o agir, o constrangimento em relação à verbalização, se elas têm o mérito de nos revelar melhor os mecanismos de defesa que nos dão também acesso ao mundo do desejo e dos fantasmas, nos fazem perder de vista, em contrapartida, o funcionamento da pulsão em ato, com toda a carga dinâmica que acompanha seus extravios (Green, 1990, p. 178).

O que podemos reconhecer como constitutivo da prática do acompanhamento terapêutico é uma maior possibilidade do sujeito enlouquecer, amparado.

Dentro do horizonte das mudanças técnicas – ou seja, das alterações do setting tradicional – é que nos parece ser possível introduzir a prática do acompanhamento terapêutico. Entretanto, para fundamentar essa prática, através da elaboração teórica de André Green, será necessária certa manobra, na medida em que suas reflexões dizem respeito à prática psicanalítica padrão, ou seja, àquela que tem lugar no consultório. Vale acrescentar, contudo, que vamos nos confrontar exatamente com uma constante crítica desse autor à padronização da psicanálise. E justamente em função de seus questionamentos sobre a eficiência da técnica psicanalítica com pacientes graves, é que nos pareceu ser possível efetuar uma articulação de suas contribuições com o acompanhamento terapêutico.

Green propôs mais recentemente a idéia de “pensamento clínico”. Segundo ele, essa idéia, à primeira vista, pode parecer contraditória, já que o pensar estaria, classicamente, mais voltado para outros domínios, como a ciência e a filosofia, e a clínica se ocuparia apenas do campo empírico e da experimentação: “eu sustento que existe em psicanálise não somente uma teoria da clínica, mas um pensamento clínico, isto é, um modo original e específico de racionalidade vindo da experiência prática” (Green, 2002, p. 11).

Assim, tentamos propor com este artigo uma racionalidade oriunda da prática do acompanhamento terapêutico como uma alternativa possível para a clínica do paciente grave, articulando-a às contribuições do pensamento de Green em psicanálise.

O saber psicanalítico, por outro lado, compreende diferentes correntes de pensamento, que por sua vez também expressam uma preocupação maior com o atendimento do paciente de difícil manejo clínico. Dentre essas diferentes correntes, duas linhas se destacam: as linhas baseadas no funcionamento psíquico em que a problemática gira em torno de conflitos intra-sistêmicos – ou melhor, intrapsíquicos –, conflitos esses entre as instâncias inconscientes, pré-consciente e consciente, nos quais a pulsão é que vai determinar seu funcionamento. Essas linhas são influenciadas pela primeira tópica da teoria freudiana. Do outro lado estão as linhas baseadas na ênfase dos conflitos oriundos de uma relação intersubjetiva, em que a relação de objeto expressa a natureza do conflito, em relação a uma nova lógica entre suas instâncias – id, ego e superego. Tal referência corresponde à segunda tópica da teoria de Freud.

A partir desse panorama enfocamos a discussão na psicanálise freudiana com base nas contribuições de André Green, por encontrar nesse autor uma vasta e consistente reflexão sobre o paciente borderline e a necessidade de se pensar uma psicanálise contemporânea.

A questão diagnóstica borderline e o setting do acompanhamento terapêutico se assemelham justamente no que expressam de incomum e surpreendente, alterando as normas padronizadas de escuta ao impor um rearranjo da dupla terapêutica.

Segundo Green, o enquadramento representa um dos principais elementos que estruturam a experiência psicanalítica no que se refere ao pensamento. Os pacientes com dificuldades para elaborar – isto é, os casos-limite ou borderline, que possuem uma capacidade de simbolização comprometida, em função da questão narcísica – são os que suportam mal o enquadramento tradicional, ou o setting analítico:

Eles [os pacientes] exercem uma pressão sobre ele [o setting ] sempre na expectativa de que a qualquer momento seus conflitos possam ser reativados, a ponto de estourálo [o setting ]. Mesmo quando eles parecem aceitá-lo, acabam por fazer uso de artimanhas, de uma forma que ultrapassa em muito as organizações neuróticas. Longe de poder utilizá-lo em função dos benefícios resultantes dos estados regressivos, eles lutam com o enquadramento como se tratassem com inimigos invisíveis que pudessem tirar vantagens da situação, seja para se proteger de um ataque sobre o eu, seja para abandoná-los ao seu desamparo, naquele deserto onde eles não iriam esperar por nenhum socorro, ou porque seria povoado por presenças monstruosas (Green, 1990, p. 299 – tradução nossa).

Ainda sobre esse ponto, Green chama a atenção para o fato de que Freud inventou o setting, bem como o uso do divã, a partir do modelo do sonho: “dentro das condições habituais, o enquadramento visa favorecer a produção de um pensado não-pensado, em que o trabalho do sonho é um exemplo” (p. 299). Ou seja, o enquadramento tradicional é um recurso terapêutico indicado para pacientes que conseguem dormir e sonhar, o que não é o caso dos pacientes-limite ou fronteiriços. Esses pacientes estariam incluídos em estados relativos “a outras formas de vida psíquica noturna (insônia, sonambulismo, pesadelos, sonhos brancos etc), testemunhando sua ação fora de circuito ou seu revés” (p. 299).

Para melhor compreender a organização borderline, abordamos os elementos da proposição de Green que compreendem os quatro principais mecanismos psíquicos de defesa sobre os quais se formam as bases do funcionamento psíquico: os mecanismos de negação, apresentados por Freud ao longo de sua teoria, a Verdrängung (ou recalque), mecanismo que funda o psiquismo, ou o trabalho do negativo, uma perspectiva da normalidade, ou neurótica; a Verneinung (ou a negação propriamente dita), mecanismo característico da expressão do recalque, também próprio do funcionamento psíquico normal; a Verleugnung (ou recusa), mecanismo psíquico inerente ao funcionamento perverso, ora encontrado no psiquismo normal, ora no patológico; e a Verwerfung (ou forclusão), mecanismo característico do funcionamento psicótico.

Uma das questões mais perturbadoras do caso clínico citado foi o diagnóstico no qual pareciam estar presentes aspectos relativos aos mecanismos de negação – explorados por Green em sua teorização – no sentido mesmo de negar a doença, mas não sob a perspectiva da negativa (Verneinung), e sim da recusa e da rejeição (Verleugnung e Verwerfung).

Com base nesses mecanismos, e especificamente em um dos mais dramáticos, a Verleugnung – que corresponde à recusa –, ocorre uma oposição ao reconhecimento de uma percepção negativa, que renega sua existência, agindo contra a própria natureza, negando-se a si mesma. E se tomamos também a Verwerfung, que se refere à rejeição – mecanismo de negação próprio da psicose –, em que a oposição é ainda mais enfática, levando a um repúdio do conteúdo insuportável e apontando para uma tentativa de eliminação ou desaparecimento daquilo que fora rejeitado. Tais mecanismos traduzem a força e a intensidade da pressão de negar um determinado conteúdo.

Green descreve um tipo de organização patológica muito semelhante ao que nos parece possível observar nesse caso, a noção de psicose branca, que se refere a uma psicose em negativo, como uma psicose negada ou negativada, ou seja, como uma reação aos efeitos dos mecanismos citados anteriormente, impedido-os de se expressar ou eclodir.

Podemos então considerar uma associação muito própria entre os mecanismos da negação e a noção de psicose branca como um possível diagnóstico do caso; a psicose branca apareceria, com seus efeitos paralisantes, como uma tentativa de neutralizar a ação devastadora de uma psicose propriamente dita.

De fato, [a psicose branca] trata-se de uma estrutura invisível, raramente pura, sempre aquém ou além do que sua denominação tenta definir (cercar). Isto é, ela pode facilmente passar por um estado depressivo mais ou menos neurótico, ou por um estado limite, ou mesmo se esconder sob um quadro psicótico sem sinais patentes (Green, 1973, p. 264).

Green enfatiza que a psicose branca é sempre um fenômeno nuclear, ou seja, seus efeitos têm relação com o centro ou o “umbigo” da problemática patológica em jogo. A partir do progresso do acompanhamento do caso, pude reconhecer que a questão patológica da paciente estava em um momento de expansão, como se eu estivesse testemunhando sua eclosão. Podemos relacionar esse aspecto, inclusive, ao processo regressivo desencadeado pelo acompanhamento terapêutico, e nesse sentido, justamente a relação terapêutica pôde permitir uma expressão mais clara dessa sintomatologia.

O branco é, assim, a ausência de objeto, ausência de si (ausência de objetos de investimento libidinal e narcísico), ausência de representação e de pensamento e, simultaneamente, uma opacidade. Não é o branco que, como fundo, propicia a emergência dos pontos, das linhas e figuras. É o branco opaco, obstinado e impenetrável. Um branco “cheio”, portanto, embora cheio de vazio, pois o que está interiorizado (sem ser na verdade introjetado e sem servir de base a uma verdadeira identificação) é um... “introjeto do objeto primário que dele só conserva uma forma totalmente abstrata e que exerce sua ação no modo de um impedimento ao prazer narcísico de se sentir vivo, em ação, em progresso” (Figueiredo, 2004, p. 49).

Um outro importante aspecto a salientar é a questão do vazio, ou da paralisação do pensar, expressa de forma tão radical na fase melancólica do processo, e em relação à qual encontramos uma correspondência, mais uma vez, nas palavras de Green, em sua descrição da psicose branca: “na psicose branca, esse vazio antes parece ser expressão das pulsões de destruição atacando os processos de ligação” (Green, 1973, p. 270). À paralisia do pensar, Green atribui um desinvestimento massivo, com a função de obstruir um possível ataque das pulsões de destruição sobre o pensamento; tratar-se-ia de um alerta ao eu, para se evitar uma comunicação entre os processos primários e secundários, que por sua vez podem representar a eclosão de um surto psicótico. Esse desinvestimento teria por função a proteção, como Green afirma, em uma operação suicida. A psicose branca é testemunha da função desobjetalizante da pulsão, ao efetuar a ação do desligamento; trata-se de uma estrutura psicótica em estado latente, invisível, em negativo, em que se reconhece o que Green chama de uma “depressão sem afeto” e uma “alucinação negativa do pensamento” que traduzem a ação da pulsão de morte. Isto é, por depressão sem afeto podemos pensar o desinvestimento massivo, estabelecimento de um vazio, algo que se assemelha a um estado melancólico, com uma desvitalização intensa, levando ao que ele denomina de alucinação negativa do pensamento, um vazio que impede e paralisa o pensar, uma possibilidade de não pensar absoluta, alucinante. Trata-se da expressão dos mecanismos de negação mais extremos, como citamos anteriormente, a Verleugnung e a Verwerfung.

Podemos também fazer uma articulação com o mecanismo de negação manifesto nas atitudes da família, ao rejeitar, excluir a possibilidade, esquivar se, do reconhecimento da problemática patológica da paciente. Em uma perspectiva da forclusão, tradução do mecanismo da Verwerfung, esse reconhecimento é rejeitado no plano simbólico – como diria J. Lacan a respeito desse mecanismo por ele criado –, e vai retornar no real do padecimento da moça, em uma perspectiva de sua materialização; essa negação extrema é nela encarnada, reencenada, muito embora como externa a ela, imposta, e sobre a qual só lhe resta explodir, “conjurar”, correr atrás, quebrar a cristaleira etc. A moça teria sido rejeitada em uma família em que não havia espaço para ela, e os efeitos dessa rejeição constituíram por conseqüência seu transtorno psíquico, que por sua vez fora rejeitado mais uma vez como distúrbio.

Nós compreendemos também a considerável mudança que houve no aparelho psíquico. O aparelho psíquico não é mais um aparelho que simplesmente elabora, ele não é mais um aparelho que se contente em recalcar, porque recalcar é conservar. Ele é também um aparelho que denega, pela forclusão, pela clivagem evacua, elimina e se automutila (Green, 1995, p. 44).

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Carlota Maria Oswald Vieira Zilberleib
R. Aristides Lobo, 552 – 13083-060 – Cidade Universitária – Campinas/SP
Tel.: (19) 3287-6996
E-mail: zilberl@terra.com.br

Recebido em 23/04/06
Aprovado em 02/06/06

 

 

1Psicóloga; Acompanhante Terapêutica; Canditada a Formação em Psicanálise (SBPSP); Especialização em Fundamentos da Psicologia e Psicanálise (FFPP/IFCH/Unicamp); Mestrado em Psicologia Clínica (PUC-SP).