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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.18 São Paulo set. 2006

 

ARTIGOS

 

A clínica do acompanhamento terapêutico: intervenções quando a recusa toma a cena

 

The therapeutic accompaniment clinic: interventions when “disavowal” takes the scene

 

 

Maíra Humberto PeixeiroI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho pretendo realizar um exercício de articulação entre a clínica do acompanhamento terapêutico e a teoria psicanalítica, tendo como norteador o conceito de recusa (a Verleugnung freudiana), a partir de um caso clínico que acompanho há cerca de um ano e meio. Refletirei sobre o processo do acompanhamento terapêutico, as intervenções realizadas e seus supostos efeitos, tendo em vista principalmente o manejo, a construção e os efeitos de uma cena no acompanhamento de uma paciente.

Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Clínica, Recusa, Intervenções, Cena.


ABSTRACT

In this paper I intend to articulate the clinical experience of therapeutic accompaniment and psychoanalytic theory, using the disavowal concept (Freud’s Verleugnung) as a guide. I base the study on the clinical case of a patient I have been accompanying for about 18 months. I will reflect on the therapeutic accompaniment process, the interventions performed and its supposed effects, focusing mainly on the management, the setting up and the effects of a scene during the patient accompaniment.

Keywords: Therapeutic accompaniment, Clinic, Disavowal, Interventions, Scene.


 

 

Neste trabalho pretendo refletir sobre o caso de uma paciente de acompanhamento terapêutico com quem trabalho há cerca de um ano e meio. Durante o acompanhamento, a paciente em questão, uma mulher de cinqüenta e um anos, que chamarei de Vitória, apresentou algumas diferenças significativas em relação ao quadro inicial. Essas diferenças abriram campo para uma reflexão mais aprofundada sobre os efeitos do trabalho, levando em conta que o conceito de recusa (Verleugnung), a partir de uma leitura do caso, tornou-se um dos operadores clínicos que fundamentaram as intervenções durante todo o processo. A construção de uma cena, a cena e os efeitos dessa construção, instrumentos de intervenção na clínica do acompanhamento terapêutico merecerão especial atenção.

É importante precisar que o conceito de recusa a que me refiro é o que está situado na obra freudiana como Verleugnung, traduzido para o português como rejeição e/ou recusa da realidade na Edição Standard Brasileira das Obras completas de Freud (1980), e que outros autores também traduzem por desautorização, denegação, desmentido, ou ainda como repúdio1.

Bernard Penot, no livro Figuras da recusa (1992), realiza um estudo aprofundado sobre a Verleugnung freudiana, e faz uma apropriação particular, muito consistente, do conceito. O autor escolhe usar o termo “déni”, a partir do sentido usual de “déni de justice”, ou recusa de justiça, para designar essa operação psíquica. Este termo esclarece o efeito, que seria a própria suspensão da função de julgamento, uma recusa a levar em conta que tal manobra psíquica exerce. Segundo ele, a recusa opõe-se ao recalcamento, pois não é que a representação foi subtraída à consciência, mas teve seu valor não admitido, seu sentido reduzido. A representação é reduzida a um estado de não significância, e passa a não mais fazer parte do jogo associativo, do jogo simbólico.

A dimensão de desorganização e cisão do sujeito que a recusa desencadeia faz pensar que algo pode não ter operado consistentemente na constituição narcísica do sujeito. A problemática da recusa parece ter seus fundamentos em uma dificuldade de dar sentido, que estaria conjugada com o passado anterior a uma história individual, acreditando-se que o não significado adviria daquilo que no discurso parental estava fora do jogo simbólico. A criança chega ao mundo imersa no discurso parental, discurso não só verbal, mas cheio de significações, que a designam e a situam. Onde a recusa da realidade parece dominar o quadro clínico, o psicanalista pode ficar diante de um sistema pré-formado de significações, que se mantém a despeito da experiência individual. Trata-se de pré-concepções, como afirmou Freud, que encontram suas raízes nas vivências familiares, e podem ser um tanto subjetivadas pelo interessado, atravessando seu psiquismo por meio de um determinismo de repetição. Aquilo que poderia ser o arcabouço fantasmático do sujeito, estando fora da possibilidade do jogo simbólico, pois reduzido à não significância, aparece como compulsão à repetição. O trabalho do analista diante da recusa consistiria em “tratar das condições de acesso do sujeito a um arranjo simbólico dos dados perceptivos que serão os seus; dito de outro modo, o equipamento de uma vida fantasmática que lhe seja própria” (Penot, 1992, p. 12). A abordagem do meio familiar pode ser indicada quando o material clínico demonstra tal determinismo transgeracional.

Luís Cláudio Figueiredo, no texto intitulado Verleugnung : a desautorização do processo perceptivo (2003), entende o conceito freudiano como um processo de desautorização, que consistiria em um mecanismo de interrupção de um processo pela eliminação da eficácia transitiva de seus elos. Para ele, o que se recusa não é precisamente a percepção, mas sim o que viria logo depois dela, o que esta propiciaria como possibilidade de simbolização – a conclusão que a percepção poderia reativar. É como se a percepção não deixasse de conservar sua figurabilidade, mas ela ficaria enquistada, sem permitir ligação, o que justamente a atribuiria de sentido. Ele descreve pacientes cuja percepção, ou lembrança, permanece intacta, mas que não produzem conexão com outras percepções e com outros processos psíquicos, o que impede o processo de elaboração. A desautorização priva a percepção de sua eficácia, retirando-lhe sua significância, ou seja, sua capacidade de engendrar sentido a partir da referência a outras percepções. A percepção conserva-se como uma “quasecoisa”, que pode ser arquivada como uma lembrança que não se integra à circulação psíquica, pois perdeu a capacidade de metaforização.

O autor escreve ainda sobre o caráter traumático do retorno dessas “quase coisas” pelas vias perceptiva e somática, de maneira abundante e descontrolada, impondo ao sujeito um excessivo transbordamento de sensações que não podem ser metabolizadas. Nos casos de maior comprometimento, configurar-se-ia um bombardeio com características demoníacas e persecutórias, dando ensejo ao pânico e a uma sensação de ameaça premente. Figueiredo ressalta ainda que Freud, ao formular a Verleugnung, não vislumbrou o alcance que esse mecanismo poderia ter. Na clínica contemporânea, o fenômeno da recusa tem um amplo campo de incidência, o que poderia ser atribuído, segundo ele, às condições sócio-culturais contemporâneas, que ele caracteriza como cultura do traumático.

 

Vitória

O acompanhamento terapêutico foi iniciado há cerca de um ano e meio. O encaminhamento foi feito pelo hospital psiquiátrico onde Vitória vinha sendo recorrentemente internada nos últimos trinta anos. O pedido da equipe que vinha acompanhando Vitória nas internações era possibilitar que ela permanecesse mais tempo desinternada (já que no último ano as internações foram muito freqüentes, e algumas bastante longas), e que ao longo do tempo as internações cessassem. O AT sustentaria essa tentativa.

A equipe descrevia uma utilização crônica do hospital como um prolongamento de sua casa, o que intensificava a situação decorrente da problemática: a dificuldade de socialização, de construção de um projeto de vida pessoal, o isolamento.

As internações ocorriam normalmente quando ela apresentava uma intensificação da ansiedade e dos delírios e a família recorria ao hospital. A primeira internação foi realizada após tentativa de suicídio com uso excessivo de medicação. Vitória apresenta sintomatologia delirante e eventuais alucinações. O delírio se caracteriza por idéia de desamparo, de desunião, de ruptura de laços familiares, que se estende ao desamparo de moradores de rua, pessoas que precisam de ajuda. Não é uma construção delirante bem estruturada, mas bastante fragmentada. Frente ao delírio, ela repete uma tentativa de ajudar, de unir, de amparar e de orientar moradores de rua, crianças, pedintes etc, que nunca a satisfaz. Alguém está sempre precisando de auxílio, e ela é aquela que não pode ajudar. Isto se intensifica em relação a crianças, cujos gritos e pedidos de ajuda ela às vezes escuta como alucinação.

Havia um intenso automatismo de repetição nessas ações, as palavras eram raras e desvitalizadas. Foi disso que me encarreguei: abrir algum espaço para as palavras nesse terreno árido. A partir daqueles que precisavam de ajuda, Vitória começou a falar dela.

A família de Madalena, mãe de Vitória, tem ascendência italiana. Seus pais eram filhos de italianos e tinham passado a vida em uma cidade muito pequena no interior de São Paulo. Com dezenove anos casou-se com um homem que também havia sido criado nessa cidade. Ele havia conseguido um emprego em São Paulo, e por isso eles se mudaram. Madalena diz que se sentia muito sozinha sem a família, sentido-se extremamente desamparada durante esse primeiro período da vida de casada. A irmã de Vitória, Ana, também havia se casado e se mudado logo em seguida para uma cidade litorânea. Madalena diz que Ana havia sofrido muito lá, sozinha. Principalmente quando teve os filhos e teve pouca ajuda da mãe que estava distante, assim como Madalena.

Juntamente ao AT, Vitória começou a ser atendida três vezes por semana por uma terapeuta ocupacional em um posto de saúde. Para operar a transição do hospital psiquiátrico para um espaço extra-institucional, de maneira mais sustentada, a indicação inicial era o tratamento em hospital-dia, o que não foi possível, pois não existiam vagas disponíveis na região naquele momento. Com esse suporte, ela experimentou uma certa estabilidade durante alguns meses.

Quando Vitória falava sobre o que estava sentindo, Madalena se incomodava. A maneira como ela reagia demonstrava uma distância e impossibilidade de reconhecimento do que Vitória estava vivendo. Era um discurso desafetado e desimplicado. Nenhuma palavra que se aproximasse da intensidade daquele acontecimento era proferida pela mãe. Esta desafetação do discurso pôde ser notada em relação a momentos da história familiar – que descreverei mais adiante – em que o sofrimento ligado ao desamparo, tido provavelmente como desruptivo, era suprimido. Diante dessas situações – como risadas fora de contexto –, minha sensação era de que algo estava “estranhamente” fora de lugar.

Havia uma certa “resignação” incômoda em Madalena; como se ela não fosse tocada pelo que acontecia. Quando Madalena relatou um importante acontecimento, algo pareceu ter se movimentado de maneira diferente. Quando Vitória tinha cerca de dois anos, Madalena teve febre tifóide e ficou um mês internada no hospital. Nesse período, Vitória foi levada para a casa dos tios, a irmã do pai, Nina, e o marido. Madalena conta que, segundo o relato da tia Nina, Vitória acordava chamando seu nome, muito assustada. A tia ficava muito preocupada, sabia da falta que ela sentia da mãe. Só se acalmou quando um dia ela acordou chamando seu nome (da tia). Madalena conta isso com muito pesar. Pergunto a Vitória se ela se lembrava ou se sabia sobre esse acontecimento, e ela diz que não. Pergunto a Madalena como ela havia se sentido naquela época e ela responde que tinha sofrido muito, mas que não havia outra saída. Ela, então, me pergunta: “será que o que acontece com a Vitória hoje pode ter a ver com isso?”. Digo que não sei, mas que poderia ser. A postura aparentemente desimplicada e desafetada de Madalena dá lugar a uma questão.

Os avós de Madalena vieram de navio da Itália para o Brasil e trouxeram sua mãe, que na época tinha três anos de idade. A mãe de Madalena lhe disse que quando veio para o Brasil havia deixado seu coração na Itália. Pergunto o que isso queria dizer e ela diz que não queria dizer muita coisa, que não era nada. As duas riem. Como dizer que alguém havia deixado seu coração não queria dizer nada? O discurso esvaziado de sentido, de afeto, volta a ocorrer no ponto em que se reafirma o que não pôde ser dito plenamente em um momento anterior. De qualquer forma, era muito precisa a afirmação de que o coração havia ficado na Itália.

 

A construção de uma cena

Chego à casa de Vitória e ela está sentada no sofá com uma expressão um pouco melhor que nos últimos encontros. Pergunto como ela estava se sentindo. Ela diz que a angústia dentro do peito havia diminuído um pouco. Nós havíamos pensado, no acompanhamento anterior, em fazer uma visita para a tia Nina. Ela concordou. Estávamos saindo de sua casa quando ela disse que não estava muito bem e que seria melhor ficar em casa. Eu insisto.

Ela me apresenta sua tia, que nos convida para um cafezinho. Ao iniciarmos uma conversa, ela me pergunta: “o que será que aconteceu com a Vitória? Por que será que ela ficou desse jeito?”. Pergunto se ela tinha alguma idéia. Ela começa a falar da infância de Vitória, diz que ela era uma menina que gostava de brincar, alegre, mas que foi ficando mais retraída com o passar dos anos.

Nina relembra uma cena que aconteceu na casa de Vitória quando ela tinha dezoito anos. Estavam as duas próximas ao portão quando o vizinho da frente, que a tia sabia que era um rapaz por quem Vitória estava interessada, apareceu na rua. Imediatamente a tia falou para a sobrinha sair de casa e ir falar com ele. Ela não quis ir, a tia insistiu e Vitória foi ficando muito aflita. Recusou-se a sair e entrou em casa chorando.

A partir do relato dessa cena, noto que Vitória começa a ficar angustiada, pois sua feição foi mudando. Começo a pensar se deveria interromper a conversa. Nina continua falando e conta sobre o momento em que Vitória passou a não conseguir sair de casa, e só a chorar muito. Isso ocorreu no último ano da faculdade, que ela conseguiu concluir com muito esforço.

Ela havia me contado anteriormente o desenrolar dos acontecimentos que culminaram com seu retraimento em casa. Na época, ia dirigindo para a faculdade e dava carona para algumas amigas. A partir de certo momento começou a ficar com muito medo de dirigir. O medo foi aumentando, as amigas perceberam e ficaram inseguras. Não queriam mais ir para a faculdade com ela. Vitória, por fim, parou de dirigir. Concomitantemente, as poucas relações que ela mantinha na faculdade, foram se dissolvendo. Foi ficando cada vez mais isolada, não conseguia conversar. A tia acrescenta que, no final do curso, Vitória havia ficado muito interessada em um professor, ficando muito nervosa nas aulas dele, não conseguindo assisti-las. A tia apresenta uma dimensão absolutamente nova do desencadeamento da crise, uma dimensão abolida do discurso até então. Pergunto a Vitória se ela se lembrava disso, e ela diz que sim, mas que não quer falar sobre o assunto. Parecia cada vez mais angustiada.

Por que essa dimensão teria sido apagada dos relatos de Vitória e da mãe? Talvez porque os homens nessa família são aqueles que afastam as mulheres de suas famílias, provocando dor e sofrimento. Ela diz querer ir embora, mas eu ainda faço uma pergunta à tia Nina antes de sair. Sinto-me o tempo todo indo além do que poderia, mas ainda sem compreender bem o porquê, eu insisto.

Pergunto sobre o tempo em que Vitória ficara em sua casa, quando tinha dois anos e Madalena estava no hospital. Ela relembra e nos conta o que havia acontecido, como Madalena havia contado, mas colocando mais ênfase no sofrimento da sobrinha, mais intensidade. Contou também que depois de algum tempo em sua casa, Vitória fugiu e foi andando sozinha até a casa dos pais, que ficava a três quarteirões de lá. Chegou lá, puxou a camisa do pai e disse que queria ficar na casa dela. Quanta determinação.

Vitória começou a pedir para ir embora, dizendo que estava cansada e percebo que ela não estava bem. No caminho falou que estava com aperto no coração, dizendo que gostou da conversa, mas que falamos de coisas demais. Ao chegar em sua casa ela abraçou a mãe e se pôs a chorar muito. Vitória começou a dizer que tem muito medo de ficar longe dela, ainda chorando muito. A mãe ficou bastante assustada, seus olhos se encheram de lágrimas, e pergunta o que aconteceu. Conto-lhe sobre a conversa e ela diz para Vitória parar com o choro, que estava tudo bem. Madalena diz que Nina não devia ter falado tudo isso, que não deveríamos ter ido lá. Parece que Madalena não dispõe de recursos simbólicos para oferecer uma ancoragem à filha, que passa por um momento de extrema desorganização. Percebo que quando a mãe se aproxima, Vitória volta a chorar e se desorganizar, quando a mãe sai de cena ela fica melhor.

 

Os efeitos dessa cena

A partir da construção dessa cena seguiram-se momentos muito difíceis. Durante os acompanhamentos eu tentava construir alguma ancoragem simbólica para a intensidade vivida, mas o que aparecia cada vez mais fortemente era a compulsão por ajudar pessoas na rua. Vitória foi se desorganizando, não conseguindo mais ir aos atendimentos de TO. Madalena ia ficando cada vez mais irritada; não suportava ouvir Vitória falando das pessoas que precisavam de ajuda. A situação se tornou ainda mais insustentável quando a terapeuta ocupacional disse que não poderia mais se responsabilizar por atendê-la, pois não achava que o equipamento de que dispunha, o posto de saúde, era suficiente para dar o suporte necessário.

Em uma situação limite, em que a psiquiatra que a atendeu não conseguiu pensar em alguma medicação que pudesse contê-la de maneira a propiciar que ela permanecesse em casa, Vitória foi reinternada no mesmo hospital onde havia sido internada nos últimos trinta anos. Durante o tempo em que era decidida a internação, ela dizia insistentemente que queria voltar pro hospital, que algo de efetivo precisava ser feito. Assim aconteceu.

Durante o período em que Vitória esteve internada, conversei com Madalena e ela me pareceu muito abatida. Disse-me que dessa vez tinha sido muito difícil para ela. Foi a internação da filha que a deixou mais triste, desolada, desanimada. Contou que a cena de Vitória entrando no hospital não parava de se repetir em seus pensamentos. Novamente havia se repetido a cena em que Vitória e Madalena se separam. Dessa vez quem foi para o hospital foi Vitória, deixando Madalena sozinha. Quando me pediu para deixá-las em paz, penso que o que havia acontecido naquelas últimas semanas havia sido realmente excessivo, e que era necessário tempo para alguma elaboração. Parece que esse reconhecimento construiu, com Madalena, uma possibilidade de ligação confiável. Nos últimos tempos, ela vinha demonstrando muita irritação com minha presença.

Uma nova internação ocorreu, e dessa vez a acompanhei e deparei-me com um cenário absolutamente novo. Vitória havia se aproximado das outras pacientes que ficavam internadas no mesmo setor. Fez questão de me apresentar a algumas; contou-me sobre sua rotina lá dentro, havia palavras e personagens compondo o espaço. Ela não estava isolada lá dentro, ligando para a mãe de meia em meia hora, angustiada e desesperada, como havia ocorrido em todas as antigas internações: ela tinha vontade de sair, havia um sorriso esperançoso.

No retorno insisti para que Vitória começasse a freqüentar um hospitaldia, e lhe apresento um CAPS. Vamos aos poucos desconstruindo a fantasia de que a entrada no CAPS poderia separá-las. Conversei com as terapeutas que ficarão responsáveis por ela, combinando que no início a mãe iria acompanhála e esperar o fim da atividade, para que depois, muito gradativamente, ela passasse a ir sozinha. Essa possibilidade permitiu que Vitória iniciasse sua participação no CAPS, o que foi de imensa importância para ela.

Foi realmente admirável a maneira consistente como ela foi se inserindo nos projetos, e como o CAPS propiciou um espaço de sustentação social muito precioso para Vitória. A mãe também acabou por constituir, na sala de espera, um pequeno grupo de conversa. Ela, familiares de outros pacientes e a secretária conversavam diariamente. Madalena também encontrou no CAPS algum recurso ao isolamento, o que certamente tranqüilizou Vitória.

 

O grito

Durante um encontro, Vitória me contou que havia sentido um desespero muito grande no dia anterior, pois tinha ouvido um grito que vinha de dentro dela. Perguntei quem havia gritado e ela não respondeu. Somente quando nos sentamos à mesa para tomar um lanche com Madalena, o que habitualmente acontecia no final dos encontros, é que Vitória contou uma lembrança. Disse que se lembrava de estar em um quarto escuro sozinha quando era muito pequena, e gritar de pavor. A mãe logo completou: quando Vitória tinha cerca de um ano de idade ela teve desidratação com diarréia grave. Teve que ficar restrita a seu quarto durante um certo tempo, pois o médico que a examinou achava que ela estava muito fraca, devendo permanecer em repouso. Disse aos pais que Vitória poderia não sobreviver. Ela disse: eu gritei de medo. A uma certa altura, Vitória ausentou-se da mesa. O grito das crianças, que ela ouvia de forma alucinatória passou a vir de dentro dela, e ela reconheceu que aquele era seu próprio grito.

Nesse momento, Madalena olhou para mim com os olhos muito entristecidos e disse: “a Vitória sofreu muito quando era pequena e continuou sofrendo depois que cresceu. Ninguém pode agüentar isso. Ela precisa aliviar esse sofrimento”. Eu confirmo o que ela havia dito com um gesto. Aquela fora uma fala plena; as palavras estavam carregadas de afeto, havia ali o reconhecimento do desamparo de Vitória. Madalena havia se implicado de alguma maneira com o sofrimento da filha. Foi uma fala com força de ato. Uma pequena mudança de posição havia ocorrido. A doença de Vitória nesses anos todos tinha garantido a sua mãe que ela não ficaria sozinha, ao mesmo tempo em que lhe garantia que ela não precisaria deixar de se isolar. A doença justificava o isolamento das duas – dessa maneira, ela não precisaria fazer outras ligações, e continuaria vivendo o desígnio cruel de uma vida sem coração.

O que se seguiu foi uma gradativa e consistente melhora de Vitória em relação à angústia constante, ao medo, à preocupação com os outros, à compulsão por ajudar e às alucinações auditivas. Aquela casa aconchegante, mas desabitada, é cenário agora para muitos personagens: tios, tias, primos, vizinhos, sobrinhos etc. Vitória enche a casa de vida e parece oferecê-la à mãe. Aos poucos Vitória tirou Madalena do isolamento, e concomitantemente vai construindo um espaço próprio.

 

Considerações finais

Mannoni, ao falar sobre trauma e criação, relata a história infantil de uma menina que se tornou posteriormente uma escritora de livros de terror, de histórias de assombração, de fantasmas. Em 1870 foi declarado aos pais dessa menina, Edith Wharton, na época com oito anos de idade, que ela morreria de tifo. Foi por acaso que um médico forasteiro, ao passar em sua pequena cidade, propôs um tratamento que a salvou. Mas isso ocorreu ao preço de um tempo de alguns meses de isolamento em um quarto de hotel, onde um médico e uma enfermeira (vestidos de branco como “fantasmas”) a examinavam, e seus pais raramente a visitavam. Ao ser isolada, não lhe disseram a verdade sobre o que se passava, ela simplesmente foi retirada do convívio familiar e de quaisquer pessoas repentinamente. Depois de curada seguiu-se um período em que a menina sofria de um medo indefinido e aterrorizante, e de alucinações visuais e auditivas. Histórias de terror lhe causavam muito pavor e ela destruiu os livros com esse tema que ganhou naquela época. Foi após ela mesma começar a escrever contos de horror que os sintomas foram curados. Repetidas histórias que incluíam doença e isolamento foram escritas por ela. Essas histórias estavam impregnadas pela intensidade de desamparo que ela viveu quando criança. Como nos conta Mannoni,

Edith Wharton faz o leitor partilhar de uma experiência de extremo desamparo. Ela oferece, leva a se experimentar o horror do “sem recursos” que oprime os que vivem num mundo onde reina apenas a Lei do arbítrio, encarnada por mulheres ou fantasmas (1995, p. 19).

Em seus contos, mulheres eram responsáveis por manter os doentes e inválidos no isolamento do saber, tal como no isolamento concreto. Em um conto escrito antes de morrer ela consegue se recuperar do trauma sofrido quando criança, ao fazer a personagem principal queixar-se de que havia sido deixada isolada de maneira cruel, em uma casa que parecia uma sepultura.

Mannoni afirma que se a construção delirante pode configurar uma tentativa de cura, a transposição de uma angústia de viver, de um trauma para uma Outra cena, por meio da escrita que teria um efeito libertário. Alguns permaneceriam prisioneiros de seu trauma, repetindo-o monotonicamente, e outros poderiam transpor o terror na criação. Na falta de um lugar para o “fantasiar”, irromperia o fantástico, faltaria uma Outra cena para que o brincar pudesse desdobrar-se. Quando essa “brincadeira” fica impedida e o sujeito busca então um lugar onde se proteger, um lugar onde reina a onipotência e que não se refere a realidade alguma.

Podemos pensar que Vitória, ao experienciar um intenso desamparo quando, com um ano de idade, foi isolada em razão da grave desidratação e quando, aos dois anos, foi separada da mãe quando esta sofreu de febre tifóide, não tinha recursos para significar o que acontecia. É possível imaginar Madalena paralisada diante da possibilidade de perder a filha quando recebeu a notícia do médico, perdendo as palavras que poderiam servir de suporte para Vitória. A iminência da separação, já traumaticamente vivida por Madalena (e por gerações de mulheres anteriores a ela), era terrivelmente desruptiva e ela “fechou-se em copas” mais uma vez, deixando Vitória extremamente sozinha e desamparada.

O acompanhamento terapêutico, ao possibilitar a construção de algumas Outras cenas, reescreve esse verso monotônico, acrescentado-lhes certas variações que permitam a experimentação de outras saídas. Segundo Sereno (1996), a cena é o instrumento de trabalho do at. A tarefa no acompanhar é a de construí-la no concreto, em ato, contando com os recursos criativos dos envolvidos. A construção representaria a própria saída, sendo em si mesma o próprio acontecimento (Sereno e Porto, 1989). O AT daria estatuto de cena àquilo que é puro ato repetitivo.O at escuta a cena, e ao fazê-lo, multiplica os olhares possíveis para uma imagem cristalizada, separa figura de fundo, acrescendo mobilidade a seus componentes. Segundo Sereno, o objetivo é: “multiplicar olhares, ampliar: ao contrário de se deixar cativar por um “o Olhar” (1996, p. 56).

Podemos pensar que a partir da(s) cena(s) em que vamos até a casa de sua tia, em que no retorno à casa repete-se o que aconteceu quando Vitória tinha dois anos, e continua a se repetir nas seqüentes internações, é que a intensidade traumática daquela vivência, quando retomada, convoca Madalena a um pequeno deslocamento de sua posição, um outro olhar. Talvez tenha sido esse reposicionamento, nesse momento, que desencadeou o processo de melhora em Vitória.

Penot (1989) afirma que a ligação simbólica só pode existir no psiquismo ao preço de se levar em consideração a castração, e pela realização de um certo luto edipiano. A recusa apareceria onde não foi possível suportar que o objeto faltasse, e que também algo pudesse faltar ao objeto. Como já foi dito, onde não há ausência não há simbolização, somente pura repetição. A recusa procura evitar que algo seja articulado em termos de contradição, assim suturando a falta. A meu ver, Vitória tem estado por anos suturando aquilo que não pode aparecer como falta em Madalena.

Madalena, por sua vez, carregava em uma parte de seu psiquismo, uma desarticulação simbólica que cumpria a função de manter em suspensão a representação, diversas vezes inscrita, de um coração deixado na Itália. Venho a saber mais tarde que os pais de sua mãe saíram de certa forma fugidos da Itália, pois a avó de Madalena, filha de família rica, apaixonou-se por um trabalhador da terra e com ele se casou. Sua família não gostou do caminho que a filha tomou e os incentivou a irem para longe. Enviavam um dinheiro que não chegava, que ficava no caminho. Sendo assim, eles passaram por muitas dificuldades quando chegaram ao Brasil. Talvez essa mulher, que está nos primórdios de uma linhagem de mulheres, tenha sido renegada (recusada) pela família.

A partir da impossibilidade de atribuição simbólica e conseqüente impossibilidade de elaboração, pode ter se fundado uma seqüência de gerações de mulheres condenadas a repetir seu destino. São mulheres que se retiram da família, concretamente, quando casam. Ao mesmo tempo, também estão condenadas a manter o segredo, conservando imaginariamente a completude do outro, protegendo a integridade narcísica do sujeito contra a castração. Sobre isso, Penot se questiona:

quando um dos registros do ego se manifesta irredutivelmente tributário de uma tal lógica primária, não será também pela necessidade, percebida por ele como vital, de manter sua relação de obediência com um representante superegóico? (1992, p. 38).

O pré-conceito2 que dificulta que o sujeito possa constatar ausência do pênis na mãe está apoiado em um registro de sinais parentais de que ainda depende. Assim, diz ele, uma mãe poderia fazer com que seu filho percebesse que ela não suportaria sua menção a essa falta que ele percebe nela e que o aflige – mães “incastráveis” imaginariamente, pois extremamente frágeis, inversamente. Por outro lado, a condição para o jogo simbólico seria a capacidade de considerar as instâncias parentais em falta.

Vitória, por meio de seu sintoma extremamente desruptivo, põe em cena a impossibilidade familiar de cuidar, convoca a mãe a fazê-lo e a acusa em um tempo anterior de não ter cuidado dela. Assim aponta alguma falta, ao mesmo tempo em que a tampona quando permanece como objeto da mãe, não deixando que ela fique sozinha, e justificando com a própria doença que a mãe permanecesse isolada, sem precisar fazer ligações.

O discurso desafetado e desimplicado de Madalena, como foi descrito – que remete à vivência do estranho, pois é como se algo estivesse radicalmente excluído do eu – denunciava que ali algo estava recusado. Assim como quando Vitória era tomada pelos choros alucinados das crianças – que queria, mas não conseguia ajudar –, era essa vivência do estranho em si que ela presentificava. Nesses momentos de esvaziamento simbólico resta ao analista/acompanhante pensar pelo paciente, e parece que me foi atribuída essa função. Aquilo que não pôde ser pensado, o incompatível, deve ser articulado. É um desvio pela economia psíquica do analista, que exige dele um grande dispêndio de energia. Durante esse acompanhamento, as articulações que ia realizando me ajudaram a construir formulações sobre a história familiar de Vitória e Madalena. Através delas é que pude saber o que e quando perguntar, e as pontuações que precisavam ser feitas, mais do que construções ou mesmo interpretações. Não se tratava de decifrar aquilo que estava sendo dito, ou de injetar um pedaço de história que estava faltando, mas de tornar vivo e carregado de sentido aquilo que era dito de maneira esvaziada. Verificou-se, depois da construção da cena na casa da tia, o surgimento de uma fala plena de sentido.

Para finalizar, Penot diz que nesses casos em que existe uma forte interdependência com as instâncias familiares reais, pouco mediatizadas pelas formações fantasmáticas pessoais, acabamos tendo que lidar com a economia de todo o conjunto familiar, pois sem isso é bastante improvável que o sujeito que tratamos possa modificar de alguma forma sua própria economia psíquica.

No acompanhamento terapêutico, o acesso ao conjunto familiar é enormemente facilitado pelas condições de circulação do at pelo universo do paciente. Muitas vezes, as intervenções do acompanhante não incidem diretamente sobre a família, mas incidirão indiretamente a partir do deslocamento de posição na dinâmica familiar do paciente atendido, que acaba por provocar modificações na estrutura cristalizada da família. No acompanhamento de Vitória podemos dizer que as intervenções incidiram tanto nela quanto em Madalena, e mais precisamente no entrelaçamento das duas. Foi ao construir uma brecha “entre” que alguma diferença se tornou possível, abrindo espaço para Vitória se articular a quaisquer outros objetos de seu mundo.

O acompanhamento terapêutico, com toda a plasticidade que lhe é característica, acabou por oferecer ao caso a ampliação do campo de trabalho necessária ao manejo analítico. Onde a recusa tomava a cena de outrora, uma outra construção pôde ser reapresentada, abrindo caminho para o desdobramento de uma Outra cena, esta por sua vez desdobrando-se em várias outras.

 

Referências Bibliográficas

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SERENO, Débora. Acompanhamento terapêutico de pacientes psicóticos : uma clínica na cidade. Dissertação (Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maíra Humberto Peixeiro
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E-mail: mpeixeiro@hotmail.com

Recebido em 23/04/06
Aprovado em 03/06/06

 

 

Notas

IPsicanalista; Acompanhante Terapêutica; Ex-integrante do Instituto “A Casa” e Instituto Teraphon Adolescência; Membro do Grupo de Pesquisa “Saúde, Cultura e Envelhecimento”: Estudo do AT para Idosos (Programa de Estudos Pós-graduados em Gerontologia/PUC-SP).
1Segundo Hanns (1996), entre as principais conotações de Verleugnung está a idéia de “negar a presença-existência”, pressupondo que o sujeito sabe sobre o que é rejeitado. Assim, o termo traduziria menos uma postura de negação e mais uma postura de contestação da veracidade da existência, preservando a noção de ambigüidade presente ao conceito. Ainda é importante ressaltar que na edição brasileira pode-se ler recusa e rejeição, sendo que o conceito usado não foi o de Verleugnung, mas sim algum outro termo similar usado por Freud, como por exemplo, Werwefung.
2As crianças constroem o pré-conceito de que todos os seres possuiriam pênis.