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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.18 São Paulo set. 2006

 

ARTIGOS

 

Acompanhamento terapêutico: da construção da rede à reconstrução do social

 

Therapeutic Accompaniment: from the construction of a treatment network to the reconstruction of social relationships

 

 

Maria do Rosário Dias Varella*I; Fernanda LacerdaII; Michelângela MadeiraIII

* Universidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os segmentos de tratamento em saúde mental são como fios, cujo trançado vai tecendo uma rede, podendo ser aberta ou fechada, conforme a necessidade do uso. O importante nessa rede são as amarrações feitas, de modo a permitir um deslocamento entre os pontos. É preciso analisar cada ponto, não só para direcionar o tratamento, como para saber se ele oferece flexibilidade para que o paciente nele circule sem se amarrar. O trabalho de AT, ao estar com o paciente tanto dentro como fora dos pontos referenciais, introduz a questão da circulação, necessária para uma reorganização do sujeito. Apresentaremos dois casos clínicos que demonstram as possibilidades do AT na construção de uma rede relacional e de inserção social.

Palavras-chave: Tratamento em saúde mental, Rede de atendimento, Acompanhamento terapêutico, Inserção social, Rede relacional.


ABSTRACT

Every branch of Mental Health treatment is like a thread, when they are sown, a tissue net starts to form. This net can be tighter or looser, depending on the demand. Its aim is to allow movement from place to place. It is necessary to analyze each part of it, not only to guide the treatment, but also to know if it offers flexibility to permit the patients’ flow, without being tied. Therapeutic Accompaniment, by the fact that it privileges being with the patient inside and outside the reference spots of this network, allows him to circulate, which is essential for his reorganization. We will present two clinical cases which demonstrate Therapeutic Accompaniment possibilities in constructing a network of relationships and providing social insertion.

Keywords: Mental health treatment, Treatment network, Therapeutic accompaniment, Social insertion, Network of relationships.


 

 

O acompanhamento terapêutico é uma intervenção clínica relativamente recente e ainda pouco conhecida quanto aos benefícios de sua indicação. Para tanto, muitas são as tentativas de denominação. A intervenção do AT é realizada por especialistas em pessoalidade, conforme denomina Carrozzo (1991), por especialistas em poder estar nas relações, estabelecer transferências e suportá-las, semprese referenciando a um grupo, equipe e instituição implicados nessa rede relacional.

O processo de tratamento em saúde mental remete-nos à idéia de um modelo reticular: uma rede tecida com fios amarrados em pontos. O importante nessa rede é que sua composição seja feita de amarrações, que permita um deslocamento, uma passagem de um ponto a outro. Normalmente nessa área o usuário é encaminhado pela família ou terceiros, já que dificilmente percebe seu adoecimento, embora haja muito sofrimento. Em qual ponto dessa rede o usuário chega? Freqüentemente na parte na qual a tessitura é marcada pelo fator médico. Essa passagem fica marcada pelos cuidados em relação aos sintomas, podendo acontecer tanto em nível de internação, como ambulatorial. Se o paciente fica estancado nesse ponto, não poderá se deslocar e circular por uma rede maior de atendimento, que certamente o levará a um percurso mais rico de possibilidades. Com um pouco mais de sorte, ele pode vir a atingir outro ponto de amarragem, de passagem, que se constitui em um meio que mescla cuidados médicos e psíquicos, visando alguma tentativa de reorganização – inclusive pelo fato de normalmente aí a família ser incluída no tratamento. Esta é a tessitura que marca os cuidados em locais como hospital-dia ou centros de convivência.

Quais seriam os outros pontos dessa rede? O que se teoriza é que devam existir pontos agora mais marcados por cuidados de inclusão social, que promovam maior autonomia e reorganização da vida cotidiana do paciente, como oficinas terapêuticas, atelier, grupos comunitários, clubes terapêuticos; enfim, espaços onde o trançado fica mais aberto, sem grandes contornos físicos, em que a tessitura permita maior circulação. Esses espaços ainda precisam ser criados. Este deve ser o foco atual na área de saúde mental. Não basta que o usuário volte para casa. É preciso que ele volte a circular para além de um pátio, mesmo que agora sem muros.

Porém, existem alguns espaços já criados, não em nível de saúde mental, e sim de grupos informais organizados por comunidades, religiosas ou não. Para que a rede continue a ser trançada é necessário que tomemos conhecimento e contato com esses grupos, para sabermos como e onde funcionam. Este seria o primeiro passo. O segundo seria de organizar a inclusão dos usuários nos grupos. Antes precisamos abrir a discussão acerca da saúde mental, de forma a permitir o acolhimento dos usuários nesses espaços. Ainda há muito preconceito e estigma em torno da loucura. É necessário que profissionais qualificados possam ser formados (e contratados) para monitorar e supervisionar não só os pontos da rede já existentes, como para sustentar a criação de outros espaços, cada vez mais abertos.

Voltando nossa atenção para o que já foi trançado, precisamos analisar também o perfil de cada ponto da rede, não só para direcionar o tratamento, como para saber se oferecem flexibilidade para que o usuário possa nele circular, sem nele se amarrar. Se isto ocorre, no lugar de os fios tecerem pontos de referência, estarão criando nós, que impedem qualquer deslizamento, qualquer possibilidade de novas composições. Aqui o trabalho de acompanhamento terapêutico toma toda sua importância. Ao estar com o usuário, tanto dentro como fora dos pontos referenciais, o at introduz a questão da circulação, tão necessária para uma reorganização do sujeito. O at possibilita o encontro ou criação de novos pontos, de forma que o usuário possa até mesmo sair da rede de saúde mental, tecendo sua própria rede, permitindo assim a ampliação do espaço social e afetivo. Em seu percurso com o usuário, ele vai buscando terceiros para compor uma nova tessitura dos pontos de amarragem, criando novas roupagens.

 

Da intervenção da rede à reconstrução do sentir

Na realização do AT, a rede relacional é muito importante para que o trabalho se sustente. Ele ocorre na junção da equipe de AT do at, da família e da instituição. Acompanhar é trabalhar em rede, na qual o papel do at é gradualmente traçado, pois as demandas, advindas de diversos vetores, são compreendidas por toda uma equipe de acompanhamento. Essa interação ocorre de tal forma que todos os eventos ocorridos com o paciente e presenciados pelos membros individualmente devem ser compartilhados, proporcionando uma atuação mais ampla dentro de uma rede multidisciplinar. Nessa perspectiva desenvolve-se o primeiro caso, de um rapaz aqui designado pelo nome de Bruce.

O caso clínico em questão foi encaminhado pela VEC1 – TJDFT2, em outubro de 2005, para acompanhamento psicoterápico, por determinação judicial, em cumprimento a uma medida provisória. Bruce3, vinte e dois anos, encontrava-se totalmente isolado, sem comparecer ao tratamento indicado, nem mesmo às consultas médicas. Aos catorze anos apresentou um quadro de depressão grave; aos dezessete anos foi diagnosticado com um quadro psicótico (esquizofrenia). Em novembro de 2005 ocorreu o primeiro encontro com os pais dele, que pareciam desesperançosos.

O primeiro encontro com Bruce aconteceu em novembro de 2005. Houve uma preparação para esse encontro. Foi pensada uma possível estratégia para entrar em contato com um rapaz de vinte e dois anos que não fala nem olha para ninguém. A primeira idéia foi pensar no tipo de música da qual ele gostava, e como a at deveria se apresentar, de forma a procurar símbolos que estabelecessem uma conexão com o “mundo de Bruce”; com seu isolamento. Para tanto, a at procurou ser continente no primeiro encontro e nos subseqüentes. Não poderia interpretar um sujeito que não utilizava a fala nem o contato visual como forma de comunicação. Encontrava-se sempre deitado em sua cama, virado para a parede, sem falar, e com o corpo quase imóvel debaixo de seu edredom.

Bion (1970), ao descrever as virtudes do analista como possibilidade de ampliar sua área de atuação para além da interpretação, traz o conceito de continência, segundo o qual aponta que o analista deve ser capaz de conter o paciente para permitir seu desenvolvimento dentro dos limites de um enquadramento clínico, que por sua vez ajusta-se às necessidades do paciente. É um trabalho no qual o analista se adapta ao paciente para permitir que as transformações aconteçam. Esse posicionamento exercido pelo analista é um lugar psíquico que necessita ser ao mesmo tempo receptivo, acolhedor, ativo e transformador – como pensamos ter sido para Bruce. No caso, a at serviu como continência às angústias dele. Pode-se dizer, também, que essa continência assemelhou-se à função materna, na qual a mãe transforma as vivências sensoriais de seu bebê em símbolos passíveis de significação, de serem pensados, para posteriormente se desdobrar no que aqui chamaremos de nomeação – de identificar e nomear verbalmente sentimentos, emoções e conflitos vividos por Bruce, ou por Bruce e a at4.

Em RESUMO, a relação transferencial aconteceu no momento em que, segundo Heimann (1950), o inconsciente de Bruce se fez em continuação ao inconsciente da at, e este funcionou como um instrumento de percepção. Mas esse “acontecimento transferencial” (Nasio, 2000) não poderia ter acontecido sem as reflexões teóricas acerca da experiência da at no lidar com crianças autistas, ou seja, esse repertório teórico foi uma das formas de trabalho utilizadas com ele.

Após algumas intervenções, Bruce denotava ter se vinculado com a at. Esse fato foi de difícil compreensão para a família, que sempre acreditara que ele estava apenas dentro “do seu mundo”. Com um mês de tratamento, tivemos o segundo encontro com os pais de Bruce. Desta vez a mãe parecia não precisar da autorização do marido para sustentar sua fala, diferentemente do ocorrido no primeiro encontro. Entendemos com isso que no encontro anterior havíamos conseguido dar-lhe voz. A mãe contou que Bruce estava diferente; nos dias em que havia AT, ele tomava banho sem que fosse necessário mandar. No último encontro, Bruce havia feito a barba horas antes da at chegar. Estava claro para nós que ele estava vinculado à at. Entretanto, foi necessário pontuarmos esses fatos para os pais, que até então “não viam” nenhuma mudança em seu quadro psicológico. Após o segundo encontro com os pais, algo havia mudado para aquela família. Tivemos alguns encontros de AT desmarcados, e muitas das reuniões de família não ocorriam porque não se fazia possível a presença deles, já que, supostamente, somente o pai de Bruce poderia levar e trazer a família5 às reuniões, e ele viaja muito.

As manifestações da doença de Bruce não foram efeitos imediatos do momento familiar em que vivia, mas conseqüências derivadas da luta travada por seu Eu para se defender da dor insuportável, que começou a ser revelada pela angústia do que a família vem tentando esquecer. Foi a rede estabelecida entre a Justiça – representada pela psicóloga da VEC – e a UnB, que conseguiu sustentar o trabalho que vem sendo realizado pela equipe de AT da UnB. Com o apoio dessa rede relacional, conseguimos dar continuidade ao trabalho com Bruce, mesmo após sua denúncia silenciosa e exposição de sua família, pois a cada reunião era revelado não só seu sofrimento, mas a história conflituosa e repleta de não-ditos daquele sistema familiar.

 

Acompanhamento terapêutico: da construção da rede à possibilidade do social

De acordo com Rolnick (1997), a figura do at surge da necessidade de se abrir as portas dos manicômios, ou seja, da necessidade de permitir que a loucura circule em outros territórios. Logo, o acompanhante seria aquele que viabiliza essa circulação do suposto doente, e que construirá junto com ele mediações entre tais territórios. Porém, isso só será possível na medida em que esse trabalho se constitua em uma clínica que construa estratégias para que subjetividades tão vulneráveis consigam trocas com a sociedade. Assim, mais do que a articulação entre dentro e fora de espaços, como a casa ou locais de tratamento, o acompanhante terapêutico, por meio do manejo de uma transferência geralmente maciça, desloca-se na psicose do acompanhado, na tentativa de dar contornos e defesas a esse eu. Como afirma Sereno,

a circulação do acompanhante refere-se tanto ao deslocamento pela cidade e seus cruzamentos internos, na direção de um mapeamento dado pelo psicótico, como também ao deslocamento de lugares com os quais o acompanhante terapêutico se implica ao se relacionar com a psicose e sua peculiar circulação (1991, p. 68).

O caso clínico abordado mostra a importância da combinação do acompanhamento terapêutico com a rede de tratamento na inserção social de pacientes portadores de sofrimento psíquico grave, no sentido de ampliar suas trocas e relações com a sociedade. Tais pacientes geralmente não possuem um contorno do eu /não-eu bem definido, o que se reflete na dificuldade de se relacionar, construir e manter vínculos. O acompanhamento terapêutico é uma clínica que articula e faz circular as informações e os cuidados na rede de tratamento, e a partir do suporte dessa rede, extrapola seus contornos. Isso ocorre na medida em que é estabelecido e sustentado um vínculo que possibilita ao acompanhado o alcance do social, por meio do manejo de uma transferência maciça e alternância de função materna e paterna.

O caso a ser apresentado é o de uma paciente com o diagnóstico de esquizofrenia. Aposentada e afastada da sociedade desde muito jovem, passando vários anos de sua vida internada, e há alguns anos seu tratamento tem tido bons resultados a partir da combinação de psicoterapia, psiquiatria ambulatorial, hospital dia e acompanhamento terapêutico.

Karina, poetisa, é uma paciente de quarenta e um anos de idade, com o diagnóstico de esquizofrenia. Segunda filha e caçula, faz parte de uma família em que o adoecimento sempre circulou. Mora em uma casa em que várias gerações se encontram, e sua mãe ocupa o lugar desgastante, mas também poderoso, de gerenciadora e cuidadora. Seu pai faleceu quando ela estava entrando na adolescência; porém, desde a infância não teve muito contato com ele, pois acometido também pela psicose e em um estado delirante, mudouse para outro estado quando Karina ainda era criança. Seu adoecimento se iniciou por volta dos vinte anos, levando-a a se aposentar e a mais de trinta internações, a maioria delas de longa duração. Quando o acompanhamento terapêutico se iniciou, fazia seis anos que não era internada, estando em tratamento no Instituto de Saúde Mental – ISM (grupos e oficinas do hospitaldia, psicoterapia semanal e psiquiatria mensal).

Nota-se que esse adoecimento, que vem sob o nome esquizofrenia, consiste em um sofrimento que está relacionado à falta de contorno do eu / não-eu, ou do dentro/fora. Aliás, como Karina mesma poeticamente descreve, trata-se de um estranhamento de si mesma, de sofrer as conseqüências de algo que não disse ou que não pensou e que até a assusta; advém do “sentir tanto o não sentir”; da “falta de muros internos”. Muito pertinente à comparação feita por Pelbart (1993) entre os anjos do filme Desejo de asas, com a loucura.

O que poucos sabem – e isto se aprende no filme - é que os anjos têm inveja dos homens. Eles vêem muita coisa, ouvem tudo, podem estar em todos os lugares, observam os humanos, ora com espanto, ora com admiração, ora com compaixão – mas sempre com uma pontinha de inveja. Do que têm inveja os anjos? Da finitude dos mortais. Da fragilidade, da sua inscrição no tempo, do sentir frio, do sentir fome, do sentir doce, do esfregar as mãos uma na outra numa madrugada gelada, de sentir o calor de um copo de café esquentando o corpo, de ter saudades, incertezas, de morrer de amor e de ter medo da morte. A imortalidade dos anjos é para eles cárcere cruel. Ela os aprisiona no tédio infernal do Mesmo, na repetitividade sem história, num eterno presente que é em si a imagem cinza de uma morte sem desfecho (1993, p. 20).

Nesse filme, os anjos têm inveja dos homens pelo fato de não experenciarem seus sentimentos, desejos (devir-anjos) e mesmo sua finitude. Enquanto na psicose, apesar de não haver a imortalidade dos anjos, é comum a vivência de uma desencarnação assexuada, uma ahistoricidade, a dor terrível de não ter dor e ter que testemunhar a encarnação alheia.

Esse acompanhamento terapêutico, que se iniciou há quase quatro anos, surgiu como um elemento a mais em uma rede de tratamento que já existia, e também como conseqüência dos bons resultados que já vinha alcançando, visto que, considerando as particularidades de seu adoecimento e diferente do comum, é a própria Karina que demanda um novo tipo de ajuda. Em psicoterapia, ela começou a falar da necessidade de passear, conversar, ter relacionamentos, de freqüentar lugares outros além do tratamento e de estar com pessoas outras além de sua família e do ISM. Em virtude disso, sua psicóloga sugeriu o acompanhamento terapêutico, que ela aceitou com empolgação. Observa-se que a esquizofrenia, principalmente quando crônica, traz consigo o isolamento social. Karina encontrava-se corroída pela desvitalização, e invadida por uma sintomatologia (alucinações auditivas, inserção de pensamento, roubo de pensamento, telepatia) gerada por esse delineamento tênue e falho do próprio eu. Isso dificulta ou mesmo impede a construção de relacionamentos. Seu corpo estava “livre das grades do sanatório”, mas ainda em uma “prisão de alma solta”, e ainda que Karina estivesse há seis anos longe das internações, continuava alheia à sociedade, deixando de viver – “boiando na vida”.

O tratamento no ISM, além de romper com um ciclo de internação – casa – internação (e foram em diferentes lugares do país), que vinha perdurando por mais de dezesseis anos, ofereceu a Karina um tratamento (uma escuta) que a considera sujeito e não um mero objeto da psiquiatria. Com isso, ela foi se reapropriando de sua casa, conquistando um lar, e simultaneamente, foi aberta a possibilidade dela estabelecer relacionamentos, na medida em que é vista como sujeito em um centro de convivência (ISM) que desenvolve todo um trabalho para sustentar esses vínculos. E o principal: isso tudo preparou o terreno para emergir “devir-anjos”, desejos. Karina passou a sentir a dor de não sentir, a querer conquistar outros espaços, a querer relacionamentos que extrapolem o centro de convivência. É o anjo com anseio de reencarnação, de convivência, que não se limita a um centro de convivência, de convivência em um cotidiano além da família e do tratamento. Nesse contexto, inicia-se o acompanhamento terapêutico.

Com Karina, o manejo da transferência foi feito a partir da alternância de atos que permitam ora a simbiose, ora a separação. No início, a simbiose era muito mais constante, já que Karina precisava disso para conseguir estar no meio social, pois sem seus “muros internos”, isso se tornava extremamente ameaçador e invasivo. Cada saída, principalmente nos dias em que ela não estava bem, era uma vitória. Trata-se de permitir uma continuidade entre ela e eu, na qual a subjetividade dela reina, mas muitas vezes tendo minhas defesas como guardiãs. Ressalto que em minha experiência isso vai além de uma abstinência por parte do acompanhante. Consiste mesmo em um deixar-se invadir. Contudo, em alguns momentos a simbiose ocasiona também interferências e problemas em nossa relação terapêutica. Algumas vezes Karina me acusa de estar interferindo em sua cabeça, e de ser responsável por alucinações auditivas. Faz-se necessário, então, o manejo dessa simbiose, do tempo e, principalmente, do desejo de minha parte e da dela de sustentar essa relação. Como ela mesma diz, “há muito investimento para que nossos encontros aconteçam”, referindo-se tanto ao seu próprio esforço para sair e se relacionar quanto ao aspecto financeiro. Sob a aparência do passear, do conversar e do divertir, é uma relação de trabalho e de tratamento. Os atos de separação, por sua vez, têm uma outra função, e são tão importantes quanto os de fusão. Significa sair do “a gente” para a convivência do “eu e você”, cada qual com suas particularidades. Para isso, geralmente é necessário que Karina esteja minimamente organizada, com defesas mais propícias e em território seguro, de forma que ela não fique tão vulnerável. Como acompanhante tento lhe fornecer essa segurança, emprestar-lhe minhas defesas (interferindo, dando sugestões, abrindo possibilidades) e testemunhar suas tentativas, dando-lhe um retorno. Assim, ela vai conquistando espaços e efetuando trocas com a sociedade.

É fundamental esclarecer que este trabalho de manejo da transferência é facilitado ou até mesmo só é possível na medida em que exista uma rede de tratamento exercendo a função ora de um mero apoio e ora de sustentação. Digo isso porque essa transferência é maciça, há um colamento e, portanto, a importância da participação de outros profissionais para que isso circule e não fique insuportável para ninguém. Por outro lado, o acompanhamento terapêutico, ao tecer novos fios, fortalece os pontos dessa rede, facilitando a comunicação entre os profissionais envolvidos. Nesses quase quatro anos de acompanhamento terapêutico, inúmeros contatos foram feitos, sempre no sentido de alertar, discutir manejos e principalmente de sustentar projetos na sociedade. Algumas vezes isso ocorria, com o objetivo de sustentar essa rede de tratamento, quando Karina implicava ou ficava muito magoada com um determinado profissional ou se sentindo culpada por ter feito algo, mesmo que sem sua vontade (inclusive pensamentos) que afetasse tal vínculo.

A partir disso (manejo da transferência e rede), esse acompanhamento terapêutico se constituiu em uma clínica que tem dado certo. O primeiro ano foi caracterizado pelos passeios, apelidos, diversão, risadas, “brigas”, construção de uma relação que parece extrapolar uma relação de tratamento, mas que é justamente o tratar no caso de Karina, e em muitos outros de psicose. Com pouco tempo de acompanhamento terapêutico, e com a ajuda da rede, suas poesias passaram a fazer parte de nossos encontros. Aliás, foi principalmente por meio delas que eu pude compreender seu sofrimento e foi possível conversar sobre o assunto. Além disso, fiquei encantada com seu talento. Na rede já existia a idéia de publicar um livro. Logo isso se tornou um projeto nosso e a rede se dispôs a sustentá-lo. Observo como o “nosso” foi e ainda é importante para que esse projeto se realize.

Assim, novas obrigações e deveres foram incluídos no acompanhamento terapêutico – selecionar as poesias que poderiam ser publicadas, passá-las para o computador, escolher a ordem, procurar uma editora, fazer orçamento, conseguir verba para isso. Estamos trilhando por esses caminhos há mais de dois anos, o que tem lhe possibilitado a conquista de novos espaços na sociedade, relações de trocas de um outro lugar, até mesmo dentro da sua família. Além disso, foi construído um significado para este livro em relação a seu adoecimento e tratamento. Ele se tornou o veículo por meio do qual amigos, familiares colegas de internação, pessoas a quem Karina acredita ter feito mal no passado, e que hoje interferem em sua cabeça, fazendo-a pagar por essas coisas, terão acesso ao que ela passou e ainda passa, sua diferença, seu sofrimento. Assim, ela espera se redimir e ter um pouco mais de paz.

Esse sentido atribuído ao livro tem sido fundamental para a realização desse projeto, já que inúmeros têm sido os momentos de dificuldades e desistências. Observo que cada etapa que superamos com o objetivo de alcançar a publicação desse livro tem sido muito proveitosa clínica e socialmente. Hoje percebo nítidas melhoras em Karina: defesas histéricas se desenvolvendo, vozes (alucinações auditivas) não tão estranhas e ameaçadoras, e o redespertar dos afetos explícito, muitas vezes em seu próprio olhar. “As vozes” começam, minimamente, a serem reconhecidas como suas. O tremor nas mãos surge não mais como efeito colateral das medicações.

Enfim, essa é a função clínica do acompanhamento terapêutico: possibilitar convivência e trocas a pessoas vulneráveis, ameaçadas e prisioneiras de seu próprio adoecimento. Porém, não se trata de transformar a loucura em uma saúde triste, repetitiva, monótona. Como Cassettari (1997) defende, o acompanhante resgata a possibilidade de encadear o mundo do acompanhado ao mundo, o que significa que seja feito a partir do manejo do sintoma, sair dele, não operar no sentido da “normalidade”, mas no sentido de novas aberturas no devir.

 

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Endereço para correspondência
Maria do Rosário Dias Varella
CLN 303 / Bl. B / Sala 202 – 70735-520 – Brasília/DF
Tel.: (61) 3326-8155
E-mail: mrvarella@unb.br

Fernanda Lacerda
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Tel.: (61) 3274-2394
E-mail: xmikimgx@yahoo.com.br

Recebido em 04/04/06
Aprovado em 30/05/06

 

 

Notas

IPsicanalista; Supervisora CAEP (IP/UnB); Doutoranda (UnB/CNPq).
IIPsicóloga; Secretária de Administração Governo do DF.
IIIPsicóloga (UnB); Estagiária (CAEP/Instituto de Psicologia).
1Vara de Execuções Criminais – VEC.
2Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJDFT.
3Pais separados em 1997 e reatados em 2003. Tem uma irmã de vinte e quatro anos e um irmão de vinte e seis.
4Para tentar entrar no “Mundo de Bruce”, a estratégia adotada foi buscar as músicas que ele gostava, e esse ato foi interpretado e entendido pela at como uma forma de comunicação entre pessoas que aparentemente não se conheciam.
5Nesse caso, a mãe era a única que comparecia, junto com o marido.