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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.18 São Paulo set. 2006

 

ARTIGOS

 

Um olhar sobre o acompanhamento terapêutico pelo conceito reichiano de auto-regulação social

 

A view on therapeutic accompaniment in the reichian concept of social self-regulation

 

 

Ana Celeste de Araújo Pitiá1

Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma prática clínica que percorre os espaços comunitários possíveis ao alcance do objetivo da ressocialização do cliente em dificuldades psicossociais. O conceito de auto-regulação social criado por Wilhelm Reich ilumina a análise dos atendimentos realizados pelo dispositivo clínico AT. Pela questão de que maneira pode ser praticada a clínica do Acompanhamento Terapêutico, objetivando a auto-regulação social do cliente acompanhado, pretende-se contribuir para a ampliação do campo de reflexão sobre a prática clínica do AT como possibilidade de ação para profissionais da saúde. São aspectos enfatizados: a importância da formação específica para esse tipo de atendimento clínico, a expansão da ação dos atendimentos na área da saúde e o resgate das potencialidades do sujeito atendido.

Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Saúde mental, Reabilitação, Terapêutica, Psiquiatria.


ABSTRACT

Therapeutic Accompaniment (TA) is a clinical practice that covers possible community spaces to achieve the re-socialization of clients experiencing psychosocial difficulties. The concept of social self-regulation, created by Wilhelm Reich, supports the analysis of care realized by means of the clinical tool of TA. By attempting to answer the question, how can the clinical practice of Therapeutic Accompaniment be carried out with a view to the social self-regulation of accompanied clients, we aim to contribute to a broader reflection on the clinical practice of TA – a possibility for actions by health professionals. We emphasize the importance of specific training for this type of clinical care, with the hope of expanding health care actions. This tool aims to recover the subject’s potentialities.

Keywords: Therapeutic accompaniment, Mental health, Rehabilitation, Therapeutics, Psychiatry.


 

 

O Acompanhamento Terapêutico (AT) é um tipo de prática clínica que percorre os espaços comunitários possíveis no alcance do objetivo da ressocialização do cliente em dificuldades psicossociais. Será enfatizado aqui o conceito de auto-regulação social, criado por Wilhelm Reich, como uma proposta possível para se analisar os atendimentos que possam ser realizados pela clínica AT.

O enfoque teórico é o da psicoterapia corporal, investigando-se de que maneira pode ser praticada a clínica do Acompanhamento Terapêutico, objetivando a auto-regulação social do cliente acompanhado. O objetivo é poder contribuir para a ampliação do campo de reflexão sobre a prática clínica do AT, como nova possibilidade de ação para o profissional da saúde em geral, e especialmente para o da saúde mental.

A idéia é discutir a prática clínica AT, que apesar dos diversos enfoques teóricos, aponta para o caminho da inclusão social. Sabemos, historicamente, que a loucura é referida como o “mundo da exclusão” – uma versão originada em meados do século XVII, à época em que os “desviados” eram banidos do convívio social, caracterizando-os como indivíduos que não estavam apropriadamente preparados para a nova ordem social que começava a se instaurar – o início da industrialização (Foucault, 1993).

 

Trajetória histórica da clínica AT

O trabalho de Acompanhamento Terapêutico com traços de uma sistematização específica surgiu na Argentina, na década de 70, na experiência do tratamento de pacientes psicóticos em terapias de abordagem múltipla, em que uma equipe multiprofissional configurava-se no atendimento.

Nessa experiência o acompanhante terapêutico (at) integrava essa equipe de abordagem múltipla. A idéia era abordar os pacientes em todos os aspectos de sua vida diária, tentando criar um meio ambiente terapêutico em que o at participasse ativamente de diversos grupos a que pertenciam os clientes, visitando suas casas, conhecendo seus amigos, reunindo-se com diretores de escolas quando fosse oportuno. A equipe era formada pelo terapeuta encarregado pela abordagem familiar; administrador psiquiátrico, que coordenava a tarefa médica, se necessário; terapeuta individual; terapeuta familiar; um ou mais acompanhantes terapêuticos. Poderiam ser incluídos professores especializados quando o paciente já estivesse em condições de responder às propostas terapêuticas que lhe fossem formuladas. Essa abordagem era indicada para pacientes graves, com tendência a interromper o tratamento. O trabalho prático do acompanhante terapêutico era assistencial, surgido da necessidade clínica voltada para pacientes para os quais as abordagens terapêuticas clássicas fracassassem, ou como suporte dessas (Mauer e Resnizky, 1987).

A abordagem múltipla considera múltiplo o sujeito da enfermidade, ou seja, ele não está sozinho – existe uma família que respalda sua origem. Em outro sentido, as abordagens múltiplas combinam experiências que buscam articular o diverso e o próprio, levando em conta as múltiplas encruzilhadas desafiadoras da convivência produtiva de distintas perspectivas e diferentes profissões e profissionais (Mauer e Resnizky, 2003; Pulice e Rossi, S/D; Schneeroff e Edelstein, 2004).

Antonucci (1994) refere como um dos primeiros relatos do que hoje se denomina Acompanhamento Terapêutico, o trabalho realizado por uma enfermeira psiquiátrica na Suíça, em 1937. Ela fora treinada por uma psicanalista para prestar assistência a uma de suas pacientes, que necessitava de intervenção em seu ambiente original. A psicanalista suíça, impossibilitada de acompanhar a paciente em casa e tendo percebido as insuficiências da psicanálise para aquele caso, preparou uma enfermeira. Assim, a paciente foi acompanhada diariamente, ao lado da continuidade do trabalho psicanalítico. O desfecho do tratamento deu-se a partir do momento em que a paciente conseguiu conquistar uma vida reintegrada na sociedade.

Os primórdios do Acompanhamento Terapêutico na história brasileira, como uma estratégia de atendimento clínico, data dos anos 60/70 e sofre as influências político-ideológicas da reforma psiquiátrica e a tentativa de supressão dos manicômios na Europa Ocidental e Estados Unidos. Na década de 70, vinda da Argentina, a clínica AT chega ao Brasil, onde se estende ao longo do eixo Rio de Janeiro/São Paulo. Apresenta duas trajetórias: uma que passa por Porto Alegre e chega ao Rio de Janeiro, e outra que chega diretamente a São Paulo, vinculada ao que anteriormente era chamado de “amigo qualificado” argentino (Equipe de Acompanhantes Terapêuticos de A CASA, 1991; Barreto, 2005).

A Clínica de Vila Pinheiros, no Rio de Janeiro, foi a primeira instituição que, utilizando a função do auxiliar psiquiátrico para atendimento de pacientes diagnosticados como psicóticos, sinaliza para o que futuramente será denominado de acompanhante terapêutico. Essa clínica funcionou de 1969 até 1976, e a equipe de auxiliares psiquiátricos era formada por estudantes de psicologia, medicina, enfermagem, entre outras pessoas interessadas em se profissionalizarem, que não necessariamente possuíam princípios de uma formação universitária (Equipe de Acompanhantes Terapêuticos de A Casa, 1991). É possível observar já aqui as características de uma multiprofissionalidade, que mesmo sem configurar um trabalho em equipe, como nas abordagens múltiplas da Argentina, sugere aspectos interdisciplinares na prática AT.

Esses auxiliares eram preparados por curso e estágio de vinte e quatro meses, na própria clínica. Ofereciam assistência permanente, vinte e quatro horas por dia, e sua atividade fundamentava-se no princípio de que uma pessoa psiquicamente enferma e em sofrimento agudo para se restabelecer teria necessidade de uma atenção intensiva e personalizada, tecnicamente preparada e exercida por um grupo. Esse tipo de atendimento complementaria, então, os cuidados físicos, a utilização da farmacoterapia e os elementos tradicionais de enfermagem psiquiátrica, por meio de um acompanhamento criterioso dos pacientes, em que a relação afetiva interpessoal, nesse modelo de atendimento, assumia uma importância capital.

Nesse contexto, o auxiliar psiquiátrico oferecia mais do que sua tradicional função baseada no tripé: proteção-vigilância-contenção, que caracterizava as instituições psiquiátricas clássicas. O estar junto com os pacientes durante o diaa-dia de uma clínica psiquiátrica, visando constituir um meio social terapêutico, de acordo com o tipo de prática característico das chamadas comunidades terapêuticas, configurava uma ação de atendimento para além da referida tríade (Reis Neto, 1995).

O trabalho de AcompanhamentoTerapêutico (AT) permite que o profissional, em sua função de acompanhante terapêutico (at), acolha o material psíquico do paciente de um lugar singular, no qual a relação terapêutica acontece sem a privacidade das paredes institucionais, possibilitando o projeto de invenção de saúde e a reprodução social do paciente. O at acompanha o paciente pelas ruas da cidade, munido de um guia, de uma proposta terapêutica no ato e no movimento do corpo que interage no âmbito social. A prática de saídas pela cidade munido de um guia que possa articular o paciente na circulação social possibilita ações sustentadas por uma relação de vizinhança do acompanhante com o louco e a loucura, dentro de um contexto histórico (Pitiá e Santos, 2005).

Neste texto, a discussão sobre a prática clínica AT utiliza-se de um guia: o resgate da auto-regulação no social do sujeito em dificuldade, fundamentado teoricamente pelo enfoque da psicoterapia corporal neo-reichiana. Em uma de suas obras clássicas, Reich (1981) conceitua a auto-regulação relacionando-a ao que cada um de nós tem de características pessoais adquiridas ao longo de nossa história de vida, na qual as atitudes “naturais” são “espontaneamente sociais” na medida em que contribuem na busca da qualidade de vida, ou seja, na busca do reencontro com o processo vital de cada indivíduo.

 

Sobre o conceito reichiano da auto-regulação

Na clínica AT o importante é aquilo que possa ser realizado pelo sujeito em dificuldades psicossociais, tendo em vista o que seja definido como construtivo e positivo para si. Isso, conseqüentemente, repercutirá no ambiente social, na tessitura das relações interpessoais de sua vida cotidiana (Pitiá e Santos, 2005). Nessa trama social, cada um desempenha seu papel, e os encontros podem ser calculados em vantagens e temores de invasão e ataque (Furegato, 1999).

O resgate da auto-regulação no social, então, pode ser associado à idéia de reinvenção, um meio de se re-fazer, re-construir e re-elaborar o cotidiano do sujeito em crise, com tudo o que lhe pertença como características e limitações pessoais em meio a suas tramas sociais (Pitiá e Santos, 2005).

O termo auto-regulação, originário da biologia, é empregado como denominação do equilíbrio homeostático corporal, ou seja, a homeostase que é designada por “reações fisiológicas coordenadas que mantêm a maioria dos equilíbrios dinâmicos do corpo, complexas e peculiares aos organismos vivos” (Dandoun, 1991, p. 34).

O termo regulação é entendido como um conjunto coordenado por mecanismos internos, utilizando espontaneamente energias específicas de todo organismo. As idéias de Reich originam-se pela concepção biológica, especificando que a auto-regulação funciona em vários níveis,

tanto no equilíbrio de massa ou macroscópicos, como altura e o peso do corpo, as proporções dos diferentes tecidos, a “estabilidade” do meio interno etc, como nos parâmetros mais finos e frágeis, quase infinitesimais, como a gama inumerável dos metabolismos (cálcio, potássio, magnésio etc) ou as indispensáveis intervenções hormonais, vitamínicos, enzimáticas etc (Dandoun, 1991, p. 34).

Nessa construção teórica, Reich analisa, de maneira crítica, a realidade social:

faz parte das atitudes naturais o ser espontaneamente social; e o ideal não é exatamente obrigar o sujeito a ser social pela supressão de impulsos criminosos. É óbvio para todos que é melhor e mais são não ter um impulso de violação, logo de início, do que ter de inibi-lo moralmente (...) minha afirmação é de que a auto-regulagem é possível, está ao alcance da mão, e é universalmente exeqüível (1981, p. 162).

Essas idéias podem iluminar uma concepção teórica sobre o trabalho em AT, percebendo-o como aquele que se dá no micro-espaço da relação acompanhante/acompanhado, possibilitando a ambos explorarem territórios macroscópicos como a rua, ou o meio originário do cliente em sua dinâmica e metabolismo, circunscritos em sua realidade de vida.

O trabalho da clínica AT constitui-se em uma prática que, em si, está investida no corpo do sujeito; é corporal por estar impressa na marca dos movimentos do corpo já no ato de acompanhar. Acompanhar, portanto, é acompanhar o corpo do sujeito com dificuldades inscritas e repercutidas no social, que possam interferir em sua relação com outras pessoas, porquanto esteja comprometida sua regulação individual.

O princípio de auto-regulação constitui-se em uma presença concreta, original e eficaz, e nessa concepção, Reich

descobre no indivíduo uma capacidade maior para autonomia, para realização de equilíbrios dinâmicos, flexíveis, uma melhor regulação – auto-regulação – de sua existência: no trabalho, no amor, nas relações com os outros; tudo acontece como se o afrouxamento da “couraça caracterial” liberasse uma espécie de competência espontânea, uma aptidão para autodeterminar-se, aniquilada, atrofiada ou neutralizada pela influência das instituições sociais e dos modelos culturais (1981, p. 35).

Essa concepção conflui com o trabalho em AT, que proporciona uma atuação terapêutica na direção e objetivo do resgate possível da capacidade de autonomia individual. O campo original de atuação profissional ocorre predominantemente no contato direto com o indivíduo no social, lugar em que é considerado “louco” e se encontra tolhido de seus direitos de cidadão. Sendo assim, é um indivíduo confinado, excluído ou reprimido em sua auto-expressão, comprometido por possíveis “inibições morais”, pois que “a auto-expressão é a manifestação da existência individual” (Lowen, 1984, p. 91).

Dessa maneira, o objetivo terapêutico em favor do resgate social poderá ser conduzido na guia de uma intervenção que favoreça a busca pelo movimento pessoal, do qual o indivíduo foi inibido e tolhido em sua circulação no social. Saindo dos espaços consagrados à assistência psiquiátrica e nas perambulações pelas ruas acompanhante/acompanhado estarão explicitamente apresentando a individualidade de uma relação na qual se explicita o sujeito em sua diferença e dificuldade, na busca de sua liberdade, pois sujeito e liberdade são difrações de um mesmo problema (Alargon, 2000).

O importante é que nesse processo de estar junto seja materializada a busca pelo processo vital, o resgate da auto-regulação social do cliente, que possibilita sua autonomia individual na interação social com os outros indivíduos de maneira natural, para si e histórica (Reich, 1981; Pitiá, 2005).

O contexto histórico no AT será o próprio espaço do cliente e as circunstâncias em que foi instalada sua dificuldade. Sua família constitui parte integrante desse processo, bem como sua forma de se relacionar com ela. Tudo isso associado ao contexto mais amplo da situação histórica circundante, que envolve seu bairro, sua cidade, estado e país. Portanto, não basta a construção de novos espaços de atendimentos, mas sobretudo inventar novas formas de se lidar, conviver e tratar a loucura onde quer que ela se encontre (Vianna e Barros, 2005).

 

A experiência clínica do trabalho em AT

O campo de ação clínica no atendimento AT é campo em crescimento para a atuação do profissional de saúde. Necessitando de capacitação específica sobre essa abordagem terapêutica, além da supervisão profissional e psicoterapia pessoal, o profissional de saúde conta na atualidade com essa possibilidade de ação prática, em que pelo conhecimento específico possa reinventar espaço de atendimentos possíveis na saúde mental, permeando todos os aspectos da vida social do indivíduo em sua loucura. É imprescindível esse tripé de suporte teórico-prático aos profissionais de saúde que se identifiquem com essa atuação clínica. Como afirma Bezerra (2001), qualquer proposta de transformação do atendimento psicossocial como um todo, tem noções e concepções a serem supostas, pressupostas, debatidas ou não. A clínica AT pode ser vista por diversos olhares analíticos. É campo para freudianos, lacanianos, deleuzianos, reichianos e neo-reichianos, enfim, o objetivo a ser atingido confluirá para a autonomia do sujeito em sua dificuldade.

Contudo, a contribuição aqui traz a questão: “de que maneira pode ser praticada a clínica do Acompanhamento Terapêutico, objetivando a auto-regulação social do cliente acompanhado?”. Na sistematização dos acompanhamentos sob o enfoque da psicoterapia corporal percebe-se que o terapeuta at é dirigido pelo olhar muito mais para o como o cliente traz suas dificuldades, estabelecendo uma leitura sobre seu corpo, visualizando a história analítica impressa sobre ele e manejando o ato interpretativo nas intervenções dos atendimentos at, utilizando técnicas da abordagem da psicoterapia corporal como suporte complementar.

Dessa maneira procura-se estabelecer uma integração mente/corpo a partir do estabelecimento da relação do concreto de o corpo e a subjetividade imprimida na linguagem corporal, relacionada aos elementos do o quê o cliente traz no conteúdo de sua fala cotidiana.

A prática do AT, na medida em que transcorre exteriormente ao consultório/instituição e pode ser realizado em casa, na rua, cinema, shopping, escola, trabalho, ou outro local que a comunidade possa oferecer, tem como fundamento estar em constante conexão com o âmbito social, com os aspectos culturais e simbólicos nos quais o sujeito esteja inserido e conviva cotidianamente, procurando resgatá-lo em sua inteireza humana, desenvolvendo aspectos sadios potenciais existentes no indivíduo, apesar de sua crise.

 

Considerações finais

O caminho teórico apontado neste texto está voltado para uma discussão sobre um movimento de inclusão. Como inverso ao da exclusão, incluir é um caminho em que se faz necessário o enfrentamento dos inúmeros percalços pelos quais o cliente esteja lidando durante seu processo de saúde/doença. Daí o at, trabalhando terapeuticamente o lado potencialmente sadio do acompanhado, poder contribuir na promoção de movimentos “inclusivos” dentro da realidade circunstancial do indivíduo atendido.

O Acompanhamento Terapêutico pela própria forma de intervenção, pode ser considerado como uma prática anti-segregação, em que se tenta minimizar os efeitos da estigmatização das pessoas em dificuldade. Essa prática busca propiciar uma maior autonomia para que os clientes possam conviver e se desenvolverem como sujeitos criativos no seu próprio meio social e urbano, apesar dos limites e dificuldades individuais – resgatando sua auto-regulação no social.

A necessidade de estruturas externas ao manicômio, para que se possa acompanhar o doente em sua nova relação com o social, converge com o processo da Reforma da Psiquiatria Democrática, com suas bases históricas assentadas na Itália e a desmontagem dos manicômios como a marca principal. Os portões foram abertos, modificando-se também as relações interpessoais na sociedade, que se viu confrontada com as extremas diferenças dos indivíduos perturbados mentalmente. É importante relembrar esses aspectos, na medida em que, procurando o restabelecimento da relação do paciente com seu corpo e com a palavra, produzem-se novas relações e interlocuções possíveis. As mudanças instauradas procuraram restituir os direitos civis, reativando uma base de crédito para que o paciente possa aceder ao intercâmbio social.

Na literatura e na prática em Acompanhamento Terapêutico, algumas diretrizes apontam para o suporte à clientela, que em estados especiais ou em situações agudas, necessita lidar com suas dificuldades no meio social, ou seja: prevenir a cronificação e institucionalização e buscar o resgate da cidadania e a não-alienação social; permitir a inserção do sujeito na coletividade, preservando suas diferenças individuais e potencialidades; propiciar momentos e espaços nos quais a pessoa possa realizar-se como sujeito ativo em seu meio social. O terapêutico então é fazer-se cargo de uma pessoa em um espaço novo de vida, sem, no entanto, submeter o paciente a objetivos preestabelecidos.

O processo da Reforma Psiquiátrica oferece de imediato um campo de atuação bastante propício e aproximado do lugar do at. Ao acompanhar o cliente cotidianamente na trajetória de atendimentos, o profissional colabora na reinvenção do modo como o sujeito se relaciona em seu contexto social e familiar, os vários papéis utilizados, ou mesmo na criação de novos papéis que possam ampliar seu repertório para enfrentar as adversidades da vida. Os recursos próprios do meio urbano compõem o quadro da recriação de um projeto de saúde específico para cada caso. A ênfase é posta na pessoa e no resgate de sua cidadania.

 

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Endereço para correspondência
Ana Celeste de Araújo Pitiá
Rua Itacolomi, 466 – 14025-250 – Alto da Boa Vista – Ribeirão Preto/SP
tel.: (16) 3911-1986
E-mail: aceleste@eerp.usp.br

Recebido em 15/04/06
Aprovado em 01/06/06

 

 

1Doutora em Saúde Mental (EERP/USP); Enfermeira, Professora Doutora e Pesquisadora em Saúde Mental (PRODOC/CAPES/EERP/USP); Acompanhante Terapêutica e Psicoterapeuta Corporal Neo-reichiano em Ribeirão Preto.