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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.18 São Paulo set. 2006

 

ARTIGOS

 

Acompanhamento terapêutico e educação inclusiva1

 

Therapeutic accompaniment and inclusive education

 

 

Deborah SerenoI

Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho de AT de crianças psicóticas e autistas no território escolar é um dispositivo clínico que se sustenta em uma rede de compromissos coletivos visando educação inclusiva e de qualidade para todas as crianças. A inclusão escolar tem ampliado questões complexas e relevantes da escola, apontando para o exercício do conviver como forma de lidar com a rigidez diante das diferenças. A partir da transferência, da presença ativa, e respeitando a singularidade da criança, o at opera como secretário, intérprete e tradutor da ambiência, favorecendo importantes efeitos de subjetivação e conexão entre os elementos do território escolar. O AT termina quando a classe (professora e crianças) passa a funcionar como referência para acolher e sustentar as produções do sujeito com as quais ele deve se comprometer.

Palavras-chave: A companhamento terapêutico, Redes, Transferência, Território escolar, Trastornos graves do desenvolvimento, Psicoses, Autismo.


ABSTRACT

TA’s work with psychotic and autistic children at school territory is a clinical device that is sustained in a network of collective commitments aiming the inclusive and quality education for all the children. School inclusion of the children has amplified and made relevant matters of the school as a whole more complex. And it indicates the exercise of living together as a manner to deal with rigidity before the differences. From the transference and the active presence, and taking into account the singularity of each child, the therapeutic accompanier works as a secretary, interpreter and translator of the environment favoring important subjectivization effects and the connection among the several elements of the territory. TA ends when the class (teacher and children) starts working as a reference for harboring and sustaining the subject’s productions, with which he/she should commit himself/herself.

Keywords: Therapeutic accompaniment, Networks, Transference, School territory, Severe upsets at the childhood, Psychosis, Autism.


 

 

Este texto tem como objetivo apresentar algumas reflexões sobre o trabalho de AT no campo da Educação Inclusiva a partir de experiências de AT no território escolar.

 

Redes e coletivos

Redes e coletivos se constituem para sustentar políticas públicas inclusivas. Uma rede pode ser definida como um micro sistema que envolve múltiplos interesses e sentidos, isto é, uma convergência de ações com sentido compartilhado que potencializa o trabalho (Valentini, 2004)2.

A rede sugere uma teia de vínculos, relações e ações entre indivíduos e organizações em um movimento constante de se compor e descompor em todos os campos da vida social. A existência de múltiplas redes se dá pelas “necessidades humano-sociais, que colocam em movimento a busca de interação e formação de vínculos afetivos, de apoio mútuo para empreendimentos e outros” (Carvalho, mimeo CEMPEC). Uma rede de conversações, como propõe Teixeira (2003, p. 89-111), que conforma um autêntico espaço coletivo de conversação, composto de várias e distintas “regiões de conversa” interligadas.

Em síntese: a rede implica em vários que se articulam em torno de um objetivo comum. Com relação à Educação Inclusiva, as redes visam uma mudança de paradigma, o que significa uma mudança nos modos de ver, pensar, sentir e agir com relação à convivência com as diferenças.

Em 1997, a equipe do Núcleo de Referência em Psicoses (NRP) da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae3, do qual faço parte, estabeleceu convênio de parceria com o Núcleo “As psicoses e suas instituições”4 para tratar da escolarização de crianças com transtornos graves, com graves sofrimentos psíquicos ou com transtornos globais do desenvolvimento e as crianças psicóticas e autistas5, que eram atendidas nas Oficinas Terapêuticas da Clínica Psicológica da PUC, ou seja, a escolarização dessas crianças em classes regulares do ensino público. Desde então passamos a acompanhar processos de inclusão de crianças e jovens com transtornos graves nas escolas e a desenvolver ações, estratégias e dispositivos na produção de práticas inclusivas, articulando saúde e educação, sendo o AT uma delas.

A partir do Convênio com a Secretaria Municipal de Educação, estabelecido em dezembro de 2001, e do financiamento de verba do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente (FUMCAD), a parceria Sedes/PUC pôde ampliar suas ações no sentido de intervir em políticas publicas por meio do “Projeto de Escolarização: Educação Inclusiva”. Esse convênio permitiu a realização dos “Cursos de educação inclusiva: construindo modos de ação” para profissionais da educação e saúde em cinqüenta escolas da região de Pinheiros/Butantã. Os cursos favoreceram processos de formação conjunta das equipes de saúde mental e educação da região, visando o desenvolvimento de projetos que favorecessem a inclusão e o sucesso escolar de crianças e adolescentes, em uma perspectiva de articulação e potencialização dos recursos locais.

O convênio também possibilitou trabalhos junto a equipes de saúde e educação de outras regiões, como Casa Verde/Vila Nova Cachoeirinha, Freguesia do Ó, Sé, Santo Amaro, Campo Limpo, visando apoiar a articulação entre as equipes e o desenvolvimento de projetos inclusivos.

Além disso, o financiamento do FUMCAD pôde bancar a ajuda de custo aos estagiários de quinto ano e aprimorandos da Faculdade de Psicologia da PUC, que faziam os ATs das crianças das Oficinas Terapêuticas da PUC nas escolas do bairro de cada uma delas (cinco)6. Os ats também participavam das oficinas psicopedagógicas, outro dispositivo de articulação que também ocorria no território escolar e tinha como objetivo trabalhar com a classe a questão das diferenças por meio da criação conjunta (ats, psicopedagogos e o professor da sala) de atividades facilitadoras da inclusão. A verba ainda favoreceu outra estratégia de apoio à inclusão, as reuniões quinzenais entre nossa equipe e a equipe escolar (diretor, coordenador pedagógico, professor) para acompanhamento e suporte dos processos em andamento.

 

A escola, o território escolar

A criança moderna é, por definição, escolar; a escola representa a oferta de um lugar social às crianças, é o que a constitui, dá a ela identidade, afirma Kupfer (2001, p. 36). A escola é também a organização oficial responsável pelo reconhecimento da constituição do cidadão produtivo, seja do ponto de vista da ordem prática, da alfabetização ao diploma, ou do ponto de vista do valor, da entrada na lógica de produção capitalista (Rocha, 2006). Dimenstein (2005) aponta a ação preventiva à violência quando as escolas convertem-se em espaços articuladores de redes de saúde, cultura, educação, lazer e qualificação profissional.

A escola pode ser pensada como um território. O território refere-se ao espaço entendido como “um conjunto composto de um campo de relações, um suporte material e eventuais regras de relações” (Moura, 2003, p. 148). Para o autor, esse espaço se constitui juntamente com os atores e aquilo que justifica estar aí, o quase-objeto, como a bola que mantém os jogadores na quadra e em um espaço de relação (Moura, p. 146), ou como o capital, que seria o quaseobjeto do mundo material (Authier apud Moura, p. 146).

Para tornar isso claro: uma quadra pode ser quadra de futebol, se as pessoas (atores) estiverem ali para que isso aconteça e se tiver uma bola ou algo que a substitua, qualquer coisa que possibilite o jogo, o quase-objeto. Isso constitui um território. A mesma quadra a partir do ponto de vista do AT pode ser um canteiro de experimentações no que se refere ao convívio com a diversidade, à circulação dos afetos e das várias transferências (os quaseobjetos) que aí se estabelecem. Isso pode criar outro território.

O conceito de território nos é útil na teorização do acompanhamento terapêutico, seja no que se refere ao campo social das relações e tudo que daí se apresenta (presentifica), incluindo a dimensão pática7. Além disso, esse conceito também coloca em evidência a materialidade do suporte, o espaço físico tão caro a nós ats, que sempre afirmamos nossa maior potência no fato de estarmos in loco, no local, na casa, na rua, no cinema, na cena do paciente. Essa materialidade do suporte atravessa e causa efeitos no AT.

Novamente, havemos (nós, ats) de tirar vantagens de acompanhar a loucura de onde ela sempre esteve excluída (Porto e Sereno, p. 1991); no caso da infância, o território escolar.

Para o at fazer um mergulho no território escolar atravessado pela loucura é necessária uma tomada de decisão ética, uma aposta no encontro. Isso determina um desvio de olhar, que passa do dano para o desafio da falta, da carência e precariedades das escolas, dos bairros, das comunidades, da fragilidade de sujeito das crianças que se acompanha – quando há –, do real das pulsões, daí mesmo vai encontrar potências, possibilidades, diferentes modos de subjetivação, linguagens.

O at faz esse mergulho sustentado por várias redes: a equipe de tratamento das Oficinas Terapêuticas com a qual constrói o projeto terapêutico, a equipe de escolarização, com a qual divide a tarefa de apoiar a escola nesse processo e favorecer a inclusão e permanência da criança na escola, e uma equipe de ats como grupo de referência, espaço de discussão de casos, supervisão, troca de experiências, rede de acolhimento para o at.

 

(Breves considerações) sobre a escolarização de crianças com transtornos graves.

No que se refere à escolarização de crianças psicóticas e autistas, parece haver consenso entre psicanalistas sobre a importância da escola para elas, tanto pelo aspecto da socialização, da preservação das ilhas de inteligência, quanto por se considerar principalmente a escola como “um lugar subjetivante para crianças que por algum motivo encontraram um obstáculo em seu processo de subjetivação” (Freitas, 2005, p. 122). Para além de um exercício de cidadania, ir à escola para essas crianças tem um valor terapêutico, pois pode contribuir para a retomada ou reordenação da estruturação perdida do sujeito, diz Kupfer (2001, p. 90).

Jerusalinsky aponta a dificuldade de ensinar crianças para quem a curiosidade não se instalou, uma vez que esta se organiza nas investigações sexuais infantis e tem seu declínio no tempo do Édipo – o que não ocorreu para s crianças com transtornos graves. No entanto, ele mesmo afirma que “é possível promover curiosidades parciais, fragmentárias” (apud Kupfer, 2001, p. 88), apesar de elas serem impedidas de generalizar muitos desses conhecimentos, concluindo daí a necessidade do professor especializado, o que dificultaria o aprendizado em uma escola regular.

Prieto (2006, p. 42) explicita um dos atuais embates sobre educação inclusiva, que se refere à coexistência ou não de serviços especializados paralelamente à classe regular. Cita Glat e Nogueira (2002), para quem a inclusão de pessoas com necessidades especiais não significa apenas sua permanência junto aos demais alunos em classe regular nem a negação dos serviços especializados, se necessário. Para os autores, o processo de inclusão implica uma reorganização do sistema educacional, acarretando a revisão de antigas concepções e paradigmas educacionais, possibilitando o desenvolvimento cognitivo, cultural e social desses alunos, respeitando suas diferenças e atendendo às suas necessidades (apud Prieto, 2006, p. 42).

Acompanhamos nas escolas municipais de São Paulo a transformação das SAPNES (Sala de Apoio Pedagógico para Portadores de Necessidades Especiais) nas SAAIs (Salas de Apoio à Inclusão), cujo significante deixa transparecer pelo menos a ambivalência do “relator” com relação à inclusão, e que justamente teria a função de acompanhar mais especializadamente a criança, previa ou concomitantemente à entrada na classe regular. Torna-se necessário um espaço de encontro permanente para trocas e sistematização das diversas experiências entre as SAAIs para potencializacão desse dispositivo. Uma das dificuldades que se apresenta diz respeito justamente ao “trânsito” de uma sala para outra8.

De nossa parte, também não negamos o atendimento especializado quando necessário, dentro ou fora escola. Não negamos também o desafio que se coloca com relação à aprendizagem do português e da matemática – como garantir que as crianças com transtornos graves aprendam a ler, escrever e fazer contas? Além disso, como fazer valer a produção louca de cada um em sua positividade? Também nos indagamos sobre o que seria da escola se ela pudesse ser pensada como canteiro de obras, de experimentações, transformações. Se nos engajássemos de fato na reforma curricular e na invenção de novas tecnologias pedagógicas, passando a focalizar como centro do processo de aprendizagem a relação do aluno em sua singularidade com o professor e os outros alunos; se operássemos na transversalizacão dos conhecimentos, trabalhos com projetos; que efeitos teria nos processos de aprendizagem de todos os alunos da escola e também das crianças com transtornos graves?

Temos observado que o contato com a loucura (e as diferenças) instaura uma crise na instituição escolar, questionando seus mecanismos de produção de identidade e diferenças, e re-significando as identidades dos professores e dos alunos. A perspectiva das redes opera aí, nisso que tem feito de muitas escolas um terreno árido e tedioso para o aprendizado e o desenvolvimento pessoal e social de todas as crianças. Essa crise pode configurar um campo de soluções para as questões da escola que se ampliam como um todo, e que dizem respeito à rigidez diante das diferenças psíquicas, culturais e sociais em jogo nas diferentes formas de aprender, e à inércia diante daqueles que não se adaptam aos padrões de socialização estabelecidos e acabam por ficar à margem da escola e de suas comunidades (Vicentim, no prelo).

Quanto à aprendizagem das crianças com transtornos graves, entendemos que a inclusão favorece a mais básica das aprendizagens: o aprender a conviver, que junto com as outras três aprendizagens (aprender a ser, aprender a fazer, aprender a aprender) constituem os quatro pilares da educação para este milênio, segundo o relatório Jacques Delors (1999, p. 89-102).

Aprendizagem fundamental também no que se refere à constituição do eu para a psicanálise; o eu precisa do Outro para se constituir; precisa reconhecer-se no outro e reconhecer o outro em sua diferença. Assim é como a escola representa um espaço de subjetivação para todas as crianças.

Uma última consideração. Autores como Vanier, um analista de Bonneuil, sustentam que as análises dessas crianças devam ser realizadas fora dos muros da escola, pois consideram que crianças com transtornos graves, devido ao seu funcionamento, não são capazes de separar o âmbito da análise do trabalho pedagógico, caso sejam feitos no mesmo lugar – “faltam-lhes recursos simbólicos para perceber que no mesmo espaço podem-se criar discursos diversos. Os problemas com a escola deixam de ser tratados no âmbito da análise, tendo em vista que confundem o analista como um membro da equipe escolar” (apud Kupfer, 2001, p. 74).

Do ponto de vista do AT e das redes, a distinção entre o “analítico” e o “escolar” não é considerada, uma vez que ambos favorecem efeitos de subjetivação. De um lado, traçamos o projeto terapêutico/pedagógico conjuntamente com a equipe escolar. De outro, o AT radicaliza essa articulação entre o analítico e o escolar em sua função de secretário e tradutor da ambiência, como veremos adiante.

Marcos, um menino autista de 11 anos, separava tão bem esses espaços que durante bom tempo deixou sua loucura, desorganização, para as Oficinas Terapêuticas, organizando-se na escola. Depois, tudo se misturou, a desorganização ocupou todos os espaços, em casa e na escola. Queria ele deixar sua marca? De qualquer jeito, e isso torna-se relevante, alguns meses após esse tumulto, falou a primeira frase (de sua vida) na escola, dirigindo-se para o at, que conversava com a professora: “vem me pegar!”, estabelecendo um laço inédito de relação, usando um repertório infantil em que está implícita a dimensão do jogo! O efeito disso foi sensacional. A professora foi muito elogiada: “ela o ensinou a falar!”. Isto disparou um movimento da escola (que nos toma como parceiros, e também à família) de inseri-lo na rede de saúde de seu município, próximo de São Paulo, articulando alternativas para um tratamento na região, a fim de garantir maior freqüência, consistência e continuidade de seu projeto escolar.

 

O acompanhamento terapêutico na escola

Podemos esboçar dois tempos diferentes no processo de escolarização das crianças com transtornos graves: o da ambientação e depois da entrada na sala de aula.

Na ambientação, tempo que vai da entrada na escola à aquisição de certos códigos, algum repertório escolar para a entrada na classe, composta de professora, alunos, sala de aula, até o momento em que esta se torna referência para a criança. Esse tempo da ambientação, que coincide com o tempo do AT, respeita o ritmo de cada criança, tanto no que se refere à sua forma singular de estabelecimento de “contato”, algum sinal de relação com um outro, o at – nem que esse outro seja puro espelho ou sua continuação em determinados momentos; e também o ritmo com relação ao enquadre do AT e ao tempo de permanência na escola, do possível ao desejado. A ambientação constitui-se em um período fértil de estabelecimento da transferência com o at, de tradução, conhecimento e reconhecimento dos códigos e dos outros. Período barulhento e carregado de afetos, denso e por vezes um tanto pesadamente tedioso, quando se instala uma “mesmice”. A ambientação inclui todas as linguagens e formas possíveis de convivência dentro e fora da sala de aula; qualquer tipo de relação e conexão interessa e deve ser potencializada, por exemplo, uma de nossas crianças que passava seu tempo na escola varrendo o pátio com a mulher das chaves da escola, que as pendurava todas em seu pescoço, ou então a relação que se estabelece entre outra criança e a orientadora, que passa a lhe emprestar um livro semanalmente no pátio.

A demanda de AT na escola foi se constituindo no tratamento das crianças das Oficinas Terapêuticas da PUC, e as diferentes estratégias de intervenção com relação à escolarização foram construídas pela equipe ao longo dos anos e de acordo com a singularidade de cada caso.

Nossa primeira aventura nesse território foi em grupo em uma escola de ensino fundamental do estado de São Paulo, próximo à PUC, indicada pela antiga delegacia de ensino para a realização do projeto. Podemos já aí traçar uma rede: o grupo de pais, grupo de crianças (cinco das sete oficinas), a equipe das oficinas terapêuticas, o grupo de ats, a “perua inclusiva” (a perua escolar e seu motorista, totalmente engajado na causa e com qualidade de contato muito particular com as crianças), a Parceria PUC- Sedes, o convênio com a Secretaria Estadual de Educação, a escola e seu pessoal. Dessas cinco crianças, apenas uma freqüentava a escola; uma já havia freqüentado por um tempo; e as outras nunca foram aceitas no território escolar.

Podemos traçar com clareza os movimentos que daí decorrem. Saíamos juntos da Clínica da PUC na perua e era sempre uma comoção – pais se despedindo, mães chorando. A escola abria-nos a porta e juntos entrávamos e permanecíamos geralmente no pátio, perto da cantina e de uma quadra. Essa colagem grupal inicial é interessante. As oficinas sempre foram propostas em grupo, mas dificilmente as crianças se relacionavam umas com as outras, e as intervenções também iam nesse sentido. Na escola, no entanto, isso era diferente – as crianças pareciam buscar estar mais perto umas das outras e dos ats, como se o “grupo” pudesse oferecer alguma forma de reconhecimento e proteção diante do desconhecido. Dessa colagem grupal ao surgimento das singularidades, deslocamentos particulares foram surgindo a partir de interesses e curiosidades diversas (sala de aula, letrinha, quadra), delineando aos poucos as diferentes trajetórias de cada criança nesse espaço, sendo isso favorecido pelo at de referência, que aí então se estabelece.

A equipe do Projeto pôde durante dois anos trabalhar na escola como um canteiro de experimentações. O interesse demonstrado por algumas de nossas crianças em estar na sala de aula implicou a escola como um todo. Assim, uma professora interessada na questão da inclusão disponibilizou sua classe para a primeira oficina psicopedagógica, que propusemos para trabalhar a questão das diferenças com os alunos e ampliar o repertório escolar de nossas crianças. Não poderei deter-me no dispositivo das oficinas psicopedagógicas, apenas assinalarei que no ano seguinte, outras professoras as queriam realizadas em suas salas de aula, pela transformação que operou no grupoclasse como um todo9.

Essa experiência na escola serviu como desafio para que fizéssemos valer a matrícula de cada criança na escola de seu bairro, já assegurada pelo convênio com a Secretaria de Educação, e nos colocássemos com nosso corpo na aventura de escolarização que aí se iniciava. Nossa estratégia de ação na escola dividiase entre o apoio à equipe escolar, para sustentação do projeto, realizado por dois terapeutas da equipe de escolarização e o at intercessor, articulando saúde e educação em ato como referência para a criança, tradutor da ambiência e mediador das relações desta com a professora, as outras crianças e a escola como um todo.

Podemos pensar a posição do AT junto à criança com transtornos graves na escola: é o Outro da linguagem, que traduz para ela a ambiência, o movimento geral e o mínimo movimento, a polifonia, todos os atravessamentos que constituem o território e o silêncio mais surdo (bastante próximo da atenção flutuante). Além disso, nomeia e dá sentido às situações que vão ocorrendo.

É um Outro barrado, castrado em seu desejo onipotente, diferentemente do Outro onipotente da psicose, que captura a criança psicótica como objeto. De tudo o at não dá conta, para alívio então da criança, que ganha espaço para se constituir como sujeito. De tudo o at não dá conta também para a escola, quando pensamos que esta é uma demanda freqüente por parte dela, fazendo um “uso perverso” do AT ao exigir do at um controle total sobre a criança, sem responsabilizar-se pelo processo. Somos barrados, incompletos, e podemos afirmar isso com tranqüilidade, pois isso é condição de possibilidade para construção de redes.

Uma dimensão essencial da transferência que aí se estabelece: a presença ativa. Este conceito condensa (e faz referências a) diferentes idéias concernentes à clínica do AT. Uma delas, a questão do corpo – a que todos os livros sobre AT referem-se direta ou indiretamente –, o entrar na cena do paciente com seu corpo: como sombra, referência e também com um certo tipo de acolhimento “em que se aceita e se toma em consideração o outro, reconhecendo-o em seu estilo e em suas riquezas” (Moura, 2003, p. 141).

Presença ativa também quando se coloca no lugar de secretário, intérprete e tradutor de línguas estrangeiras (da criança, dos pais, da escola, da ambiência), ou quando se oferece como “espelho” no qual a criança possa se reconhecer, podendo operar na constituição do eu e no advento do sujeito, da linguagem, do discurso social.

Presença ativa para limitar o gozo invasivo do Outro por meio de uma palavra ou de um ato; para fazer mediação entre cá e lá, intermediar relações e como lugar de testemunha das produções que aí operam. E por fim, presença para que haja encontro, que “não é programável, simplesmente acontece. Assim, programar o aleatório significa “criar planos que comportem um possível dos encontros, que criem condições mínimas para que o reconhecimento e o desejo possam ter a sua expressão. É preciso promover mais espaços potenciais que possam conter os investimentos de cada um, sempre a sua medida” (p. 142).

Estar na escola favorece novas possibilidades de sentido, articulação, encontro, o que pode implicar em um novo posicionamento da criança que aí está se constituindo. A estereotipia dos movimentos de braço de Marcos em seus momentos mais autísticos e de maior isolamento parecia o movimento de quem quer “entrar na corda” para pular; assim, parece, foi como interpretaram esse movimento algumas meninas que pulavam corda próximas a ele. Isto fez com que elas insistissem, divertidas e rindo, que ele entrasse logo na corda. Com cara alegre, aceitou bater corda com o at para as meninas. Momento de presença (potência) fugidio.

Outra dimensão a ser destacada, paradoxalmente, é o caráter de invisibilidade das ações do at na escola. Ainda que estando corporalmente na cena, muitas vezes contendo uma “crise” ou mesmo sendo requisitado pelas outras crianças, esse caráter de invisibilidade se traduz por um “remeter ao outro”, ou seja, incentivar a professora a intervir na crise, convocar a criança para a conversa em que o at está sendo requisitado, remeter as questões sobre a criança para ela remeter-se à professora como autoridade ou no lugar de quem decide e sabe sobre as coisas da escola, assim como remeter ao porteiro o cuidado com o portão, à merendeira que sirva o lanche etc.

Ao longo do tempo, essa invisibilidade ganha outra conotação. É quando as ações do at passam a corresponder a “pequenos nadas” (um “tempero”, um toque, um olhar, uma palavra) como garantia da presença ativa e também quase uma ausência, o at começa a se afastar da cena, encorajando a criança a experimentar-se sozinha. Período de transição até a ausência de fato, com o final do AT, quando a dimensão da classe ganha volume no que se refere a acolher e sustentar as produções do sujeito e com as quais ele deve se comprometer. O desafio é deixar de ser “café-com-leite” e fazer valer suas produções.

Gregório, um adolescente pós-autista de 19 anos, passou anos em uma classe especial de escola pública e percorreu todo um trajeto bastante singular e cheio de tropeços – sustentado pela equipe de escolarização do projeto e por acompanhantes terapêuticos – até poder cursar supletivo em uma classe de educação de jovens e adultos, processo que ainda está ocorrendo. Recentemente começou a dar sinais a seu at de que estava com vergonha da presença dele lá. Pode ser um sinal de seu “adeus à loucura” (André e Basile, 1996) e de sua responsabilização por seu processo escolar.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Deborah Sereno
Rua Baias, 465/ 01 – 05469-040 – Boaçava – São Paulo/SP
Tel.: (11) 3812-4474
E-mail: desereno@terra.com.br

Recebido em 23/04/06
Aprovado em 04/06/06

 

 

Notas

IPsicanalista; Mestre em Psicologia Clínica (USP); Supervisora da Equipe de AT, Coordenadora do Balaio (Instituto Sedes Sapientiae).
1Uma primeira versão deste texto serviu de roteiro para minha comunicação na mesa redonda “Diversidade do AT” durante o 4º Congresso de AT: Construindo Redes em Tempos de Exclusão, promovido pela Associación de Acompañantes Terapêuticos de la República Argentina (AATRA), Córdoba/Argentina, novembro de 2005.
2Willian Valentini, no seminário do curso “Educação Inclusiva: construindo modos de ação”, voltado a profissionais da educação e saúde do município de São Paulo, em 2004.
3A partir de 2005 o NRP expandiu suas ações e passou a denominar-se Balaio: Núcleo de Referência em Psicoses e Inclusão (NRPI), da Clinica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.
4Coordenado por Maria Cristina Gonçalves Vicentin.
5Para uma discussão mais aprofundada a respeito do “diagnóstico”, ver Kupfer (2001).
6Em um território que se estende do Embu, outro município na Zona Sul de São Paulo, ao Jardim Japão, periferia da Zona Leste. As clínicas psicológicas das duas instituições de formação (PUC e Sedes) não são regionalizadas e têm uma função estratégica no sentido de acolher a demanda que ainda não está inserida na rede de sua região, tendo como um dos objetivos do tratamento a inserção na rede local.
7De acordo com Moura (2003, p. 64), “é no encontro com o outro que emergem sentimentos vitais, que são o próprio pathos”. Cita Tosquelles, para quem aquilo que é vivido e posto em movimento no plano do pathos ou pático precede a linguagem e diz respeito a uma espécie de “química dos encontros”.
8A partir da avaliação do Curso de Educação Inclusiva oferecida pela equipe Sedes/PUC para professores de SAPNEs da região da Casa Verde em 2004.
9As oficinas psicopedagógicas foram se aperfeiçoando no decorrer dos anos, instrumentalizando o professor com repertório de “atividades e atitudes inclusivas” para o trabalho na sala de aula, durante os cursos de formação em educação inclusiva já citado.