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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.18 São Paulo set. 2006

 

RESENHAS

 

 

Maurício Castejón Hermann1

Universidade Metodista de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

PALOMBINI, Analice de Lima (et al). Acompanhament o Terapêutico na Rede Pública: a clínica em movimento. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. 152p. ISBN: 85-7025 794-5.

Analice de Lima Palombini e seus colaboradores promovem um ato! Há que se concordar com Miriam Chnaiderman, em seu prefácio desse livro, ao destacar, entre outros, esses dois pontos: um ato, na história da clínica do AT no Brasil, realizado de forma coletiva, democrática, em que esforços oriundos de distintas esferas versam para a criação e o registro da implementação do AT na Rede Pública de Saúde Mental da Cidade de Porto Alegre. Fruto de parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a rede, envolvendo acompanhantes terapêuticos, estudantes e profissionais da rede nesse esforço, que possibilitou democratizar saberes, promover transformações no olhar dos técnicos sobre si mesmo e seu trabalho, fazer circular o corpo e a palavra de usuários, entre outros. Uma experiência marcante, acredito, para todos que nela participaram, e também marcante àqueles que se aventuram nesse livro. AT na rede, movimentos, circulação em territórios, efeitos clínicos... Testemunho de um desbravar fronteiras, um terreno até então inexplorado. Vamos a ele.

O livro é organizado em duas partes. A primeira delas, denominada “A clínica da psicose no espaço e tempo social: o AT entre a instituição e a rua”, parte da interrogação proveniente ao movimento que essa clínica se lança: como lidar com a complexidade de fatores envolvidos na saída de um usuário da instituição para a cidade? A hipótese apresentada (e muito bem sustentada) é a de que as dimensões do espaço e do tempo confluem para pontos de contato a serem construídos pelo par acompanhante/acompanhado nos espaços da cidade, ao consolidar uma clínica na/da cidade. Sustenta a idéia de que essa clínica subverte o modo capitalista e/ou fálico de funcionamento do fluxo urbano, pois a proposta é a de utilizar o espaço urbano como um espaço transicional &– espaços que possibilitem ensaios, inscrições singulares a serem construídas sem preocupação com o certo ou o errado.Também subverte o tempo, não mais o da produção sustentada na máxima time is money , mas a partir do tempo da psicose, de sua errância, acompanhar o tempo subjetivo e testemunhar os efeitos que a circulação promove no tratamento. A fundamentação teórica, dada à complexidade do fenômeno em questão, é também apoiada em teóricos como Winnicott e Calligaris, quando se pensa a relação entre o par acompanhante/acompanhado e os espaços de circulação.

Porém, seu argumento avança em direção a outros questionamentos, como: qual é o sentido de uma cidade, uma casa ou um quarto, ao se pensar a subjetividade humana? Sennet e Berman descrevem o processo histórico de formação das cidades para se pensar que os espaços urbanos foram construídos para favorecer a lógica capitalista. Os efeitos dessa organização espacial incitam a fragmentação do homem em sua subjetividade, próprios da contemporaneidade. Bollnow teoriza acerca do valor subjetivo de uma casa, ao afirmar que esta é, para o homem, o centro do mundo onde ele pode se enraizar, constituindo aí suas referências espaciais. A cama é descrita como o ápice de sua proteção, onde o dormir e o acordar favorecem o descanso, o abandono das preocupações da vida cotidiana. Questionamentos importantes, visto que muitos casos de acompanhamento terapêutico começam e perduram nesses espaços, em que muitas vezes as referências espaciais e de proteção se confundem com a clausura e o pavor do laço social. As referências teóricas incluem Oury, Foucault, entre outros, que também compõem essas e outras articulações teóricas importantes sobre o acompanhamento terapêutico.

A segunda parte do livro, intitulada “A cena pública da clínica”, traz relatos tocantes sobre os efeitos da experiência de formação e implementação do acompanhamento terapêutico na rede de saúde mental. Tem-se aí um relato de experiência sobre o processo de formação de AT aos profissionais da rede. Salta aos olhos a aposta que os autores desse projeto sustentam em priorizar o pessoal de nível médio como público alvo. A despeito de qualquer reserva de mercado ou de privilegiar hierarquias institucionais, a estratégia adotada atinge efeitos incríveis, na medida em que auxiliares de enfermagem, monitores de abrigos, entre outros, puderam ressignificar a práxis, redimensionando o sentido que o trabalho do corpo-a-corpo com a psicose assume na subjetividade desses trabalhadores. Relatos lindos em que, por exemplo, são descritos os efeitos em Conceição, auxiliar de enfermagem, que reluta contra o excesso de trabalho, para que o mesmo não se torne mecânico ou desprovido de sentido. Ela vive o paradoxo entre dar conta da demanda excessiva e a transgressão de lançar um olhar mais cuidadoso ao usuário. Efeitos como esse só confirmam que a estratégia adotada em relação ao curso de formação, não poderia ser melhor.

Para finalizar, seguem os relatos de experiências clínicas, também comoventes, mesclados com reflexões teóricas. Temas como o fazer clínico e a descrição de experiências, reflexões sobre o AT como dispositivo da Reforma Psiquiátrica, pontuações acerca do dispositivo grupal atrelado às atividades de passeios na cidade, e interrogações sobre o lugar da psicanálise na instituição de tratamento das psicoses permeiam as páginas ali impressas.

Enfim, o livro merece ser lido e relido, sendo de interesse não somente para os profissionais da área psi , mas a todos que de alguma forma transitam nas experiências do campo da Reforma Psiquiátrica, pois como já foi dito: “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

 

 

Endereço para correspondência
Maurício Castejón Hermann
E-mail: mauhermann@uol.com.br

 

 

1Psicanalista; Acompanhante Terapêutico; Doutorando em Psicologia Clínica (USP); Docente e Supervisor Clínico (Universidade Metodista de São Paulo); Membro da EPFCL-SP.