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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.19 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

O legado intersubjetivo de Freud: algumas considerações sobre o conceito de identificação e objeto1

 

Freud’s inter-subjective legacy: some considerations on the concepts of identification and object

 

 

Alexandre Augusto Martins MaduenhoI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo procuramos apresentar uma possibilidade de leitura da obra de Freud que contradiz as formas de interpretação que impuseram a seu trabalho a marca solipsista, a qual está apoiada em três pontos principais: a) a natureza quase exclusivamente intrapsíquica de suas pesquisas teóricas, com uma perceptível ausência daquilo que hoje conhecemos como relações objetais em psicanálise; b) o reducionismo pulsional freudiano; e c) o uso feito de seus artigos sobre técnica, que privilegiou a dicotomia entre analista e analisando, ambos colocados para fora de seus campos de interdependência. Ao nos propormos a uma outra forma leitura, utilizaremos alguns aspectos dos conceitos de identificação e objeto na obra de Freud, tentando demonstrar a presença da dimensão intersubjetiva em seu trabalho.

Palavras-chave: Freud, Intersubjetividade, Técnica, Identificação, Objeto.


ABSTRACT

In this article, we present a possible way for reading Freud’s work that contradicts the forms of interpretation that have imposed the solipsistic mark into his work. This mark is based on three major points: a) the almost exclusively intra-psychic nature of his theoretical research with a perceptible absence of what is known today as object relations in psychoanalysis; b) the Freudian drive reductionism; and c) the use made of his articles on techniques, favoring the dichotomy between the psychoanalyst and his patient, both placed out of their fields of interdependency. By proposing a different form of reading, we will use some aspects of the identification and object concepts of Freud’s work, attempting to demonstrate its inter-subjective dimension.

Keywords: Freud, Intersubjectivity, Technique, Identification, Object.


 

 

“O médico deve ser opaco aos seus pacientes e, como
um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o que
lhe é mostrado” (Freud, 1912a, p.131).

“A intenção é promover uma psicologia que seja
uma ciência natural” (1950[1895], p. 347).

“Para melhor formulá-lo: ele [o analista] deve voltar seu próprio
inconsciente,como um órgão receptor, na direção
do inconsciente transmissor do paciente” (1912a, p. 129).

“A transferência cria, assim, uma região intermediária entre
a doença e a vida real, através da qual a transição
de uma para outra é efetuada” (1914a, p.170).

 

Introdução

Quando Freud escreveu, no início da década de 1910, um conjunto de artigos sobre técnica, muito do grande impacto causado por esses trabalhos deveu-se às restrições e proibições contidas em suas páginas. Havia uma necessidade de se colocar parâmetros e regras claras quanto à condução das análises, principalmente no que concernia à relação entre analista e analisando, sempre ameaçada de desvirtuamento pelo recém-conhecido fenômeno da transferência, e à sustentação da regra fundamental, elemento básico de possibilidade de exploração do inconsciente. As primeiras tentativas de experiências psicoterapêuticas psicanalíticas, dentre elas Breuer e Anna O., o próprio Freud e Dora, apesar de muito diferentes entre si, traziam em seu bojo uma demanda em comum – a urgência de controle da experiência transferencial analítica. Paralelamente, esse controle era defendido por questões metapsicológicas: as possíveis confirmações de fantasias do paciente (Freud, 1913); as possibilidades do analista prestar um grande serviço ao sintoma, respondendo às colocações diretas feitas a ele (Freud, 1912b); o início dos desenvolvimentos de Freud sobre as fixações da libido; as variáveis estranhas que poderiam atrapalhar a pesquisa controlada do inconsciente em busca do recalcado; a aplicação da regra fundamental; todos esses pontos tornavam-se questões fundamentais a serem observadas. Desta maneira, tentava-se forjar, a partir de vários vértices, a distância segura entre analista e analisando, ambos colocados sob a vigilância de um olhar severo.

A descontextualização das leituras dos artigos sobre técnica fizeram com que uma tese central a respeito desses trabalhos fosse cristalizada: que a rigidez técnica de Freud, a frieza, a neutralidade, a distância, a abstinência, deveriam ser leis a serem seguidas, ainda que não fosse perguntado a quais questões elas vinham responder, quais necessidades as criaram e por qual razão foram interpretadas pelos seguidores de Freud da maneira que foram.

A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de regra, é justificado possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro que habitualmente é errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado (Freud, 1913, p. 139).

Essa tese central, leitura sistemática dos textos sobre técnica que desconsidera não apenas o contexto que os produziu, mas também outros elementos óbvios e ativos presentes nesses artigos, seria o fator mais imediato a colocar Freud no pólo oposto da intersubjetividade. Como alguém que estaria propondo analista e analisando como correspondentes da díade sujeito/objeto das ciências naturais poderia trazer em sua obra algo de intersubjetivo? A formulação da regra da abstinência ficou bem conhecida entre os analistas já nas primeiras tentativas de elaboração de Freud: “o tratamento deve ser levado a cabo na abstinência” (Freud, 1915[1914], p. 182). Contudo, ficou muito menos conhecida a continuação dessa afirmativa nesse texto de Freud: “com isso não quero significar apenas a abstinência física, nem a privação de tudo o que a paciente deseja, pois talvez nenhuma pessoa enferma pudesse suportar isso” (p. 182 – grifos nossos). O mesmo acontece com a metáfora do cirurgião: “não posso aconselhar insistentemente demais os meus colegas a tomarem como modelo, durante o tratamento psicanalítico, o cirurgião, que põe de lado todos os sentimentos, até mesmo a solidariedade humana, e concentra suas forças mentais no objetivo único de realizar a operação tão competentemente quanto possível” (1912a, p. 128 – grifos nossos).

Um pouco à frente dessa citação, Freud (1912a) comunica que a frieza deve ser mantida como uma proteção emocional do analista. Era um recurso radical e necessário a ser usado contra a exposição ao psiquismo e à dor do outro, contra a chance de sermos levados pelos descaminhos tinhosos transferenciais, recurso esse prescrito pelos poucos instrumentos teóricos e técnicos disponíveis naquele início dos trabalhos psicanalíticos. Ele nunca fez questão de esconder o caráter defensivo de certas indicações suas, como aliás deixou claro ao dizer que aconselhava o uso do divã por não suportar ser olhado diretamente oito horas por dia (Freud, 1913). É claro que não se tratava só disso. A cada indicação sua podemos perceber a presença de uma hipótese metapsicológica riquíssima, ainda que não pudesse ser esclarecida por ele naquele momento2.

Freud não apenas não escondia a dimensão defensiva de certas colocações suas, como as comunicava com clareza: “devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade; não me arrisco negar que um médico constituído de modo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em relação a seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta” (Freud, 1912a, p.125 – grifos nossos).

Há algo que transborda nessas colocações de Freud sobre técnica. Isso nos importa, pois nesse transbordamento situam-se as inegociáveis necessidades técnicas, que nunca deixaram de se anunciar em psicanálise, e apontavam para a dimensão intersubjetiva presente no campo. A relação analista e analisando não poderia corresponder à fratura cartesiana sujeito/ objeto, ainda que a pena de Freud tentasse estabelecê-la – “ocasionalmente, é natural, pode-se agir de outra maneira e permitir um pouco de liberdade de ação ao próprio interesse teórico; mas deve-se sempre estar cônscio do que se está fazendo” (Freud, 1911, p. 104).

A existência de excertos desse tipo aponta para a existência subterrânea de algo vivo em franca atividade para além das recomendações dogmáticas freudianas. Não seria mesmo possível outorgá-las, decretá-las, sem que algo de suplementar fosse passado de contrabando em suas linhas mais rígidas, exceto se não se tratasse desde o início de um encontro clínico psicanalítico, que por sua essência não pode estar fora do campo intersubjetivo. Ao lermos certas colocações de Freud sobre o encontro psicanalítico, não nos situamos no campo da intersubjetividade como hereges de uma doutrina estabelecida. Ao contrário, colocamo-nos como herdeiros, pesquisadores que tentam dar vida a todas as dimensões presentes em seu trabalho, continuadores de um legado que ele nos deixou.

As formas de leitura de Freud que reduziram sua contribuição técnica a um alijamento do peso da impregnância entre analista e analisando contribuíram para tornar-se patente uma outra leitura: a do solipsismo freudiano. Nessa perspectiva solipsista, Freud teria estudado e concebido o ser humano como um sistema demasiadamente fechado. Essa é uma outra via pela qual Freud seria pensado no pólo oposto da intersubjetividade, considerando que a constituição do sujeito se daria em um eixo único localizado em si mesmo. Discutiremos estas leituras de Freud, buscando nos aprofundar e demonstrar seu legado intersubjetivo.

Não é apenas em suas considerações técnicas que verificamos a dimensão da intersubjetividade, é também (e principalmente) no próprio corpo de sua construção teórica, lugar onde ela é mais apreensível. Queremos dizer que além do campo da técnica, questões como o projeto pulsional freudiano, o surgimento e a transformação do conceito de objeto, o advento da transferência, os estudos sobre os processos de identificação, a descoberta do narcisismo, as investigações sobre a melancolia, a mudança para sua segunda tópica, todas essas idéias, entre outras, mapeiam um possível caminho dos tangenciamentos do campo intersubjetivo na obra de Freud. Portanto, discutiremos que as possibilidades de se pensar o encontro psicanalítico em termos de intersubjetividade encontram-se na obra em estado de latência. Ao contragosto desse autor ou não, suas observações e discussões metapsicológicas apontaram para a necessidade de se considerar a intrincada relação entre o indivíduo e seus objetos, a forma como eles se fundam mutuamente, não apenas em termos de satisfações pulsionais. Isso aparece com clareza em vários de seus escritos, como Sobre o narcisismo: uma introdução (1914b), Luto e melancolia (1917[1915]), Além do princípio do prazer (1920), Psicologia de grupo e análise do ego (1921), O ego e o id (1923), entre outros textos.

Mesmo entendendo que as formas intersubjetivas do encontro analítico representam um avanço substancial no modo de se conceber o sujeito psicanalítico, o objeto da psicanálise, e conseqüentemente sua teoria e sua técnica, afirmamos que estamos trabalhando com a herança deixada a nós por Freud.

 

O apelo ao outro: as identificações

Freud debruçou-se sobre assuntos importantes para o entendimento posterior da intersubjetividade. Passagens fundamentais sobre os conceitos de “objeto”, “identificação” “introjeção”, “projeção” e “cisão do ego” são encontradas em seus artigos, as quais revelam as sementes do que seria, anos depois, postulado em termos da interdependência analista/analisando. É interessante notarmos que esses conceitos que atingiram o ego em sua unidade (e outros que atingiram o sujeito psicanalítico em sua definição identitária, como o recalque, o inconsciente e a transferência) abriram a psicanálise para sua dimensão intersubjetiva. São fissuras e descontinuidades no ego que sustentam, em psicanálise, as possibilidades das interpenetrações intersubjetivas; desvãos por onde transbordamos e podemos ser invadidos, vasculhados, sentidos e transformados, como também invadir, vasculhar, sentir e transformar. Se o ego fosse um monolito, um bloco lacrado (como se tenta nos transtornos esquizóides de personalidade e nas formações falso-self), se o sujeito fosse apenas um si-mesmo, autoconstituído (como tenciona se assegurar o sujeito nos transtornos narcísicos de personalidade), dificilmente formas de intersubjetividade poderiam existir.

A partir de noções derivadas dessas descobertas, a obra de Freud evoluiu para uma presença cada vez maior das formas de relações do ser humano com seu ambiente, e de como ele se constitui a partir delas. Em sua obra há um caminho no qual o sujeito freudiano é apresentado em suas intrincadas formas de constituição, oscilando entre as dimensões intrapsíquicas e intersubjetivas, conforme o avanço de seus escritos. Apresenta-se inicialmente vinculado a seu objeto pelo trauma da sedução; depois surge em seu isolamento intrapsíquico, absolutamente vinculado à proposição da primeira tópica e ao modelo pulsional de Freud; em seguida vai novamente “nascendo” como um ser em interdependência com seu meio, principalmente a partir do desenvolvimento do conceito de identificação e o conseqüente surgimento da segunda tópica.

O conceito de identificação assume uma importância fundamental nessa discussão, e de forma geral na obra de Freud. No artigo Psicologia de grupos e análise do ego, o autor inicia o item VII, dedicado ao tema, expondo essa importância: “a identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo” (Freud, 1921, p. 115). Laplanche e Pontalis apresentam a importância do tema da seguinte forma: “na obra de Freud, o conceito de identificação assumiu progressivamente o valor central que faz dela, mais que um mecanismo psicológico entre outros, a operação pela qual o sujeito humano se constitui” (1994, p. 227 – grifos nossos).

Antes do artigo de 1921, Freud já havia se dedicado ao conceito de identificação. Nos textos Totem e tabu (1912-13), Luto e melancolia (1917[1915]) e Sobre o narcisismo: uma introdução (1914b), o tema recebe um tratamento especial. Mas é apenas em 1921 que a identificação ganha um status claro, para além das considerações psicopatológicas dos artigos anteriores, afirmandose como um dos processos pelo qual o sujeito – por incorporações, introjeções, internalizações, indiferenciações, diferenciações e comparações – edifica-se. Os processos de identificação, além de serem um “mecanismo psicológico entre outros”, inscrevem-se numa nova concepção de homem e trazem uma transformação fundamental para a obra do autor. Ainda que Freud, através da teoria das pulsões, continuasse a impor aos processos de identificação e a todos os outros processos humanos uma redução a moções e inquietudes oriundas de impulsos endógenos, sua teoria estava a caminho de abarcar esses fenômenos que se anunciavam em uma esfera relacional, ganhando cada vez mais destaque em si mesmos, não sendo mais redutíveis apenas às demandas pulsionais.

Nesse artigo de 1921, Freud relaciona o conceito de identificação com alguns temas centrais de seu pensamento: complexo de Édipo, histeria, grupos, homossexualismo e melancolia, nessa ordem – “comporta-se [a identificação] como um derivado da primeira fase da organização da libido, da fase oral, em que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo dessa maneira aniquilado como tal” (p. 115).

Há aqui uma condensação de várias modalidades de identificação. Desde o conceito de incorporação proposto em Totem e tabu (1912-13) – até certo ponto protótipo das identificações3 – até as identificações de pensionato (Freud, 1921), passando pelas identificações narcísicas, histéricas e melancólicas, também contidas nesse artigo. Apesar da incorporação, pela atuação do primado oral, presidir modelos iniciais de identificação, diferentes modalidades identificatórias poderão se formar. Vejamos como Florence trabalha sobre essas formações de identificação a partir da identificação melancólica:

Pode-se dizer que a identificação melancólica é a forma fracassada da identificação simbólica com o ideal (identificação que chamei de totêmica). A introjeção da relação ambivalente que o eu estabelece com o objeto (objeto que, na melancolia, é inconsciente) cliva o eu mas, ao contrário de nascerem dessa clivagem a tensão que abre o eu para igualar o objeto introjetado e a procura de novos objetos, a identificação revela-se aqui mortífera e destrutiva para o eu. É preciso supor que a escolha de objeto que presidira a instauração da relação era do tipo narcísico. (...) O próprio de uma identificação narcísica é conservar um vínculo em que o objeto e o eu são o duplo um do outro (1994, p. 131).

Ao falarmos então de identificações há uma exigência de considerarmos esse conceito em sua forma plural, salientando que diferentes processos identificatórios estão presentes em todo o desenvolvimento de uma vida humana. Não caberia aqui abordá-los em todas as suas especificidades. Apenas salientamos que desde as identificações primárias (que do ponto de vista do bebê não se trata de uma identificação com um outro exterior a ele), há um apelo ao outro que coloca o sujeito dentro de um solo intersubjetivo; o eixo principal de sua constituição é deslocado para fora dele. A identificação primária é conhecida por pertencer a um momento de indiscriminação eu/ não-eu, pré-sexual, momento que não se coloca na dimensão do desejo. Ela antecede e prepara todas as identificações seguintes, sua função é a manutenção de uma noção inicial e incipiente de si sustentada por um outro que nem é percebido como tal. O bebê não pode (ou não deveria...) ocupar-se do outro; deve ocupar-se apenas de ser, prioridade máxima dessa relação originária com seu objeto. Esse objeto originário será justamente aquele que deverá ser abandonado e esquecido para o devir das identificações seguintes. Nessas decorrências, as identificações narcísicas, melancólicas, histéricas, edípicas, se apresentarão em formas não lineares, guardando o pano de fundo das identificações primárias, com as quais essas outras irão sempre dialogar nas decorrências da constituição da subjetividade e nos processos de subjetivação das experiências, incessantes no decurso da vida. De qualquer maneira, as identificações subseqüentes tangenciarão as bases primárias das primeiras identificações, mostrando de diferentes formas suas características específicas. Esse solo primordial poderá se apresentar, então, não como um claustro, como nas formas apresentadas nas psicopatologias, mas como uma herança e como o viabilizador de outras formas intersubjetivas, relembrando o sujeito a matiz inaugural de sua constituição.

Porém, no narcisismo e na melancolia outro ponto se introduz. A descoberta presente no narcisismo (Freud, 1914) de que o ego poderia manejar a libido (nesse momento sendo a energia da pulsão sexual) de acordo com suas necessidades e artimanhas, abriu caminho para uma psicanálise cada vez mais interessada nas relações do ego com o externo, nas possibilidades da libido dar sustentação (no auto-investimento egóico) a uma noção do si-mesmo. Nesse momento a psicanálise se instrumentalizava para a pesquisa pormenorizada das trocas do indivíduo com seu meio, nos fenômenos de fusão e separação com seus objetos (primários e secundários, como veremos à frente) e avançava seu entendimento sobre as formas de constituição da subjetividade, viabilizadas pelas possibilidades de integração e não integração de si-mesmo a partir dos processos de catexias libidinais no próprio ego – processos esses apoiados pelas identificações primárias. Um narcisismo (como apreensão de si-mesmo) para constituir-se necessita ser alvo de investimentos libidinais do objeto (em suas funções narcisantes) e de investimentos libidinais do próprio sujeito nele mesmo; isso era possível ser pensado agora que as pulsões do eu (autoconservação) também se mostravam sexuais, ou seja, libidinais. Com esses avanços teóricos, as perdas narcísicas e suas sedimentações no ego, os processos melancólicos, a constituição do caráter do ego, suas distorções (cisões e recusa), entre outros fenômenos, poderiam ser propostos e sustentados por uma teoria que abria um promissor caminho a esses estudos.

Falando sobre Luto e melancolia (Freud, 1917[1915]), isso fica mais claro. O problema da libido retirada do objeto (pela perda deste, sua ausência ou rejeição) acabar sendo reinvestida no ego por sua própria ação, promovendo uma identificação, em uma tentativa do ego de trazê-lo de volta, de não se desfazer do objeto perdido, ainda que isso lhe custe um sério dano, trouxe surpreendentes conseqüências para a psicanálise. O objeto perdido instala-se dentro do ego. Esse novo tipo de relação, diferente de tudo que havia sido descrito, esse objeto tido como único, insubstituível para o ego, instaura de vez o sujeito psicanalítico em um plano de um terrível interjogo de dependências e demandas com seus objetos, em que perdas, sucessos, danos, traumatismos, amparo, salvação, tudo pode acontecer. O ego posteriormente será definido por Freud (1923) como uma resultante desses fatores: acontecimentos e relações, descritas em termos de catexias abandonadas. Porém, sabemos que considerá-lo unicamente formado por essas contingências externas é uma visão absolutamente incompleta. Ele não só está em relação direta com a realidade externa e com as outras instâncias que compõem o psiquismo (superego e id), como está operando na turbulência das moções pulsionais, ou seja, nada do que for descrito passará em mar de águas calmas.

Com o surgimento do artigo sobre a melancolia (Freud, 1917[1915]), temos um novo estado de coisas: o sujeito passa a ser composto de outros “eus”. Esses objetos transformam o psiquismo, acometem o ego e nele se instauram, curiosamente, instaurando e descentrando o sujeito. O sujeito psicanalítico nunca mais será o mesmo; nunca mais poderá ser definido a partir de uma lógica identitária assentada apenas nele mesmo. Não há solipsismo possível frente a essas conseqüências constitucionais. Não há também reducionismo puro ao pulsional que explique porque o ego deve alterar-se, agredir-se, impor-se um desencaixe por meio do qual ele nunca coincidirá consigo mesmo, por não admitir a perda de um objeto específico. Um objeto que não pode entrar nas considerações incidentais que caracterizavam o objeto nas primeiras formulações pulsionais. Essa linha de pensamento encontrará seu ponto alto em O ego e o id, no qual Freud definirá que o caráter do ego é formado por esses objetos que ele instalou em seu interior.

Neste ponto temos que ampliar um pouco nosso campo de ação. Alcançamos sucesso em explicar o penoso distúrbio da melancolia supondo (naqueles que dele sofrem) que um objeto que fora perdido foi instalado novamente dentro do ego, isto é, que uma catexia do objeto foi substituída por uma identificação. Nessa ocasião, contudo, não apreciamos a significação plena desse processo e não sabíamos quão comum e típico ele é. Desde então, viemos a saber que esse tipo de substituição tem grande parte na determinação da forma tomada pelo ego, e efetua uma contribuição essencial no sentido da construção do que é chamado de seu “caráter” (1923, p. 41).

Com essas contribuições que Freud nos traz pelos estudos sobre identificação, nossa discussão ganha um acréscimo inspirador ao nos aproximar de diversas áreas e matrizes da experiência intersubjetiva. Ou seja, revela-se que além do processo psíquico da identificação, esse acontecimento recoloca os dois sujeitos que o compõem para além do corte cartesiano, entrelaça-os em um tipo íntimo de contato. Por meio da identificação, os sujeitos encontram-se, indiscriminam-se, discriminam-se, comunicam-se e se transformam. Institui-se uma modalidade destacada e privilegiada de contatos primitivos na instauração do ser (identificações primárias) e nas contínuas reconstituições de si (identificações secundárias); de fusões e comunicações de experiências ou estados emocionais, possibilitadas pela identificação. Esses contatos descritos pelo fenômeno da identificação estão no cerne das questões intersubjetivas. Contudo, veremos que Freud toma essas questões pelo prisma de sua época, não privilegiando diretamente toda a riqueza de suas afirmações, na direção para a qual estamos chamando a atenção, deixando-nos um legado a ser constantemente redescoberto.

As indicações no texto de Freud de 1921, sobre matrizes iniciais da identificação, retomam pontos discutidos nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Totem e tabu (1912-13) e Sobre o narcisismo: uma introdução (1914b). Se a identificação narcísica faz uma regressão de “ter” para “ser”; se a melancólica faz uma regressão até as raias da incorporação pelo primado oral de sua atividade; se a identificação histérica nega a alteridade e seu desejo, porém, utiliza de um expediente mais elaborado situado na esfera da fantasia e da sexualidade sua e do outro; esses planos diferentes e entrecruzados entre si nos apontam para um quiasma: as fronteiras entre o si e o outro são tão porosas, tão intercambiáveis, tão dribláveis, que a cisão cartesiana é derrubada pela pena freudiana. A identificação narcísica surpreende de forma saliente: o ideal do ego irá se fundir com o sujeito, a ligação primeva com o objeto será restabelecida, a libido não será objetal – será narcísica – o objeto não será abandonado para ser reconquistado posteriormente na busca de outros objetos, indicada por Freud pelo termo “ter”. O monocórdio será outro: “ser”, coincidir com o objeto e ponto final. “No primeiro caso o pai é o que gostaríamos de ser, no segundo o que gostaríamos de ter, ou seja, a distinção depende de o laço se ligar ao sujeito ou ao objeto do ego” (Freud, 1921, p. 116)4. Veremos pouco presente na obra de Freud essa relação inicial e estruturante com o objeto primário, na maior parte das vezes que Freud trata do conceito de objeto, fala de um objeto secundário e das identificações secundárias. Desta maneira, na maioria dos casos, fala daquele sujeito que de alguma forma pôde recalcar bem esse objeto inicial – origem das decorrências sexuais – e pôde atirar-se em seu devir transferencial; pôde inscrever-se no campo do desejo: “ter” aquilo que seu desejo lhe apresenta, buscá-lo no mundo. Já era muito, conforme aferimos, que o objeto pudesse alcançar esse estatuto de instaurador das fundamentais transformações no sujeito, via identificação e sua correlação com a formação do ego.

Notemos neste ponto que os resultados dos estudos sobre os processos de identificação enriquecem cada vez mais a qualidade e as formas de contato entre os indivíduos que a compõem. A sofisticação das formas da psicanálise em compreender a natureza dessa composição impulsionou-a para além dos limites que até então a constrangiam e a definiam. As conseqüências seriam notórias: não seria possível sustentá-la em termos de investigação intrapsíquica apenas. Esse novo apelo da identificação como processo central, e não apenas correlato de outros mecanismos psíquicos, balizava um avanço da teoria freudiana, como apreendem Greenberg e Mitchell quando afirmam que: “Com os conceitos de narcisismo, identificação e ideal do ego, o modelo topográfico estava cedendo nas costuras. A divisão do aparelho mental nos sistemas do inconsciente, pré-consciente e consciente era considerada como exaurindo as regiões funcionais da mente” (1994, p. 51-52).

Laplanche e Pontalis também articulam o desenvolvimento do conceito de identificação com a mudança de Freud para a segunda tópica, traçando um importante comentário para a nossa discussão:

A elaboração da segunda teoria do aparelho psíquico vem testemunhar o enriquecimento e a importância crescente da noção de identificação: as instâncias da pessoa já não são descritas em termos de sistemas em que se inscrevem imagens, recordações, “conteúdos” psíquicos, mas como resquícios sob diversas modalidades, das relações de objeto (1994, p. 228).

Os trabalhos de Freud sobre a identificação faziam com que seu posicionamento frente ao conceito de objeto tivesse que ser revisto. O que deriva dessas considerações é sabermos a natureza desse outro, ou “desses outros”, da identificação, e que tratamentos ele ganhou no trabalho de Freud. Por que essas dimensões realçadas pelo estudo das identificações, principalmente as identificações primárias, não receberam investimentos diretos na obra freudiana?

 

O apelo ao outro: o nebenmesch – o ser próximo – Freud frente ao objeto primário

“A vontade é livre de assumir a responsabilidade no sentido que quiser, mas não tem a liberdade de rejeitar essa mesma responsabilidade, de ignorar o mundo palpável em que o rosto de outrem a introduziu” (Lévinas, 1980, p. 196).

Coelho Junior aborda o tema da intersubjetividade, introduzindo-o a partir de um ângulo importante: “há, aqui, a nebulosidade própria da relação do homem com o mundo e das relações intersubjetivas ou, até melhor, das relações intercorporais, que caracterizam a especificidade do campo terapêutico de uma análise” (2000, p. 64). Vamos dar atenção a essa “nebulosidade” dita, pois ela sempre esteve sob a lente psicanalítica, que mesmo em seus formatos mais radicais de objetivação empírica, nunca conseguiu fechar os olhos para sua existência. Vimos isto em Freud por meio do conceito de identificação. Mesmo nos momentos em que suas propostas mais intrapsíquicas e cientificistas eram apresentadas, havia essa presença dupla e inconsciente, em que algo de outra ordem clandestinamente anunciava-se em seus escritos.

Vejamos o famoso início do Projeto para uma psicologia científica:

A intenção é promover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim esses processos claros e livres de contradição. (...) [A Concepção Quantitativa] Deriva diretamente das observações clínicas patológicas, especialmente no que diz respeito a idéias excessivamente intensas – na histeria e nas obsessões, nas quais, como veremos, a característica quantitativa emerge com mais clareza do que seria normal (Freud, 1950[1895], p. 347).

Nada mais distante de nossas especulações no terreno “incerto” da intersubjetividade, se comparado ao que é proposto acima. Um pouco à frente, no mesmo artigo de Freud temos:

Suponhamos que o objeto que compõe a percepção se pareça com o sujeito – um outro ser humano. Nesse caso, o interesse teórico [que lhe é dedicado] também se aplica pelo fato de que um objeto semelhante foi, ao mesmo tempo, o primeiro objeto satisfatório [do sujeito], seu primeiro objeto hostil, além de sua única força auxiliar. Por esse motivo, é em relação a seus semelhantes que o ser humano aprende a conhecer (p. 383 – grifos do autor).

Nossa nebulosa fica um pouco mais espessa ao nos aproximarmos do objeto inaugural, aquele que veicula as identificações primárias. Esse trecho será usado por Schneider (1997) para apresentar uma discussão relacionando Freud e Lévinas5 a respeito do Nebenmensch – o ser-próximo – presente nessa citação. Nesta breve passagem de Freud, observamos toda a problemática acerca da constituição do ser a partir do “outro”, ou seja, formulações que demonstraram que o centro ao redor do qual o si-próprio se inaugura está fora dele, localiza-se muito mais na relação com o outro, na relação primordial mãe/bebê. Os estudos psicanalíticos não poderiam, então, desconsiderar as qualidades desse outro e a qualidade das relações que presidem esse contato – em outras palavras, os fenômenos intersubjetivos desde sua raiz constitucional, até suas dimensões comunicacionais e culturais.

Basta juntarmos a raiz humanista de Freud, sua formação de neurologista, o objeto ao qual se propôs com a invenção da psicanálise e os paradigmas científicos de sua época (com os quais ele vivia em constante estado de filiação e rompimento) para entendermos essa presença dupla em seus escritos. E é exatamente nessa citação acima que encontramos o ponto onde a “nebulosidade”, essa nossa névoa, fica mais espessa. É na difícil resolução do que é e de como se dá a constituição da subjetividade, o contato com o outro, as oscilações entre separação e junção que fundam o indivíduo, e que estão totalmente presentes na prática clínica. Na intersubjetividade vislumbra-se a vertigem causada pela dissolução de um divisor estático entre eu e outro, sujeito e objeto, analista e analisando. Divisão antes sustentada em psicanálise sob o perigo da prática se perder, e hoje, um estudo e uma transposição absolutamente necessários, sob o risco desta mesma prática não se reencontrar. Nessa citação, Freud deixa transparecer a noção intersubjetivista, que não coincide totalmente com a idéia inicial de pulsão, ou seja, está dito que o ser humano busca o outro para fazer-se e saber-se humano, e é este seu único caminho. Freud lidava com o encontro bipessoal, e essas dimensões não poderiam estar ausentes em sua obra.

Coelho Junior aponta para a presença difusa dessa dimensão em psicanálise e para as possibilidades que os estudos intersubjetivos psicanalíticos trouxeram em termos de critérios de investigação mais consistentes para essa área:

Essas noções foram muitas vezes elevadas à condição de experiência intersubjetiva e consideradas essenciais para o estabelecimento da transmissão de compreensões ocorridas no âmbito de uma análise. Empatia e encontro, duas noções problemáticas, no mais das vezes carregadas de “esperanças espiritualóides”, que surgiriam para explicar, quase magicamente, algo que de fato pode se dar, ou seja, a compreensão sensível entre duas existências distintas (2000, p. 68-69 – grifos nossos).

Essa compreensão sensível tanto nos remete a um pólo comunicacional (em termos de sujeitos constituídos), como “aos confins da ontologia” (André, 1999, p. 73), nas ações pré-sexuais, instauradoras do ser e do sexual (como discutimos, por exemplo, por meio do conceito de identificação primária). Mas quais investimentos receberam essa relação primordial salientada por Freud, em momentos como o do Projeto (1950[1895]), no decorrer de sua obra? Em Schneider (1997), a autora assinala que ocorreu um recuo de Freud justamente frente ao surgimento dessa nebulosidade – o Nebenmensch (o ser-próximo), essa situação de contágio e perigo tantas vezes esmiuçada pelo pensamento psicanalítico, e que é tratada na atualidade por meio do conceito de intersubjetividade. Schneider trabalha sobre esse recuo de Freud a partir deste trecho que destacamos no Projeto (Freud, 1950[1985], p. 383), questionando sobre quais seriam as necessidades e temores de Freud ao se desviar de suas intuições originais: “contra o que se defende o pensamento freudiano quando ele anula um de seus achados originais, a relação original com o Nebenmensch, com o ser próximo, com o ser lateral, a tradução ‘próximo’ violentando o conjunto dos textos breves onde tem lugar essa abordagem?” (Schneider, 1997, p. 71 – grifo da autora).

Para podermos entender esse ponto, temos que recordar que esses “achados originais” que Schneider cita são de uma época – anterior à Interpretação dos sonhos (Freud, 1900) –, momento muito específico dentro da história da psicanálise, em que seu arsenal teórico não estava ainda construído. A mente descrita topologicamente, suas instâncias, as leis de trânsito para os movimentos dos registros por esses espaços, o primado da sexualidade, a regência do inconsciente, a natureza do recalque e da resistência não estavam estabelecidos. O que queremos ressaltar e que não havia todo esse arcabouço intrapsíquico, que ao ser construído, promoveu uma mediação no contato analista/analisando. Entre esses dois personagens passou a se interpor (após 1900) uma miríade de conceitos, um aparelho anímico, um sistema sobre o qual o analista reclamava algum conhecimento e controle. Era o anteparo requerido frente ao perigo do analista ser tragado pela dor e pelo desejo do outro, instrumento absolutamente necessário para se remediar aquelas primeiras experiências psicanalíticas. Haveria, contudo, uma necessidade de se desconstruir, de forma segura, a distância à qual ficariam expostos os sujeitos dessa dupla, ameaçados de isolamento.

O contato imediato foi marca das primeiras tentativas psicoterapêuticas da psicanálise, e fonte de grandes transtornos, como os casos que citamos na Introdução deste trabalho. Esse tipo de contato imediato só pôde ser redescoberto e revisitado em psicanálise por uma ação deliberada de sua pesquisa clínica e teórica. Isso se deu apenas quando ela se viu com instrumentos técnicos e teóricos que dessem segurança a essas incursões no campo das indiferenciações ligadas às funções primárias das identificações e dos objetos. As descobertas de Freud, que inventaram a psicanálise e puderam mediar o encontro analista/analisando, necessitaram de muito tempo para se recuperar dessa espécie de “recuo”.

A própria teoria da sedução, que está nessas descobertas freudianas iniciais, já revelava o poder do objeto e sua indissociável relação com o sujeito, seu “primeiro objeto satisfatório [do sujeito], seu primeiro objeto hostil, além de sua única força auxiliar” (Freud, 1950[1895], p. 383). E é desta forma que vamos tendo a noção de que o sujeito é inaugurado por seu objeto na mesma medida em que o cria. Nas palavras de Figueiredo, próximas às de Freud, opera-se: “este campo de acolhimentos e traumatismos que se chama subjetividade e que nasce como refém, hóspede à força” (1997, p. 44 – grifo do autor). Estamos nos referindo principalmente, mas não somente, ao campo das identificações primárias e dos objetos primários, momento em que a indistinção entre o bebê e seu objeto (a mãe como ambiente) está operante (Winnicott, 1955-6), campo menos familiar a Freud. Para Winnicott,

Suas próprias experiências infantis (as de Freud) haviam sido suficientemente boas, fazendo com que em sua auto-análise ele tomasse a maternagem do bebê [os fenômenos da identificação primária, as relações com o objeto primário] como algo evidente por si mesmo (1954, p. 381).

Esse sujeito psicanalítico que fora pensado por Freud sob o signo da sedução, impresso e constituído por suas relações iniciais, exposto à sorte dos vínculos primitivos e ao imponderável dessas primeiras relações, é recebido novamente no trabalho freudiano após anos de estudos e pesquisas, nos quais essa temática parece ter permanecido em estado de latência, desenvolvendo-se subterraneamente. No trabalho O ego e o id (1923), o autor apresenta um sistema pronto. Nele, Freud parece convencido e tranqüilo frente ao fato de que não é possível pensarmos em constituição do ego sem levarmos em conta que ele próprio (o ego) se indiscrimina nos objetos de sua história. O caráter do ego estará condicionado às identificações primárias, à sua relação com o objeto primário. Em 1923, o sujeito freudiano encontra-se desencaixado, descentrado dele mesmo, não podendo sem pensado em termos solipsistas:

Entretanto, seja o que for que a capacidade posterior do caráter para resistir às influências das catexias objetais abandonadas possa tornar-se, os efeitos das primeiras identificações efetuadas na mais primitiva infância serão gerais e duradouros, Isso nos conduz de volta à origem do ideal do ego; por trás dele jaz oculta a primeira e mais importante identificação de um indivíduo, a sua identificação com o pai em sua pré-história pessoal. Isso aparentemente não é, em primeira instância, a conseqüência ou resultado de uma catexia de objeto; trata-se de uma identificação direta e imediata, e se efetua mais primitivamente do que qualquer catexia do objeto (Freud, 1923, p. 44 – grifos nossos).

Por mais que não fosse seu terreno privilegiado, tratando-o indiretamente, ao considerar as formas iniciais de formação do eu, Freud trazia para a cena (de modo implícito ou explícito) intuições de uma indistinção na fundação desses processos. Segundo Schneider, Freud tentava afastar-se disto que se instaura no campo intersubjetivo visando:

Dar fim a uma proximidade primordial, a uma anarquia na qual o sujeito não pode ser colocado como soberano fechado em um território delimitado: toda a problemática desenvolvida posteriormente por Freud referente ao sujeito e ao objeto – ambos colocados no corte (1997, p. 87).

Com efeito, se acompanharmos a autora, o que se segue após esse primeiro contato de Freud é um mergulho em formulações intrapsíquicas. Nesse período, Freud apresenta a formulação da primeira tópica (1900), na qual os sistemas inconsciente, pré-consciente e consciente são descritos, havendo um investimento poderoso em seu projeto pulsional (Freud, 1905; 1915) – no qual o tema principal será o acúmulo e descarga pulsional: o princípio do prazer – investimento esse que coloca o objeto, na formulação inicial freudiana, como correlato da pulsão. Mas as conseqüências disso são notórias. Freud condenounos ao objeto colocando-o como objeto da pulsão e considerando-a como aspecto irredutível do ser. Tratou-se de um movimento que levou (como discutimos) ao desenvolvimento da segunda tópica, esta sim estabelecida pelo constante jogo de identificações, pelo matiz indissociável sujeito pulsional/objeto. Não houve só um desenvolvimento intrapsíquico. Em sua pesquisa e sua prática, Freud deparava-se com o campo intersubjetivo, momentos preciosos que deram à sua teoria o benefício da contradição, que a tornou tão impossível de ser aprisionada quanto os fenômenos aos quais ela se propõe analisar.

Então, se o indivíduo busca seu desenvolvimento no contato com o outro, e se esse perder-se no outro e reviver-se inteiro (identificado) é vital para a sua constituição, como poderia a técnica psicanalítica ser uma técnica pré-estabelecida no distanciamento como norma, e não como rico movimento requerido (inclusive pelo paciente) a partir de uma hipótese metapsicológica? Como poderia ser sustentada apenas em termos intelectuais, ou seja, a partir de um jogo de construção de sentidos e significados? Como sua pesquisa poderia estabelecer-se somente na dimensão intrapsíquica? Como exposto por Schneider (1997), esse movimento “si e outro” não se dá ao psiquismo; antes, o constitui. É para esse vértice que nos aponta a intersubjetividade, sem cairmos na ingenuidade de que proximidades e gratificações na prática clínica garantem por si mesmas crescimento, ou que sejam coisas boas a priori. Os estudos psicanalíticos contemporâneos exigem muito mais sutilezas do que isso.

A intersubjetividade nos mostra que na relação do homem com o mundo ele não pode ser reconhecido como um si mesmo, aspecto presente na obra de Freud. Não há um gesto que possa alcançá-lo “puro”, identificando-o e definindo-o antes de sua disseminação no meio que o contorna, quer pela indissociável relação com seu objeto primário que o funda; quer pelas várias formas de identificação que irão testemunhar em sua história sua contínua constituição; quer pela própria porosidade dos corpos (Coelho Junior, 2000). O que se dá nessa forma de contato sutil não apenas nos informa sobre o paciente, mas também o recoloca no interjogo de trocas de sinais, presenças, intensidades, sensações, conteúdos mentais, identificações, palavras, sentidos, que constituem, como vimos, a subjetividade. Acontecimentos que dão ao paciente o que foi chamado por Winnicott (1951; 1971) de o sentido de continuidade de ser6, experiência que se dá no encontro de duas pessoas, e que é sondada pelos estudos sobre a intersubjetividade, acontecimento necessário para a “comunicação” e para o “existir”, noções primordiais para o trabalho clínico.

 

Considerações finais

Utilizaremos uma citação de Schneider para nossos últimos comentários neste trabalho:

Edificar uma barreira entre o si e o outro, entre sujeito e objeto: tal estratégia domina não somente a tendência fundamental da filosofia clássica, tendência questionada por Lévinas; ela também é discernível no interior da trajetória freudiana. Discernível, em especial, nas brechas que se inscrevem entre as primeiras abordagens teóricas de Freud, especialmente no Entwurf8, de 1895, e a ulterior construção de sua obra (1997, p. 71 – destaque da autora e nota de rodapé nossa).

Esse trecho é valioso para nós: há brechas na obra de Freud, como há também nessa barreira entre o si e o outro, brechas nas quais irão se situar os indícios e os estudos intersubjetivos. Se nos dispusermos a olhar através delas veremos, tanto no trabalho de Freud quanto na divisória entre o si e o outro, analista e analisando, sujeito e objeto, que não são brechas quaisquer; elas abrem para um universo de infinitas possibilidades. Esse infinito que encontramos na obra e nos desvãos das linhas freudianas, que nosso olhar traz e que a obra nos apresenta, que não é autoria nem de um nem de outro, é nosso terreno de crescimento. Tentamos assim, com os conceitos de identificação e objeto, demonstrar a possibilidade de apreendermos a dimensão intersubjetiva latente no trabalho de Freud. Através dos estudos intersubjetivos7, o analista não é mais um observador passivo de um fenômeno que ele analisa, estuda, não participa, conhece, controla, manipula e prediz resultados. Ao retirar o analista da posição de sujeito da dicotomia positivista, a intersubjetividade o recoloca em uma posição muito mais apta para que possa desempenhar a tarefa e prestar a ajuda à qual, eticamente, ele se propõe.

 

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Endereço para correspondência
Alexandre Augusto Martins Maduenho
Rua Purpurina, 155 / 16 – Vila Madalena
05435-030 – São Paulo/SP
Tel.: (11) 3815-0944
E-mail: alemaduenho@hotmail.com

Recebido em 17/08/05
Aprovado em 27/10/05

 

 

Notas

I Psicanalista; Mestre em Psicologia (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo).
1 Artigo baseado na dissertação de mestrado do autor (Maduenho, 2003).
2 No caso da sua recomendação do uso do divã, Freud em seguida comenta que: “enquanto estou escutando o paciente, também me entrego à corrente de meus pensamentos inconscientes; não desejo que minhas expressões faciais dêem ao paciente material para interpretação ou influenciem-no no que me conta” (Freud, 1913, p. 149). Assim, Freud abria para outras profundas e atuais considerações a respeito do uso do divã, a serem entendidas dentro da metapsicologia de cada situação analítica específica.
3 Aqui vemos uma problemática presente na teoria psicanalítica. Para Florence (1994), trabalhando dentro da tradição lacaniana, a incorporação é o que abre para a identificação simbólica totêmica, ela está ligada principalmente à figura paterna, ou melhor, ao pai da préhistória do sujeito; essa identificação socializa, discrimina, identificando seus membros por meio de uma espécie de acordo simbólico. Para autores como Melanie Klein, a incorporação, apesar de também poder ser um prenúncio da identificação, está cercada de perigos. Pode ser justamente aquilo que impossibilitará o acesso às identificações. Não está ligada à figura paterna, e sim à materna. Pela extrema destrutividade imposta por esse processo (ligada ao sadismo, derivado da pulsão de morte), pode criar objetos absolutamente sádicos, terríveis, que vivem dentro do sujeito, porém isolados, encriptados, não assimilados à subjetividade.
4 Note que mesmo ao falar de formas de identificação muito primitivas, como inclusive na incorporação, Freud usa a figura do pai como elemento identificatório. Posteriormente, autores como Melanie Klein, Winnicott e Bion, por se dedicarem a outras categorias de constelação psíquica, mais regredidas, menos constituídas, apreenderão a necessidade de se colocar essas dimensões da identificação (principalmente as identificações primárias onde não há separação eu/não-eu) sob a égide da relação mãe-bebê.
5 Ver, de Emmanuel Lévinas, Totalidade e infinito (1980).
6 Definida por Abram: “a continuidade do ser pode ser descrita como um estado ou sentimento que emerge como resultado da experiência subjetiva do bebê de ser fundido com a mãe suficientemente-boa” (2000, p. 238).
7 Ou seja, “o projeto”, referindo-se ao trabalho Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950[1895]).
8 Ogden ressalta que “é importante notar que o uso do termo intersubjetividade não é uma contribuição da psicologia; é uma idéia que há séculos vem sendo usada em filosofia, da maneira acima descrita” (1996, p. 100).