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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.19 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Xamãs e os espíritos ancestrais

 

Shamans and ancestral spirits

 

 

Wagner VidilleI

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo refere-se ao desenvolvimento de pesquisa sobre crenças, concepções de doença e tratamento entre populações indígenas da Amazônia. São descritos trechos de viagem à região de selva entre Brasil e Venezuela. Correlaciona conceitos provenientes da Psicanálise (inconsciente, cisão, identificação projetiva, projeção de partes da personalidade, bom e mau objeto) com outros derivados da Antropologia. Apresenta três situações clínicas: sessão de cura de dores nas costas conduzida por um pajé Tukâno; ação terapêutica realizada por um pajé Wanâna ao tratar do joelho de seu paciente; cerimônia de Hekuramou, “contatos com os espíritos”, entre indígenas Ianomâmi. Busca validar os rituais de cura como elementos culturais significativos e ressaltar importância da manutenção dessas tradições como elementos estruturantes de identidade individual e étnica.

Palavras-chave: Rituais de cura, Animismo, Xamanismo, Indígenas da América do Sul, Amazônia.


ABSTRACT

This presentation is about a study of believes, disease and treatment conception among Indians from Amazon. The author describes passages of his trip to the rain forest between Brazil and Venezuela. He proceeds to conceptual approach among psychoanalytic concepts (Unconscious, Splitting, Projective Identification, Projection, Good and Bad Objects) in connection with others derived from Anthropology. Three clinical situations are presented: first, a therapeutic séance (backache) carried out by a Tukâno medicine-man; then, work and therapeutic action of a Wanâna shaman with his patient (knee disease); at last, the “Hekuramou” ceremony (contact with “spirits”) among Yanomami Indians. In this research, the main purpose was to validate the cure rituals as significative cultural elements and to emphasize the maintenance of these traditions as important elements structuring individual and ethnic identity.

Keywords: Cure rituals, Animism, Shamanism, South American Indians, Amazon.


 

 

I. Introdução

A aventura que convido o leitor a fazer na leitura destas linhas refaz o caminho que percorri na Amazônia brasileira, durante o mês de julho de 2002. Uma empreitada cujo início, poucos meses antes do embarque, aconteceu a partir de um convite que recebi para que, em uma viagem de campo ao extremo noroeste do Brasil, ao município de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas, acompanhasse o desenvolvimento de um projeto que trata do crescente número de suicídios entre adolescentes indígenas aculturados.

Há algum tempo, notícias davam conta que meninos com idades entre quinze e dezesseis anos suicidavam-se por enforcamento. Assim, no contexto geral do projeto, que contava com o apoio de instituições locais: Prefeitura, Diocese e Exército, minha função seria, naquele momento, como médico com experiência psiquiátrica e psicanalítica, colaborar no sentido de identificar as possíveis causas que levavam aqueles jovens a tal escolha, com êxito letal.

Preparei-me para a inusitada empreitada sem saber exatamente o que me esperava nas três semanas em que estaria no Amazonas. Procurei ler material bastante diversificado, desde literatura psicológica sobre a adolescência e temas correlatos1(violência, comportamento suicida, alcoolismo, adição a drogas etc), até dados genéricos sobre a história e a geografia da região, passando por textos antropológicos sobre formação étnica, costumes etc.

Na bagagem, levava roupas leves, um bom par de botas, um pequeno diário de viagem, uma câmera para filmagens, outra fotográfica e demais pertences. Devo confessar que até então minha experiência como cinegrafista restringia-se a, em uma única e compulsória ocasião, ter substituído em suas funções um acamado proprietário de uma câmera VHS no batizado de meu sobrinho (ao menos para mim, o mote glauberiano dos anos 70 ainda não tinha seu prazo de validade expirado). Em função da possibilidade de entrar em território ianomâmi para uma visita a algumas aldeias encravadas em plena selva, distantes várias horas de qualquer centro médico, incluí também material de primeiros socorros, como linhas para sutura, antibióticos, antiinflamatórios, adrenalina, anestésicos, seringas de injeção, protetor solar e loção repelente de mosquitos, uma vez que a região é sabidamente área epidêmica de malária.

A viagem propriamente dita começaria em uma manhã bastante fria, no amplo lobby de um hotel da região da Avenida Paulista, com um café expresso bem-tirado. Dali, uma van me levaria ao aeroporto para embarcar rumo a Manaus. Quatro horas depois, já podia divisar o espetáculo do encontro das águas imiscíveis dos dois grandes rios, e descendo do avião, sentir a fornalha tropical subindo pelas bocas das calças. De Manaus a São Gabriel – o último município brasileiro a noroeste, na inóspita selva fluvial entre a Venezuela e a Colômbia –, caminhando no sentido oeste, a cumprir uma conexão de seis horas em um antigo turbo-hélice, por persistência ainda em uso. Antes do embarque, a visão do aparelho encarquilhado taxiando vagarosamente pela pista, amparado por um velho trator, e a presença de mecânicos providenciando os últimos reparos, quase me fizeram desistir.

Nos intervalos do trabalho em São Gabriel da Cachoeira, com a indicação nem sempre confiável de moradores locais, e de maneira quase intuitiva, procurei entrevistar alguns pajés de etnias indígenas variadas, e dentre os que me pareceram mais interessantes, filmei e fotografei seus trabalhos. Em função da curiosidade e questionamentos que o material coletado suscitou, comecei ali a elaborar o que viria a ser este artigo2.

Depois de uma semana de trabalho em São Gabriel, partia agora na direção norte, cruzando a linha do Equador. Três horas em estrada esburacada e lamacenta transpostas às custas de veículo tracionado, seguidas por outras seis horas percorrendo tortuosos igarapés3, a bordo de uma “voadeira”, um barco veloz de alumínio com dez metros de comprimento e um valente motor de 20 HP. Nesse trecho fluvial, a percepção de horizontes verdes, indefinidos, vazios e repetitivos fez confirmar a opinião do melancólico Euclides da Cunha, quando dizia de forma genérica a respeito da Amazônia que “em poucas horas o observador cede às fadigas de monotonia inaturável4”. Assim, depois de nove longas horas de viagem, cheguei finalmente a um pequeno embarcadouro – na verdade, um aglomerado improvisado de troncos toscos e tábuas de madeira –, que serve às aldeias ianomâmis de Maturacá e Ariabú. Nessa bela região de clima ameno, situada nas proximidades do Pico da Neblina e cercada pelo verde imensurável, fiquei instalado durante duas semanas em uma missão religiosa salesiana. Lá encontraria indígenas vivendo em estado “mais natural”: seminus, habitando palhoças familiares e alimentando-se da caça, da pesca, de frutos silvestres coletados nos arredores das aldeias e da farinha resultante do beneficiamento da “mandioca-brava”.

Interesso-me pela transmissão de conquistas culturais entre gerações. De maneira diferente de algumas correntes psicanalíticas em voga, acredito que o indivíduo não exista in vácuo, e que suas atividades emocionais estão relacionadas com o ambiente e que são dinâmica e continuamente por ele influenciadas. Lembro o Freud de 1915, quando definiu os conteúdos inconscientes como um aglomerado composto por representantes ideativos (desejos e afetos que procuram descarregar suas catexias), por idéias recalcadas e por conteúdos filogenéticos (produtos culturais transmitidos). Aqui, nesse último quesito do construto freudiano, é que tenho concentrados meus atuais interesses: no cadinho fomentado pela sobreposição de elementos culturais adquiridos e transmitidos, como a interposição das interdições, o sistema de ideais, a introdução das sensações de nojo, as habilidades lingüísticas, os tabus grupais etc.

As tribos a que me refiro neste estudo, de paragens tão longínquas e desfreqüentadas do Noroeste do Brasil, apesar de pertencerem a etnias distintas, comungam, grosso modo, uma mesma visão cosmogônica, coincidindo com algumas variantes regionais, mitos, crenças, alguns costumes e, principalmente, práticas terapêuticas. A proximidade territorial certamente favorece trocas mercantis e casamentos intertribais, contribuindo para uma certa homogeneização cultural. Essa paridade é evidenciada no entendimento que esses povos têm a respeito da etiologia de algumas doenças: crêem que, à custa da manipulação de um “objeto patogênico”, determinadas enfermidades podem ser introduzidas no corpo de pessoas sãs, por desejo e ordem de uma outra, e que só os pajés, por sua ação em rituais mágico-religiosos, tenham poder para curá-las.

Neste artigo não defino perfis precisos referentes ao xamã, conhecido em nosso meio como pajé ou curandeiro, figura ímpar da história universal das religiões; tampouco tento produzir, ainda que de forma breve, um arrazoado sobre Psicologia e História das Religiões. Meu interesse foi pesquisar concepções de doença e de saúde, assim como relacionar práticas terapêuticas não ortodoxas exercidas em larga escala na região noroeste do Brasil, respeitando sempre minha condição de pesquisador com formação em Medicina e Psicanálise.

As reflexões como as que me propus realizar não poderiam ser feitas sem considerar o contexto de inserção da população pesquisada, razão pela qual incluí aqui um breve apanhado histórico-geográfico, entremeado por comentários genéricos a respeito das condições socioeconômicas e culturais que me pareceram de maior interesse para os objetivos desta comunicação.

A região do Alto Rio Negro está situada no extremo noroeste do Brasil, na zona da fronteira tripartite com a Colômbia e a Venezuela. O rio que lhe dá nome, o Negro, percorre aproximados 560 km antes de sua entrada no Brasil, avançando em território brasileiro por 1.350 km, até desembocar em sua foz, na cidade de Manaus. Suas águas passam ao largo de centros urbanos regionais, como a sede do Município de São Gabriel da Cachoeira, centro geopolítico de um município com 112.000 km² e cidade-referência para os propósitos deste trabalho. Separada 860 km de Manaus por densa floresta tropical úmida foi fundada em 1891 e declarada Área de Segurança Nacional em 1968.

A população urbana de São Gabriel contava oito mil habitantes, segundo o censo do IBGE de 1996, devendo hoje estar por volta de quinze mil, considerando-se o aumento expressivo dos descimentos das populações do interior e do crescente afluxo de migrantes provenientes de vários estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e outros. Trata-se da maior concentração indígena da Amazônia, representada por vinte e três etnias distintas, distribuídas em setecentas e trinta e duas aldeias, ao longo das margens do Rio Negro e seus afluentes. A cultura indígena reflete-se também na economia de São Gabriel. A principal atividade do município é a agricultura de subsistência. Planta-se mandioca, abacaxi, abacate, banana, limão e batata-doce, e da floresta extrai-se a piaçava, o cipó e a borracha, produtos coletados e levados para a cidade, onde são vendidos para comerciantes que se encarregam de exportá-los para outros estados do Brasil e para o exterior. A alimentação é complementada com a cada vez menos abundante caça e pesca.

Concentrada em uma área urbana mínima, sua população não desfruta de salas de cinema ou teatro. As contradições são evidentes: apesar do grande potencial hidrelétrico, toda a energia consumida é gerada por uma usina termelétrica, que devora diariamente trezentos mil litros de óleo diesel, transportados em barcaças trazidas de Manaus. Caminhando por suas ruas asfaltadas, sob uma temperatura média de quase 40ºC e umidade relativa do ar batendo 90%, usuais em baixas latitudes, pude ver antenas parabólicas plantadas em cada quintal, e pelo menos um aparelho de TV ligado nas residências e estabelecimentos comerciais. O fluxo migratório das aldeias para as cidades evidencia a busca por novas condições de vida, principalmente por alfabetização.

A população de São Gabriel da Cachoeira, constituída em sua quase totalidade (95%) por indígenas, sofreu um rápido processo de deculturação nas últimas décadas, modificando valores, tradições, usos e costumes. Mais do que uma simples modificação, este processo distanciou raízes culturais até então cultivadas e transmitidas durante centenas de anos pela ancestralidade. Sabe-se do desaparecimento de etnias inteiras, fenômeno não exclusivo na Amazônia, mas em todo o território nacional ao longo de nossa história.

Os indígenas do Alto Rio Negro possuem uma rica mitologia e cultura, interessantes assuntos que não pretendo tratar de forma detalhada neste artigo. Na verdade, constituem-se em diversos povos, com crenças mágico-anímicas e rituais religiosos específicos. Neste artigo, deverei me referir aos grupamentos étnicos aos quais pertencem os pajés, cujas atuações compõem o material clínico aqui inserido e comentado.

A mitologia desses povos apreende fatos, que desde sempre instigaram o interesse e a curiosidade da humanidade: a criação do mundo, a origem do fogo, dos sons e das plantas, as relações entre os seres humanos, a inveja e rivalidade entre irmãos, a união entre os sexos etc. Seus contares míticos apontam, por exemplo, de que maneira seus ancestrais se tornaram humanos e povoaram a terra, como os seres míticos interferem nos destinos dos homens e suas relações com a natureza5.

Suas concepções sobre doenças e os métodos que utilizam para enfrentálas estão indissoluvelmente ligados ao contexto cultural em que se desenvolvem. Seu vasto repertório xamanístico inclui estratégias preventivas e curativas do arcabouço terapêutico tradicional, abarcando saberes como “encantações para limpar um sítio antes da construção de uma casa, para acompanhar as diferentes fases do trabalho agrícola (derrubada, queimada, plantação) ou intervir nos fenômenos naturais (fazer chover, desviar os raios do trovão de um povoado etc)” (Bucchillet, 1988, p. 37). Seus rituais xamanísticos, que em outro momento devem ter sido a única forma de tratamento acessível àquelas populações, são de composição e expressão bastante complexa, pela grande quantidade de informações que concentram. Apesar de cada etnia, ou mesmo cada sib, possuir um repertório de encantações xamânicas específicas para a cura das diversas doenças, suas teorias sobre a etiologia de algumas doenças – atribuídas a uma agressão externa perniciosa – são, de maneira geral, fundadas no conceito de apropriação por “maus espíritos”.

Entre os Ianomäe, um subgrupo Ianomâmi, as noções de doença revelam as relações entre a essência dos diferentes tipos de seres humanos e nãohumanos. Segundo sua cosmogonia, as doenças são causadas por reversões no equilíbrio do cosmos, um superorganismo frágil e pesado, constituído por caminhos e florestas por onde transitam seres sobre-humanos; este mesmo cosmos seria também afetado pelas ações dos homens. Assim, as epidemias (xawara6) por contato interétnico são tidas como “causadas pela fumaça produzida pela queima das coisas dos brancos. Através desta fumaça, que pode ser invisível ao olhar comum”, como explica Smiljanic (1999, p. 7), “chegam inúmeros espíritos canibais (xawararibë) que devoram o princípio vital das pessoas”.

Os Desânas7, por sua vez, crêem que uma das possíveis formas de contágio externo é por meio das ações intencionais maléficas de um xamã, que “arremessa objetos patogênicos de natureza diversa (espinhos, cristais, cabelos, algodão, pêlos etc) para dentro do corpo da vítima (...) ou recita encantações de agressão em direção à vítima” (Buchillet, 1995, p. 9).

Cocco, que viveu quinze anos entre os Iyëwei-teri, assevera que “entre os Ianomâmis ninguém adoece nem morre senão por obra de agentes sobrenaturais: espíritos maus independentes ou espíritos que os xapori8 dos inimigos enviam” (1972, p. 401), confirmando a idéia de uma relação bidirecional entre doença e malefício estabelecida por aqueles povos. Esta conexão justifica o costume ianomâmi de formular injúrias ferozes contra os inimigos quando da constatação da gravidade de uma doença ou de uma morte, ao incinerar um cadáver ou ao pilar seus ossos e ingerir suas cinzas. Como confidenciado pelos pajés ao término do Hekuramou, cerimônia que descreverei adiante, as invectivas dirigidas contra os inimigos, as promessas de vingança e as conjurações aos próprios hékura são procedimentos que visam afastar os hékura intrusos, os “espíritos maus” causadores das doenças às crianças, cujas “almas” são “o manjar predileto” dos hékura inimigos (p. 402).

A Weltanschauung9 animista permeia de símbolos e significados todos os momentos e movimentos de suas vidas, regulando as relações entre os membros da aldeia e suas relações com a natureza (regras de higiene, os preceitos éticos etc). Quando, por exemplo, o vento sopra balançando as árvores ou levantando os tetos das palhoças, é costume entre esses povos dar-se o alarme para avisar os homens distraídos e recolher as crianças, ao mesmo tempo em que os pajés iniciam a inalação de yopo10 para identificar a procedência dos hékura. Crianças são ensinadas a não urinar nem defecar pelos caminhos sob pena de um gênio pedófago recolher as fezes, o que provocaria intensas dores abdominais no infrator.

Essas descrições sobre a maneira como a vida é vivida naquelas ínvias paragens, além de inúmeras outras relatadas por missionários, antropólogos, ou mesmo por simples visitadores atentos, acrescidas ao que pude pessoalmente observar in loco, destoam frontalmente do clima idílico desenhado pelos poetas do lirismo romântico. Por um lado, um clima emocional carregado de objetos persecutórios circundantes – as várias categorias de gênios provocadores de malefícios e doenças: os hékura inimigos; por outro, a vida bucólica placidamente levada em um cenário pacífico, saudável, plástico, correto e original.

 

II. Situações clínicas

Alguns meses antes de minha viagem, tive a oportunidade de assistir a pequenos filmes11, que mostravam de maneira genérica a vida naquelas paragens. Havia, entre outros, registros de festas religiosas sincréticas e depoimentos em língua tradicional de benzedores, rezadores e fitoterapeutas instintivos, que em um português arrevesado tentavam traduzir seus procedimentos. Um dos trechos que mais me chamaram a atenção referia-se ao autodenominado “curador”, pajé Lourenço. Recebia seus doentes na varanda de sua casa, identificando, curando e prevenindo doenças como eczemas, cólicas abdominais, diabetes, “dores no útero”, “problemas nas pernas”, “láichi“(Leishmaniose cutânea), “cobreiros” (Herpes zoster), malária etc. Contava viver há vinte e dois anos na periferia da cidade de São Gabriel da Cachoeira, tendo aprendido sua função com a avó, enquanto morador de uma maloca indígena. Em seus procedimentos de cura, pede ao doente que lhe descreva o mal e sua localização corporal. Concentra-se, pronunciando frases ritualísticas em língua tukâno. Diz estabelecer comunicação com “espíritos”, dos quais ouve explicações a respeito da doença em questão, da causa e tratamento necessários, repassando-as ao doente. Em alguns casos, complementa a terapêutica com receitas de infusão de ervas colhidas no mato ou com a defumação do corpo do doente. Classifica as doenças em duas categorias etiológicas: as “doenças naturais” e as “doenças apontadas”, causadas pela “dominação por espíritos maus” e encomendadas por outras pessoas. Benze pessoas, assim como objetos, comidas (leite e mingaus) e, de modo preventivo, gente de todas as idades, com especial atenção aos recém-nascidos, às jovens na menarca, às parturientes e aos pais dos futuros bebês. Pode incluir, ainda, sugestões como “não pegar em facas”, “não comer determinadas frutas” e “não olhar para alguns animais” (cobras, por exemplo) ou, em situações determinadas, que o paciente procure um hospital.

 

Descrição da cena gravada

Uma mulher de aproximadamente quarenta anos queixa-se de dores nas costas. Em pé, e por trás da paciente sentada, o “curador” coloca suas mãos a uma distância de quinze centímetros do local dolorido; passa diversas vezes as mãos sobre a região afetada. Sopra. Benze o recipiente com álcool trazido pela doente. Massageia o local com movimentos, como se recolhesse dali algum conteúdo invisível, colocando-o em seguida dentro da embalagem. Diz à paciente que a doença “está ali há tempos” e que “no hospital não iria resolver”, por tratar-se de “doença apontada”. Explica que há pajés, como ele, que “tiram” as doenças das pessoas, e que outros as “colocam”; diz serem estas atribuições exclusivas dos pajés, “os únicos com poderes para afastar os ‘maus espíritos’, os verdadeiros causadores daquela doença”. Recomenda à paciente que passe álcool várias vezes ao dia no local da dor, e que retorne proximamente para seguimento.

Certo dia, um informante trouxe-me a notícia da existência de um “pajé chupador”, às margens do Rio Negro; este, sim, “índio, mesmo!”, e com poderes comprovados na “cura de doenças que só pajé sabia curar”. Ao cair da tarde, agora sob uma temperatura mais amena (caíra para uns 35ºC), fui ao seu encontro. De etnia Wanãna, morava com a família ao largo do rio, nos baixios recortados pelas vazantes, em uma casa com paredes de taipa e teto de zinco. Na casa, várias portas e janelas largas12, dois ambientes e nenhum banheiro. No cômodo maior havia um fogão a gás, geladeira elétrica, dois aparelhos de TV servidos por antena parabólica, algumas cadeiras e diversas redes de dormir. Não havia iluminação elétrica. Da varanda assombreada, ao nível do rio, uma bela paisagem se descortinava: o rio caudaloso arrodeado pela mata e, ao fundo, o monótono horizonte. Logo de início, um problema: o pajé não falava português. Pude contar, na ocasião, com a ajuda do padre João, um importante líder salesiano local, de origem indígena, que na situação acumularia as funções de intérprete e também, por real necessidade, seria o paciente do pajé. Naquela tarde, nossa conversa incluiu um pouco de tudo: seus métodos de trabalho, sua história pessoal, características da população que o procurava etc. Com seus duvidosos afirmados sessenta e três anos, dizia ter aprendido a prática com o avô, nos anos em que moravam na aldeia. Sua iniciação começara quando adolescente e durara nove anos, período em que não pôde ter relações sexuais, comer “comidas quentes” (levadas ao fogo) ou preparadas por mulheres menstruadas. Contou que interpretava as doenças por meio de sinais visuais nos céus, que lhe eram “mostrados pela força dos espíritos do paricá”13, e que tratava seus doentes por meio da sucção com a própria boca, seguida de vomitório do conteúdo patológico materializado. Fazia também previsões futurísticas.

No dia seguinte, retornei. O ritual teria como cenário o quintal de sua casa, agradavelmente sombreado por pequenas árvores. Sentado em um pequeno banco de madeira, e amparado por um bastão de metro e meio, ia retirando alguns objetos de um saco de pano: duas pedras lisas, piriformes, de cor marrom; vários dentes de porcos-do-mato; um maracá com penas; um cristal de quartzo com dez centímetros de comprimento; o cheirador; o tubo para guardar o “paricá”; e um balde com água. Sua ação, sempre entrecortada por cânticos indecifráveis, durou aproximadamente três horas. Pintou o próprio rosto com um pó vermelho, à base de carajuru 14, e agitou o maracá enquanto pronunciava frases em solilóquio; fumou cigarros de tabaco, cheirou paricá e bebeu de uma infusão de ervas. Já entorpecido, olhando fixamente algum ponto no céu, começou a fazer previsões sobre o futuro da humanidade com frases genéricas do tipo “as coisas estão difíceis agora, mas vão melhorar!”. Quando do ato terapêutico propriamente dito, entrou em contato físico direto com seu paciente. Abaixado, tocou com as mãos a área dolorida, gesticulando como se capturasse algo. Chupou com extrema avidez, várias vezes, o joelho doente. Vomitou outras tantas, aparando o produto do vômito com uma das mãos, mostrando o resultado aos presentes: primeiro, um cristal de cor âmbar, com um centímetro de diâmetro e, depois, dois fragmentos enegrecidos, que identificou como sendo restos de pele humana. Terminada a sessão, extenuado, revelou a origem da doença: anos atrás, o paciente, sem o saber, entrara nas mesmas águas em que uma mulher menstruada, momentos antes, havia se banhado.

O segundo trecho da viagem à Amazônia reservaria ainda mais surpresas e aprendizado, pois o roteiro incluía a permanência nas aldeias ianomâmis de Maturacá e Ariabú, que como já destaquei no início, estão situadas em plena selva amazônica, na fronteira com a Venezuela e a Colômbia. Ficaria hospedado na missão salesiana localizada entre as duas aldeias, distantes quinhentos metros uma da outra, e separadas por um braço de rio.

Preenchidos os procedimentos legais necessários para a entrada em território indígena ianomâmi, um veículo tracionado percorreu uma estrada cheia de obstáculos naturais (pontes caídas, árvores atravessadas e atoleiros que mascaravam buracos profundos), chegando depois de três longas horas ao Igarapé Iá Mirim, local de conexão com o barco enviado pela missão. É sempre importante lembrar que naquelas paragens qualquer locomoção é muito difícil: gasolina cara e rara, dificuldade de comunicação entre as bases, clima bastante hostil e a reposição de peças, quando necessária, é demorada, provocando a manutenção improvisada de equipamentos, utilizados em seu limite de durabilidade e resistência. Depois de seis horas navegando, finalmente a chegada.

Nas duas semanas em que lá estive, acompanhei o dia-a-dia da aldeia. Entre tantas coisas, a dedicada faina das mulheres cuidando das crianças e produzindo o alimento básico de todos – a farinha de mandioca; crianças, por seu lado, sempre as mais velhas cuidando das mais novas, brincando de atirar pequenas flechas umas nas outras com seus arcos incipientes e, quando sem os pais, balançando-se em suas redes-mirins ao pé de uma ponta de fogo mantida sempre acesa dentro da palhoça; os homens, senhores de suas casas, saindo armados em desabalada carreira atrás de um cateto15, que inadvertidamente aparecera pelos arredores. Afinal, pude entrar em cada uma das choças daquele povoado e sentir, entre tantas impressões, os odores, as cores, os olhares, os sons de uma língua desconhecida, o tipo de organização familiar etc – coisas que mereceriam, sem dúvida, outro espaço equivalente ao desta comunicação para serem narradas.

Todas as tardes, é costume entre aquelas tribos a prática do “Hekuramou16. Trata-se de um ritual executado inicialmente sob a choça principal da aldeia, que mantém em seu desenho a lembrança de tempos imemoriais. Nesse local reúnem-se cinco ou seis pajés para cheirar o paricá. Eles se apresentam vestindo sunga ou calções e portam braçadeiras decoradas com penas de araras e colares de miçangas de cores vibrantes. Durante o período em que estive na aldeia, presenciei várias vezes o ritual e pude filmá-lo a tão curta distância, que por ter sido convidado a tomar assento no mesmo banco em que se sentavam os pajés, pude observar, ombro a ombro, a inalação do pó alucinógeno e sentir em meu braço suas contrações musculares no momento da aspiração. Além disso, o espetáculo adquire grande dramaticidade pela tintura vermelho-vivo aplicada em seus corpos, principalmente no rosto, procedimento que, segundo a tradição, garante sua identificação pelos “espíritos” a serem contatados. Os pajés revezamse a cada meia hora no papel de protagonista principal. Um deles, de cócoras, deposita o pó negro retirado de um pequeno continente plástico na palma de sua mão e preenche com ele uma das extremidades de um tubo de madeira de um metro de comprimento. O parceiro sopra fortemente em suas narinas o conteúdo do tubo. A ação é repetida meia dúzia de vezes, até que seja alcançado o efeito inebriante desejado. Sai, então, dançando e cantando em voz alta pelo terreiro da aldeia, executando uma coreografia que parece imitar o vôo de aves ou movimentos de outros animais. Recomendações e previsões para o futuro lhes são “sopradas” e, pari passu, retransmitidas ao resto da aldeia.

 

III. Reflexões

As sessões de cura em rituais xamanísticos habitualmente descritas apresentam método terapêutico de difícil interpretação, ora pela repetição de um ritual muito abstrato, e por isso não se conseguindo fazer aproximação com a perturbação que o originou, ora pela concretude grosseira, para que se lhe reconheça valor. Sabemos, entretanto, que freqüentemente são eficazes.

São manifestações que concentram grande quantidade de informações sobre a história do desenvolvimento cultural de uma população, e nelas se podem observar vestígios de diversas fases de seu desenvolvimento.

Não tenho a intenção de fazer qualquer tentativa no sentido de um desmascaramento das funções dos pajés, à luz da medicina ocidental tradicional; mas, ao contrário, de validá-las como elementos significativos da cultura e tradição desses povos. Entretanto, não posso deixar de considerar como cooptação a encampação pelo pajé da etnia tukâno (pajé Lourenço) a autoria de cura nos casos de Herpes zoster, malária e leishmaniose cutânea. No que se refere ao Herpes zoster – doença conhecida no meio rural brasileiro pelo nome popular de cobreiro, por se afigurar ser produzida pelo contato da roupa sobre a qual passasse alguma cobra –, sabe-se ter cura espontânea (Amato e Baldy, 1972, p. 135), que torna, via de regra, difícil a avaliação da eficácia de qualquer agente terapêutico. O mesmo ocorre em relação à leishmaniose cutânea, que quando da inoculação dos parasitas por diversas espécies de flebótomos, determina uma lesão na porta de entrada que sempre regride espontaneamente (p. 211); e também, em algumas fases da malária, cuja acentuação dos picos febris obedece aos ciclos de esquizogonia, com natural remissão posterior.

Outro ponto importante a ser abordado é o entendimento a respeito de concepção de doença pelos pajés tukâno e wanâna. Nos rituais observados, eles atuam parecendo pretender extrair do corpo do doente – por sucção, por movimentos característicos das mãos ou mesmo pela execução de coreografia que insinua uma contenda – um “objeto patogênico”, cuja presença explicaria o estado mórbido. Tal objeto, da mesma forma que os humores nas teorias platônicas sobre doenças, poderia ser definido como um fluido, que tornado concreto, seria manipulado, contido, expulso e mantido à distância do corpo do doente, o que faz lembrar a concepção medieval de doença relativa à malária (malum ária, “mau ar”), em que se imaginava uma contaminação etérea por humores emanados do solo das regiões pantanosas e lacustres.

Suas teorias a respeito da etiologia de algumas doenças são baseadas no conceito de apropriação por “espíritos maus”. Este é um traço comum em culturas tradicionais animistas. Freud (1912-13), em Totem e tabu, nos diz que “o sistema animista de pensamento é a primeira teoria completa do universo” (p. 114), e também, que “a primeira realização teórica do homem foi a criação dos espíritos” (p. 116), revelando sua preocupação com o esclarecimento das origens do pensamento animista. Levando ainda em consideração as afirmações de Freud citadas no mesmo texto, quando afirma que “os primeiros espíritos a nascer foram os espíritos maus” (p. 116) e que “os espíritos e os demônios são apenas projeções dos impulsos emocionais do próprio homem” (p.115), suponho que na criação projetiva das almas e dos espíritos pelo homem, algumas vezes à sua imagem e semelhança, o fluido anímico, em sua totalidade ou em partes, teria qualidade móvel e volátil, imutável e indestrutível, com poder de abandonar o corpo e tomar posse temporária ou permanente de outro corpo.

A projeção para fora do espaço mental traz consigo a vantagem do alívio. Por um lado, o ego tende a se integrar quando as pulsões de vida sobrepujam as pulsões de morte. Entretanto, quando as pulsões de morte são mais bem sucedidas, tendem a se desintegrar na clivagem-fragmentação, tese kleiniana enunciada em várias passagens do texto Notas sobre alguns mecanismos esquizóides, de 1946, quando tratou dos problemas do ego primitivo. A tendência para a integração é reconhecida como uma das forças dominantes da vida psíquica; está presente e ativa desde o princípio da existência e tem como fator principal a interiorização de objetos gratificantes (seio bom). Mais tarde, a clivagem resulta em um sentimento vizinho da morte, constituindo uma reação contra forças internas de destruição. O seio incorporado com ódio (seio mau) é sentido pelo indivíduo como algo destrutivo, convertendo-se no protótipo de todos os objetos maus internos (Klein, 1955, p. 94). Clivagens subseqüentes fragmentam outras partes do self. Conseqüentemente, o ego é ameaçado por um enfraquecimento fatal resultante da dispersão.

Certos mecanismos projetivos – que por um lado impedem o curso da integração – são, no entanto, essenciais ao desenvolvimento global do ego, visto que aliviam, repetidamente, as ansiedades.

Os conceitos de Cisão e Identificação Projetiva17são fundamentais para o entendimento do sentido dos fenômenos observados nos rituais de pajelança que descrevi anteriormente. Entretanto, algumas contribuições teóricas de Bion também podem trazer acréscimos relevantes para a compreensão desses fenômenos, do ponto de vista psicanalítico, principalmente no que se refere aos mitos e religiosidade, ainda que o próprio Bion refira que “a idéia toda de ‘cura’, de atividade terapêutica, permanece sem escrutínio (sem investigação)” (2000, p. 389). Esta observação estava anotada em seu exemplar de O futuro de uma ilusão, no trecho em que Freud afirma que “nenhuma menção se fez ainda, do que talvez constitua o item mais importante do inventário psíquico de uma civilização, item este que consiste, no sentido mais amplo, em suas idéias religiosas ou, em outras palavras, em suas ilusões” (Freud, 1930, p. 25).

A partir dos rituais aqui descritos, pode-se supor, sem grandes riscos de incorrer em silogismo, uma estreita relação entre as idéias de “cura” e “experiência religiosa”; entre esta e a “mitologia grupal”; e entre “mito” e “rito”, fechando uma espécie de circuito fantasmático.

Bion (2000) equipara os mitos aos sonhos individuais quando propõe serem os mitos e o conteúdo manifesto dos sonhos versões grupais e individuais da mesma coisa. Para ele, a invenção de um mito se daria a partir de uma experiência emocional, que depois de transformada pela função α18, poderia ser armazenada e comunicada (publicação) e, em escala ascendente de generalização, obteria significância com abrangência crescente, tendendo à universalidade. No processo inverso, o da decodificação, o desfraldar da emoção original aliada ao conhecimento. A respeito dos mitos, sugere que eles não se constituem em teorias e que são enunciados de um fato observado, a representação de uma realização. Eles contêm elementos do passado, guardando elementos do futuro, por serem pré-concepção. São portadores de função α, que arquiva informação derivada de impressões internas e externas, dos sonhos e das fantasias. Os mitos, que na Grade bioniana correspondem à coluna C do eixo vertical, ao lado dos pensamentos oníricos e dos sonhos, são elementos capazes de produzir as ferramentas para investigação de questões emocionais.

O autor propõe chamar de elementos α os objetos reais, vivos. Nas fases primitivas do desenvolvimento da criança, anteriores ao desenvolvimento do princípio de realidade, o real e o vivo são indistinguíveis – “se o objeto é real, então está vivo; se ele está morto, então não existe” (Cogitações – Bion, 2000, p.142). Ele chama de proto-reais os objetos que cercam a criança, à medida que sente prazer. Mas basta que haja dor para que ela fique rodeada de objetos mortos, destruídos por seu ódio – uma vez que ela não pode tolerar a dor da frustração, são objetos não-existentes. Mas esses objetos continuam a existir porque as impressões sensoriais ainda operam como se eles entrassem à força na sua personalidade. O próximo passo, de maior intolerância, é a destruição do aparelho responsável pela transformação das impressões sensoriais em material adequado ao pensamento inconsciente de vigília – pensamento onírico. A criança sente que o que existe dentro de si são “coisas”, e não palavras ou idéias – (suponho que Bion usasse a palavra “criança” também para designar aparelhos psíquicos incipientes ou estados primitivos de mente).

Havendo excesso de instinto de morte, continua Bion, além de contribuir para um excesso de objetos mortos, o animismo (uma visão anímica) não se desenvolverá. Este estado de colapso no animismo afeta a capacidade do indivíduo de transformar impressões sensoriais em material que possa ser usado em pensamentos oníricos. Suponho que um dos possíveis destinos de tais objetos apreendidos (objetos proto-não-reais) seja a tendência ao agrupamento em massas de objetos inexplicáveis, constituindo teorias ou dogmas específicos e coerentes per se, reconhecidos como verdadeiros por determinados grupos humanos. Penso que determinadas culturas primitivas, assim como tantos outros grupos humanos da modernidade, possam dar sentido coerente e idiossincrásico para o que chamo de “massas de objetos inexplicáveis”, agregados de objetos proto-não-reais, idéias associadas a crenças religiosas ou outras ilusões grupais, como a idéia da existência de espíritos, a idéia de invasão por espíritos ou a idéia da origem de doenças por eles provocadas.

Voltemos aos nossos pajés. Os dois primeiros rituais aqui descritos, o do pajé tukâno e o do pajé wanâna, têm características similares. Suas atuações podem ser entendidas como dramatizações reparadoras19, que visam proporcionar alívio ao doente, de maneira semelhante ao que é realizado por uma “mãe suficientemente boa” durante as primeiras fases do desenvolvimento do psiquismo infantil, ao dar continência às ansiedades inominadas do bebê20. Como um alter ego eficiente, os pajés atuam no sentido de cindir imaginariamente o corpo do doente em partes boas e más (íntegras e doentes). Dos produtos desta clivagem, projetam os objetos maus para fora do corpo do doente, expulsando as partes doentes, livrando-o, assim, da doença. Em relação ao pajé wanâna, ao vomitar o objeto patogênico em forma de cristal ou fragmentos de pele humana (?), sem sutilezas e de forma concreta, torna visível e palpável o “mal” concretizado em doença.

Entre nós, sul-americanos, a sucção ritual foi descrita, ao que parece pela primeira vez, por José de Anchieta, missionário jesuíta obcecado pela evangelização do gentio, e um admirável descritor das coisas e costumes da terra recém-descoberta. Anchieta relata, em carta de 1º de setembro de 1554, que os feiticeiros tupis e tapuias “são tidos em grande estima. De fato, chupam os outros quando estes sofrem alguma dor, e afirmam que os livram da doença e que têm sob seu poder a vida e a morte” (Anchieta, 1984, p. 146).

Géza Róheim, antropólogo com experiência de campo e formação psicanalítica, refere-se à sucção ritual como “panacéia quase universal da medicina primitiva” (1955, p. 8); acrescenta que, além da extraordinária potência de sucção, o canibalismo e a necrofagia são, em geral, associados às práticas de curandeiros ou feiticeiros. Para ele, “o significado latente da cura por sucção seria um ataque ao seio materno, em que o indivíduo enfermo representaria a mãe, e o curandeiro desempenharia o papel do lactente oralmente agressivo” (p. 8). Supõe, ainda, que “a magia deve ter suas raízes na situação mãe-bebê, pois nos primórdios, o ambiente é constituído simplesmente pela mãe. Portanto, desejar ou manifestar o desejo seria a maneira correta de enfrentar o ambiente” (p. 20). Suas afirmações, segundo meu ponto de vista, são tentativas parciais de explicação calcadas em teorias psicanalíticas baseadas no padrão da relação mãebebê, enfoque muito valorizado em meados do século XX.

Ainda em relação ao pajé tukâno, suas inusitadas sugestões de “não pegar em facas”, não comer determinados alimentos e “não olhar animais” são recomendações cujo sentido parece estar ligado à ambivalência, sendo deslocamentos e distorções relacionados à prática de tabu e sintomas obsessivos. Suas benzeduras dirigem-se a pessoas que se encontram em estados particulares, circunstâncias inusitadas ou os chamados “estados-tabu”: recém-nascidos, rapazes em suas cerimônias de iniciação, mulheres durante a menstruação e imediatamente após o parto, pessoas enfermas etc. Tais estados são assim caracterizados por

provocar desejos proibidos em outros e de despertar neles um conflito de ambivalência (...).Homens mortos, recém-nascidos, mulheres menstruadas ou nas dores de parto estimulam desejos pelo seu desamparo especial; um homem que acaba de atingir a maturidade os [a outrem] estimula pela promessa de novo prazer. Por essa razão, todas essas pessoas e todos esses estados são tabu, visto que se deve resistir à tentação (Freud, 1912-13, p. 53).

Finalizando, com este relato de experiência espero ter contribuído para a manutenção do que chamo genericamente de “elementos estruturais fundantes” – da natureza da religiosidade, organização social, costumes, língua etc –, principalmente no que diz respeito aos elementos fantasmáticos, constituintes da base estruturante da identidade individual e étnica.

 

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Endereço para correspondência
Wagner Vidille
R. Antônio Alves Magan, 62 – Sumaré
01251-150 – São Paulo/SP
Tel.: (11) 3873-0223
E-mail: wvidille@terra.com.br

Recebido em 13/09/05
Aprovado em 27/04/06

 

 

Notas

I Médico (UNICAMP); Membro Efetivo (SBPSP); Mestre em Psicologia Clínica (USP).
1 Levisky, Cassorla e Smeke, Freire Costa, Krynski e Knobel.
2 O presente artigo é um resumo de minha dissertação de mestrado (Vidille, 2005), sob orientação da Profª Drª Leila S.P.C. Tardivo.
3 Igarapé: do tupi iara’pé, “caminho da água”. Canal fluvial natural.
4 Euclides da Cunha rascunhou um estudo sobre a natureza, os homens e a violência na ocupação da Amazônia, a partir de uma viagem de seis meses e meio pelos rios e povoados da região.
5 A humanidade, gerada a partir da transformação de enfeites (maracás, braçadeiras etc), foi amadurecendo no bojo de uma enorme “cobra-canoa”, um veículo mítico que liberava os casais originais representantes das seis etnias regionais, ação mediada pelo herói cultural Emekho sulãn Panlãmi. O sétimo e último casal, os brancos, foi presenteado por Panlãmi com o sentimento de destemor, recomendando-lhes que fizessem uso da guerra para tirar as riquezas dos outros pares, uma vez que todos os bens já lhes haviam sido dados.
6 Xawara é o termo utilizado pelos Ianomâmi para designar as doenças altamente letais que acometem muitas pessoas ao mesmo tempo (epidemias de gripe, sarampo, malária falciparum etc).
7 Os Desânas são um povo constituído por cerca de mil indivíduos no Brasil, distribuídos em cinqüenta comunidades às margens do rio Uaupés e seus afluentes Tiquié e Papuri, no noroeste da Amazônia brasileira.
8 Xapori: Pajés ou encarnação de espíritos.
9 Uso a palavra Weltanschauung no sentido de uma construção intelectual que resolve uniformemente todos os problemas da existência com base em hipótese predominante.
10 Yopo: espécie de pó alucinógeno.
11 Filmes produzidos de forma artesanal pela Profª Leila Tardivo.
12 As palhoças das aldeias, segundo crença geral, devem ter uma só porta, localizada na parte da frente, para evitar a entrada dos “maus espíritos”.
13 Paricá (Piptadenia peregrina): espécie de rapé que, quando cheirado, produz alucinações visuais. É obtido da casca cozida, pulverizada e seca ao sol de uma árvore chamada gahsiri wihún.
14 Carajuru ou piranga: árvore da família das bignoniáceas com que os indígenas preparam um corante vermelho para a pele, insolúvel em água.
15 Espécie de porco-do-mato, também conhecido em outras regiões do Brasil como caititu.
16 Hekuramou é a ação ou arte de chamar os hékura, espíritos antropóides imortais, para tê-los como aliados e enviá-los contra os inimigos.
17 Identificação Projetiva: fantasia onipotente em que partes não desejadas da personalidade e dos objetos internos são dissociadas e projetadas no objeto externo, com a finalidade de controlá-lo. (Klein, 1946).
18 Função α: abstração inventada por Bion para designar o aparelho capaz de transformar as impressões sensoriais das experiências emocionais em pensamentos.
19 Ver a interessante relação estabelecida por Lèvi-Strauss, em A eficácia simbólica, entre a atuação de xamãs e a reorganização, em um sentido favorável, da seqüência cujo desenvolvimento o doente sofreu (1975, p. 228).
20 Ver em Winnicott o conceito de mãe suficientemente boa (Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self, 1960) e o conceito de holding (Teoria do relacionamento paternoinfantil, 1960) ambos em O ambiente e os processos de maturação.