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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.19 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

O inconsciente entre a causa e o que ela afeta1

 

The unconscious between the cause and its effects

 

 

Fernanda Costa-MouraI

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da concepção de Lacan da função da causa como lugar onde o inconsciente se situa na experiência do sujeito, o artigo discute a apropriação lacaniana do problema filosófico da causa cernido por Kant e Hume e o encaminhamento dado ao problema à luz da experiência psicanalítica. Considerando a incidência da causa como hiância que suporta o descontínuo das relações do sujeito com a linguagem, verifica-se o estatuto do conceito de inconsciente e, portanto de todo o campo da psicanálise, como operação apensa ao ato do sujeito.

Palavras-chave: Causa, Inconsciente, Hiância, Sujeito, Ciência, Linguagem.


ABSTRACT

The article deals with the association between cause and Unconscious as proposed by Lacan and its relation to psychoanalysis. Starting from the philosophical discussion issued mainly by Kant and Hume, referred by Lacan in the context of his 11 th Seminar, it discusses the role of the cause as a central element for the understanding of the concept of Unconscious and therefore of the whole psychoanalytical field. Considered as a hiatus that concerns the relations the subject has with the language, the cause reveals that both the concept and the field that Freud uncovered rely on an operation that is bound to the subject’s act.

Keywords: Cause, Unconscious, Hiatus, Subject, Science, Language.


 

 

As primeiras lições do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, de Lacan, introduzem a função do inconsciente pensada como descontinuidade, rotura, falha no campo do discurso. O que aí aparece surge como acaso. Achado, Lacan especifica, que não se mantém, não dura; ao contrário, se perde.

No sonho, no ato falho, no chiste chama atenção o modo de tropeço pelo qual eles aparecem (...). Ali alguma outra coisa quer se realizar – algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado (...) e, mais ainda, sempre está prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão da perda (Lacan, 1964a, p. 29-30).

O inconsciente, portanto, é para nós função de uma operação que se dá desde sempre em pura perda. Por isso Lacan critica o que ele considera como uma tendência dos analistas de colocar essa descontinuidade absoluta, que tem um caráter inaugural na descoberta do inconsciente, sobre o fundo de uma totalidade. E observa (aludindo ao conceito de força, conceito-chave da dinâmica que abre o campo da física newtoniana e que, como todo conceito fundamental da ciência moderna, é um conceito sem fundamento sensível, eidético), que não é suficiente dizer que o inconsciente é um conceito dinâmico2. Pois a dinâmica apenas substitui “a ordem do mistério mais corrente por um mistério particular” (Lacan, 1964a, p. 26). E isso não basta. Para atingir o inconsciente, afirma, é à função da causa que é preciso referir-se, por ser ela o lugar, o ponto onde se pode divisar que o inconsciente se situa na experiência do sujeito: “o inconsciente freudiano, (...) ele se situa nesse ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação3”(Lacan, 1964a, p. 27).

Apenas por este pequeno extrato da elaboração lacaniana sobre a problemática da causa e sua relação ao inconsciente, já se pode entender qual é a importância que Lacan lhe confere. Ao longo de todo seu ensino, o autor revaloriza a noção de causa, atribuindo-lhe lugar central na teoria psicanalítica como elemento indispensável para a formulação do que está em jogo na concepção do inconsciente freudiano e, assim, de todo o campo da psicanálise. Ao fazê-lo, enfatiza a função da causa (e, portanto, do inconsciente) como fenda na qual o pensamento não se conclui. Sobretudo, ele nos incita a repensar as relações entre subjetividade e linguagem a partir do que está enfeixado e se evidencia na noção de causa – que “perpetua a razão que subordina o sujeito ao efeito do significante” (Lacan, 1964b, p. 839).

 

Causa para o que manca

No contexto da afirmativa que abordamos, Lacan toma o pequeno Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa (1763), obra do período pré-crítico de Kant, para indicar o problema que a função da causa oferece, desde sempre, a toda apreensão conceitual. Depois evoca os Prolegômenos a toda metafísica futura (1783), do mesmo autor, do qual retira o termo-chave – hiância – para designar a incidência real da causa.

De fato, no Ensaio encontramos Kant às voltas com problemas para fazer avançar a filosofia, depois de se deparar com a causa como problema insolúvel para a razão. Lacan observa que a causa aparece nesse artigo como um conceito “inanalisável, impossível de compreender pela razão”, e que sobra essencialmente na função da causa “uma certa hiância” (1964a, p. 26). É verdade que posteriormente, Kant encontrará uma solução para reabsorver a causalidade no campo da razão, utilizando-se da engenhosa estratégia, que consiste, no âmbito da Crítica da razão pura (1781), em isolar causa como problema ontológico (problema que é colocado quando se concebe a causação como algo mais que a simples sucessão), e tratar da causalidade exclusivamente no registro do conhecimento. Trata-se de um passo distintivo do discurso filosófico, que separa – ao mesmo tempo em que constitui – duas dimensões diferentes do problema da causa (causalidade ontológica e científica), renunciando no mesmo golpe ao problema colocado pela causalidade como relação real.

A Lacan, entretanto, parece interessar mais o problema que atravessa e afeta o sujeito Kant no primeiro momento do que a solução estratégica do filósofo que neutraliza o problema lógico depois. Referindo-se à solução encontrada pelo filósofo no interior do sistema crítico, Lacan objeta: “qualquer que seja a modalidade com que Kant a inscreva nas categorias da Razão Pura (...), a causa não é por isso racionalizada” (1964a, p. 27).

Avançando em seu argumento, Lacan retorna ao problema colocado por Hume, que implica em uma distinção entre causa e lei. Hume já apontara em sua problematização, a incidência da causa como hiância radical no real. Sob o impacto da física de Newton, e opondo-se ao racionalismo dogmático, Hume afirma que “todo efeito é um acontecimento distinto de sua causa” (1748, p. 49). Por meio de uma imagem célebre – imortalizada nas belas páginas da Investigação sobre o entendimento humano (1748) –, ele destaca e traz à luz a heterogeneidade irredutível da causa (figurada no “choque” entre bolas de bilhar4) e do efeito (a bola adquirir movimento), e a impossibilidade de passar de um ao outro em conformidade com as exigências de uma razão que funcione em termos do princípio de contradição.

Por esta via, o pensador empirista acaba por mostrar que a função da causa implica em um colapso das propriedades usuais de tempo e espaço pelas quais apreendemos algo. Como rotura do tempo, ela impede a síntese entre o antes e o depois (“para sempre outro”). Como alternância entre o semelhante e o dessemelhante, a causação é um corte que limita a extensão; produzindo uma experiência da presença como fugacidade, sem duração possível, como perda.

Porém, neste ponto Hume optará por uma solução céptica para pensar a causa e o que a possibilita: o hábito. Tal solução – que implica que o entendimento humano associa e realiza conexões, mas sem conhecer a essência dos objetos e, além disso, o faz por uma determinação natural (o hábito) e não por uma verdade racional – será mantida pelo pensador até o fim. Mas não será apenas a solução céptica de Hume o que passará à posteridade da história do pensamento, e sim o que ele percebeu, e que resta como experiência insuplantável em sua filosofia   – a saber: que a causa não contém nela mesma, a título de conseqüência, o efeito que produz.

A lei é o que determina uma cadeia. A causa não é isso – no limite, trata-se de algo indefinível, mesmo anti-conceitual (inanalisável). A causa distingue-se da lei no que a lei científica enfeixa uma regularidade – “ação e reação, um não anda sem o outro” (Lacan, 1964a, p. 27) – não há hiância, intervalo, nesse caso. A física pode postular uma lei universal – como a lei da gravitação universal de Newton –, que sem exceção descreve, seja uma transmissão causal de energia, o planeta em sua órbita ou a maçã que cai, em função da atração da gravidade – mantendo todo o universo sob uma lei básica. Newton pode escrever em um único volume toda a ciência dos corpos em movimento com uma inédita precisão matemática – completando o que os físicos da Idade Média haviam tentado e Galileu começara a trazer à realidade. Suas três leis do movimento formam a base de toda a física posterior, e com as mesmas leis, Newton também resolve um problema astronômico milenar – o do movimento dos planetas no espaço5.

Quando se trata de lei, dizemos que um corpo obedece à lei da queda dos corpos, mas ao contrário disto,

cada vez que falamos de causa há sempre algo de anti-conceitual, de indefinido. As fases da Lua são a causa das marés – quanto a isto, é claro, sabemos que neste momento a palavra causa está bem empregada. (...) Isso não quer dizer nada, há um buraco e algo que vem oscilar no intervalo. Em suma, só existe causa para o que manca/claudica (Lacan, 1964a, p. 27 – grifo nosso).

A causa distingue-se então do que há de determinante na lei científica (Bunge, 1971). Diferente da lei, a causa intervém quando a determinação simbólica tropeça, quando um significante falta para dar conta do que se passa.

Na física, a causa não se isola como tal, pois para tanto é preciso descontinuidade – e mais que isso –, corte. Lacan mostra em diversos níveis que é justamente por ser exterior à razão; é no nível humeiniano (que não é o da lei) que a causa toma sua consistência. É aí que ela se isola como tal. Para tomar a imagem de Hume, pode haver lei no movimento da bola de bilhar, mas entre a lei e a causa o que há é hiato.

A Lua como causa das marés é isso (um evento começa na Lua e acaba na maré pela intervenção da rotação percebida da Terra). E por isso Lacan diz que aí o termo causa está bem empregado. O movimento das marés é explicado pela atração gravitacional que a Lua exerce sobre a Terra, maior em certos pontos da superfície em certos períodos, pela maior proximidade. A atração faz com que as águas do oceano avancem sobre parte da terra, e a rotação diária e contínua da Terra faz com que essas concentrações de massas d’água pareçam subidas e descidas do nível do mar. É, portanto, um fenômeno cuja emergência se deve à conjugação da ação da lei (gravidade) – com uma espécie de torção que se realiza pela presença de um observador hipotético (o próprio ponto de medição serve).

O caso é também um famoso exemplo tomado por Bertrand Russell (1978) – que quer eliminar este fator (“isso não quer dizer nada!”) da dedução lógica –, para criticar o retorno da causa intrínseca, posta ela mesma pela determinação, como hiato. Ora, a partir da indicação de Lacan de que aí o termo está bem empregado, pode se ver nisso justamente o índice da presença do sujeito, que rechaçado na ciência, retorna desordenando, e é recebido como as histéricas antes de Charcot e Freud (“isso não quer dizer nada!”).

Pois bem, é justamente neste ponto que Lacan insistirá para situar o inconsciente, “conceito freudiano”: neste ponto em que entre a causa e o que ela afeta há sempre descompasso, falha, mancada. A descontinuidade que Russell quer eliminar da lógica, e faz com que Hume deposite a causalidade no hábito como crença do espírito, é justamente, para Lacan, o fundo de descontinuidade sobre o qual a causa ganha relevo. O que Hume formula em termos de hábito, Lacan reformula, com Freud, como o nachträglich, o aprés-coup, no qual a causa se anuncia. E embora a premissa de Hume o leve a considerar a causalidade como ilusória, espécie de truque da razão, a melhor imagem do aprés-coup ainda é o choque entre as bolas de bilhar6.

Já em Freud pode-se encontrar o que Lacan valoriza como sendo o essencial aqui, decisivo quanto ao emprego do termo causa – o afastamento e virtual separação entre causa e efeito –, o hiato que Freud descobre, e com o qual ele se debate; Hiatus, que na trilha de Hume, designa o buraco, a lacuna que Lacan toma como necessários para pensar a causa.

Em sua busca da etiologia das neuroses, Freud depara-se com esse hiato, na medida em que a causação de uma neurose exige dois tempos sem que se possa exatamente formular o que os liga e como se entrecruzam. Trata-se de uma estrutura na qual um segundo tempo cria um primeiro. Não há dedutibilidade, e sim ruptura, entre eles. A passagem de um tempo a outro é irracional, limite, um ponto da série que não é positividade contável, mas negatividade incomensurável. Algo que só é discernível como buraco, hiato (quando a gente se dá conta, passou-se de um tempo ao outro). No caso Emma (1895), isso fica claro: há duas cenas; duas cenas são necessárias para originar um trauma; a segunda significando retroativamente a primeira. Um momento segundo que funda retroativamente o primeiro momento, “desencadeando” (produzindo?) o que (jamais) esteve lá.

O sexual como causa supõe esta extemporaneidade. Supõe esse hiato composto do “antes do tempo” da primeira cena, que se constitui antecipadamente, e onde o sexual se coloca como traumático por confrontar o sujeito a uma exigência que ele não tem (ainda) como responder; e o “tarde demais” da segunda cena, onde o sujeito, em um segundo tempo, não consegue evitar que se repita o que falhou (no primeiro tempo, poder-se-ia dizer, se este não fosse justamente criado como falho somente a partir desse segundo momento). Diante desse hiato, Freud não recua e atribui à sexualidade constituída em dois tempos (o antes e o após a puberdade) a matriz de uma causação que será formulada como a posteriori (nachträglich).

É interessante notar que é justamente nesse ponto, no qual a etiologia não se fecha – hiância, como diz Lacan, entre a causa e o que ela afeta – que Freud situa o inconsciente. Ou, como ele diz, “aí [neste não fechamento (hiância), neste elo que falta na cadeia descompletando a série etiológica] situa-se uma dificuldade ligada ao caráter do inconsciente psíquico” (Freud, 1896, p. 246-7).

Pela etiologia, Freud chega a topar com o inconsciente como o nãorealizado, como lacuna – no discurso, no saber, na série dos elementos e razões positivos, contáveis, de que é feita nossa vida – que o conduz ao desejo inconsciente. Corte que, atravessando as séries, determina a vida do sujeito e que é preciso cingir. O hiato entre o inconsciente (o não-realizado) e a neurose como positivação (do inconsciente que é não-coisa) – eis aí o lugar e a função da causa para o sujeito, entre o real e a lei significante. E por seu turno, o inconsciente como não-realizado é, a partir de Freud, o fundamento de uma posta em ato da causalidade não mais como origem e determinação, mas como correlata da relação do desejo ao real.

Tendo vindo ao mundo depois de Freud, como ele mesmo diz, a solução de Lacan para a questão milenar da causa é um prodígio. A idéia de que só há causa para o que manca remete ao mesmo tempo à ciência – que só pergunta pela causa daquilo que irrompe, que contradiz, que sai da lei (aquilo que a ciência vai se esforçar por reintroduzir no sistema como variação7) – e ao sujeito. Diferente da ciência que trabalha a causa para introduzir aí uma lei que dispensa o sujeito, a operação analítica vai tratar de isolar a dimensão da causa para um sujeito, que é quem padece dessa falta e tem que “se virar” com ela (mancar). Com isso, Lacan responde a Hume, mas a partir de um campo e posição que Hume não poderia mais escutar. A afirmação de Lacan já não é do campo filosófico nem científico; não se efetua sem ato.

Aquilo que a tradição filosófica separa – causa e sujeito –, Lacan nodula pela experiência analítica: “toda causalidade testemunha uma implicação do sujeito” (1956, p. 417). Em oposição à idéia de que no plano do sujeito tratar-se-ia somente de razões (corolário da idéia de uma causalidade físicalista, largamente difundida em um certo âmbito da ciência e da filosofia), Lacan aposta na causa que Freud encontrou no interior mesmo do plano das razões. A causação da linguagem, dimensão que não se reduz à razão, e da qual o sujeito é efeito.

Aqui temos a tese de Lacan: a afirmativa – consoante com a tentativa de todo seu ensino, de dessubstancializar o inconsciente (“há um buraco... algo vem oscilar no intervalo”),e ao mesmo tempo afirmar sua parte com o real – de que o inconsciente situa-se na descontinuidade, mas uma descontinuidade que não é simplesmente da esfera do sentido e sim aquela caracteristicamente introduzida pelo significante e articulada pela noção de causa. Descontinuidade real, identificável, detectável, discernível no discurso – como impasse, beco sem saída, impossibilidade de simbolizar.

Há aí também a novidade, que é a de Lacan correlacionar hiância causal e linguagem no plano do necessário, da lei. A hiância que sobra sempre, da tentativa de apreensão da causa pela razão, é articulada à operação do discurso, que Lacan chama “máquina formal” (1962-63). A causa como a perda que é imposta pelo discurso – operação que recorta um objeto como perdido – dá lugar ao sujeito por produzir uma brecha irreversível na ordem do ser e do saber. Lugar que convoca e requer o sujeito. É na medida em que tentamos com a linguagem circunscrever, formular o que se passa na experiência, que sobra um resto não simbolizável, uma falha em se inscrever, que vem como perda para o sujeito que aí se constitui. Decorre assim da estrutura (da lei) do significante – isto é, do fato de que um significante não significa a si mesmo (um significante remete sempre a outro, de modo que a linguagem apenas contorna a significação sem nunca atingi-la como positividade) –, que a linguagem oferece uma referência que é a única possível, e no entanto é falha, escapadiça, nunca é toda, definitiva. O nome psicanalítico dessa referência em negativo é desejo a – o objeto perdido em Freud, objeto causa de desejo com Lacan, oco que se demarca e resignifica o intervalo imposto pela lei da linguagem, em um ato pelo qual o sujeito se constitui como tal.

Esta dimensão do inconsciente estava esquecida, diz Lacan (1964a, p. 28); o inconsciente havia voltado a se fechar sobre sua mensagem sob a psicologização empreendida na leitura de Freud. E reabrir a fenda do inconsciente, ele comenta, exige precaução.

 

Conceito-limite

Em Lacan, a linguagem, a descrição dos mecanismos significantes, é a precaução contra o inefável. Já que o inconsciente só se atinge por aproximação, esse inconsciente esquivo então tem que ser cernido em um cálculo – procedimento que só se dá, só existe porque existe o funcionamento significante, o jogo simbólico. Ele mesmo o diz:

Estou certamente agora, na minha data, na minha época, em posição de introduzir no domínio da causa a lei do significante, no lugar onde essa hiância se produz. Nem por isso deixa de ser preciso, (...) tornar a evocar o conceito de inconsciente nos tempos em que Freud procedeu para forjá-lo – pois não podemos completá-lo sem levá-lo ao seu limite (Lacan, 1964a, p. 28-9).

Lacan fala em completar o conceito de inconsciente – do inconsciente como abertura, descontinuidade radical – deixado em suspenso por Freud (em noções como o “umbigo do sonho”, que Lacan relembra neste contexto, ou como a causa das neuroses, que nos interessa) – por meio de levá-lo ao limite. Tendo que incluir em seu bojo a castração, limite do saber (sua impossibilidade), o conceito de inconsciente só se atinge por aproximação. O conceito de inconsciente não pode ser reconduzido a uma totalidade de fundo, a um saber que se quisesse completo. Não havendo metalinguagem (é um dos postulados de Lacan), o inconsciente opera sobre aquilo que se diz sobre ele (Rocha, 2003). Assim, quando Lacan parte da função da causa para cernir o inconsciente, ele tira as conseqüências dessa impossibilidade em conceituar até o fim. Não se pode realmente conhecer o inconsciente, conhecer a causa, “sua natureza”. É como se Lacan propusesse uma inversão do esquema clássico: em lugar de deduzir a causa do efeito, entendê-la como uma variação a mais, trata-se de entender o efeito (o sujeito, o desejo, o inconsciente) por intermédio da noção de causa.

O conceito é aqui designado como o que se atinge por aproximação – tomado no sentido que lhe empresta o cálculo infinitesimal, diz Lacan (1964a, p. 25). No contínuo infinito de aproximação (e afastamento) que constitui a relação da linguagem com o real – sem que haja mais encontro aí do que o que é possível no processo que Lacan chama a “mola da exatidão” (1954-5, p.372-3) e que ele compara ao ajuste de dois relógios (o real de um lado, uma dada sintaxe do outro) –, o conceito, se não modelado por uma classificação do tipo aristotélico (agrupamento por classes, semelhanças etc de uma realidade já dada), é o que se atinge somente por um passo. Um passo que é lógico, epistemológico, em um segundo momento (o da ciência já estabelecida), mas que implicou também um passo subjetivo em seu momento inaugural (“passadas de um Newton, de um Einstein, de um Planck”, como Lacan os designa). Há um salto no conceito de inconsciente – e como no cálculo, é um salto e ao mesmo tempo tem exatidão, pois se trata de passagem ao limite8.

Não se trata, note-se, da posição céptica que afirma apenas que nunca se chega lá... Não se sabe exatamente... Não. Este salto pelo qual se chega ao conceito aproxima-se da operação da ciência moderna em seu momento de aurora. É um salto cuja efetividade dispõe um campo, um “sulco novo” (Lacan, 1964a, p. 122) no real. A característica, entretanto, que distingue o inconsciente é que o campo que ele cria como conceito é um campo que se perde, e sendo assim, cabe a cada um, em cada momento, dar esse salto para o qual a psicanálise e a teoria psicanalítica podem apenas apontar – ou mais um pouco, causar. (O fato de que este passo tem que ser encarnado é o que se designa com a noção de transferência).

Lacan o ilustra com o apólogo dos três prisioneiros, no artigo O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada (1945). Trata-se de uma situação radical, impossível de equacionar no plano do saber, em que a passagem ao limite (ali chamada “momento de concluir”) mostra-se como pontualidade. Apenas uma abertura (este termo nos interessa) para que o sujeito venha a se exercer por seu ato. O que é interessante do apólogo, e nos importa para pensar a função da causa, é que nesse plano, fora do saber, é o ato do sujeito que funciona como argumento na cadeia dedutiva (um argumento que não pode ser traduzido em um dito que assegurasse que este argumento se somaria como parcela do saber).

Um ato falho ou o sonho, que Freud chamou a via régia, não são nada se tomados em si mesmos, sem a implicação do sonhador. Ambos seriam no máximo passíveis de uma descrição objetivante como fenômenos. É somente a pontualidade de um passo ético que pode vir a constituir aquele sonho, aquele engano determinado, como verdade do sujeito; oportunidade de encontro com o que se é (onde se está). E é somente uma passagem ao limite que pode impedir que aquilo que foi uma abertura do inconsciente se feche na cristalização, na estabilização, na identidade (que, enquanto jorra como saber, não atinge ninguém).

É nesse momento, nessa abertura – podemos dizer, nessa oferta – que o significante faz que o sujeito possa se deixar afetar por uma conclusão necessariamente incerta (mas a única de que ele dispõe) e se arriscar em seu ato; ou recusar a abertura em prol de uma demanda de saber demonstrativo, que é infinita (como mostra o apólogo) e não permite concluir sem ato. Por isso, Lacan fala de instante de ver e momento de concluir, duas pontualidades que limitam a duração (tempo de compreender). Imprimindo ao movimento do sujeito direção e sentido irreversíveis, do ver ao concluir (Fernandes, 1997) – nesta irreversibilidade, está a causa.

Para a psicanálise, falar de causa, supor a causa, recuperar a dimensão causal (que não se presta à identidade com o saber) é de alguma maneira deter o sujeito na abertura. Sublinhar a oferta que o significante faz a ele, confrontando-o com esse ponto, que é diferença pura e que convoca seu ato. Ponto (é o objeto a), que produzido no próprio movimento da fala, é o sujeito ele mesmo. Fora, porém, do registro no qual ele costuma se reconhecer – o registro da identidade promovida pelo saber.

Os desenvolvimentos posteriores da obra de Lacan só fazem acentuar esta idéia de uma falta central, em torno da qual se articula a estrutura. E a idéia de causalidade ficará mais e mais central em sua vinculação ao final da análise – problema e impasse de Freud. Se a análise não pode visar diretamente os sintomas e se quer causal, a necessidade impõe que a teoria vá além do imediatismo da causa eficiente – já presente em outras psicoterapias comportamentais ou sistêmicas. Por oposição, a teoria do inconsciente como causa introduz outra finalidade da análise. Para Lacan, o final da análise estará ligado não aos elementos que Freud queria cernir – o sintoma, a prevenção, a liquidação da transferência –, e sim ao ato do sujeito. Em uma psicanálise, portanto, a causa só emerge ao final – de maneira conforme à retroação do significante em sua eficácia. Pois no que toca o sujeito, como o mostra a estrutura do ato falho, a função da causa não se dá a conhecer como categoria, nem se pode aplicá-la pelo entendimento. Trata-se de uma causa-achado – que não se pode atingir sem ato (implicação) do sujeito.

A questão do final da análise colocada em articulação com o ato do sujeito, assim como uma série de outras noções freudianas (como reação terapêutica negativa, masoquismo, repetição, pulsão de morte etc) – oriundas de algum modo da constatação de uma insuficiência da palavra –, indicam que o campo que Freud criou é perpassado por uma incompletude inerradicável. Uma incompletude que extrapola aquela ligada ao infinito da linguagem, ligada ao que, do inconsciente, não se esgota por se produzir a cada fala. Essa incompletude, ao contrário, está ligada ao fato de que nem tudo se esgota na linguagem.

Tal Incompletude, radical, não está apenas no horizonte do discurso analítico, ela o atravessa e o constitui, na medida em que aí está em causa o real da pulsão e do sujeito. É mesmo este corte entre o real e a linguagem que limita e comanda a efetividade do discurso analítico. E esse corte, essa falha central, em torno de que esse discurso se institui, é o que é, diz Lacan, “comprimido pela causalidade” – como configuração mínima de um corte que se sustenta sem sutura possível.

Assim, a causa do inconsciente, que Lacan (1964a, p. 123) afirma que deve ser concebida de saída como perdida, só é tangível no ato de uma passagem ao limite, e neste sentido, colocá-la na posição do que agencia o tratamento é apontar para o real do ato como aquilo que a análise visa no discurso – os pontos de impasse, de engasgo, de enguiço do discurso, dos quais nos queixamos, sem saber que ali mesmo está a causa, está o desejo com a dificuldade da cessão real do objeto que o caracteriza. O momento de abertura em que é dada ao sujeito a oportunidade de concluir com seu ato – é esse o problema da análise em seu final. É que o abismo que se trata de saltar (e concluir) só se pode apontá-lo em ato, pelo salto que dá lugar (só – depois) ao conceito.

A verdadeira função [do conceito de inconsciente] é justamente estar em relação profunda, inicial, inaugural com a do conceito de Unbegriff – ou de Begriff [conceito] do Un [partícula de negação, de falta] original, isto é, o corte (Lacan, 1964a, p. 46).

É justamente para retomar a função da causa do desejo que o psicanalista Lacan precisa, como ele diz, levar o conceito de inconsciente ao limite. E para isso ele precisou passar pelos tempos que Freud percorreu para forjá-lo, recuperar a experiência de seu primeiro encontro com as histéricas e o momento de suspensão da resposta e da demonstração que iniciou a psicanálise e deixou aparecer a causa.

Os seminários do final da década de 70 – especialmente em L’insu que sait de l’une-bévue s’aile a mourre, de 1976-7, e Le moment de conclure, de 19778 – testemunham a proposta e tentativa de Lacan de “ir mais longe do que o inconsciente” (1976-7, Lição de 16/11/76). Afiando a tessitura de seu discurso até atingir a função de causa do real (que foraclui o sentido), Lacan faz aparecer o inconsciente como o impossível a dizer, o que não cessa de não se escrever – e impede a psicanálise de se reduzir à lei, à ciência9. Trata-se, na psicanálise, e desde sempre, de causa – mas da causa não como o que pode explicar o sintoma ou esclarecer seus mecanismos (e face à qual o clínico seria externo, como na medicina), e sim como o hiato que inclui nada menos que o inantecipável do ato do sujeito na relação que liga o simbólico ao imaginário e ao real.

Por mais que algumas condições estejam dadas e outras não; por mais que o sujeito seja sobredeterminado por todas as vicissitudes de sua história, seu hic et nunc, o que Freud e Lacan apontam, no limite, é que por meio de seu ato o sujeito cria um mundo e decide (sem pensar) sua vida.

 

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Endereço para correspondência
Fernanda Costa-Moura
Rua Bernardino dos Santos, 37 – Santa Teresa
20241-000 – Rio de Janeiro/RJ
Tel.: (21) 2507-3311
E-mail: fcostamoura@infolink.com.br

Recebido em 25/08/05
Versão revisada recebida em 26/11/05
Aprovado em 03/02/06

 

 

Notas

I Psicanalista Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica; Pesquisadora Docente em Programa de Fixação Apoiado pela FAPERJ; Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica (IP/UFRJ).
1 O artigo faz parte da pesquisa em andamento sobre os efeitos da ciência sobre o campo do sujeito, desenvolvida com apoio da FAPERJ no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica (IP/UFRJ).
2 Lembremo-nos de que para Freud, o inconsciente é definido também do ponto de vista dinâmico – como o que designa não apenas aquilo que se encontra fortuitamente fora da consciência, mas o que é mantido lá como resultado do conflito e da conjugação de certas forças. Cf. Freud, O inconsciente (1915) e O eu e o isso (1923).
3 Aqui encontramos o termo clocherie, em francês – traduzido por claudicação, ou como sugere M.D. Magno, responsável pela versão brasileira do Seminário XI, mancada (Lacan, 1964a, p. 27).
4 Trata-se de um exemplo privilegiado por Hume. Observe-se que o choque é algo que só pode ser constatado por seus sinais (barulho, impressão, mais que percepção – não se pode realmente “ver” uma bola chocar-se com a outra) e efeitos (segunda bola, que estava parada, sair rolando a partir do choque). Tudo o que se pode saber sobre a colisão de dois corpos é exterior à colisão “em si” (por ex., posso saber a massa dos corpos, a velocidade em que estavam no momento do choque e o resultado, a velocidade com que saíram, mas não posso saber nada sobre o choque ele mesmo).
5 Pela análise matemática, Newton pode mostrar como uma lei do inverso do quadrado resultava em um movimento em elipse, e forçava os planetas a obedecerem às leis que Kepler tinha deduzido com tanto esforço a partir de observações – cf. Ronan, (1987) e Feynman (1992).
6 Refiro-me ao choque das bolas de bilhar como o que está, por assim dizer, antes do sujeito (que só pode apreendê-lo por seus efeitos). É esta também a característica do real inconsciente, como o que vai à frente, antes da gente. As situações se apresentam, respondemos a elas, de algum modo, e só-depois organizamos o registro da representação (e podemos, inclusive, ficar totalmente presos aí) – cf. Lacan (1964, p. 58).
7 Cf. Kuhn, ao dizer que a ciência só fornece verdadeiramente causa para o que é irregular. Não se usa a explicação causal para explicar a órbita de Marte em sua forma elíptica – as leis de Newton respondem por isso –, e os elementos que compõem essa explicação não são causais, pois nenhum deles é de fato anterior à situação a ser explicada (os elementos da explicação são simultâneos ao fenômeno a ser explicado, fazem parte dele). Já quando se supõe que a órbita de Marte seja observada como não-elíptica, ou que sua posição em um momento dado não seja aquela que foi predita – a resposta nesse caso isola verdadeiramente uma causa específica (por ex., a atração gravitacional de outro planeta). “Bem diferentemente das regularidades, as anomalias são explicadas em termos que são causais no sentido estrito” (Kuhn,1971, p. 13-14).
8 Quando o limite converge, pode-se calculá-lo – mesmo que em uma série infinita – e chegar ao finito.
9 A direção tomada pelo ensino de Lacan, a partir dos anos 70, traz inúmeras conseqüências, que obviamente não se limitam ao que é indicado aqui. Especialmente no que toca à importância constante e crescente da relação do inconsciente à função da causa (e não apenas do significante), os dois seminários mencionados são interessantes, na medida em que, partindo da questão sobre o que pode sustentar a nodulação da estrutura, uma vez que os três registros da experiência do sujeito se definem pela falha central que os atravessa, Lacan faz recair sobre a assunção ética da função da causa como hiância ineliminável, a possibilidade mais efetiva de sustentação do campo do sujeito e do desejo em sua correlação com a inconsistência do Outro. Na impossibilidade, entretanto, de abranger sua importância no escopo deste artigo, remetemos o leitor à leitura dos seminários, esperando abordar em um trabalho posterior o alargamento que trazem das próprias teses aqui discutidas.