SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 número19O inconsciente entre a causa e o que ela afetaAvareza e perdularismo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.19 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

A depressão materna e suas vicissitudes1

 

Mother’s depression and its vicissitudes

 

 

Evanisa Helena Maio de BrumI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo alertar sobre o impacto da depressão materna no desenvolvimento infantil. Neste sentido, fizemos uso de uma história clínica, visando refletir sobre esse impacto e suas vicissitudes, bem como sobre os caminhos possíveis para dirimir suas conseqüências. Foi utilizado o referencial teórico da psicoterapia psicanalítica mãe-bebê, bem como a psicanálise. Algumas questões pontuais foram abordadas, como a melhor intervenção para mães deprimidas e seus bebês; o melhor momento para a realização dessas intervenções; casos que necessitam serem encaminhados a um profissional de saúde mental.

Palavras-chave: Depressão materna, Desenvolvimento infantil, Psicoterapia psicanalítica mãe-bebê, Prática clínica, Atenção primária.


ABSTRACT

The present paper intends to alert about the impact of mother’s depression on child development. Thus, we used a clinical case in order to reflect upon depression impact and its vicissitudes, as well as on the potential ways to work out its outcomes. With this in mind, we employed the theoretical basis of the mother-infant psychoanalytic psychotherapy, as well as of psychoanalysis. Some opportune questions are addressed, namely: the best intervention for depressed mothers and their babies; the best moment to carry out an intervention for depressed mothers and their babies; cases that need to be adressed to a mental health professional.

Keywords: Mother’s depression, Child development, Mother-infant psychoanalytic psychotherapy, Clinic practice, Primary care.


 

 

Introdução

O interesse pelo tema do desenvolvimento infantil no contexto da depressão materna tem gerado um bom número de investigações, as quais revelam que o comportamento de mães deprimidas pode influenciar o desenvolvimento de psicopatologias em seus filhos. Ou seja, a depressão materna pode levar à ocorrência de desordens comportamentais, afetivas, cognitivas e sociais, bem como a alterações da atividade cerebral (Brum e Schermann, s.d.). No estudo realizado por Raadke-Yarrow (1998), crianças de mães com depressão foram acompanhadas longitudinalmente da infância precoce até o limiar da vida adulta, e a avaliação final revelou que poucas eram as crianças que não haviam sido de alguma forma atingidas pela depressão materna.

Esses poucos que parecem sair ilesos da interação com mães deprimidas alertam-nos que o impacto da depressão materna está inserido em uma complexidade dinâmica, devendo ser entendido como um distúrbio relacional entre a mãe e o bebê, em que estão envolvidos tanto os aspectos emocionais e comportamentais da mãe quanto os do bebê, o que nos coloca diante de um modelo bidirecional de relação (Schermann, 2001). Alguns estudos salientam que os efeitos da depressão materna para a interação mãe-bebê, e portanto para o desenvolvimento infantil, estão associados ao tempo de permanência dos sintomas e à cronicidade do quadro depressivo (Campbell, Cohn e Meyers, 1995; Field, 1995). Mesmo considerando as complexidades dinâmicas que influenciam o desenvolvimento de uma criança, o estado emocional da mãe revela-se um fator importante a ser considerado para o desenvolvimento infantil.

A Organização Mundial de Saúde também faz importantes alertas sobre a depressão, a qual vem sendo considerada a quinta causa de morbidade entre todas as doenças no mundo. De acordo com estimativas, se as tendências atuais da transição demográfica e epidemiológica se mantiverem, a depressão passará a ocupar o segundo lugar nessa lista no ano de 2020 (OMS, 2001).

Nessa concepção da depressão como a doença da atualidade, não é raro termos a oportunidade de conferir na prática clínica – seja de bebês, crianças ou adultos – seu possível impacto. É neste sentido que passamos a relatar a história de Gabriele para que possamos refletir sobre a depressão materna e suas vicissitudes, bem como sobre os caminhos possíveis para dirimir suas conseqüências.

 

O que podemos pensar com a história de Gabriele

Naquele dia, em que teria o primeiro contato com Gabriele, percebi que já estava em meu estado habitual frente à chegada de um novo paciente: curiosa, com uma fileira de questionamentos a me acompanhar durante o dia. Será que vou entender o que se passa? Vou conseguir ajudar? Ao cair da tarde, abri a porta de meu consultório, que dá para a sala de espera, e deparei-me com uma menina que era só susto. Gabriele carregava uma expressão assustada, que parecia ser maior que qualquer outra coisa nela. Mais perguntas surgiram: o que é isso? De onde vem? Por que é tão intenso? Por que tomou conta dela? Ela contou-me, aos poucos, sua história. “Não suporto mais viver assim, me sinto ansiosa, meu coração acelera, ontem quase desmaiei; sinto dores nas pernas, insônia constante, enjôo, tontura. Estou triste com tudo”. Aos vinte e quatro anos, vinha de uma longa peregrinação por variados especialistas até chegar à psiquiatra que medicava sua mãe, a qual indicou-lhe o caminho até meu consultório. Depois contou que havia sido um bebê que chorava muito e apresentava dificuldades para adormecer; como conseqüência, consultava freqüentemente o pediatra.

A cada passo que dávamos íamos iluminando cantos e, juntas, entendendo um pouco do que a assustava. Sentia-se sozinha no mundo; ninguém estivera ali para contê-la em seu desespero de desintegração; seu corpo jazia solto, em partes, desintegrado, sem significado. O que Winnicott (1956; 1963a) refere acontecer na fase de dependência absoluta se não há uma mãe capaz de se conectar com seu bebê, ajudando-o a se integrar. Gabriele sofrera uma falha nessa fase pela ausência emocional de sua mãe, o que a levou à constituição de um falso self, que correspondia ao prolongamento do desejo materno e encobria defensivamente seu verdadeiro self (Winnicott, 1960; 1971a), deixando-a engolfada na não-existência.

Em Gabriele pareceu-me que toda sua vivência de desamparo estava traduzida em uma expressão assustada e nos inúmeros sonhos que mais tarde passou a dividir comigo. Sonhos de que iria cair ou de bebês que estavam caídos (o bebê que a habita). Em um de seus sonhos andava em um estreito caminho de terra no alto de uma montanha, onde precisava pisar com muita atenção; estava muito assustada, pois qualquer momento de descuido significava sua queda no abismo. Em outro, um bebê abandonado estava caído no chão, sujo e com roupas rasgadas. Pensei, e aos poucos fui dizendo a Gabriele que o susto impregnado em sua face revelava que ela havia caído no abismo, no chão (não falo aqui de quedas reais), portanto, era o registro de algo que já acontecera – como tão bem nos ensinou Winnicott (1963b) –, mas que não fora experimentado, porque não havia um ego capaz de absorver a experiência, e o ego auxiliar da mãe estava imperfeito. Pensava nos braços de sua mãe – insustentáveis, frouxos, incapazes de contê-la. Em um encontro de trabalho com a colega que lhe havia indicado o caminho até mim, ouvi que a mãe de Gabriele sofria de depressão maior, tendo sido acometida por uma depressão crônica pós-parto por ocasião do nascimento dessa filha. Senti que esta informação não alterou minha escuta transferencial em relação a ela; apenas corroborou para o entendimento que estava construindo de e com Gabriele.

Ela seguiu vindo às sessões e a contar-me mais de sua vida; tímida e desconfiadamente, passou aos poucos a contar comigo. Em certo momento viveu um sofrido episódio, no qual esperou mais uma vez o amparo materno para tomar uma importante decisão – esperou e nada recebeu. Na sessão chorou dolorosamente; retirou um lenço da caixa e fitou-me tristemente, revelando: “eu tenho uma mãe sim, mas uma mãe morta!”. Chorou novamente com intensidade. Senti a profundidade de suas palavras, o peso de sua dor; envolvi-me com tudo isso, tendo vontade de me abraçar a ela e também chorar. Por um breve intervalo de tempo senti-me imobilizada, morta também. Mas, como precisamos manter alguma parte de nós inteira e pensante, talvez tenha feito uma contratransferência produtiva, como conceitua Bollas (1987), pois dissociei em mim a parte ocupada por Gabriele da outra, avaliativa e capaz. Ao sair do estado contratransferencial, consegui pensar e o primeiro pensamento que pulou em minha mente foi: “ela leu o texto A mãe morta, de Green!”. Green (1988) refere que a mãe morta é a mãe que se mantém viva, mas que está psiquicamente morta aos olhos da criança como conseqüência de sua depressão.

Lembrei também do que referenciou Winnicott (1954), que é o paciente que nos orienta em relação ao instrumento que iremos utilizar, cabendo-nos somente acompanhá-los. Foi o que me propus fazer – acompanhar Gabriele em sua “descoberta” dolorosa do jazigo da mãe, e em seu insight posterior, das inúmeras vezes que se sentiu morta como a mãe. Contou-me um episódio no qual havia passado a manhã tentando “ressuscitar” a mãe e disse: “depois de tudo isso, passei a tarde toda no sofá, sem me mexer, morta”. Alguns questionamentos surgiram: Gabriele ficou morta como a mãe para preservar um último elo com ela? Seus sintomas depressivos seriam somente o espelho da depressão materna? Ou ela poderia se deprimir por si só? Depois dessa sessão, os pesadelos de morte e falar sobre a morte passaram a ser uma constante no tratamento – conteúdos que revelavam seu mundo interno aterrorizador, sua não existência. Com o tempo, Gabriele batizou a morte com o nome de desamparo.

Apesar de toda herança de morte e desamparo vividos, transparentes em sua fisionomia assustada, ela conseguia destacar-se em seus afazeres, e não com pouco esforço, obter bons resultados. Mas, sobretudo, vivia acorrentada à mãe morta, ora tentando fazê-la ressuscitar, ora sendo ela própria a mãe morta no sofá.

Certo dia contou-me que produzia leite – sintoma revelador. Cabe salientar que frente a uma extensa investigação médica, nenhuma alteração orgânica foi constatada que pudesse justificar tal sintoma. Penso em sua capacidade de captar de forma não-verbal tudo que ocorre a sua volta – habilidade adquirida, ao longo dos anos, pelas inúmeras vezes que precisou “ler” a face de sua mãe para se adaptar a ela. Tornou-se uma especialista em corresponder a tais “leituras”. O leite, entre outras questões, parecia revelar o quanto ela se adaptou a uma mãe que precisava de mãe e, portanto, Gabriele não poderia existir como filha. Entrando por essa via, ela “descobriu” que sua mãe era ainda um bebê faminto, que precisava ser alimentado, acolhido, olhado. Passou a se interessar pela história de sua mãe e de sua avó materna; quis saber como eram quando bebês e quando crianças, e acabou por encontrar mais respostas para seu desamparo: “esta história de desamparos se repete em minha família, no mínimo, há três gerações”. O caminho que se desenhou colocou-nos diante do mandato transgeracional (Lebovici, 1999), revelando o peso histórico da psicopatologia. A avó materna pouco teve para dar à filha; e ela, sem ter, como daria a Gabriele?

Seguimos juntas o que soma mais de quatro anos; e a passos lentos, ela foi deixando pelo caminho seus pesos – os pesadelos de morte, os sintomas. A perda de sua expressão assustada revelou em Gabriele a existência de uma linda mulher; e é esta que atualmente recebo ao abrir a porta de meu consultório.

Nesses anos em que venho exercendo a clínica, outras “Gabrieles” e “Gabriels” procuraram-me, e parece que sempre, entre sintomas, desamparos e sofrimentos, só consigo dar algum rumo para o trabalho terapêutico quando começo a enxergar e me comunicar com o bebê de cada um deles. O bebê que carregam dentro de si, e que parece ter sido sempre não olhado, não atendido e aprisionado, habita corpos de homens e mulheres. Bebês que precisam ser encontrados, olhados, segurados no colo, embalados, simplesmente acompanhados em seu caminho de descongelamento para que possam, tendo sido descobertos, vir um dia a existir.

Não são poucas as vezes nas quais me emociono com as pequenas e significativas melhoras das pessoas que confiam em mim e me permitem acompanhá-las; assim como não são poucos os momentos em que me questiono sobre o processo. O que realmente aconteceu? Em que ponto as mudanças internas aconteceram? Acredito que sempre, entre tentativas de acertos e erros, muitas coisas acontecem e são importantes, mas quais são realmente determinantes? Não sei ao certo, porém penso que a melhora, entre outras tantas facetas, revela-se lentamente a partir do momento em que as “Gabrieles” sentem de fato que estamos ali, mas não de qualquer jeito; estamos ali, juntos, disponíveis, envolvidos, interessados, mesmo que fiquemos desorientados em algumas partes da estrada. Presença emocional que possibilita a reparação da falha primitiva vivida com a mãe (Winnicott, 1954).

Faço aqui uso dessa história como um alarde, procurando revelar o sofrido percurso de tantas “Gabrieles”. Penso na busca que ela fez por diversos especialistas na saúde; e, antes disso, penso nos obstetras que atendem a essas mães deprimidas, nos pediatras dessas crianças carregadas por deprimidas mães e, principalmente, por que nenhuma intervenção precoce foi realizada com Gabriele? Diante da seriedade dessa questão, nós – profissionais da saúde mental – temos o dever de alertar e de ajudar os colegas da saúde primária na identificação e manejo desses casos.

Nesse intuito, passo a descrever algumas intervenções possíveis na interação precoce mãe-bebê no âmbito da depressão materna, sem pretender esgotar tais possibilidades. Sigo guiada por alguns questionamentos: qual a melhor intervenção para mães deprimidas e seus bebês? Qual o melhor momento para a realização de intervenções para mães deprimidas e seus bebês? Em que casos é necessário o encaminhamento a um profissional de saúde mental?

 

As intervenções para “Gabrieles” e suas mães

O surgimento da clínica precoce pais-bebê, durante a última metade do século passado, iniciou a abertura de um esperançoso espaço para que “Gabrieles” não precisem percorrer, por tantos anos, sofridos caminhos. Com esta abertura, as intervenções passaram a ter a possibilidade de ocorrer precocemente, alterarando positivamente o desenvolvimento infantil. Dentro desta concepção, variadas formas de intervenções precoces mãe-bebê ou pais-bebê surgiram, como as intervenções de orientação psicodinâmicas, baseadas na psicanálise, que objetivam tratar os distúrbios do relacionamento a partir de modificações nas representações parentais (Brazelton e Cramer, 1992; Cramer e Palácio-Espasa, 1993; Guedeney e Lebovici, 1999; Stern, 1997; Lebovici, 1999) ou intervenções de orientação interativa, que buscam alterar os comportamentos manifestos da dupla mãe-bebê durante a interação (McDonough, 1995).

Dentro dessas orientações encontramos subvariedades, como visitas domiciliares a famílias difíceis de acessar e que, portanto, não conseguem chegar aos centros de tratamento ou aos consultórios (Mazet e Stoleru, 1990; Cramer e Palácio-Espasa, 1993; Morales-Huet, 1999), uso de filmagem da interação assistindo-a na mesma sessão (McDonough, 1995) ou após semanas ou meses (Mazet e Stoleru, 1990). A consulta terapêutica aplicada inicialmente por Winnicott (1971b) também tem sido utilizada com bebês, com a ocorrência de pouco número de encontros, podendo ser realizada apenas uma consulta (Mazet e Stoleru, 1990). O atendimento precoce na clínica tem sido estabelecido com a ocorrência de poucas sessões (entre dez e doze), podendo, se necessário, estender-se em tratamentos seriais breves (Stern, 1997; Lebovici, 1999; Brazelton, 2002).

 

Qual a melhor intervenção para mães deprimidas e seus bebês?

No estudo de Cramer et al (1990), os pesquisadores avaliaram o tratamento de bebês com sintomas somáticos, filhos de mães deprimidas. Para tanto, designaram aleatoriamente oitenta famílias para atendimento de orientação psicodinâmica e de orientação interativa. As intervenções foram realizadas semanalmente, em um total de dez sessões. Na avaliação final, a pesquisa revelou que ambos os tratamentos foram eficazes tanto para a melhora dos sintomas do bebê quanto para a interação mãe-bebê, não havendo diferença importante entre eles. Com relação à depressão materna, houve uma melhora significativa no estado subjetivo da mãe, embora a depressão não tenha sido esbatida.

Esse resultado também foi encontrado por Cooper e Murray (1997), em pesquisa delineada para avaliar a eficácia de diferentes intervenções. O estudo foi realizado com cento e noventa e quatro mães deprimidas, as quais foram randomicamente designadas para um grupo-controle, no qual receberam cuidados primários de rotina e para três distintas formas de intervenção: 1) Aconselhamento Não Diretivo, com a oportunidade de expressar sentimentos e queixas; 2) Intervenção de Orientação Interativa, baseada no trabalho de Susan McDonough; 3) Intervenção de Orientação Psicodinâmica, baseada no trabalho de Cramer e Stern. As intervenções ocorreram nas casas das mães, em um total de dez sessões realizadas semanalmente. Todos os tratamentos foram igualmente eficazes, levando à remissão dos sintomas depressivos e à diminuição de padrões de apego inseguro nas crianças.

Stern (1997) comenta sobre os resultados positivos obtidos com distintas formas de intervenções. O autor refere que a Intervenção de Orientação Psicodinâmica (IOP), delineada para alterar as representações parentais, é capaz de modificar o comportamento manifesto das mães tanto quanto a Intervenção de Orientação Interativa (IOI). A IOI, que objetiva a alteração comportamental, é capaz de modificar as representações das mães tanto quanto a IOP. Em outras palavras, não importa por onde o tratamento entra no sistema clínico; se atinge seu objetivo, ele é capaz de modificar todos os elementos do sistema. Stern refere que o sistema clínico é composto por comportamentos e representações do bebê, da mãe e do terapeuta. Esses elementos são interdependentes e se influenciam mutuamente de forma constante e dinâmica. Portanto, se a terapia altera um dos elementos, é capaz de alterar os demais, em virtude da interdependência dinâmica desses elementos.

Cramer (1999) acrescenta que questões como a aliança terapêutica estabelecida, a empatia e o encorajamento à função materna positiva, bem como a presença afetiva do terapeuta (nas técnicas psicoterápicas pais-bebê o terapeuta é mais ativo quando comparado à postura terapêutica nas terapias tradicionais) são questões que corroboram para a obtenção de resultados positivos.

Portanto, para Gabriele como bebê, acreditamos que qualquer das intervenções psicoterápicas pais-bebê acima descritas (orientação interativa, orientação psicodinâmica, aconselhamento não diretivo) poderia tê-la conduzido a um desenvolvimento infantil mais saudável.

 

Qual o melhor momento para a realização de intervenções para mães deprimidas e seus bebês?

A Organização Mundial de Saúde vem alertando que os períodos neonatal e pós-natal têm sido considerados os mais adequados para a realização de intervenções (OMS, 2001). Por sua vez, a Associação Mundial de Psiquiatria do Lactante e de Profissões Associadas denominou lactante ou bebê o período do desenvolvimento infantil que se estende da vida intra-uterina até os três anos, referindo ser este um momento fundamental no desenvolvimento infantil para a ocorrência de intervenções, pois no final do terceiro ano, as bases da personalidade e da organização mental já estão formadas (Mazet e Stoleru, 1990). É também durante os três primeiros anos que se formam 90% das conexões cerebrais que teremos ao longo da vida, sendo o cérebro de uma criança de três anos duas vezes mais ativo do que o de um adulto (Correia-Filho e Corrêa, 2002). Portanto, intervenções no período da gestação até os três anos de idade têm sido consideradas efetivas/eficazes por apresentarem resultados positivos a curto, médio e longo prazo (Dawson, Ashman e Carver, 2000; Cowen e Durlak, 2000).

Aqui retomamos o caso de Gabriele, que passou a receber intervenções psicológicas a partir dos vinte e quatro anos. Se ela tivesse sido atendida do nascimento até os três anos de idade, podemos pensar que seu quadro psicopatológico na idade adulta poderia não ser tão grave ou até poderia não ter se desenvolvido. Podemos hipotetizar que se o atendimento tivesse ocorrido de forma precoce, o bebê que habita Gabriele não estaria, na idade adulta, aprisionado dentro dela, pois teria sido encontrado e olhado, e poderia ter existido.

 

Em que casos é necessário o encaminhamento a um profissional de saúde mental?

Na tentativa de colocar o assunto de forma pontual, seguem alguns indicadores de risco para o desenvolvimento de psicopatologias do vínculo mãe-bebê no âmbito da depressão materna (Mazet e Stoleru, 1990; Lebovici, 1999; Cramer, 1999; Guedeney e Jeammet, 2002; Brum e Schermann, 2004).

Avaliando a mãe:

1) Os casos mais freqüentes são os de depressão leve e moderada, que são também os mais difíceis de serem identificados. Muitas vezes, esses diagnósticos apresentam-se sob a máscara de queixas somáticas, que tendem a se cronificar ao longo dos anos, os quais teriam melhor prognóstico se identificados precocemente. As depressões consideradas menos graves também atingem a função materna e devem ser avaliadas.

2) Depressões graves, presença de idéias suicidas, desânimo e lentidão que perturbam as funções de maternagem.

3) Relação conflituosa com o parceiro.

4) Ausência de rede de apoio, principalmente do marido (o que inclui separação do pai do bebê), e de pessoas significativas do sexo feminino.

5) Mãe que se ocupa integralmente do bebê, não dividindo os cuidados com ninguém (parentes, babá).

6) Dificuldades financeiras acentuadas.

7) Complicações durante a gestação.

8) Parto prematuro ou com complicações.

9) Ocorrência prévia de aborto ou morte de filhos.

10) Luto durante a gestação ou no pós-natal.

Avaliando o bebê:

1) Presença de distúrbios psicossomáticos recorrentes.

2) Distúrbios do sono e do apetite.

3) Retardo do desenvolvimento ou do crescimento.

4) Bebê considerado difícil.

Avaliando a dupla mãe-bebê:

1) Relação mãe-bebê com aparentes dificuldades.

Usando os indicadores para avaliar Gabriele e sua mãe:

• Avaliando a mãe: a mãe de Gabriele apresentava depressão maior e teve depressão crônica pós- parto.

• Avaliando o bebê: Gabriele quando bebê apresentava distúrbios psicossomáticos recorrentes e distúrbios do sono.

• Avaliando a dupla mãe-bebê: os dados acima nos conduzem à hipótese de uma inevitável dificuldade de interação entre Gabriele e sua mãe.

 

Considerações finais

Não há dúvida que sem intervenções as crianças de risco, como as de mães deprimidas, ficam expostas a uma maior probabilidade de desenvolverem psicopatologias posteriores, o que vem sendo apontado de forma clara pela literatura, e que pode ser constatado nos atendimentos clínicos. Podemos dizer que muito já foi feito – temos teorias e técnicas cientificamente comprovadas como eficazes no atendimento a mães e seus bebês, capazes de tratar distúrbios da interação, como nos casos de bebês atingidos pela depressão materna. Porém, estamos diante de um grande desafio, ou seja, informar e sensibilizar os profissionais de saúde envolvidos no atendimento de bebês e de suas mães para identificar e, quando necessário, encaminhar as duplas mãe-bebê a profissionais de saúde mental.

Neste sentido, Boshi (2000) alerta que nas consultas de saúde mental realizadas no ambulatório de uma universidade de França, não houve consulta para bebês com menos de dois anos durante o período de um ano, e as crianças de dois a seis anos representaram somente 20% da demanda das consultas (salienta-se que França constitui-se em um dos berços da psicoterapia mãebebê). Estes dados – somados ao que foi aqui exposto sobre a importância da realização de intervenções do período gestacional até os três anos, e que quanto mais precoce for a intervenção, melhores serão seus efeitos (Morales-Huet, 1999; OMS, 2001) – revelam que estamos diante de uma séria e complexa questão: como fazer com que essas “Gabrieles” – como bebês – e suas mães cheguem aum atendimento de psicoterapia mãe-bebê? Acreditamos que uma das questões que dificultem esse acesso seja porque as intervenções precoces, e portanto a psicoterapia mãe-bebê, configuram-se como descobertas recentes e necessitam de divulgação. Neste sentido, gostaríamos de destinar este texto a todos os profissionais da saúde que lidam com mães e bebês, esperando que a história de Gabriele tenha sido capaz de tocar suas almas, possibilitando o surgimento de novos olhares.

Acreditamos que este seja um dos caminhos possíveis para que tantas “Gabrieles” sejam socorridas no início da vida, e uma vez desacorrentadas de mães “mortas”, passem a ter o direito à liberdade e à existência, com o espaço para revelarem seus verdadeiros selves, suas capacidades e belezas.

 

Referências Bibliográficas

BOLLAS, C. A sombra do objeto: psicanálise do conhecido não pensado. Rio de Janeiro: Imago, 1987.        [ Links ]

BOSHI, R. La prévention des troubles psychiques chez l’enfant et l’adolescent. Quand faut-il intervenir? French: L’Harmattan, 2000.

BRAZELTON, T. O modelo touchpoints. In: BRAZELTON, T.; GREENSPAN, S. As necessidades essenciais das crianças. Porto Alegre: Artmed, 2002.        [ Links ]

BRAZELTON, T.; CRAMER, B. As primeiras relações. São Paulo: Martins Fontes, 1992.        [ Links ]

BRUM, E.; SCHERMANN, L. Vínculos iniciais e desenvolvimento infantil: abordagem teórica em situação de nascimento de risco. Ciência & Saúde Coletiva. 9(2): 43-55, 2004.        [ Links ]

BRUM, E.; SCHERMANN, L. O impacto da depressão materna nas interações sociais iniciais. s.d. (mimeo).        [ Links ]

CAMPBELL, S.; COHN, J.; MEYERS, T. Depression in first-time mothers: Mothers-infant interaction and depression chronicity. Developmental Psychology. 31(3): 349-357, 1995.        [ Links ]

COOPER, P.; MURRAY, L. The impact of psychological treatments of postpartum depression on maternal mood and infant development. In: MURRAY, L.; COOPER, P. Pospartum depression and child development. New York: Guilford Press, 1997.        [ Links ]

CORREIA-FILHO, L.; CORRÊA, M.E. Saúde e educação a partir do nascimento... ou antes? In: CORREIA-FILHO, L.; CORRÊA, M.E.; FRANÇA, P.S. (orgs). Novos olhares sobre a gestação e a criança até os 3 anos: saúde perinatal, educação e desenvolvimento do bebê. Brasília: LGE, 2002.        [ Links ]

COWEN, E.; DURLAK, J. Social policy and prevention in mental health. Development and Psychopathology. 12: 815-834, 2000.        [ Links ]

CRAMER, B. et al. Outcome evaluation in brief mother-infant psychotherapy: a preliminary report. Infant Mental Health Journal. 11(3): 278-300, 1990.        [ Links ]

CRAMER, B.; PALÁCIO-ESPASA. Técnicas psicoterápicas mãe-bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.        [ Links ]

CRAMER, B. A técnica das terapias breves pais/crianças pequenas. In: GUEDENEY, A.; LEBOVICI, S. Intervenções psicoterápicas pais/bebê. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.        [ Links ]

DAWSON, G.; ASHMAN, S.; CARVER, L. The role of early experience in shaping behavioral and brain development and its implications for social policy. Development and Psychopathology. 12: 695-712, 2000.        [ Links ]

FIELD, T. Infants of depressed mothers. Infant Behavior and Development. 19: 1-13, 1995.        [ Links ]

GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.        [ Links ]

GUEDENEY, A.; JEAMMET, P. Depressões pós-natais e decisão de orientação terapêutica. In: CORREIA-FILHO, L.; CORRÊA, M.E.; FRANÇA, P.S. (orgs). Novos olhares sobre a gestação e a criança até os 3 anos: saúde perinatal, educação e desenvolvimento do bebê. Brasília: LGE, 2002.        [ Links ]

GUEDENEY, A.; LEBOVICI, S. Intervenções psicoterápicas pais/bebê. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.        [ Links ]

LEBOVICI, S. As consultas psicoterápicas. In: GUEDENEY, A.; LEBOVICI, S. Intervenções psicoterápicas pais/bebê. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.        [ Links ]

MAZET, P.; STOLERU, S. Manual de psicopatologia do recém-nascido. Porto Alegre: Artmed, 1990.        [ Links ]

MCDONOUGH, S. Modelos interactivos para pais e filhos. In: GOMES, J.; PATRICIO, M. (orgs). Bebé XXI: textos do simpósio internacional criança e família na viragem do século. Lisboa: Fundação Calousle Gulbenkian, 1995.        [ Links ]

MORALES-HUT. As psicoterapias mãe-bebê a domicílio: tratamentos de díades mãe-filho de risco e inacessíveis aos cuidados institucionais. In: GUEDENEY, A.; LEBOVICI, S. Intervenções psicoterápicas pais/bebê. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.        [ Links ]

OMS. Salude mental: nuevos conecimientos, nuevas esperanzas. Informe sobre la salud en el mundo. Ginebra: OMS, 2001.        [ Links ]

RAADKE-YARROW, M. Children of depressed mothers: from early childhood to maturity. New York: Cambridge University Press, 1998.        [ Links ]

SCHERMANN, L. Considerações sobre a interação mãe-criança e o nascimento pré-termo. Temas de Psicologia da SBP. 9(1): 55-61, 2001.        [ Links ]

STERN, D. A constelação da maternidade: o panorama da psicoterapia pais/bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. (1954). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto psicanalítico. In: WINNICOTT, D.W. Textos selecionados da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. (1956). Preocupação materna primária. In: WINNICOTT, D.W. Textos selecionados da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. (1960). Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In: WINNICOTT, D.W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1982.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. (1963a). Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. In: WINNICOTT, D.W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1982.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. (1963b). Medo do colapso. In: WINNICOTT, C.; SHEPHERD, R.; DAVIS, M. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 2005.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. (1971a). O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. (1971b). Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1984.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Evanisa Helena Maio de Brum
Rua João Abott, 451 / 204 – Petrópolis
90460-150 – Porto Alegre/RS
Tel.: (51) 3333-7820
E-mail: evanisa.brum@gmail.com

Recebido em 27/07/05
Versão revisada recebida em 17/12/05
Aprovado em 07/02/06

 

 

Nota

I Psicóloga; Psicoterapeuta Psicanalítica; Mestre em Saúde Mental Coletiva.
1 Trabalho de conclusão do curso de extensão em psicopatologia do bebê (Instituto Leo Kanner e Universidade Paris Nord).