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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.10 n.19 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Avareza e perdularismo

 

Miserliness and prodigality

 

 

Fábio Roberto Rodrigues BeloI; Lúcio Roberto MarzagãoII

Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A teorização canônica psicanalítica sobre a avareza e o perdularismo consagrou a equivalência inconsciente entre as fezes e o dinheiro. Esta fórmula tende a recalcar a presença do outro na aprendizagem do controle sobre os esfíncteres e suas possíveis relações com o dinheiro.

Palavras-chave: Avareza, Perdularismo, Dinheiro, Libido, Alteridade.


ABSTRACT

The psychoanalytic canonic theorization about miserliness and prodigality has consecrated the equivalence between feces and money. This formula tends to repress the other’s presence in the control over the sphincters learning and its possible relations with money.

Keyword: Avarice, Wastefulness, Money, Libido, Otherness.


 

 

Complexo monetário e fase anal: o recalcamento do adulto

A psicanálise sempre associou o “complexo monetário” do sujeito à fase anal. No artigo Caráter e erotismo anal, Freud (1908) sugere três motivos para essa associação. O primeiro nos é dado pela cultura: “nas formas arcaicas de pensamento, nos mitos, nos contos de fada, nas superstições, no pensamento inconsciente, nos sonhos e na neurose o dinheiro é intimamente relacionado com a sujeira” (ESB, IX, p. 179; GW, VII, p. 207).

O segundo motivo refere-se ao contraste entre o mais precioso e o mais desprezível: a identificação entre o ouro e as fezes se deve justamente por sua justa oposição, como é comum acontecer no inconsciente, a representação de algo pelo seu contrário.

Por fim, o terceiro motivo da equação entre as fezes e o dinheiro tem a ver com o período da fase anal e o interesse espontâneo pelo dinheiro:

Sabemos que o interesse erótico original na defecação está destinado a extinguir-se em anos posteriores. Nessa ocasião entra em cena, como novidade, o interesse pelo dinheiro, que não existia na infância. Isso torna mais fácil que a tendência primitiva, que está em processo de perder seu objetivo, seja conduzida para o novo objetivo emergente (ESB, IX, p. 180; GW, VII, p. 208).

Portanto, trata-se de um deslocamento de interesse das fezes para o dinheiro. Nesse artigo de Freud, pode-se ver, o adulto não aparece em nenhum momento. Por que a criança deslocaria seu interesse das fezes para o dinheiro? O que a motiva a ir nessa direção? Qual o papel da mãe no controle dos esfíncteres e na apresentação dessa novidade que é o dinheiro?

Em um artigo posterior, Os deslocamentos da pulsão, particularmente no erotismo anal1, Freud (1917) adiciona mais três elementos à equação: o bebê, o presente e o pênis. Fezes, dinheiro, presente, bebê e pênis mal se distinguem no inconsciente. Um motivo para justificar a equação “bebê = fezes” é fornecido, fazendo aparecer a presença do adulto que cuida do bebê: “as fezes são o primeiro presente do bebê, uma parte de seu corpo que ela somente dará a alguém que ama, a quem, na verdade, fará uma oferta espontânea como sinal de afeição, de vez que, via de regra, as crianças não sujam estranhos” (ESB, XVII, p. 163; GW, X, p. 406 – grifos nossos). As fezes são, portanto, metonímia do corpo do bebê. Essa parte do corpo será, por sua vez, metaforizada em outros elementos: o presente, o dinheiro, o bebê e o pênis.

O primeiro significado do interesse de uma criança pelas fezes baseia-se, portanto, na idéia de dádiva, de presente. É justamente por isto – essa associação estava ausente no artigo de 1908 – que a criança dá valor a essa outra dádiva que é o dinheiro. Cabe, no entanto, perguntar: por que a criança daria “espontaneamente” uma prova de seu amor? Estaria esta primeira transação simbólica excluída do regime das trocas? Mas não seria justamente esta relação triangular entre o bebê, o outro que cuida dele e suas fezes, a relação fundante das trocas? Se seus excrementos são parte tão valiosa de seu corpo, e se por eles ela não exige nada em troca, por que não estender as dádivas aos estranhos?

Comparando os dois artigos, parece haver uma contradição: em 1908, as fezes aparecem como o menos valioso; no artigo de 1917, as fezes ganham um status positivo, passam a ser um elemento valioso. Se no primeiro artigo a relação entre fezes e dinheiro era pautada por uma formação reativa, no segundo trata-se de um continuum. Interpretamos essa flagrante contradição entre os dois artigos de Freud como a marca do recalcamento da presença do adulto e seus cuidados nas origens do erotismo infantil, incluído, claro, o erotismo anal.

Freud diz que a relação entre bebê, fezes e pênis é resultado da pesquisa infantil. A “lógica” da criança é a seguinte: “fezes, pênis e bebê são três corpos sólidos; todos os três, forçando penetração ou expulsão, estimulam uma passagem membranosa, isto é, o reto e a vagina” (ESB, XVII, p. 166). Não é difícil para a criança concluir que o bebê segue a mesma trilha da massa fecal. Portanto, vai ser a partir dessa correspondência orgânica que a equação simbólica será efetuada pela criança (GW, X, p. 410).

É uma teoria sexual infantil e não uma teoria metapsicológica o que se pode depreender desses dois artigos. Freud parece aceitar a “correspondência orgânica” vagina = reto, pênis = fezes = bebê, como uma criança aceitaria. Ora, é preciso procurar qual o papel do outro, aquele que cuida da criança, nessa história. Uma passagem do artigo de 1917 é particularmente interessante:

A defecação proporciona a primeira oportunidade em que a criança deve decidir entre uma atitude narcísica e uma atitude de amor objetal. Ou reparte obedientemente as suas fezes, “sacrifica-as” ao seu amor, ou as retém com a finalidade de satisfação auto-erótica, e depois como meio de afirmar sua própria vontade (ESB, XVII, p. 163; GW, X, p. 407-8).

Assinale-se que esta é a única passagem de Freud em que veremos o outro na cena do complexo anal da criança – passagem fundamental para subverter a idéia onipresente de que a relação da criança com suas fezes não é apenas uma relação biológica. Trata-se de uma relação mediada pelo afeto de um terceiro. A decisão da criança entre uma atitude narcísica (avareza) e uma atitude amorosa (prodigalidade) não é tomada ex nihilo. Quais são as condições de possibilidade para essa decisão? Que tipo de relação amorosa com a mãe, por exemplo, pode levar a criança a escolher este ou aquele caminho?

É preciso lembrar que o caráter anal não se forma a partir de uma analidade em si. O controle dos esfíncteres situa-se no campo agonístico onde se enfrentam a educação que exige e a criança que diz não (Viderman, 1992, p. 45) – não é por acaso que Freud depreende o caráter obstinado do sujeito de uma fixação na fase anal. A advertência de Viderman é certeira:

A analidade e suas conseqüências sobre a formação do caráter não é, bem entendido, um fenômeno biológico, mas uma das manifestações de um meio cultural dado. As formações de caráter ditas anais não são causadas por uma forma de analidade transcendental, mas se apresentam como uma das modalidades mais simples que exprimem a conflituosidade fundamental de toda relação humana (p. 46).

Nos dois artigos examinados de Freud (1908 e 1917) vimos como essa “analidade transcendental” está presente. Gostaríamos de sugerir que entender a fase anal como um fenômeno biológico faz parte de um processo teórico que visa apagar a presença do outro nos primórdios da constituição psíquica2. A maior parte da teorização psicanalítica sobre o complexo monetário mostra como a psicanálise se desviou da idéia de que a vida psíquica tem sua origem na relação amorosa com o adulto que cuida do bebê. Em nenhum outro lugar isso fica tão claro quanto nas teorizações sobre a fase anal e suas conseqüências.

Desejamos propor uma discussão sobre o dinheiro, a fim de evidenciar que esse símbolo apresenta muitos contornos para além de sua associação com as fezes. Para tal, analisaremos três personagens – Harpagão, de Molière; Scrooge, de Dickens; e Timão, de Shakespeare – para mostrar como as questões relativas ao dinheiro, na avareza e na prodigalidade, no fundo se relacionam com questões referentes às ligações amorosas originárias com o outro. Finalmente, retomaremos nossas críticas ao biologicismo presente na teoria freudiana e apresentaremos uma teoria alternativa sobre o tema.

 

Da avareza propriamente dita

O dinheiro tem a capacidade de ser um curinga universal, de ser um conversor absoluto; pode se transformar em qualquer objeto. Viderman (1992) lembra que hoje em dia o dinheiro já não tem tanta materialidade – o cartão de crédito, a bolsa de valores etc –; mesmo assim, e talvez por causa dessa imaterialidade, o dinheiro torna-se o conversor universal de todos os valores materiais. Por sua conversibilidade infinita, por sua neutralidade, o dinheiro pode transformar qualquer desejo em objeto. O dinheiro é como a água, diz Viderman (1992), “é uma pura abstração que pode tomar a forma de todas as coisas concretas possíveis” (p. 63). Seu deslocamento infinito é barrado, entretanto, quando o próprio dinheiro transforma-se em objeto de desejo. Para tentar entender por que isso acontece, analisaremos dois casos paradigmáticos de avareza: Harpagão e Scrooge.

O avarento, de Molière (1965), começa com um diálogo entre Valère e Élise, a filha de Harpagão, personagem central, cujo traço de caráter dá título à peça. Os dois conversam e tentam encontrar um meio de convencer o velho Harpagão a permitir o casamento de ambos. Élise tem duvidado do método que Valère vem usando – qual seja, lisonjear o pai da moça até conseguir sua afeição. Valère argumenta: “a culpa não cabe aos que lisonjeiam, senão aos que querem ser lisonjeados” (Ato I, cena I).

Na próxima cena, Cléante, irmão de Élise, reclama da avareza do pai, que o impossibilita de oferecer a sua amada “uma prova do seu amor”. Ele diz que a avareza do pai é uma tirania. Isto, de fato, vai se mostrar ao longo da peça. Harpagão, além de avarento, parece querer manter tudo sob seu controle: inclusive a vida amorosa de seus filhos.

Observem que já nessas duas primeiras cenas temos elementos importantes para entender a avareza. Parece haver uma recusa do amor ou a presença de algo que o impossibilita. Além disso, impregnando o amor paterno há a presença da tirania. Tirania que vai se mostrar desde a primeira fala de Harpagão na peça: “fora daqui já e já, e não me retruques!” (Ato I, cena III), diz ele a La Flèche, criado de Cléante. Nessa mesma cena, um outro traço de caráter de Harpagão é mostrado. Ele diz a La Flèche para esperar por Cléante na rua, pois ele não quer ali dentro “alguém que espia meus negócios, um traidor, cujos olhos malditos me acompanham cada gesto, devoram o que possuo e vivem escarafunchando por todos os lados à procura de alguma coisa para roubar”. Extremamente persecutório, Harpagão acaba por enterrar no jardim sua caixinha com dez mil escudos em ouro, porque seus cofres “são suspeitos e deles não me fio: considero-os justamente uma isca para ladrões”.

Uma das características mais notáveis encontradas em alguns avarentos é a quebra do que podemos entender como uma das propriedades do dinheiro, sua conversibilidade. Na verdade, para o avarento tudo se converte em dinheiro, mas o caminho inverso é impedido. Vejam o que ele diz para Cléante quando vê suas roupas: “será, porventura, necessário gastar dinheiro com perucas quando se pode andar em cabelo, sem despender um níquel? Sou capaz de apostar que em fitas e chinós há aí para mais de vinte pistolas” (Ato I, cena IV). Harpagão não conhece a linguagem do desejo, ele é regido pela lógica da necessidade. O avarento parece desejar não desejar, desejar não ser um ser de pulsão, mas um corpo regido pelo instinto auto-conservativo. A grande pergunta do avarento é: “para que você quer isso? Você precisa mesmo disso?”.

Em uma cena, quando Harpagão está dando as ordens aos empregados para preparar um jantar, ele lembra ao cozinheiro, Mestre Jacques, que pense em “comidas que enchem logo”. Valère aproveita a deixa para dizer uma frase que Harpagão mandará gravar com letras de ouro na lareira: “é preciso comer para viver, e não viver para comer” (Ato III, cena I). Esta frase certamente resume o ideal do sujeito auto-conservativo. Quando Harpagão tenta repetir a frase ele a inverte. Lapso revelador: a troca do desejo pela necessidade não se faz sem conflito. A penúria a que o avarento se submete é tão dura quanto a que submete os que estão próximos de si.

Para Harpagão, o homem que pediu a mão de Élise é um bom pretendente porque ele se dispõe a aceitá-la sem dote. Este argumento é repetido à exaustão, apesar das tentativas de persuasão de Valère, que lembrava ser o casamento algo muito maior do que uma transação financeira. O casamento dos filhos é visto apenas como uma economia: é uma despesa a menos que ele terá em casa. O pai avarento não perderá a chance de humilhar seus filhos com o argumento: “você já me custou muito dinheiro”. Além de objeto de seu sadismo, o filho é também uma despesa da qual o avarento quer se desembaraçar (Ato III, cena VI).

A relação de Cléante e Harpagão é ainda mais complicada. Primeiro, Harpagão diz que vai se casar com Mariane, objeto de desejo de Cléante. Depois, Harpagão diz que Cléante deve se casar com uma viúva da qual ele ouviu falar muito bem (isto é, tem dinheiro). Cena edípica, na qual a mãe foi substituída pela namorada do filho. É o pai quem deseja a mulher do filho. Se aqui há uma inversão, o desejo parricida continua em seu devido lugar – diz Cléante: “aí está a que reduz os filhos a maldita sovinice dos pais; e há quem se admire, depois disso, de que os filhos lhes desejem a morte” (Ato II, cena I). Para completar a rivalidade, temos a cena II, do segundo ato, na qual Cléante descobre ser Harpagão o criminoso que iria lhe emprestar dinheiro a juros abusivos.

A cena-chave da peça é quando Harpagão descobre que roubaram sua caixinha. Observem no discurso delirante do velho avarento o valor narcísico do dinheiro. Perdê-lo significa morrer:

Pega ladrão! Pega ladrão! Assassino! Assassino! Justiça, justos Céus! Estou perdido, assassinado, cortaram-me o pescoço, roubaram-me o dinheiro. Quem pode ser? Que foi feito dele? Onde está? (...). Quem é? Pára. Devolve-me o dinheiro biltre... [Agarra o próprio braço] Ah! Sou eu. Tenho o espírito perturbado, não sei onde estou, quem sou, o que estou fazendo. Ai de mim! meu pobre dinheirinho, meu rico dinheirinho, meu querido amigo! Privaram-me de ti; e visto que me foste roubado, perdi o meu apoio, a minha consolação, a minha alegria; tudo acabou para mim, e já não tenho o que fazer no mundo: sem ti, não posso viver. Acabou-se, não posso mais; estou morrendo, estou morto, estou enterrado. Não haverá ninguém que queira ressuscitar-me, devolvendo-me o meu querido dinheirinho, ou, pelo menos, contando-me quem o levou? (...). Vou buscar a justiça e mandar interrogar a casa inteira: as criadas, os criados, o filho, a filha, e até a mim mesmo. (...) Vou mandar enforcar toda a gente; e se não encontrar o meu dinheiro, eu mesmo me enforcarei depois (Ato IV, cena VII).

Esta cena nos faz crer que, para o avarento, acumular dinheiro serve para controlar angústia. O pensamento obsessivo do avarento de que pode vir a falir é apenas uma representação da falência egóica, sua bancarrota frente a um ataque maciço de angústia. O avarento acumula dinheiro como se estivesse acumulando ligações narcísicas. O único problema é que o ego (a proteção, a garantia), do qual precisa, é interno e não externo. Notem a cisão de Harpagão: ele pega a si mesmo como se fosse o ladrão. Mais adiante ele volta a dizer: “sou até capaz de roubar-me a mim mesmo” (Ato V, cena II). Parece não restar dúvidas de que o avarento encontrou em sua relação com o dinheiro um meio de simbolizar algo muito importante acerca de seu narcisismo.

Dissemos acima que o dinheiro é um conversor universal. Não obstante, Harpagão não deseja trocar suas moedas inúteis em objetos de desejo. Seu objeto de desejo é a própria moeda. Ele curto-circuita a conversibilidade do dinheiro:

Se o objeto de desejo é somente o dinheiro, ele não saberia se esgotar porque ele se voltará sobre ele mesmo numa busca estéril e destrutiva, sem que o objetivo do desejo seja transferido para os objetos de satisfação que pudessem alegrar e enriquecer o corpo e a alma. Acumular dinheiro sem outro desejo que o desejo de aumentar sua quantidade é não somente perverter todas as trocas na comunidade dos homens, mas as subtrair dos desejos intercambiáveis, dissimulando o meio soberano da conversão, a vida do dinheiro, sua circulação que vivifica as relações da comunidade. É, privando-a disto que circula na sociedade como o sangue no corpo, atentar contra sua vida. Todo avaro é um assassino em potencial (Viderman, 1992, p. 87-8).

O que o caso de Harpagão pode mostrar é que o dinheiro não simboliza e não possibilita somente a troca, mas a causa da troca, isto é, nossa inquietude (e não incompletude) que exige a troca. Se o dinheiro é símbolo do gozo e das possibilidades de posse, ele não é o gozo mesmo:

é bem conhecido, muitos daqueles que o acumulam não têm tempo para gastá-lo, de gozar dele, ou não têm nem mesmo a idéia do gozo que eles poderiam ter com ele, como se todo o poder que tivessem de gozar estivesse reduzido a possuir este dinheiro; a gozar por possuí-lo. Eles são supostos poder gozar dele, se eles tiverem o tempo ou o desejo (Sibony, 1995a, p. 250).

Estamos supondo que Harpagão sofre severos ataques internos – ataques pulsionais ao ego. Para se defender, ele procura acumular riqueza. Em sua lógica auto-conservativa, ter dinheiro significa sobreviver. A relação que ele tem com o outro é sempre persecutória, pois ele sempre imagina que pode ser roubado. Mas vimos que há uma intensa cisão no avarento. O outro persecutório é, na verdade, interno. Desconfiar de todo mundo é apenas uma forma malograda de tentar se livrar de um ataque interno, produtor de intensa angústia.

É difícil falar sobre avareza sem também fazer ao menos um comentário sobre A christmas carol, de Charles Dickens. O personagem central desse conto natalino é Mr. Ebenezer Scrooge, avarento e mal-humorado comerciante, que não acredita na solidariedade nem no Natal. Em uma véspera de Natal, ele recebe a visita da alma de seu sócio recém-falecido Jacob Merley. O assombroso fantasma aparece acorrentado, assim como outras almas penadas, que agora Scrooge consegue ver através da janela – “a miséria delas era, claramente, que elas procuravam interferir, para o bem, nas questões humanas, mas perderam este poder para sempre” (1843, p. 25). Dickens, como Molière, liga desde o início a questão da avareza com a impossibilidade do amor e a recusa da solidariedade. Ao contrário de Harpagão, porém, Scrooge acaba se “curando”, e é justamente isso que nos interessa nessa peça: o que possibilitou essa cura?

O fantasma de Merley avisa Scrooge que três espíritos virão visitá-lo: o Espírito do Natal Passado, Presente e Futuro. Esses inusitados encontros são como uma terapia intensiva. Ao final dela, Scrooge será um homem mais solidário e menos cruel. Acreditamos que, para além do peso ideológico-cristão do livro de Dickens, podemos encontrar aqui algo que auxilie a psicanálise a entender melhor o fenômeno da avareza.

O Espírito do Natal Passado levou Scrooge para a escola onde ele estudava. E ali ele viu o menino Scrooge lendo, sozinho, na sala de aula, “rejeitado pelos amigos” (p. 30). O velho Scrooge, vendo a cena, “chorou ao ver seu pobre self esquecido como ele costumava ser” (p. 31). Aqui uma primeira mudança já aparece. Scrooge lembra-se, com arrependimento, que na noite anterior ele havia enxotado um menino que pedia esmolas. E lá foram eles para um outro Natal, e lá estava o menino Scrooge sozinho. E eis a única menção a sua família: sua irmãzinha, Fan, chama-o a ir para casa dizendo: “pai está tão mais gentil do que ele costumava ser, que a casa é como o Paraíso! (...) eu não tive medo de perguntar uma vez mais se você poderia vir para casa; e ele disse Sim, que você podia” (p. 32-3). Não há menção sobre a mãe de Scrooge. Presume-se que seu pai tenha sido violento. Além disso, é contado que Fan morre ainda jovem, deixando um filho, sobrinho de Scrooge.

O Espírito do Natal Passado ainda mostra a cena da separação de Scrooge e sua namorada. Ela diz: “você teme o mundo demais. (...) Eu vi suas aspirações mais nobres caírem uma a uma, até sua paixão-mor, o Ganho, te absorver” (p. 38). O Espírito então mostra essa mulher ao lado do marido, que diz ter visto Scrooge, e o viu sozinho, “bem sozinho no mundo” (p. 41). Vejam como é enfatizado por Dickens esse traço da solidão e do abandono. Bastou Scrooge se ver para ele se arrepender de não ter ajudado uma criança. Isto sugere que o estado de penúria do avarento permanece-lhe inconsciente, e ao se “lembrar” de seu estado, consegue identificar-se com a criança carente – algo que antes só lhe suscitava angústia, o que o compelia a tratar a criança como ele houvera sido tratado.

O Espírito do Natal Presente leva Scrooge para a casa de Bob Cratchit, seu escriturário. Ele tem um filho aleijado, Tim. A esposa de Bob, ao ver que o salário dele não foi suficiente para uma ceia decente, amaldiçoa Mr. Scrooge, “homem odiento, avarento, duro, frio” (p. 52). O Espírito então vaticina: se as coisas continuarem assim, o pequeno Tim vai morrer. Novamente temos aqui uma criança que sofre. Tim, além de aleijado, não tem alimento suficiente. Acreditamos que ele fornece para Scrooge um claro reflexo de seu eu interior: é ele aquele menino deformado e mal alimentado. Vejam que tanto o Espírito do Passado quando o do Presente estão suscitando em Scrooge cenas identificatórias. No avarento, a identificação, base da solidariedade, é expressamente proibida. O Espírito do Presente ainda leva Scrooge para visitar a casa de seu sobrinho, Fred, que diz ter pena do tio, pois “ele perde alguns momentos agradáveis, os quais não poderia fazer mal a ele” (p. 57). Os Espíritos fazem com que Scrooge perceba que ele é objeto de piedade, e que ele tem, como diz Fred, fantasias e extravagâncias doentias.

O Espírito do Natal Futuro mostra para Scooge seu próprio cadáver. Vários ladrões comemoram sua morte: “ele assustou todo mundo quando ele era vivo, para nos dar todo o lucro quando está morto!” (p. 69). Ele ainda o leva para ver o alívio de seus inquilinos por sua morte, pois terão mais tempo para pagar o aluguel sem serem ameaçados de despejo, como era de praxe. Ao ver seu próprio cadáver, Scrooge promete que vai mudar.

E, de fato, a primeira providência que ele toma quando desperta é comprar um grande peru e mandar entregar na casa do pequeno Tim. Em seguida ele vai até a casa de seu sobrinho Fred passar o Natal com ele, sentindo um alívio nunca antes experimentado.

É uma história simples, de um aparente moralismo, mas extremamente eficiente do ponto de vista psíquico. Todos nós conhecemos algum Scrooge. Aliás, esse é o nome do Tio Patinhas, em inglês. O interessante a notar nessa “terapia intensiva” feita pelos Espíritos do Tempo é que Scrooge percebe que está repetindo seu passado. Ao invés de fazer algo para mudar, ele age com os outros de tal forma a levá-los a odiá-lo profundamente. Um ódio que provavelmente seu pai sentia por ele. Scrooge toma consciência da repetição, e isto é o primeiro passo para qualquer mudança terapêutica.

 

E o perdularismo?

A peça Timão de Atenas, de Shakespeare (1988), pode nos auxiliar a entender um pouco melhor o que é o perdularismo. A história é muito simples: Timão era adulado por falsos amigos porque era muito rico. Presenteava-os, recebia-os para grandes banquetes etc. Quando se vê endividado, recorre àqueles mesmos amigos, que se recusam ajudá-lo. Encolerizado, e daí em diante misantropo, Timão refugia-se em uma caverna, para morrer logo em seguida.

Já no primeiro ato, Apemantus, filósofo rude e intratável, tenta advertir Timão sobre os falsos amigos: “que monte de vaidade vem nesta direção!”, diz ele ao avistá-los. E profetiza: “quem vive e nunca foi corrompido ou corrompeu? Quem morre sem carregar para a sepultura um desprezo (ou pontapé) de presente de seus amigos? (...). Os homens fecham suas portas diante de um sol poente” (Ato 1, Cena 2). O sol poente, claro, é Timão que empobrece. A misantropia de Apemantus, recusada por Timão, é seu destino. A sentença de seu fado já está dada: ser desprezado pelos falsos amigos. No fim do primeiro ato, Apemantus tenta novamente alertá-lo: “não me ouvirás agora, não deverás fazê-lo depois. Trancar-te-ei a bem-aventurança. Oh, por que o ouvido dos homens deve ser surdo ao conselho, mas não à adulação?!”.

Salta aos olhos nesse primeiro ato a ingenuidade de Timão. Sua prodigalidade não tem limite e é evidentemente exagerada: paga uma fortuna por qualquer bobagem e retribui qualquer presente com um outro muito mais caro. Um nobre chega a dizer que “Pluto é seu mordomo” (Ato 1, Cena 1). À primeira vista, então, o pródigo é um narcisista. Alguém que precisa ser amado e adulado. Seu aparente amor exagerado pelo outro é apenas uma forma de se mostrar magnânimo:

A prodigalidade não indica um certo desprezo pelo dinheiro, mas sim sua supervalorização na medida em que ele é o meio real de acrescer o número de ligações entre o sujeito desejante e o conjunto de objetos desejáveis. (...) O apogeu da prodigalidade é também aquele da mais sutil economia narcísica (Viderman, 1992, p. 127-8).

A generosidade ou liberalidade de Timão seria apenas uma forma de construir uma imagem adorável? Ou seria uma inibição em sua capacidade para amar expressa em termos de dinheiro: carinho-que-se-compra-compresentes (Sibony, 1995a, p. 251)? E de onde viria essa inibição para amar, já denunciada por Nietzsche, quando adverte que “pessoas ávidas de reverência resistem aberta ou secretamente a serem amadas” (1886, §603)?

No caso de Timão, ele não quer adquirir objetos, mas sim amigos. A lógica do presente parece fracassar com Timão. Explica-nos Sibony: “se fazemos um presente é para não precisar oferecer seu próprio ser; é para dizer que nos oferecemos sob essa forma deslocada; isto para evitar um certo canibalismo” (1992, p. 156). Timão, ao dar tudo o que tem, parece dar-se a si mesmo. Ele não consegue fazer esse deslocamento de si para o presente. Em outras palavras, para ele, o ser equivale ao ter.

Ao se ver endividado, Timão recorre aos amigos, mas não recebe deles nem um centavo. Um de seus servos, ao receber a última recusa, diz: “e isto é tudo que uma conduta liberal ensina: quem não pode manter sua riqueza, deve manter sua casa” (Ato 3, cena 3). Ou seja, é melhor fixar-se em alguma coisa, é melhor não vender tudo, já que o sujeito parece impossibilitado de guardar dinheiro. O pródigo parece mesmo incapaz de ouvir esse conselho. Tudo se converte em dinheiro e este, por sua vez, “desaparece”. É o oposto do que acontece na avareza: ali tudo se transforma em dinheiro. Ambas as atitudes desejam o máximo de conversibilidade, entretanto, em sentidos opostos.

Para Timão, o dinheiro é “a prostituta comum da humanidade” (Ato 4, cena 3). Não deixa de ser curiosa a comparação, pois logo adiante Timão encontra duas prostitutas às quais enche de ouro e lhes pede para infectar todos os homens, para levar-lhes sua praga: “contaminai todos, que a vossa atividade possa destruir e dominar a fonte de toda ereção” (Ato 4, cena 3). Arrancar a muleta do pai, destruir o pênis dos homens. É evidente que há algo em torno da castração sendo sugerido aqui. Novamente, no entanto, os elementos são insuficientes para avançar qualquer hipótese. Sabendo do ouro de Timão, ladrões vão visitá-lo, e o procedimento é o mesmo feito com as prostitutas. Ele os enche de ouro e os manda roubar: “cortai gargantas, todos que encontrarem são ladrões”. Vemos na prática o que foi sugerido mais acima. Timão parece agora valorizar todas as práticas sociais destrutivas: a prostituição, o roubo e o assassinato. Eros perdeu a guerra.

Além das prostitutas e dos ladrões, quem vai visitar Timão é o filósofo Apemantus. Há um trecho do diálogo entre ambos que vale a pena reproduzir:

Apemantus: O meio-termo da humanidade nunca conheceste, mas somente a extremidade de ambos os lados. Quando estavas em teus dourados e teu perfume, zombavam de ti por tanta delicadeza; em teus trapos, não a conheces, sendo desprezado pelo excesso oposto. Aqui tem uma nêspera (medlar); come-a.

Timão: Não me alimento do que odeio.

A: Odeias uma nêspera?

T: Sim, embora ela se pareça contigo.

A: Se tivesses odiado os intrometidos (meddlers)3 mais cedo, deverias amar-te melhor agora. Que homem conheceste perdulário que foi amado depois de perdido seus meios?

T: Quem, sem estes meios dos quais falas, conheceste amado?

A: Eu mesmo (Ato 4, cena 3 – grifos nossos).

Curioso diálogo entre dois cínicos, ambos misantropos. Não há confraternização no ódio. Essa conversa acaba com insultos trocados, mas não deixa de ser instrutiva para quem está de fora. Mais um traço do sujeito liberal é revelado: ele se sente amado pelo que tem e não pelo que é. Parece haver uma colusão entre ser e ter nesse tipo de caráter. Para ele, ninguém pode ser amado senão pelo que tem. Que tipo de relação amorosa primitiva (com a mãe) poderia engendrar tal identidade? Por que ser e ter se tornam um só? Novamente temos um elemento narcísico em discussão. É interessante observar o que diz Flávio, leal ajudante de Timão, advertindo algumas pessoas quanto a se dirigir a seu senhor: “é vão desejar falar com Timão, pois ele está pronto somente para si próprio, de tal forma que nada que se pareça com homem, a não ser ele, lhe é amigável” (Ato 5, cena 2).

A prodigalidade é uma prostituição às avessas: eu pago para o outro me amar. Isto fica claro em uma cena na qual Timão se recusa a receber de volta os cinco talentos que emprestara. Ele diz: “você mal-interpreta meu amor. Eu dei os talentos para sempre de graça, e não há ninguém que possa dizer que deu se ele recebeu. Se nossos melhores praticam este jogo, não ousemos imitá-los” (Ato 1, cena 2). Não há troca efetivamente, há dádiva absoluta (Sibony, 1992, p. 148). Mas Sibony faz ver que para “dádiva absoluta, dívida absoluta, e não, dívida nenhuma. Impedindo o retorno, ele os endivida no absoluto” (p. 149). “Oh, que precioso conforto é ter tantos como irmãos comandando a fortuna um do outro” (Ato 1, cena 2): por trás dessa utopia comunista avant la lettre, está o desejo de invadir e ser invadido pelo outro, o desejo de apagar as diferenças, cujas balizas podem ser dadas pela propriedade privada (mas não só por ela, é claro).

 

A necessária presença do outro

O artigo Prodigalidade e crise de angústia, de Abraham (1917), é uma exceção dentre os artigos psicanalíticos contemporâneos a Freud que tratam do complexo monetário. A tese de Abraham é muito mais complexa do que a simples equiparação entre dinheiro e fezes, ele é o único autor que percebeu a presença do outro. Abraham conjectura que os pacientes que têm tendência a gastar exageradamente são “neuróticos que vivem em um estado de dependência infantil permanente com relação a seu pais, apresentando mau humor ou angústia assim que eles se distanciam” (Abraham, 1917, p. 53). Esses pacientes afirmam que gastar apazigua seu mau humor ou angústia. Geralmente explicam que gastar aumenta sua auto-estima e os distrai de seu estado. Percebam, no trecho abaixo, como Abraham denuncia a presença do outro, e como essa presença é erótica, portadora da sexualidade:

A paciente que teme se oferecer na rua está completamente acorrentada a seu pai. Suas tentativas de resolver essa fixação fracassaram. A fixação da paciente foi solicitada durante sua juventude por um pai que se ocupava em excesso das funções intestinais da criança, administrando-lhe lavagens etc. Essas medidas intempestivas mantiveram de maneira dramática uma dependência infantil; segundo a expressão da linguagem infantil, a filha não podia “fazer” nada sem o pai, ela só podia “ir ali” com ele. A análise permite ver que as tentativas de se separar dele estavam marcadas pela fixação anal. A excreção intestinal fora da presença paterna representava a independência para seu inconsciente. Assim que a paciente se distanciava de sua casa e tinha uma crise de angústia, ela recorria para combatê-la a toda sorte de gastos que não se justificavam praticamente. O gasto de dinheiro tomou o lugar de sua atividade libidinal. A equivalência inconsciente do dinheiro e dos excrementos explica o fato que o dinheiro pôde ter essa significação substitutiva. É bom lembrar que a paciente supunha aumentar sua angústia para criar para si uma razão de gastar (p. 54 – grifos nossos).

Apesar de Abraham aceitar a equivalência entre dinheiro e excrementos como algo dado, é notória a diferença entre suas hipóteses e as de seus contemporâneos – Freud, Ferenczi e Jones (1918). É a sedução do pai, perpetrada por meio de excessivo cuidado, que deu origem ao erotismo anal da criança. Não há erotismo anal antes do ânus ser erotizado; não há auto-erotismo antes de haver erotismo. Se quisermos manter esse termo é sempre bom lembrar que no auto-erotismo a criança sempre estará lidando com o erotismo do outro, depositado nela. Quando ela prende o “cocô” ou suja as calças, já está lidando com a sexualidade alheia implantada em seu corpo.

Abraham começa a citação acima dizendo que a paciente em questão tinha medo de se oferecer na rua. Trata-se de uma fantasia comum entre as mulheres – ser uma prostituta –, acompanhada ou não de angústia. Segundo Abraham, tal fantasia é a representação de um desejo livre, de uma liberdade libidinal. Na realidade, a libido dessas pacientes está extremamente fixada em um dos pais. A compra de objetos inúteis e sem valor, a passagem rápida de um objeto a outro simbolizam a satisfação de um desejo recalcado: “transferir a libido para um número ilimitado de objetos num tempo recorde” (p. 54). A prostituição seria apenas um dos modus operandi da pulsão nesse circuito: “ali também o dinheiro permite relações fugidias e trocas ilimitadas” (p. 54).

O autor observa que não será sempre que a zona anal mediatizará a fixação do paciente a seu pai ou sua mãe. Ao que nos parece, é a ação dos pais sobre a criança o que vai determinar essa mediatização, isto é, por quais meios a sexualidade infantil poderá se expressar. De qualquer forma, no exemplo que ele ofereceu fica claro um compromisso entre a pulsão e o recalcamento: em vez de se gastar libido, gasta-se dinheiro (p. 55). Suas compras nunca lhe trouxeram satisfação porque, na verdade, não era dinheiro que ela queria gastar. Vejam: não é porque ela é “vazia” ou porque “existe um buraco dentro dela”. Ao contrário: é porque há algo dentro dela, que lhe é estrangeiro, que a ataca e a obriga a adotar essa providência simbólica.

Gostaríamos de citar mais um exemplo de Abraham para mostrar como, na teoria psicanalítica, há um duplo movimento: de um lado, o reconhecimento da primazia da alteridade na formação da subjetividade; por outro, um desvio biologizante que tende a apagar a sexualidade do outro e sua importância nos primórdios do sujeito psíquico. Trata-se de uma passagem em que Abraham fala sobre as influências do erotismo oral na formação do caráter:

São igualmente características as diferenças que concernem à partilha do que se possui. A liberalidade aparece freqüentemente como um traço de caráter oral. O sujeito oralmente satisfeito se identifica desta forma à mãe generosa. Tudo muda com a segunda fase sádico-oral, na qual a inveja, a hostilidade e o ciúme tornam uma tal postura impossível. Desta forma, uma conduta generosa ou, ao contrário, invejosa, resulta de uma das duas fases orais do desenvolvimento; e da mesma forma, a tendência à avareza procede do estágio seguinte, isto é, do estágio sádicoanal da formação do caráter (Abraham, 1921, p. 253 – grifos nossos).

Observem como ele reconhece a presença do outro nas origens do sujeito quando aponta para a generosidade da mãe e a identificação do bebê com esse traço. No entanto, na próxima frase, uma suposta fase sádico-oral surge ex nihilo e impede que tal identificação prossiga. O estágio sádico-anal, segunda onda biológica, independente do outro, também marcará a formação do caráter da criança. Esta passagem é também importante para mostrar como não devemos ficar presos à teoria que liga nossa relação com dinheiro à fase anal. Abraham, mais uma vez, dá mostra de não se prender aos esquemas fáceis – e, por que não, recalcadores – da teoria.

Retomemos alguns dos pontos que deixamos em aberto ao longo da discussão. Vimos que a idéia de associação entre fezes e dinheiro, presente em Freud (1908 e 1917) e em Ferenczi (1992), é tributária de uma concepção auto-erótica da sexualidade humana. Além disso, acreditamos que o dinheiro não é necessariamente um símbolo das fezes. A psicanálise ensina que onde o simbolismo fala o inconsciente cala (Laplanche, 1999). As significações do dinheiro são contingentes, pois dependem da história de cada sujeito.

Citamos uma passagem de Freud (1917) na qual ele diz que “a defecação proporciona a primeira oportunidade em que a criança deve decidir entre uma atitude narcísica e uma atitude de amor objetal” (GW, X, p. 407). Acreditamos que tal decisão não pertence à criança; pelo menos, nos primeiros momentos de sua vida. Endossamos a tese de Viderman (1992): a educação dos esfíncteres é apenas um dos primeiros momentos nos quais os conflitos humanos se desenrolam. A função excretora, no início auto-conservativa, é muito precocemente parasitada pela pulsão sexual. A limpeza do ânus, os enemas, as injeções, as pomadas e as palmadas são caminhos pelos quais a sexualidade adulta é implantada nessa zona erógena da criança. Abraham (1917) argumenta que a equação fezes = dinheiro pode ser substituída por outra: dinheiro = libido. Pode-se argumentar que essa segunda equação só é possível porque a entrada das fezes no circuito pulsional é um dos momentos fundantes da troca e do amor entre os humanos. Posteriormente o dinheiro pode vir a representar esse momento. Nada a objetar contra o argumento, feita a ressalva de que o dinheiro não necessariamente se prenderá a esse simbolismo.

Um outro ponto para sustentar a tese de que a relação do sujeito com o dinheiro representa sua relação com a libido é encontrado na teoria de Winnicott sobre o roubo perpetrado por crianças pequenas. Para o autor, o pequeno ladrão “não está procurando usar o objeto de que se apodera. Está procurando uma pessoa. Está procurando sua própria mãe, e ignora-o” (1957, p. 185). O fruto do roubo neurótico não é sequer desfrutado. Pode ser uma moeda na bolsa da mãe, uma caneta, qualquer coisa que logo será esquecida em algum esconderijo da casa. Para ele, tais crianças perderam de alguma forma contato com a mãe. Essas crianças se desiludiram rápido demais, ou seja, perderam o controle onipotente que acreditavam ter sobre a mãe. A mãe se mostrou objetiva demais antes do momento correto. Essa teoria leva Winnicott a afirmar: “a criança de dois anos que rouba moedas da bolsa da mãe está brincando de bebê faminto que pensa ter criado sua mãe e supõe ter direitos sobre ela e seus pertences” (p. 186). É provável que o desenvolvimento dessa criança possa levá-la, no futuro, a ser realmente um ladrão. Pode acontecer também de ela se tornar avarenta ou pródiga. O sujeito ao manter todo o dinheiro para si estará, na realidade, ainda suplicando por amor materno. Ele poderá fazer uma formação reativa a esse desejo e gastar aquilo que não tem. O liberal trata o amigo como ele gostaria de ter sido tratado quando fora bebê. Sua prodigalidade, no entanto, vai levá-lo a reproduzir a situação de penúria pela qual passou – e que no inconsciente continua a existir. As fezes não aparecem nessa teoria. O dinheiro é valioso como o amor da mãe e o metaforiza.

A prodigalidade e a avareza não são traços de caráter estanques; muitas vezes encontram-se na mesma pessoa. Pensemos por um momento nas mulheres que compram sapatos ou nos colecionadores de maneira em geral. O gasto é pródigo, mas a relação com o objeto é avarenta. Isso se explica pela etiologia semelhante desses dois traços de caráter. O que vão mudar são as defesas referentes às condições semelhantes impostas nas origens da vida psíquica do perdulário e do avarento.

Ao examinar os casos de Harpagão e Timão, notamos que a questão deles não era uma questão “anal”. Antes, suspeitamos que suas relações com o dinheiro eram marcas de desastrosas relações amorosas pretéritas. Na verdade, o amor ao dinheiro não é causa do mal. Ao contrário: é o resultado de um “mal” causado à criança. O círculo vicioso está armado: como o amor ao dinheiro é um sintoma, ele vai reproduzir indefinidamente o mal do qual deseja se livrar. Se o dinheiro representa o amor, podemos dizer que avarentos e pródigos como Timão e Harpagão estão tomados por uma perversão da troca. Na análise que fizemos de O Avarento, de Molière, vimos que um dos temas centrais era a dificuldade de Harpagão em aceitar a troca amorosa entre as pessoas. Somente quando sua caixinha de ouro é roubada, ele se dispõe a fazer circular a moeda amorosa.

Inventaríamos ainda alguns traços de caráter que parecem estar presentes nos avarentos de maneira geral: são persecutórios; desejam não desejar ou, dito de outro modo, desejam ser seres auto-conservativos, regidos pelo princípio da realidade e pela necessidade; tendem a ser sádicos com as pessoas próximas; o desejo que sentem em acumular dinheiro parece estar relacionado ao controle de uma angústia proveniente de devaneios de falência e pobreza extrema, e de fantasias inconscientes de destruição do ego causada por ataques internos.

O que acontece nas primeiras relações amorosas das pessoas que se tornarão avarentas? Nossa hipótese é a seguinte: o avarento é alguém que teve uma infância afetivamente pobre. A saída encontrada por ele é acreditar que não é um ser de afetos e escolher o auto-erotismo como defesa. Uma observação importante: não é para evitar novas desilusões que o avarento evita novas relações amorosas. Ele caiu na armadilha da repetição: seu estado de penúria repete a penúria dos primeiros tempos. O dinheiro que acumula é apenas um símbolo do afeto que precisava e não recebeu. O avarento trata o outro tal como foi tratado em suas origens: é geralmente incapaz de dar alguma coisa, e se e quando o faz, submete o outro a juros extorsivos ou a outras práticas sádicas.

É importante lembrar que quando falamos de uma infância afetivamente pobre não estamos dizendo que apenas faltou amor. Na ausência desse amor permanecem livres as excitações depositadas no corpo do bebê. O amor da mãe serve principalmente para ligar as excitações que ela mesma deposita no corpo da criança. Por isso acreditamos que as reservas que o avarento quer manter são símbolos de um ego mais forte. Ele quer fazer para si um ego forte o suficiente para agüentar os ataques que sofre, provenientes das excitações maternas. Obviamente seu expediente de juntar dinheiro não funciona. Em outras palavras, o avarento tenta resolver externamente um problema interno. Ao mesmo tempo em que tenta construir um ego com ouro, as excitações internas são sentidas como vindo de fora. Foi isso o que vimos na análise de Mr. Scrooge. Ao poder perlaborar suas experiências de solidão e abandono, ao se ver odiado, ao ver sua morte como motivo de alívio para os outros, ele pôde perceber que repetia uma situação originária, o que, por sua vez, possibilitou a mudança.

A prodigalidade tem fonte semelhante à da avareza. A diferença é o que ambos fazem de suas origens. O avarento trata o outro e a si mesmo como foi tratado. O pródigo trata o outro, e a si mesmo, como gostaria de ter sido tratado. De qualquer forma, tanto o perdulário quanto o avarento reproduzem, em eterna repetição, a situação originária que viveram.

Não acreditamos, como quer Sibony (1992), que a prodigalidade seja uma tentativa de preencher a falta inerente aos laços humanos. Nossa hipótese é que a liberalidade é uma tentativa de apaziguamento de um outro odiento. Estamos supondo que o pródigo teve pais que o odiaram inconscientemente. A criança retribui esse ódio com um amor desmesurado. Mas isso é apenas a aparência do que está acontecendo. A criança percebe, de alguma forma, o ódio dos pais. Esse jogo se repete: ela também não pode mostrar o seu ódio por eles. O ódio que sente pelos pais permanece inconsciente e uma formação reativa fará com que o ódio se transforme em altruísmo sem limites. A criança se vê compelida a dar tudo que tem para eles. Abraham (1917) mostrou que os gastos do pródigo são uma maneira disfarçada de exercer a atividade libidinal. Concordamos e acreditamos que boa parte dessa atividade libidinal está ligada a fantasias inconscientes de agressão e ódio.

Para terminar, insistimos em nosso ponto principal: quando o perdulário compra compulsivamente objetos inúteis e sem valor, ele não está lidando com uma “falta” que constitui o seu ser. O consumo é compulsivo porque o que ele deseja é uma outra coisa, inconsciente. A compulsão sempre foi a marca registrada do recalcamento. Na prodigalidade não é diferente. É para lidar com um desejo recalcado que o sujeito se põe a desejar compulsivamente. Se o avarento quer ser um alguém auto-conservativo, o perdulário perde as rédeas do desejo e é tomado por ele. Comparar esse par de opostos mais que nunca mostra como a justa oposição significa a mesma coisa no inconsciente: ambos estão tomados pela compulsão à repetição. Um tenta recusar o desejo, o outro tenta satisfazer todos. Do ponto de vista do inconsciente, trata-se da mesma coisa.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Fábio Roberto Rodrigues Belo
R.Germano Torres, 166 / 707 – Cruzeiro
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Recebido em 26/10/05
Aprovado em 07/02/06

 

 

Notas

I Mestre em Teoria Psicanalítica (UFMG); Doutorando em Literatura Brasileira (UFMG).
II Mestre em Filosofia Contemporânea; Professor do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica (UFMG).
1 Preferimos traduzir Triebumsetzungen como “deslocamentos da pulsão” ao invés de “transformações do instinto”, como faz a ESB, porque achamos que não é a pulsão que será transformada – ela será deslocada, transplantada, para outros lugares. A idéia aproxima-se bastante do conceito de deslocamento (Verschiebung), apesar de o termo usado por Freud ser diferente. O esquema gráfico por ele desenhado deixa claro esse deslocamento pulsional (ESB, XVII, p. 165; GW, X, p. 408). Esse artigo coloca em xeque a equação feita por Lacan entre deslocamento e metonímia. Parece-nos, ao menos aqui, o deslocamento ser uma maneira de metaforizar algo.
2 Remetemos o leitor ao artigo Ontogênese do interesse pelo dinheiro, de Sandor Ferenczi (1992), para que ali perceba claramente como o recalcamento da alteridade e o biologicismo de Freud são levados ao seu limite.
3 Perde-se em português o jogo de palavras que Shakespeare faz entre nêspera e intrometido, medlar e meddlers, que têm pronúncia semelhante.