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Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.10 no.19 São Paulo Dec. 2006

 

RESENHAS

 

 

Sérgio Scotti1

Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 

KESSLER, Carlos Henrique (et al). Tramas da clínica psicanalítica em debate. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. 296p. ISBN 8570257783.

O título Tramas da clínica psicanalítica sugere um livro sobre a técnica psicanalítica. Na verdade, trata-se da clínica psicanalítica, mas não estritamente como prática, e sim do lugar em que se dá essa prática, ou seja, a Clínica de Atendimento Psicológico do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Uma precisão a mais, trata-se nesse livro, não da prática clínica que se exerce nesse lugar, mas de um espaço que se criou para que outros fazeres e saberes pudessem se dar a conhecer naquele lugar e promovessem uma espécie de “oxigenação” da clínica, o que sugere que as tramas da clínica psicanalítica buscavam um afrouxamento em seu interior, trazendo algo do exterior, algo que não fosse somente do discurso psicanalítico ou psicológico.

Como conseqüência, temos nesse livro diversas vozes, que falam de seus diferentes saberes e fazeres: cinema, educação, antropologia, literatura, teatro, comunicação, adolescência, psicose, autismo, família, infância, drogas, violência e marginalidade. Como se vê, a lista é grande, resultado de doze encontros, em que muitos desses temas entrecruzam-se, tornando a trama da clínica psicanalítica mais adelgaçada, mais permeável talvez ao que acontece fora de seus limites.

No entanto, ao lermos os diferentes trabalhos apresentados naqueles encontros, percebemos que parece haver algo em comum a todos eles. Encontrar algo em comum não significa igualá-los, mas encontrar algo de um mesmo questionamento, que se realiza a partir de diferentes abordagens, ou seja, o que parece estar em questão em cada uma das apresentações é a subjetividade ou, melhor dizendo, o sujeito que está implicado em cada uma das situações, eventos, aspectos que são enfocados nos diferentes trabalhos, mesmo naquelas situações em que parece não haver sujeito – como no autismo, por exemplo.

Se quisermos encontrar uma essência na diferença das diferentes abordagens que encontramos nesse livro, talvez pudéssemos dizer então que se trata do sujeito pelo qual se pergunta em cada uma delas. Mas aqui cabe um questionamento – será que se trata do mesmo sujeito que se fala? Fala-se de diferentes sujeitos, ou do mesmo sujeito de diferentes maneiras? Parece-nos que se trata das duas coisas ao mesmo tempo.

Por um lado fala-se de um sujeito, que sob suas diferentes formas – a criança, o adolescente, o professor, o aluno, o psicótico, o leitor, o psicanalista, o marginal, o homem comum, o excluído – representam, por sua vez, o sujeito da modernidade ou, melhor dizendo, da pós-modernidade, sujeito da linguagem, da mídia, do público/privado, enfim, de um sujeito psíquico, de uma interioridade, uma singularidade, uma subjetividade que não deixa de representar os liames que se estabelecem no exterior com o outro. Na verdade, exterior/interior, público/privado apresentam-se como diferentes facetas daquilo que se supõe ser a experiência de um sujeito Se não se trata sempre do sujeito do desejo da psicanálise, parece que – em cada um dos trabalhos apresentados – pelo menos se supõe um sujeito, pergunta-se por ele, sondando-se, a partir de suas manifestações, qual sua natureza e como reagir a ele.

Enfim, vejamos como nos diferentes trabalhos a questão do sujeito apresentase colocada. Na primeira parte, de um todo de cinco, voltada para o cinema, comentase o filme Felicidade. O sujeito que aí aparece é, contraditoriamente – se assim o pudéssemos chamar –, o sujeito da infelicidade. Infelicidade que surge justamente quando se procura alcançá-la por meio do apelo ao “normal”, pois o normal em nossa cultura nem sempre coincide com aquilo que poderia fazer o sujeito “feliz”. A “felicidade” de alguém pode se definir por um comportamento chocante para outros, como a pedofilia. A lição que se tira é que não há lição nem receita para se ser feliz, e que a própria felicidade como objetivo talvez seja uma quimera, se ela for assimilada ao “normal”. De perto ninguém é normal. Os dois comentários do filme (de um psicanalista e de um cineasta) destacam este aspecto do sujeito humano pelo lado do excesso. A explícita miserabilidade dos personagens contrasta com uma cultura que é marcada pela exposição constante daquilo que deveria ser o normal, o desejável, o que nos faria felizes.

Ainda na primeira parte do livro, o leitor encontrará uma interessante oportunidade de cotejar duas formas diferentes, mas nem por isso excludentes, como se verá, de se abordar a questão da comunicação, que como dizia Lacan, baseiase no mal-entendido. Talvez se pudesse dizer que no primeiro texto encontramos um estilo obsessivo de se considerar o processo de comunicação. De maneira organizada e sistemática, apresenta-se a situação relacional professor/aluno, par antitético, complementar e definidor, que por sua assimetria, é produtor de equívocos, que se forem empaticamente elaborados pelo professor, podem ser produtores de conhecimento tanto no aluno como no professor. De outra parte, encontramos um segundo texto, que se apoiando no primeiro, trata mais especificamente da experiência clínica, do aprender fazer a clínica de um modo que em contraposição ao primeiro texto, poderíamos dizer, em um estilo mais histérico, quase poético, trata daquilo que se comunica em uma análise entre paciente e analista, analista e supervisor, justamente como a criação de um estilo, estilo de ser, ser analista.

Finalizando a primeira parte do livro, procura estabelecer-se no primeiro texto um diálogo entre a antropologia e a psicanálise, que se materializa no segundo texto em uma experiência com psicóticos e/ou excluídos no Cais Mental. Sugestivo nome que nos faz pensar em um lugar em que o sujeito à deriva pode encontrar a possibilidade de, em uma situação de relativa segurança, realizar trocas com outros que possam lhe servir de lastro para continuar a viagem.

Aqui toca-se na questão que foi trabalhada no primeiro texto, que é a relação indivíduo/cultura. Para além de uma dicotomia que colocaria a antropologia e a psicanálise em campos opostos, o inconsciente estruturado como uma linguagem de Lacan, evidencia a dimensão estrutural/simbólica do homem, que o funda tanto como indivíduo quanto ser cultural, permanecendo, contudo, sua singularidade de sujeito dependendo dos desdobramentos metonímicos particulares na cultura em que incide a metaforização do Nome-do-pai. Um desses desdobramentos aparece justamente na segunda parte do livro, que aborda de forma interessante a relação público/privado do ato analítico, em que o desejo do analista se vê confrontado com novas demandas sociais que o colocam diante do compromisso ético de sustentar a palavra do sujeito.

Na terceira parte de Tramas da clínica psicanalítica, encontramos reunidos a literatura, o teatro e o cinema. Os três primeiros textos são comentários sobre o livro de Saramago, Todos os nomes. Os três textos seguintes – a partir da peça teatral Agora é festa – abordam a questão da adolescência; e no último, comenta-se o filme de Kubrick, De olhos bem fechados. É interessante notar que embora as histórias e comentadores sejam bem diversos, um mesmo tema os perpassa, ou seja, sexualidade e poder, e em todos eles, de alguma forma, o elemento desestabilizador é o feminino.

Em Todos os nomes, o Sr. José, funcionário dedicado da Conservatória Geral do Registro Civil, submetido ao poder do Conservador Chefe, transgride as normas da Conservatória quando obcecado por uma mulher de quem quer descobrir o destino, acaba por descobrir o seu próprio. Nos textos sobre o adolescer, tanto quanto no comentário sobre o filme de Kubrick, a sexualidade feminina direta ou indiretamente aparece como o que é tratado de forma a se encaixar em uma visão machista do que é esperado pelos mecanismos de poder, o que chega a gerar o questionamento de que talvez a adolescência seja um privilégio de determinadas classes sociais.

A parte quatro de Tramas da clínica psicanalítica começa tratando da questão da família e de suas diferentes configurações, dependendo da época e dos lugares, e também de uma visada antropológica ou clínica. Seguindo o espírito dos trabalhos apresentados, percebe-se a interpenetração de diferentes campos do saber sobre a família, como a psicologia, antropologia, psicanálise e psiquiatria, nos quais novamente o fiel da balança é o sujeito que está em jogo para além das diferentes configurações familiares e das diferentes interpretações que se possa dar à importância da família – seja nuclear ou não, ou ainda, se a mãe é a natural ou não.

Aliás, em se falando em família como estrutura simbólica na qual o sujeito humano possa advir, a sessão seguinte, de diálogos clínicos, trata justamente de situações em que o simbólico não foi suficientemente eficaz na conformação de um sujeito que se apresenta então como autista ou psicótico, o que demanda do clínico uma abordagem que toma o real como ponto de partida. Real que por sua vez, irrompe nos dias de hoje na forma da violência e da exclusão, e contra ela e o malestar que provoca, o último texto dessa parte do livro propõe uma escuta que foi inaugurada pela psicanálise, a qual valoriza a palavra e, porque não dizer, o sujeito.

Na quinta e última parte do livro, três textos tratam de temas candentes e difíceis: o crime, a marginalidade e as drogas, e as redes de serviços existentes para acolhimento e “tratamento” daqueles que estão em situação de exclusão, especialmente as crianças de rua. A criança de rua de hoje será o criminoso de amanhã?

A julgar pelo comentário de três filmes nacionais que abordam o tema, mais especificamente do homicídio, necessariamente não. Os matadores, Ação entre amigos e O invasor são filmes que nos mostram que o crime e a violência têm origem em uma estrutura social em que a falta e a carência não podem explicar tudo. Se por um lado o crime pode ter origem ou ser justificado por diferenças ideológicas, por outro, quando ele é praticado por encomenda, acaba por revelar de forma nua e crua um sistema social em que na busca de poder e dinheiro, os fins justificam todos os meios.

Como seduzir ou convencer uma criança a sair das ruas e se afastar das drogas quando há todo um entorno que promove e mesmo propagandeia uma cultura do gozo fácil e do consumo desenfreado? É claro que isso também não explica nem justifica qualquer forma de marginalidade. Contudo, parece que há, a partir dos textos que tratam das redes de serviços públicos, um questionamento saudável de que estes não podem se pretender sabedores de qualquer forma de inclusão que fosse a mais adequada para os sujeitos. O que diante do retrospecto anterior oferecido pelas realidades apresentadas nos filmes comentados, seria no mínimo uma grande hipocrisia.

Reconhecer que estamos todos enredados em uma trama sócio-cultural conflituosa e por vezes chocante, como é a face do crime, e em uma situação de desamparo frente às faltas humanas, o que também não se resolve com dinheiro e poder, vide a infelicidade dos personagens envolvidos, é o primeiro passo, mas não o único, para a articulação de uma escuta, ou pelo menos de uma posição do profissional daqueles serviços, que favoreça mesmo naqueles que parecem estar na condição mais desfavorecida, alguma forma na qual possam se colocar como sujeitos de seu destino.

Ao final da leitura de Tramas da clínica psicanalítica, sentimo-nos propensos a congratularmos os idealizadores do projeto desenvolvido na Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS, pois acabamos por sentir que aquele objetivo anunciado no início – ou seja, de se buscar a “oxigenação” da prática clínica por meio do contato e troca com profissionais de outras áreas – termina por atingir e “oxigenar” a “mente” do próprio leitor, que tem a oportunidade de apreciar, comparar, cotejar diferentes visões a respeito de uma realidade que – muito bem lembrada no pós-facio – nunca foi desconsiderada, e na verdade, sempre questionada pelo inventor da Psicanálise, Freud e seu seguidor Lacan, que reconheceram justamente naquilo que funda estruturalmente qualquer cultura ou sociedade humana, também aquilo que é condição para o surgimento do sujeito humano.

Trabalhar com o sofrimento do sujeito humano na clínica certamente os fez sensíveis para a importância da relação com o outro. Nada mais coerente que aqueles que trabalham com a clínica inspirada por eles venham buscar em outros saberes e fazeres a sensibilidade para aquilo que a realidade nos traz para além da clínica.

 

 

Endereço para correspondência
Sérgio Scotti
E-mail:sscotti@mbox1.ufsc.br

 

 

1 Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (USP); Professor Adjunto do Departamento de Psicologia (UFSC); Autor de A estrutura da histeria em Mme. Bovary.