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Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.11 no.20 São Paulo June 2007

 

ARTIGOS

 

Pathos histérico: depressão e teatralidade

 

Hysterical pathos: depression and dramatization

 

 

Viviana Carola Velasco MartinezI; Gustavo Adolfo Ramos Mello NetoII

Universidade Estadual de Maringá. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Como parte integrante de pesquisa maior, que enfoca o discurso psicanalítico pós-freudiano sobre a histeria, aqui apresentamos uma análise da produção em torno da relação entre histeria e depressão, a partir de artigos indexados pela American Psychology Association (APA). Fazemos uma espécie de associação de idéias, a partir de autores cujo tema de um trabalho leva a outro e permite percorrer diversos enfoques. Dentro dessa organização associativa, damos destaque ao fator cronológico da produção. Três grandes temas podem ser definidos nessa discussão: as perdas, a defesa e o que denominamos de contrariedade. Finalmente, estabelecemos relações entre histeria, depressão, feminilidade e cultura.

Palavras-chave: Histeria, Depressão, Psicanálise, Cultura, Feminilidade.


ABSTRACT

This article is part of a larger research that focuses on the Post-Freudian discourse on hysteria. We present here an analysis of the relationships between hysteria and depression, based on articles indexed by the American Psychology Association (APA). We exercise here a type of association among author’s ideas, where one theme of a work takes to another one and it allows encompassing several focuses. Inside of that associative organization, let us say that we give certain prominence to the chronological factor of these productions. Three great themes can be defined in this discussion: losses, defenses and what we denominate here as contrariety. Finally, we establish relationships among hysteria, depression, femininity and culture.

Keywords: Hysteria, Depression, Psychoanalysis, Culture, Femininity.


 

 

Introdução

Este trabalho é parte de outro mais abrangente (Mello Neto, 2005)1, o qual tem com propósito investigar o discurso psicanalítico sobre a histeria, produzido nos anos após Freud, a partir de artigos indexados nos bancos de dados da Associação Americana de Psicologia (APA). Uma vez que seria muito longo expor todos os objetivos e partes desse projeto, basta que se diga que durante o exame do material levantado (oitocentos resumos e duzentos artigos completos), encontramos que a depressão ocupa aí um lugar importante. Aparece como tema predominante em um único artigo sobre a histeria dos anos 20, e surge de maneira esparsa até os anos 80, quando então se multiplica até os 90. A depressão surge no discurso sobre a histeria, por vezes como defesa, outras como causa ou sintoma, ou ainda como ameaça. O fato é que seu papel justificou a constituição de uma parte importante de nosso trabalho. É sobre ela que discorremos neste artigo.

O tema depressão é, talvez, na atualidade, um dos assuntos mais freqüentes, seja na clínica, seja em discursos dirigidos a diferentes destinatários. A grande expansão e sofisticação da indústria de psicotrópicos é também um dado indicador do alcance da depressão, que passa a ser não somente uma fonte de grandes rendimentos, mas motivo de inquietação – por um lado, pelo aumento expressivo do “estar deprimido” cada vez mais cedo, e por outro, devido à ilusão de eliminar a dor.

 

Depressão na histeria

O primeiro artigo que mencionamos, de 1926, é de Dorian Feigenbaum: A case of hysterical depression. Mechanisms of identification and castration. O que aí se apresenta é um caso diagnosticado de histeria com depressão, cuja discussão é teórica e técnica.

Trata-se de uma jovem costusteira de vinte e quatro anos de idade, imigrante da Polônia, que adoece gravemente após a morte do irmão, ocasionada por um câncer.

Segundo o autor, os dados apresentados sobre a família da paciente teriam indicado uma relação conturbada com a mãe, que a rejeitaria; um pai extremamente passivo, embora amoroso; um irmão mais velho e dominante, que de certa forma ocuparia o lugar do pai, pois formaria um par com a mãe. Além desse, haveria outros irmãos – dois que morrem – e irmãs. Diferentes episódios traumáticos também são relatados pelo autor – por exemplo, uma experiência marcante ocorrida entre os sete ou oito anos de idade, enquanto dormia, compartilhando a mesma cama com o pai e o irmão mais velho. Acordou ao sentir que estava sendo agarrada por esse irmão. Levantou-se rapidamente, mas ele continuou a segurá-la com a mão direita, pressionando o lado esquerdo de seu corpo. Tal experiência, diz o autor, não só a fez descobrir a diferença dos sexos, mas despertou a inveja do pênis, mobilizando ao mesmo tempo sentimentos inconscientes de culpa decorrentes dos seus impulsos de castração.

O irmão mais novo, muito parecido com o pai, deixará também traços marcantes na vida da paciente. Ele fica gravemente doente e o diagnóstico é de câncer no estômago. Após dezoito meses de agonia, ele morre. Essa experiência, continua o autor, trará uma sucessão de conflitos manifestados como sintomas neuróticos, que se iniciam justamente com a morte do irmão e seu tratamento durará o mesmo tempo da agonia daquele2.

Entre os sintomas, o autor menciona a depressão, que se manifesta por idéias de morte, sentimentos de solidão, o que a princípio pode se justificar pela recente perda do irmão, porque é em torno de sua imagem que surgem as lembranças, sintomas e medo de sua própria morte – isso de tal maneira, que ela passa a se apropriar dos sintomas da doença dele.

Teme ficar louca ou morrer. Acredita ter câncer, úlcera, anemia, reumatismo. Se por um lado evita beber água, por outro, bebe até seis copos seguidos, em uma tentativa de prenchimento. Teme, enfim, perder seu corpo.

A maioria dos sintomas de dor localiza-se no lado esquerdo do corpo. Dormia do lado direito do irmão doente, para cuidá-lo, de tal maneira que seu próprio lado esquerdo ficava junto ao corpo desse irmão. Seu lado esquerdo tornou-se símbolo de doença e morte, sustenta Feigenbaum – símbolo do desejo, acrescentamos, pois isso remete-nos imediatamente ao abraço do irmão mais velho que a fez sentir seu corpo, seu pênis e toda a excitação de uma situação que foi recalcada.

Um outro ponto chama a atenção: após cirurgia de retirada das amídalas, passa a examinar suas fezes regularmente para ver se encontra pus proveniente da amídala misturada aos remédios recebidos. Não achando nada, continua a acreditar que alguma imundície permanece em seu corpo. Este dado, contudo, coloca-nos em dúvida acerca do diagnóstico de histeria com depressão, mesmo que a paciente sentisse repugnância pelos homens. Uma tal relação com o corpo não estaria mais próxima de uma psicose? Ora, o autor afirma tratar-se de um caso atípico de neurose, marcado pela depressão, depressão histérica, pois faltariam os principais elementos que caracterizariam uma melancolia, como empobrecimento do ego e tristeza psicótica, auto­acusações e recriminações. Considera, pois, que só não se tornou uma psicose graças a um desenvolvimento egóico que teria proporcionado experiências e proteção. Do mesmo modo, a identificação com a imagem paterna teria tomado lugar nela antes das experiências de privação libidinal, de tal maneira que, e utilizando o conceito de Abraham de “incorporação parcial”, mudanças no ego da paciente teriam atuado no sentido de prevenir a ocorrência de uma introjeção completa, característica dos estados depressivos melancólicos.

Pode-se imaginar que a depressão está aí com uma dupla função: como testemunha da sucessão de perdas, isso é evidente, e como distância necessária em relação aos fantasmas edipianos e de castração que se entrelaçam às perdas. Mesmo a presença evidente de uma oralidade sádica, a fome excessiva e seu extremo oposto, e as referências anais podem ser entendidas como um dos caminhos tomados na fuga da castração, tendo como seu guia o cego Édipo, encarnado pelo irmão que morre. Dias antes de morrer, ele entrega à paciente um anel, que a faz desmaiar!

Em outro artigo, de B. Berliner, The psychogenesis of a fatal organic disease, de 1938, também temos o relato do curto tratamento de uma paciente, que sofria de uma combinação de histeria e depressão, originada, segundo o autor, da coexistência de repressão genital, fixação e regressão dos estágios eróticos oral e anal, junto à presença de um superego excessivo e tirânico.

A rígida intervenção superegóica, afirma Berliner, não produziu sintomas conversivos histéricos, mas verdadeiros sintomas orgânicos, que alimentavam o impulso depressivo para uma autodestruição, e de fato, a paciente vem a falecer da mesma doença da mãe – uma disenteria –, mas com a grande diferença que a equipe médica não encontra causa fisiológica alguma.

Contudo, os diversos elementos depressivos, apontados por Berliner, fazem pensar mais em uma melancolia e menos em uma histeria, pois além de não haver conversão, o autor afirma que o objeto perdido – a mãe – é incorporado ao próprio ego. Precisamente nessa identificação com o objeto de amor introjetado oralmente, temos a base da depressão melancólica pela impossibilidade de se fazer um luto. A autorecriminação constante da paciente, principalmente em relação aos outros, e fortes sentimentos de culpa também são indicativos de melancolia. Porém, novamente é necessário lembrar que se trata de um artigo de 1938, e a histeria então é um diagnóstico muito amplo, mesmo levando em conta que, em 1917, já havia sido publicado Luto e melancolia3.

Aqui damos um salto... Em outro extremo temporal, encontramos o artigo de P. Cuevas, Algumas mudanças observadas num caso clínico (1992), que nos permite também tecer alguns comentários em torno da relação histeria, depressão e as perdas.

Como no texto anterior, trata-se também de um relato de tratamento. Temos aí novamente a situação de eclosão de sintomas trazendo em suas manifestações reminiscências infantis.

Trata-se de uma jovem mulher que apresenta uma diversidade de sintomas, como forte angústia, sentimento de vazio e estagnação, depressão e o sentimento intenso de vivenciar uma constante e grande insatisfação com sua vida, o que a leva a procurar amantes.

O que temos em comum com os relatos anteriores é que também encontramos perdas: o pai morto, vínculos edipianos, irmãos que parecem funcionar como substitutos da figura paterna, uma mãe forte que, por contraste, a considera inútil, ou bem mais tarde uma mãe morta.

Embora o autor aponte a depresão como um dos principais sintomas da paciente, ele não discute em momento algum essa relação. Podemos fazê-lo por nossa conta, supondo que a depressão cumpra não somente sua função de indicativo de perdas, mas também um papel defensivo frente ao retorno do reprimido. Essa suposição nos leva a outro dos artigos analisados: The struggle against depression (1966), de M. Ostow, em que a depressão é tratada como mecanismo de defesa.

Esse autor propõe enfocar a depressão como um elemento secundário e constante das patologias, como neuroses e esquizofrenia, e aponta para essa característica plástica da depressão de substituir outras manifestações patológicas. É assim que atribui à depressão uma qualidade defensiva, à qual recorre o psiquismo em um primeiro momento, gerando, por sua vez, a necessidade de posteriormente também elaborar formas desesperadas – atuações – para se defender da depressão. Quatro fases são apontadas, sendo que a última corresponderá à depressão propriamente dita como quadro instalado.

Interessa, aqui, apontar que o papel da depressão nas neuroses, para o autor; corresponde a uma tentativa do ego de investir grandes quantidades libidinais, dando lugar a uma gratificação sensual, e isso funcionaria, a princípio, como um excelente antidepressivo. É o que caracteriza a primeira fase, denominada de Intensificação da atividade sensual. Certas manifestações histéricas são exemplos desse processo; a dismenorréia, continua Ostow, pode representar um investimento libidinal excessivo da função genital, bem como uma erotomania, masturbação compulsiva e a força excitante das fantasias, assim como os efeitos inibidores opostos, como a frigidez e impotência. A freqüente insatisfação com o cônjuge e a procura de outras aventuras amorosas também o atestam. Dessa maneira, alimenta-se a fantasia de ter adquirido um pênis, daí a necessidade de estabelecer relações o mais distante possível, por isso o sexo sem orgasmo, ou sexo rápido, porque o sentimento de depressão após o coito, diz o autor, faz com que o parceiro seja visto como o causador de sofrimento.

Ostow leva-nos a uma segunda fase, da função defensiva da depressão denominada de Apego anaclítico. Quando falha a primeira, o ego procura desesperadamente recuperar os objetos de cuidado – trata-se de uma fase de apego anaclítico, isto é, apego a alguém que cuide. Oralidade e dependência são marcantes, e para isso é necessário que o paciente selecione, por identificação com a figura materna, alguém que a represente e de quem possam ser demandados cuidados constantes, presença, segurança e amor. O interessante é que, como um bebê, é necessário evitar os estranhos, pois eles causam medo. Por outro lado, essa mesma demanda torna-se ameaçadora, pois de tão intensa desperta fantasias de aniquilamento pela possibilidade de fusão. Angústia, fobias, superego rigoroso e uma aparente solução dos conflitos edipianos são os ingredientes dessa tentativa defensiva. É característica da transição entre as duas primeiras fases a ilusão de recuperar a energia. Diversas manifestações histéricas são evidentes, como somatizações (sic), devido à hipercatexia dos órgãos que simbolicamente permitem as trocas amorosas com o objeto, como os orifícios, olhos, seios. Entre os sintomas temos os distúrbios orais, gastrointestinais, visuais e outros.

Quanto à terceira fase, Ostow a denomina de Repúdio enraivecido. A depressão, aqui, toma outras feições, decorrente da frustração ocasionada pelo objeto, seja porque não cuida, seja porque rejeita. Os relacionamentos afetivos podem se desfazer, e na análise, a transferência torna-se negativa. Diversas tentativas de independência são feitas, mas são tentativas de fuga frente a situações de separação. Novamente fortes manifestações histéricas marcam essa fase, como somatizações, alternância entre submissão e independência, além dos aspectos obsessivo-cumpulsivos e certas manifestações perversas.

A quarta fase, a da Deficiência definitiva, como a denomina o autor, indica que falharam todas as tentativas do psiquismo de se defender contra a depressão. Empobrecido, o ego procura sua destruição, ao mesmo tempo em que dirige forte hostilidade aos outros – a melancolia se configura.

Note-se, desse ponto de vista, que a histeria manifesta-se quase em todo o percurso evolutivo da depressão. Mas, se esta diz respeito a perdas, o que se perde na histeria? O objeto de cuidado, as gratificações, o pênis? E nesse caminho de perdas há uma identificação desesperada com o objeto que deve ser punido, e ao mesmo tempo preservado, amado e também odiado. O que salva a jovem costureira, vimos com Feigenbaum (1926), são as identificações parciais com um objeto de cuidado, que evitam uma regressão maciça.

Se o desejo de insatisfação constante aparece como defesa, tratar-se-ia de uma depressão pela perda da satisfação? O que pede esse luto, que pode se tornar impossível, como na melancolia?

Os temas da perda, da histeria e da depressão dão-nos pretexto para comentar outro artigo. Trata-se de The Psychopatology of Climateric Depression, de L. Fessler, publicado em 1950.

Trata-se do estudo de cem pacientes no climatério, que não haviam sido analisadas anteriormente. Observa o autor que o tratamento de reposição hormonal pouco resolve os problemas de irritabilidade e de depressão, e vários ginecologistas teriam confirmado que os sintomas psíquicos mostram os piores resultados. Segundo Fessler, então, na maioria dos casos, as pacientes apresentam distúrbios muito antes do climatério, o que o permite propor uma etiologia psíquica.

Diferencia, inicialmente, a depressão endógena da depressão do climatério. A primeira seria caracterizada por auto-acusações muito severas, pessimismo e desejos de autopunição, acompanhados de sentimentos de culpa e tendências paranóides. Isso leva a supor que o autor está se referindo à melancolia... Já a depressão do climatério apresenta mudanças de humor muito variáveis, e sua peculiaridade está na necessidade de exibir o sofrimento para impressionar os outros. Eis, aqui, um tipo de pathos teatral e provocador, que supõe a presença de um destinatário-expectador. Assim, enquanto na depressão endógena a paciente é indiferente, na depressão do climatério, a paciente descreve seu sofrimento exagerando-o.

A partir dessas considerações, Fessler supõe que a depressão no climatério é semelhante à histeria e aponta a presença dos mesmos mecanismos de defesa encontrados no estádio fálico: a conversão, a fobia e o caráter histérico4. Apresenta, então, exemplos desses mecanismos de defesa entre as pacientes em estudo. Há casos de fobia, de conversão, de fobia combinada com caráter histérico, ou de conversão com caráter histérico e, ainda, a combinação dos três mecanismos mencionados. Eis, então, a hipótese do autor:

Do ponto de vista clínico, parece justificável dizer que a depressão climatérica é, por assim dizer, a continuação, dentro do período da menopausa, da condição pré-climatérica da paciente. Esta condição pré-climatérica, contudo, de acordo com estes registros, é essencialmente uma histeria. (…) Se assumimos a validade da nossa teoria, que a depressão climatérica é a histeria da menopausa, também poderíamos traçar e estabelecer, nessas pacientes, algumas características do ego da histérica (Fessler, 1950, p. 32).

Recorre ao pensamento de Federn5, que aponta na histeria uma característica de flexibilidade ou labilidade para as fronteiras do ego, o que permite que sejam incluídos os outros, e conseqüentemente, há facilidade para as identificações e a sugestionabilidade. Também a relação com o corpo é outra – na histeria o medo é experimentado como medo corporal e não psíquico, diferentemente das neuroses compulsivas, e esse ego corporal é ameaçado por destruição.

É desse modo que Fessler vê, nas pacientes em climatério, os medos relativos aos seus corpos, sejam eles provenientes de experiências do passado ou do presente. Diz:

Ambas as naturezas hipocondríacas da queixa e suas mudanças freqüentes de um órgão aflito para outro claramente indicam que a paciente sente que seu ego corporal está ameaçado. Este detalhe, mais adiante, corrobora a suposição que a depressão no climatério tem a estrutura da histeria (1950, p. 33).

Além da principal mudança orgânica que seria a suspensão da menstruação, o autor se propõe a analisar do ponto de vista psicológico o processo de adaptação que decorre desse novo estado. Mais uma vez, recorre aos clássicos da psicanálise, como Hartman, Schilder, Ferenczi e Anna Freud, para indicar que é possível dar intepretações psicológicas para os sintomas, e a constatação de que mudanças orgânicas podem disparar processos regressivos.

É dessa maneira que Fessler percorrerá interpretativamente os meandros psíquicos desse fato orgânico. Trata-se, antes de tudo, da impossibildiade de gerar filhos que explicaria a depressão no climatério; mas, pelas vias de seu sentido inconsciente, encontramos a menina que deseja um pênis, e espera inicialmente que sua mãe o dê. No entanto, frustrada, passa a ter a mesma esperança em relação ao pai; mas, novamente desapontada, passa a desejar um filho seu, como uma forma de compensação. Seria precisamente essa frustração que estaria no núcleo da depressão no climatério – essa perda sofrida no plano da realidade, que demanda renúncia e se manifesta por um luto considerado normal (mas marcado pela agressividade, pois insiste em manter as identificações com o objeto e sobre o qual detém a catexia libidinal). Isso é diferente da depressão melancólica. Nesta, o luto pode ocorrer sem qualquer perda na realidade, porém trata-se de um luto em que o sujeto identifica-se com o próprio objeto, e portanto, a agressividade dirige-se para si próprio.

Estamos no âmbito da castração e da impossibilidade de admitir a diferença. A inveja do pênis deixará traços no desenvolvimento e na formação do caráter, sustenta Fessler, recorrendo a Freud, e o desejo de ter para si um pênis perdurará no inconsciente.

Isso se manifestaria, pois, na depressão no climatério, na reatualização do complexo de castração e nas diversas formas de negar a inveja do pênis.

Pode-se pensar que, de certa forma, temos uma relação mais ou menos estreita e permanentemente sem solução entre o feminino e a histeria, isto é, o feminino e a castração passível de negação pela capacidade temporária de procriação. E um feminino que, ao ter vencido seu prazo de validade (re)produtiva, simularia um luto melancólico, tendo como seu objeto identificatório um pênis inexistente. Por isso, talvez a castração deva ser negada ostensivamente para um público, que em sua qualidade de mero espectador se impregne da atmosfera ilusória: a histérica vai encenar sua dor. Essas considerações serão retomadas.

Temos, até aqui, um discurso mais ou menos uniforme sobre o papel da depressão na histeria. Perdas negadas, reatualizadas, complexo de castração, inveja do pênis, Édipo... defesas.

Com relação aos anos 70, não encontramos artigo específico sobre depressão e histeria, mas essa relação é constantemente mencionada nos artigos sobre histeria de modo geral. Vejamos.

Em 1974, tem-se o Panel on “Hysteria today”, que teve lugar no 28th. International Psycho-Analytical Congress, em Paris, e foi relatado por J. Laplanche. Participaram vários autores, dentre eles A. Green. Este sustenta que o fato do comportamento histérico ser marcado pela hipersexualização e por uma forte tonalidade afetiva se explica por uma forte tendência a dirigir a culpa sobre um suposto agressor, por ser intolerável. Tratar-se-ia de um esforço dramático contra a depressão decorrente de um rebaixamento da auto-estima. De forma geral, Laplanche chama a atenção para o fato de que vários autores presentes no painel, como A. Green e E. Brenman, por exemplo, enfatizam a presença marcante dessas angústias muito básicas, catástrofe e depressão, de modo a se perguntarem se a histeria não seria uma espécie de defesa contra estados mais graves, como são os psicóticos, nos quais a histeria seria apenas o começo. Laplanche discorda, mas o apontamento é importante, pois revela toda uma tendência da psicanálise de então, e isso não está muito longe de nossos dias.

Vejamos que já encontramos a idéia da histeria como defesa contra a depressão no trabalho de Ostow, acima comentado. Vimos que em várias fases da tentativa de elaboração da depressão, a histeria cumpriria esse papel de defesa.

Essa concepção também estará presente, no artigo A fachada histérica, de Zisook et al (1979), no qual os autores, além disso, curiosamente relatam os casos em que pacientes histéricas parecem responder bem a tratamentos com antidepressivos6.

Passemos, então, à produção dos anos 80, não somente porque ela é farta, mas também porque propõe uma diversidade de enfoques em que a depressão ganha um lugar de destaque no discurso sobre a histeria, e possivelmente em todo discurso psicanalítico.

Em Diagnosis revisited: the case of hysteria and hysterical personality, de R. Wallerstein (1980-1981), encontramos, entre as várias teses comentadas pelo autor, sejam dele ou de outros, também a explicação da depressão na histeria como decorrente de uma ferida narcísica. A menina não pode sustentar a fantasia de possuir fálica e ativamente a mãe, e mesmo quando ela abandona esses impulsos fálicos e desloca a libido para o pai e depois para outros homens, a mudança para a condição receptiva provocaria a depressão. No caso da histeria, defesas patológicas são acionadas e conflitos antigos impedem o abandono da ligação fálica com a mãe. O oral estaria na origem dessa depressão7.

Lembremos de que Fessler sustenta algo parecido – o climatério renovaria as antigas frustrações frente à espectativa de ter o pênis restituído, primeiro pela mãe e depois pelo pai, e enfim, a substituição por um filho do pai.

Participemos agora de alguns congressos.

 

Congresso dos psicanalistas e o anúncio do mal do século: depressão

Para comemorar o centenário do encontro de Freud com Charcot, psicanalistas franceses (Sociedade Psicanalítica de Paris – SPP) organizaram dois eventos. O primeiro é o Quadragésimo Quarto Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa, organizado em Lisboa, juntamente com sociedade psicanalítica daquele país (Sociedade Portuguesa de Psicanálise – SPP). O segundo é o Colóquio de Deauville, na França. Esses eventos realizaram-se em torno apenas do tema histeria e resultaram na publicação dos dois volumes da Revue Française de Psychanalyse (1985, 1986). Isso justifica, evidentemente, o fato de haver maior concentração de artigos especificamente sobre histeria e depressão nos anos 80.

Comecemos por L’Hystérie: unité et diversité, de A. Jeanneau (1985), que ao longo de mais de duzentas páginas apresenta uma exaustiva revisão dos principais elementos da histeria. Quanto à depressão, o autor atribui-lhe grande importância e considera-a um movimento defensivo para o exterior, inspirado pelo vazio interno; um vazio de ser que é diferente do luto. Isso configurará mais uma ameaça de depressão do que uma depressão propriamente dita. De que vazio se trata, que provoca intensa ameaça de depressão? Jeanneau dá uma resposta que nos lembra as idéias de Reich, a do pai parteiro. Sustenta que pela intervenção de um estranho, o pai, desfaz-se a possibilidade de fusão da menina com a mãe; e esse pênis do pai, que falta à mãe, priva a criança de um apoio homossexual constitucional (a mãe), tornando a identificação (com a mãe) insuficiente. Isso de um lado. De outro, pelo pênis contido na mãe, ambas se identificam por possuírem tudo, e por isso, há o iminente perigo de uma devoração mútua entre o par.

Temos assim elementos muito primitivos, que Jeanneau relaciona com o que ele denomina posição alucinatória. Trata-se da reação do bebê – suposta por Freud no Projeto (1895/1950) –, que frente à pressão da necessidade, alucina a satisfação. A mãe, por sua vez, com seus cuidados, ao segurar o bebê no colo acaba dando concretude (muscular) e “realidade” ao alucinado.

A posição alucinatória coincide, em termos de estádio do bebê, com angústias muito primitivas, no plano da oralidade, na fusão com a mãe e seu temido abandono. A histeria, então, se poduziria precisamente na junção desse momento alucinatório e oral do bebê com a cena primitiva. Isso explicaria a oralidade excessiva da histérica, que já havia sido apontada por Reich.

É dessa maneira que a cena primitiva representante de Édipo, estará contaminada pelo pré-edipiano, e é nesse registro que será lida como abandono: “a mãe prefere outro e me deixa”. A partir do traumático da cena primitiva, haveria uma regressão para a possição alucinatória. Essa seria a explicação da idéia, também sustentada por Jeanneau, de que todas as manifestações histéricas são de natureza alucinatória – seja a conversão, seja o dramatismo. Quanto à depressão, temos que o trauma da cena primária é um trauma narcísico e atinge a auto-estima; na cena, o sujeito sente-se rejeitado. Essa seria, pois, a primeira e mais importante manifestação do sentimento de rejeição, o que provocaria lacunas no eu e colocaria o sujeito sempre sob ameaça de depressão. Nesse sentido, então, os sintomas histéricos não são apenas alucinatórios, mas também tentativas de evitar a queda no abismo da depressão8. Assim, a forma histérica de se constituir o psiquismo poria em relação a satisfação alucinatória e a experiência de desamparo/abandono.

É, pois, no terreno do vínculo corporal e erótico que a criança reencontrará sua mãe. Isso se daria pelo fato de que a mãe da histérica se apropriaria do corpo de sua filha, procurando para si alguma reparação narcísica ou recuperação fálica. Na situação mãe-filha, a filha é não muito mais que um prolongamento da mãe, que a utiliza de forma masturbatória, instalando aí inclusive suas decepções.

Como se a mãe, usando o corpo da criança para se satisfazer sexualmente, ou mais exatamente para nele instalar suas decepções masturbatórias, transportando com ela as incompletudes narcísicas compensadas, estabelecesse nesse corpo jovem um mesmo vinculo autárquico (Jeanneau, 1985, p. 262).

Eis, então, como se prepara na futura histérica a resposta sexual ao sentimento de abandono, e a complacência corporal e o sentimento de uma estranha solidão na presença do outro. Aí também se prepara a precocidade da decepção genitalizante, para a qual a cena primitiva será o disparador.

O corpo da histérica é, então, um corpo solicitado e excitado, mas ao mesmo tempo, decepcionado precocemente. E trata-se de um corpo que em seu despertar deve pôr em ato uma cena alucinada, a sua própria e a da mãe. A linguagem será uma linguagem de ação, devido ao desequilíbrio entre ação e pensamento, e a ação corresponderá a uma forma alucinatória do pensamento.

Fain, em sua intervenção (Communication, 1986), questiona a idéia da co-existência permanente da depressão nas manifestações histéricas. Pensa que a histeria é, de certa forma, “normal”, constituinte na identificação com a mãe, o que não provocaria depressão. Haveria, sim, uma realidade decorrente da percepção do contato com o corpo materno; e o desinvestimento do pensamento materno, decorrente do reinvestimento em seu parceiro, algum tempo depois do nascimento do bebê, indicaria, nesse momento, que a mãe se revela mulher9, pois seu desejo sexual renasce. Essa descontinuidade mãe-mulher, e o investimento pela criança de um novo objeto-mulher, que aparece sob a forma de uma identificação histérica precoce, não poderia causar a depressão, posto que haveria uma organização da excitação do desinvestimento momentâneo10. Isso por um lado. Por outro, a cena primária também é uma fonte de excitação, realidade bruta, diz Fain, que pode se condensar porque dificilmente é elaborada, originando uma histeria, entre outras patologias.

M. Ody comenta as idéias destes dois últimos autores no segundo evento, o Colóquio de Deauville. Em De l’opposition entre hystérie et dépression (1986), Ody retoma as idéias de posição alucinatória na histeria e sustenta que, antes de tudo, o recalcamento estaria na base de toda histeria como defesa contra um ver que é ação. O ataque histérico resultaria, assim, do surgimento de fantasmas dramatizados, bloqueando qualquer associação, e prevalecendo a condensação sobre o deslocamento. Contudo, afirma não haver depressão na histeria, e argumenta sua posição trazendo as idéias de Pasche, para quem a depressão diz respeito a uma regressão superegóica que faz com que o indivíduo desista das satisfações libidinais, o que reanimaria sentimentos de culpa e, sobretudo, vergonha. Entre a vergonha e a culpa, Pasche, segundo Ody, situará a depressão como um mecanismo de proteção, isto é, de “pára-depressão”, como A. Green (apud Laplanche, 1974) nomeia.

Enquanto Jeanneau refere-se a uma depressão na histeria que diz respeito ao objeto de cuidado, Pasche (apud Ody, 1986), limita a depressão ao objeto ideal narcisista. Mas haveria para Ody uma diferença – o objeto da pulsão diz respeito à histeria, enquanto o objeto de apoio (anaclítico, no dizer de Freud) refere-se à depressão.

Ody, em seguida, traz o tema do luto, introduzido por Fain (1986), para quem deve haver uma decepção amorosa junto com o luto fantasmático para que haja depressão. Mas a histeria, por sua vez, nega o luto por uma sexualidade que provoca, em que a mãe falha como objeto de apoio porque não consegue transformar as pulsões em ternura, apenas utiliza sexualmente o corpo da filha de forma auto-erótica.

Também o tema da bissexualidade servirá de apoio para que Ody sustente a oposição entre histeria e depressão, como o anunciara no título de sua exposição. Enquanto na histeria, afirma o autor, a bissexualidade está diretamente implicada, porque conflitante, na depressão, ao contrário, há uma clivagem; de um lado, o feminino e o masculino afetam sobremaneira, de outro é indiferente.

Vemos que a sexualidade da mãe, a castração, o incesto, a perda da fusão, estariam em torno da depressão na histeria. E se não há uma depressão propriamente dita na histeria, a ameaça de havê-la mobilizaria toda uma dinâmica defensiva.

Voltemos ao Congresso de Lisboa, no qual Coimbra de Matos, em De l’hystérie à la dépression (1985), discute a psicodinâmica e aspectos relacionais da depressão histérica. O autor aponta o fato do caráter histérico estar dominado por um infantilismo afetivo, impossibilidade de transformar emoções vivenciadas em relacionamentos duradouros, ao internalizar o objeto de amor, e submetimento ao princípio de prazer, bem como demanda imediata de gratificação libidinal. A ambivalência marca o indivíduo. Incapaz de amar, a histérica vive na ilusão de ser amada.

Os colapsos narcísicos, continua o autor, que se seguem a cada decepção, disparam a depressão que acordará o paciente para a realidade.

Hystérie, masochisme, dépression, de D. Braunschweig (1986), paper também exposto no colóquio de Deauville, propõe uma discussão em torno das tendências masoquistas, suicidas e depressivas em mulheres histéricas como expressão da crise psicossexual descrita por Freud, em 1909, em Considerações sobre o ataque histérico. A histeria é, então, enfocada considerando o papel da homossexualidade, da masturbação, as ilusões fálicas, bissexualidade incestuosa e castração.

Finalmente, temos o trabalho de Roux (1986), com o qual encerramos a revisão dos artigos, pois o objetivo da autora é precisamente de fazer uma leitura organizadora e global dos dois eventos citados. Com o expressivo título On fait um enfant, ela sustenta que, grosso modo, os assuntos abordados sobre a histeria correspondem a três grandes temas: o nosográfico, o metapsicológico e a relação entre histeria e depressão.

O tema nosográfico discute o possível desaparecimento da histeria e da histérica, bem como os efeitos da contratransferência ao revelar os aspectos mais ou menos histéricos de um paciente.

Quanto à discussão metapsicológica, a autora a situa principalmente em torno do funcionamento psíquico e as representações: representações-palavras, afetos, ações, representações impossíveis do feminino e da morte, os irrepresentáveis da vida psíquica. Identificação e sedução são amplamente discutidas.

Sobre as relações entre depressão e histeria, a autora aponta como objeto da histérica uma procura, seja como espectadora, seja como continente, seja como atriz no lugar do sujeito, daí a importância das demonstrações histéricas. Discute, ainda, a organização anal, na histeria, relacionada à dificuldade maior da histérica, que se localiza precisamente na parte inferior de seu corpo. Mencionando Anna O., faz uma passagem da analidade ao fantasma de gravidez, presente em todo tratamento psicanalítico, e de forma metafórica, discute a fecundidade ou esterilidade, a aceitação e a recusa nos resultados do tratamento.

Temos, pois, até aqui, um panorama da produção que relaciona a histeria e depressão. Podemos dizer que essa diversidade de idéias encontra certa unidade no pensamento freudiano, mas deixa sempre algo de enigmático e de particular. Isto é, todos os autores em algum momento recorrem a Freud, enfatizando um ou outro ponto da teoria. Entretanto, como se viu, não se pode dizer que as idéias estão todas em Freud. O que dizer, desse modo, de tão diversas e ilustres argumentações?

 

A histérica: mártir da civilização?

É possível dizer que toda a discussão em torno da depressão e da histeria pode ser localizada em três esferas de significação. A primeira, talvez a mais evidente, diz respeito às perdas, como já apontamos. Uma segunda esfera relaciona-se à qualidade defensiva atribuída à histeria, apenas como um momento da depressão, o momento mais suave, que objetiva evitar seu avanço em direção a uma melancolia, como foi visto em Ostow (1966) e Laplanche (1974). E por último, está a terceira esfera, que denominamos contrariedade.

Em 1892, em Um caso de cura pelo hipnotismo, Freud relaciona a depressão à histeria quando supõe estar presente uma tendência à diminuição da autoconfiança, principalmente devido à intensidade de idéias contrárias não satisfeitas11(grifos nossos). O mesmo é possível encontrar em As neuropsicoses de defesa, de 1894, em que o autor aponta três possíveis caminhos tomados pelo ego para se defender daquilo que contradiz a procura de satisfação12. A histeria, nesse sentido, estaria marcada pela contrariedade, pela insatifação e pela tristeza. No entanto, a idéia de contrariedade e sua relação com a depressão não se limitaria a conflitos histéricos discutidos na clínica, mas pensamos tratar-se de algo mais amplo, algo do âmbito da própria civilização. Talvez o ápice da contrariedade possa ser bem ilustrado pelas idéias dos autores franceses, a começar pelo recurso à alucinação13 como uma primeira fonte de satisfação; a impossibilidade de manter a fusão com a mãe; o Édipo; a cena primária... Para alguns, tudo isso provocaria a depressão na histeria; para outros, não poderia haver depressão na histeria, apenas uma ameaça ou uma forma de sustentar a histeria.

No entanto, podemos pensar, com Fedida (1999), que a própria constituição do psiquismo em geral está marcada pela depressão, o que nos remete ao Manuscrito de Freud, Neurose de transferência: uma síntese (1915). Aí encontramos a idéia de ser o aparelho psíquico uma construção defensiva contra a angústia decorrente de uma catástrofe. O adiamento das satisfações, a cooperação para a sobrevivência e a aquisição da postura ereta caracterizaram essa passagem do hominídeo ao humano, e nela a histeria teria surgido como a primeira idade psicopatológica da humanidade. Aqui, talvez, possamos situar a depressão e seu vínculo primeiro com a histeria, no processo de humanização, e esboçar uma tentativa integradora de todos os níveis propostos. Iniciamos com o segundo nível, que toma a histeria como uma expressão defensiva contra a depressão. E isso pode ser entendido a partir da proposta de Freud, a das idades psicopatológicas da humanidade, que começam com uma histeria e se sofisticam em melancolia, no qual a depressão – o próprio pai da Psicanálise o mostra em Luto e melancolia (1917) – é o próprio quadro patológico.

Se nossa constituição psíquica é, de certa forma, a de uma histeria, temos assim que é nossa humanidade a que se deprime face às exigências de renúncia das origens puramente libidinais. Origens essas que configuram uma realidade teatral e dramática, representada na cena histéria. Aí está – na perda civilizatória, a do ventre da mãe natureza – o primeiro nível referido, o das perdas. O que se perde nessa humanização forçada, para Freud (1915), é a satisfação imediata e a comunhão harmônica com o materno corpo da natureza.

Chegamos, assim, ao nível de contrariedade – seja ocasionado pelas perdas, seja pela defesa, ou por ambas –, no qual a histérica será a atriz que representará esse drama, particular mas universal, do retorno do erotismo reprimido.

E por último, se a linguagem posta em cena na histeria é aquela em que um corpo se coloca em evidência para comunicar um desejo – seja pela conversão indiferente, seja pela somatização sofredora, pela queixa hipocondríaca, ou mesmo pela anorexia e a bulimia –, talvez o idioma utilizado seja precisamente o da depressão, como tentativa decodificadora de uma renúncia impossível. Temos, assim, a castração, o feminino, a histeria e a cultura.

Transformada em um outro (o áner do teatro trágico) – fálica, infantil, imortal –, a histérica apresenta em seu teatro particular a sua tragédia. Mas são cenas sobre o páthos humano imitadoras de uma ação real14; e pela compaixão e o horror, provocam tanto na protagonista quanto em seu público o desencadeamento liberador de seus afetos.

Nessas cenas dramáticas, a histérica e seu espectador formam uma unidade pela reciprocidade de seus olhares, e nessa troca de olhares, qual um espelho, surge o tremendamente familiar e estranho, das Umheiliche freudiana. Dor-piedade, sofrimento-prazer, descomedimento-castigo são os elementos tanto dramáticos quanto prazerosos, familiares e estranhos do teatro trágico da humanização.

 

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Endereço para correspondência
Viviana Carola Velasco Martínez
Rua Prof. Ney Marques, 21 – 87020-300 – Jd. Universitário – Maringá/PR
Tel.: (44) 3031-4326
E-mail: vcvmartinez@hotmail.com

Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
Rua Prof. Ney Marques, 21 – 87020-300 – Jd. Universitário – Maringá/PR
Tel.: (44) 3031-4326
E-mail: garmneto@pop.com.br

Recebido em 20/02/06
Aprovado em 05/03/07

 

 

Notas

IDoutora em Psicologia Clínica (Núcleo de Psicanálise/PUC-SP); Professora do Departamento de Psicologia (Universidade Estadual de Maringá); Coordenadora do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Civilização.
IIProfessor Doutor do Departamento de Psicologia (Universidade Estadual de Maringá); Doutor em Psicologia (USP); Pós-doutorado em Psicanálise (Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise/Universidade Paris VII).
1Pesquisa financiada pelo CNPq (relatório final Aprovado em dez/2005).
2Não fica claro, para o leitor, se foi a paciente ou o analista quem determinou o tempo de duração da análise.
3Há elementos também para pensar em uma enfermidade psicossomática, quando se tem em conta uma patologia talvez psicogênica, como teria sido a disenteria, que leva à morte. Seria preciso ver o que aí não se deixa de simbolizar.
4Remeto o leitor ao texto de Mello Neto (2005) sobre as relações entre histeria, caráter histérico, personalidade histérica, personalidade histriônica, neurose de caráter histérico, histeróide e outras denominações que gravitam em torno da histeria.
5Paul Federn (1871-1950), discípulo direto de Freud, não parece ter sua obra muito divulgada no Brasil. No entanto, pode-se encontrar o seguinte livro, escrito por uma autora brasileira: Paul Federn une autre voie pour la theorie du moi, de Maria Tereza de Melo Carvalho (1996).
6Mello Neto (2005) chama a atenção para o fato de encontrarmos em vários DSM’s essa relação entre histeria e depressão.
7Tese de Amini e Baumbacher, comentada pelo autor.
8Isso é diferente do deprimido ou melancólico que já está em depressão.
9Essa idéia é encontrada também em Bollas (2000), vinculada à idéia de epifania sexual.
10Para Fain e Braunschweig, o deprimido é alguém que não pode ser reconhecido pela mãe como sendo diferente dela, de tal maneira que se constitui em seu objeto fetichista. E para que o casal parental não mergulhe na angústia, é necessário que o filho mantenha sua função de fetiche.
11Freud também vai se referir à melancolia.
12É ilustrativo o exemplo da jovem que contradiz a realidade e alucina um noivado e felicidade intensa, como uma tentativa de fugir da frustração.
13A que Freud se refere no Projeto (1895/1950).
14O que caracteriza a Tragédia para Aristóteles (Poiética, 1993).