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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.20 São Paulo jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Vestígios1

 

Vestiges

 

 

Andrea Menezes MasagãoI

Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é investigar os efeitos da letra a partir da escrita do Condicionado, personagem singular que habita a ilha central de uma movimentada avenida da cidade de São Paulo. Ele escreve pequenas ofertas oferecidas aos que passam pela avenida, fazendo seus escritos circularem pelo espaço público. Escrita que revela a fragilidade das fronteiras que separam o privado e o público, o sujeito e a cultura, fazendo borda no discurso e conjugando em um mesmo ato os restos dos quais a civilização se desfaz e o sublime da escritura sagrada.

Palavras-chave: Escrita, Letra, Sujeito, Objeto, Cultura.


ABSTRACT

The aim of this article is to investigate the letter effects based on the one conditioned to writing, a singular person who lives in a central island in a rush avenue of São Paulo city. He writes little offerings for the people who walk through the avenue, making his writings circulate in the public space. Writings that reveal the frailty of the border that separate private domain from the public one, subject from culture, demarcating the discourse and conjugating, in the same act, the civilization remains and the sublime of the holly bible.

Keywords: Writing, Letter, Subject, Object, Culture


 

 

O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser resgatada; na maioria das vezes, já está escrita em outro lugar. Qual seja:

• nos monumentos: e esse é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda grave;

• nos documentos de arquivo: e esses são as lembranças de minha infância, tão impenetráveis quanto eles, quando não lhes conheço a procedência;

• na evolução semântica: e isso corresponde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de minha vida e a meu caráter;

• nas tradições também: nas lendas, que sob forma heroicizada veiculam minha história;

• nos vestígios, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e cujo sentido minha exegese restabelecerá

(Lacan, 1956, p. 260-261).

Várias são as escritas que marcam presença nos espaços públicos, compondo uma iconografia característica do corpo das grandes metrópoles. Placas de trânsito organizando e delimitando a circulação, outdoors exibindo possíveis objetos de consumo e desejo, grafites e pichações marcando um lugar de inscrição, homens-placa anunciando em seus corpos desde ouro até a promessa de um emprego. Escritas com os mais diferentes suportes, origens e endereçamentos, que têm em comum o pertencimento a um discurso compartilhado desde um mesmo código. Outras escritas circulam pelas margens, fazendo borda no corpo urbano. Escritas desgarradas de qualquer discurso e do compromisso com um sentido compartilhado. Escritas freqüentemente excessivas, mas raramente lidas, que provocam estranhamento pela subversão das leis que regem a língua, seja por sua forma, seja por seu conteúdo. O uso de neologismos, a sintaxe própria, a pontuação inusual, o conteúdo bizarro, o trabalho com a materialidade da letra são traços dessas escritas, que na maioria das vezes têm no lixo seu destino comum.

O que essas criações podem nos revelar sobre os efeitos da letra? A leitura dos efeitos dessa letra desgarrada, que rompe com a função representativa da linguagem, é o que pretendo realizar tomando como objeto a escrita do Condicionado. Escrita tomada como vestígio do inconsciente que escreve sua verdade em um outro lugar, um lugar onde a fronteira entre o público e o privado se dilui. Freud, assim como Lacan, sempre enfatizou a relação entre o sujeito do inconsciente e a cultura. Para Freud, a pulsão é um conceito limite entre o orgânico e o psíquico, e manifesta a condição de desnaturação do desejo humano. Lacan trabalha essa problemática em momentos diferentes de seu ensino. No seminário sobre a carta roubada, a pulsão aponta para a incidência do simbólico, que se manifesta até no mais íntimo do humano:

Essa noção foi por nós destacada como correlata da ex-sistência (isso é, do lugar excêntrico) em que convém situarmos o sujeito do inconsciente, se devemos levar a sério a descoberta de Freud. É, como sabemos, na experiência inaugurada pela psicanálise que se pode apreender por quais viéses do imaginário vem a se exercer, até no mais íntimo do organismo humano, essa apreensão do simbólico. (Lacan, 1956, p.13)

O humano se constitui a partir de registros heterogêneos; imaginário, simbólico e real, o que significa que somos marcados por símbolos e imagens que nos vêm de fora, mas que são tomados como próprios. Trata-se de uma exterioridade íntima, tal qual uma banda de Moebius, figura topológica na qual o externo e o interno, o direito e o avesso se confundem, indicando que as fronteiras entre o eu e o outro, individual e coletivo, sujeito e cultura não estão dadas para todo o sempre, e que é necessário reconstituí-las de tempos em tempos. A escrita do Condicionado coloca em evidência essa articulação entre o inconsciente e a cultura, e a fragilidade das fronteiras que separam o privado do público.

Os efeitos dessa letra não podem ser lidos no sentido de uma relação estrita de causa e efeito, pois Lacan (1964, p. 27), ao retomar o inconsciente freudiano, apontará na função da causa algo de indeterminado, uma hiância, um buraco: “o inconsciente Freudiano, é nesse ponto que eu tento fazer vocês visarem por aproximação, que ele se situa nesse ponto em que entre a causa e o que ela afeta, ha sempre claudicação”. Claudicação, hiância, furo que pode ser representado pelo que Freud (1898-1899, p. 415) chamou de umbigo dos sonhos, centro enigmático, impossível de abordar: “todo sonho apresenta pelo menos um fragmento inescrutável, como um cordão umbilical pelo qual se acha unido ao desconhecido”.

 

A cadeira vazia

Sentado diante de uma cadeira vazia na ilha central de uma grande avenida da cidade de São Paulo, ele passa o dia trabalhando na escrita cuidadosa do que nomeia “pedacinhos de papel”. É conhecido por diversos apelidos – Filósofo, Profeta, Poeta –, mas assina seus escritos como “O condicionado”. Régua, caneta, tesoura e uma moldura são as ferramentas de seu trabalho; pequenas ofertas escritas e oferecidas aos que circulam na avenida onde está há mais de dez anos, sempre no mesmo lugar. Um dia ouviu uma voz citando o profeta Malaquias: “não ficará pedra sobre pedra”. Tudo o que faz desde então se desmancha, não permanece, é falsificado. Mesmo seu nome não pode ser usado, pois se assim o fizer, corre o risco de perdê-lo.

Segundo o Condicionado, a única coisa original é a marca da tinta de sua caneta sobre o papel. Assim ele perseguirá em vão, na tentativa diariamente repetida, a escrita de um traço original que permaneça. O tempo também já não é mais o mesmo, pois foi definitivamente alterado desde que o condicionado saiu fora do calendário. Ele diz que está desligado do mundo desde 1976, quando deixou de ler jornal, de acompanhar o mundo por meio do jornal. Como represália, não o deixaram saber mais nada. Desde então o relógio está sempre atrasado, e cabe a ele a exaustiva tarefa de corrigir o tempo. Assim ele o faz por meio da invenção de um sistema de cálculo presente em cada um de seus escritos. Depois de assinar, coloca o local, o dia e o mês, mas o ano é sempre o mesmo: 1999. Para se localizar, ele acrescenta o que falta.

Seu nome não pode ser usado para nomeá-lo; o calendário, medida comum do tempo, o exclui; do mundo não tem mais notícias; habita uma ilha rodeada de carros em permanente movimento, e tem como interlocutor privilegiado apenas uma cadeira vazia. No entanto, ele escreve, e é sempre possível que a cadeira vazia possa ser ocupada por um outro a quem o condicionado possa ofertar seus escritos. É justamente o ato de fazer uma escrita no espaço público que permite a ele certa localização. É por intermédio de sua escrita que ele consegue manter-se durante tanto tempo em um mesmo lugar, quase como que enraizado na calçada. A escrita parece permitir que ele “crie raízes”, que ele garanta uma espécie de permanência em um mundo onde tudo é evanescente, fragmentado.

 

Figura 1: Oferta do Condicionado: “Constituição política ou carta magna, é um curso que ensina ao homem viver entre os homens., A bíblia sagrada é um curso que prepara o homem na terra para viver no céu.” Ass. O “Condicionado” SP. 16 – 3 – 1999 + 4 ©

A permanência no espaço público é sustentada pela circulação de suas pequenas ofertas. Ao circularem, vão criando uma rede, um público que se movimenta ao redor do Condicionado, pessoas que recebem seus escritos e reconhecem sua autoria e seu lugar ali no meio da calçada. As pessoas não passam somente, elas sentam na cadeira, conversam com ele, recebem seus escritos. A circulação das letras sustenta um lugar no corpo do espaço público.

Se a princípio estamos trabalhando com a hipótese de que um dos possíveis efeitos da letra a partir da escrita do Condicionado seja a inscrição de um lugar sustentado a partir da criação de uma rede de letras, pergunto-me se a letra deve ser tomada como elemento simbólico. No seminário sobre a carta roubada, no qual Lacan trabalha um conto de Edgar Alain Poe, ele destaca a heterogeneidade de registros que incidem sobre letra. A letra como letter/carta, portadora de uma mensagem que se desloca, ora revelando-se, ora ocultando-se entre diferentes personagens do conto, aponta para a incidência da repetição da cadeia significante. O deslocamento é determinado pelo lugar que vem a ocupar entre os personagens esse significante puro, que é a carta roubada.

A letra como litter/lixo aponta para um outro registro, que difere da letra tomada como significante, cuja função aponta para a transmissão de uma mensagem. A litter aponta a materialidade da letra:

E com efeito, voltando a nossos policiais, como poderiam eles apoderar-se da carta, eles que a apanharam no lugar onde estava escondida? Naquilo que reviravam entre os dedos, que outra coisa seguravam eles senão o que não correspondia à descrição que tinham dela? A letter, a litter, uma carta, uma letra, um lixo. Fizeram-se trocadilhos, no cenáculo de Joyce, com a homofonia dessas duas palavras em inglês. A espécie de objeto que os policiais manipulam nesse momento, tampouco lhes revela sua outra natureza, por estar apenas meio rasgada (Lacan, 1956, p. 28).

Lacan aponta essa outra natureza da carta chamando a atenção sobre aquilo que ultrapassa sua aparente função de transportar e transmitir uma mensagem. Segundo Mandil (2003, p. 27), Dupin, o detetive chamado para encontrar a carta roubada, consegue recuperá-la, pois diferentemente dos policiais que a procuram em vão, ele consegue perceber essa dupla natureza da carta/letra. O fato de uma carta não estar inteiramente do lado da mensagem, possuindo também uma materialidade, e sendo portanto manuseável, torna-a passível de ser esquecida, rasgada, guardada, adulterada ou tratada como detrito. Não é a mesma coisa buscar uma carta-letra levando em consideração sua dimensão da mensagem, ou seja, a letra como elemento de um sistema significante, ou buscá-la tomando sua materialidade, sua relação ao objeto: pedaço de papel rabiscado, timbrado, selado ou virado pelo avesso.

Voltando ao Condicionado, a letra que se desloca pelo espaço público pode ser tomada como elemento significante, ou trata-se aí justamente da letra em sua materialidade, em sua relação ao objeto? Letra-objeto que erra pelo espaço público, sem destino certo, sem ponto de parada? O que inscreveria uma diferença entre a letra tomada em sua função de significante e a letra tomada em sua relação ao objeto? Uma diferença é introduzida por meio da possibilidade de endereçamento/leitura da letra. O endereçamento remete a uma alteridade, a uma suposição de saber no Outro, e como tal implica em um laço com o Outro que pode ler, decifrar uma mensagem que diz respeito ao sujeito, mas da qual ele nada sabe. Nela o sujeito articula uma demanda, uma pergunta sobre o traço que ele porta e que o faz amável pelo Outro: o que o Outro deseja? Qual meu lugar no desejo do Outro? Qual o objeto capaz de satisfazer o desejo do Outro? Que objeto eu sou para o desejo do Outro? Perguntas endereçadas ao Outro a partir das quais o sujeito pode fazer circular esse traço que o singulariza, e inscrevê-lo em um outro lugar que não aquele que lhe foi dado pelas relações primárias. Ao retomar uma frase de Goeth, citada por Freud em Totem e tabu (1912) “aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”. Brauer (2003, p. 97) aborda justamente a leitura como possibilidade do sujeito reinscrever-se em outro lugar, e não mais exclusivamente nas relações familiares. Nesse sentido, não basta portar um traço para singularizar-se. É preciso poder lê-lo para que ele circule e seja reafirmado em diferentes lugares, nas relações sociais, de trabalho, de casamento etc. Como diz Lacan: “um ser que pode ler seu traço, isso é suficiente para que ele possa se re-inscrever em outro lugar que não aquele de onde ele o traz. Essa re-inscrição é o lugar que o faz, desde então, dependente de um Outro, cuja estrutura não depende dele”2 (1969, aula de 14 de maio).

No entanto, para que o sujeito possa articular uma pergunta sobre o desejo do Outro é necessário que ao Outro falte alguma coisa. Trata-se de uma falta irredutível, inscrita na relação do sujeito à linguagem. Dessa relação existe sempre um resto impossível de ser imaginarizado, impossível de ser assimilado pela linguagem. Trata-se do que Lacan (1962-1961, p. 373) nomeou como objeto a no seminário sobre a angústia: “se está realmente em sua função, o que articulo, a saber, esse objeto definido como um resto, como o que é irredutível à simbolização no lugar do Outro”. Será que a letra errante do Condicionado, letra que circula pelas margens, supõe um endereçamento? Será que a cadeira vazia a seu lado é um convite à leitura? Será que o Condicionado supõe uma falta no lugar do Outro? Como situar o lugar ocupado pela escrita do condicionado? Perguntas que podem ser mais bem formuladas se levarmos em consideração uma diferenciação de lugares: o lugar do público/leitor e o lugar da produção/escritor.

Do lugar do público/leitor podemos nos perguntar se a escrita do Condicionado oferece apoio à leitura, ou permanece letra errante – Letra “en sufrance3 –, espécie de negócio inconcluso, letra em suspenso que não cessa de não se escrever? Pura exterioridade, objeto-resto que permanece inassimilável, cujo único destino é a lata do lixo?

Do lado da produção/escritor, talvez possamos situar a escrita do Condicionado justamente como uma tentativa de conjugar no ato da escrita a circulação dos restos no espaço público por meio de uma rede formada pelos escritos. Ato que instaura a um só tempo o objeto e a cadeia-rede simbólica na qual ele circula. Desse modo, ele faria retornar ao público o que fica fora de circulação. Uma espécie de retorno no qual o que é resto-encoberto no âmbito sociocultural aparece sem disfarces por meio de um ato individual4. O objeto-resto recebe uma moldura, um enquadramento, e retorna como escrita-oferenda a quem ousar sentar na cadeira vazia.

O público/leitor depara-se com um enigma, e entre fascinado e horrorizado pode arriscar uma pergunta ao que a princípio aparece como ilegível, fora de toda possibilidade de representação, fora de toda possibilidade de compartilhamento. O que o Condicionado faz circular na cultura não oferece possibilidade de reconhecimento, de assimilação; ao contrário, faz furo na maneira como cada um se representa a partir dos laços socioculturais. Nesse sentido, sua escrita instaura um enigma do lado do público. A escrita posta em circulação pelo Condicionado pode suscitar tanto a curiosidade de uma pergunta quanto o estranhamento do horror e da repulsa. Nesse sentido, o lugar que a escrita sustenta faz borda no discurso da civilização, não está nem dentro nem fora, mas circula no espaço do “entre”. Lugar paradoxal, que inverte a relação demanda-endereçamento/leitura, pois quem demanda uma leitura não é aquele que escreve, mas é justamente aquele que está no lugar do público/leitor…

O Condicionado não é um morador de rua como estamos acostumados a representá-los: um mendigo que pede esmolas, que demanda para sobreviver. Ao contrário, é ele quem oferece seus escritos. Ele não demanda, não pede, mas oferece. O público endereça a ele uma pergunta supondo que ali exista um saber sobre o qual não se sabe. É nesse sentido que para o público, o Condicionado ocupa um lugar emblemático, que remete tanto ao sagrado, ao sublime absoluto, quanto ao objeto como resto absoluto descartado pela cultura. Conjugando dois absolutos, ocupa um lugar sem falta, lugar que nunca é totalmente assimilado pela cultura nem totalmente descartado por ela.

 

Não ficará pedra sobre pedra…

Se do lado do público/leitor o Condicionado ocupa esse lugar paradoxal, o que podemos pensar sobre os efeitos da produção escrita do lado daquele que escreve? Se a letra se movimenta, existe algo que não se desloca, está fixo em seu lugar. Trata-se do corpo do Condicionado, que permanece enraizado na calçada há mais de dez anos sempre no mesmo lugar, tal qual uma estátua de pedra. Nesse sentido, temos uma localização marcada ao mesmo tempo pela presença do corpo enraizado na calçada e pela livre circulação das letras no espaço público.Para Lacan, a letra tomada como aquilo que se desloca, aquilo que pode faltar em seu lugar, remete ao simbólico, enquanto o que permanece sempre em seu lugar remete ao real:

o que está escondido nunca é outra coisa senão aquilo que falta em seu lugar, como é expresso na ficha de arquivo de um volume quando ele está perdido na biblioteca. E este, de fato, estando na prateleira ou na estante ao lado, estaria escondido por mais visível que parecesse. É que só se pode dizer que algo falta em seu lugar, a letra, daquilo que pode mudar de lugar, isto é do simbólico. Pois quanto ao real, não importa que perturbação se possa lhe introduzir, ele está sempre em seu lugar (1956, p. 28).

 

Figura 2: O Condicionado "enraizado" na calçada5.

O ato de escrever e “criar raízes” no espaço público aponta para uma possibilidade de localização suportada em uma amarração entre os registros do simbólico e do real, deixando de lado o registro do imaginário, espaço privilegiado do eu.

Diante da palavra sem corpo do profeta Malaquias: “não ficará pedra sobre pedra!”, palavra imposta, palavra parasita, pura exterioridade que faz tudo desmanchar, como é possível sustentar um corpo, um nome, uma palavra, um traço? O que pode garantir a permanência das coisas se até o tempo foi alterado? É interessante notar que não é apenas o corpo do Condicionado que permanece fixado, imóvel, mas também o tempo remete sempre a uma fixidez, pois desde que o Condicionado saiu fora do calendário, foi obrigado a reinventar o tempo a partir de uma referência fixa, o ano de 1999, que se repete inalterado. Podemos formular uma hipótese: diante da voz sem corpo, presença maciça de um código absoluto que não passa pela mediação do semelhante, palavra que fica excluída de um código compartilhado, tudo se desmancha, nada permanece como sendo o mesmo. É preciso então recomeçar: fazer da pedra um corpo, fazer marca original com a caneta da tinta sobre o papel, corrigir o tempo partindo sempre da imobilidade.

 

Figura 3: Oferta do Condicionado – “Corrigido pelo autor em 18-4-1999 + 6©)6.

Fazer um corpo de pedra seria uma maneira de subjetivar, assimilar o quem vem de fora, ou uma maneira de permanecer fixado, colado a um signo do Outro como pura exterioridade? Existem momentos nos quais os suportes identificatórios se rompem, como por exemplo em uma crise de angústia, ou uma crise de despersonalização: “digamos que, fenomenologicamente, a despersonalização começa com o não reconhecimento da imagem especular (…) é porque o que é visto no espelho é angustiante que isso não é apresentável ao reconhecimento do Outro” (Lacan, 1962-1963, p. 128). Nesses momentos, os elementos heterogêneos nos quais se apóiam o funcionamento de nosso corpo podem aparecer como vindos de fora, em sua estranheza. Como já dissemos anteriormente, o humano não é idêntico a si mesmo; existe nele uma alteridade que o constitui. Heidegger (1950) colocava aí a possibilidade do impossível, ou seja, a morte como presença iminente de um vazio; alteridade inapreensível, mas sempre presente, encoberta ou não, nas relações humanas. Blanchot se utiliza de algumas metáforas na abordagem da experiência do espaço literário – o neutro, a Outra noite, o fora –, para de alguma forma se aproximar dessa experiência original posta em evidência na obra, que revela a alteridade e coloca em questão o Eu: “a obra exige do escritor que ele perca a natureza, todo o caráter, e que ao deixar de relacionar-se com os outros e consigo mesmo pela decisão que o faz Eu, converta-se no lugar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal” (1987, p. 50).

Já a psicanálise aponta isso de várias maneiras, seja na inadequação permanente entre o objeto e a satisfação, seja na dependência do humano de elementos externos a si para se constituir, como por exemplo símbolos e imagens; o olhar do Outro, a partir do qual temos acesso a uma imagem corporal que tomamos como própria, como sendo o nosso corpo, o traço, signo do Outro, da escolha de amor do Outro ao qual nos identificamos e nos singularizamos, os objetos pulsionais, objetos híbridos, que são ao mesmo tempo parte do corpo do Outro e parte do corpo do sujeito, objetos que circulam através dos orifícios, das nossas bordas corporais.

Nos momentos de “crise”, o sujeito fica exilado de sua subjetividade, não se reconhece mais como si mesmo, pois não consegue distinguir nem interior nem exterior. A voz que vem do Outro não faz borda no corpo, não recorta um orifício, não estabelece uma fronteira entre o que é próprio e o que não é; ela retorna como vinda de fora, como por exemplo uma alucinação auditiva. Nesses momentos o sujeito pode assimilar o que vem de fora, subjetivando-o ou não. No caso do Condicionado, fazer da pedra um corpo pode ser uma resposta à violência da palavra intrusiva do Outro; no entanto, ela não parece subjetivar, mas ao contrário, parece desumanizar o corpo, apagar a distância entre o signo e o corpo, fazendo corpo da palavra que se fixa em um único significado: pedra. Com esse ato, palavra e corpo perdem a mobilidade; a palavra deixa de circular, emudece, já o corpo deixa de se movimentar, vira coisa, petrifica-se. A tal ponto, que as pernas do Condicionado atrofiaram devido à falta de uso.

Corpo sempre visto e ao mesmo tempo corpo que desaparece na paisagem à qual sempre pertenceu. Reporto-me aqui a Lacan, que no seminário sobre a angústia se utiliza novamente do exemplo da biblioteca para dizer que a falta é sempre apreensível no registro do simbólico; já o real, neste não há falta:

Eu lhes disse, em suma, que não há falta no real, a falta só é apreensível por intermédio do simbólico. É no nível da biblioteca, o que faz com que se possa dizer: aqui o volume tal falta em seu lugar; esse lugar já é um lugar designado pela introdução do simbólico no real. E essa falta de que falo, essa falta que o símbolo, de algum modo preenche facilmente, ela designa o lugar, designa a ausência, presentifica o que não esta aí (Lacan, 1962-1963, p. 142).

O corpo do Condicionado nunca se ausenta, nunca se esconde no estabelecimento de um intervalo ao olhar; mas a escrita aparece justamente como o que circula, como o que coloca em jogo a ausência do corpo. Ela é escrita simbólica que faz circular o objeto-resto na cultura; o objeto a; como a libra de carne, o objeto parcial que se perde, destaca-se do corpo por meio do corte realizado pela ação do significante sobre a carne; perda sempre necessária para que um corpo se constitua. A escrita pode funcionar como possibilidade de subtração do corpo ao olhar onipresente do Outro, que goza do corpo petrificado do Condicionado. Possibilidade de instauração de uma perda, justamente por intermédio do objeto-oferenda, que se separa do corpo do Condicionado para ganhar o mundo, circulando livremente pelas mãos dos que ousarem sentar na cadeira vazia.

 

Referências Bibliográficas

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BLANCHOT. Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.        [ Links ]

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MANDIL, Ram. Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Belo Horizonte: Contra Capa, 2003.        [ Links ]

O ZERO não é vazio. Dirigido por Andrea Menezes Masagão e Marcelo Masagão. São Paulo: Televisão Cultura, 2005, DVD (56 min), som, colorido.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Andrea Menezes Masagão
Estrada do Layer, 440 – 06700-000 – Granja Viana – Cotia/SP
Tel.: (11) 4612-4886
E-mail: andreamasagao@uol.com.br

Recebido em 21/02/06
Aprovado em 05/03/07

 

 

Notas

IPsicanalista; Doutoranda em Psicologia Clínica (USP); Membro do LEPPPI/Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas da Infância/USP).
1Este artigo é parte da pesquisa de doutorado que está sendo realizada pela autora no Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo-USP, sob orientação da professora Drª Jussara Falek Brauer.
2O texto acima é a tradução livre realizada por Jussara Falek Brauer do trecho do seminário D’un Autre à l’autre: “Un être qui peut lire sa trace, cela suffit à ce qu’il puisse se réincrire ailleurs que lá d’o`u il l’a portée. Cette réinscription, c’est là le lieu qui le fait d`es lors dépendant d’un Autre don’t la structure ne dépend pas de lui ”.
3A expressão “Lettre en souffrance” pode designar tanto a letra em sofrimento como também uma carta à espera de um destinatário.
4Em seu livro Tatuagem e marcas corporais, Ana Costa (2003) propõe o recalcamento como uma operação extremamente complexa, que situa as condições de civilização em um ponto de esquecimento dos produtos do corpo da infância. Produtos que Freud situou como nosso maior bem, pois se referem aos valores de nosso Outro primordial. São esses produtos esquecidos, dejeto corporal que se desprende do corpo, que fazem retorno tanto individual quanto socialmente. As polaridades corpo/resto-degradado e símbolo/sublime-sagrado freqüentemente suportam esse tipo de retorno.
5A figura 2 foi retirada do documentário O zero não é vazio, dirigido por Andrea Menezes Masagão e Marcelo Masagão, e realizado em parceria com a televisão Cultura no ano 2005
6A figura 3 foi retirada do documentário O zero não é vazio, dirigido por Andrea Menezes Masagão e Marcelo Masagão, realizado em parceria com a televisão Cultura, no ano 2005.