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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.20 São Paulo jun. 2007

 

ARTIGOS

 

A subjetividade no trabalho com saúde mental

 

Subjectivity and mental health

 

 

Heloisa Helena MarconI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo parte da prática clínica em saúde mental em um hospital público de Porto Alegre, o qual tem como proposta seguir a Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde como forma de respeitar ou incluir a subjetividade na prestação de seus serviços. O objetivo deste artigo é, a partir da apresentação das noções de sujeito de Descartes, de Freud e de Lacan, problematizar a noção de subjetividade, relacionando tais noções de sujeito, e conseqüentemente, de subjetividade, com distintas práticas clínicas.

Palavras-chave: Sujeito, Subjetividade, Psicanálise, Saúde mental, Políticas públicas de saúde.


ABSTRACT

The present article results from the clinical practice in mental health in a public hospital in Porto Alegre, which has as a proposal to follow the National Humanization Policy of the Ministry of Health as a way of respecting or including subjectivities by offering its services. The objective of this article is to discuss the notion of subjectivity in distinct clinical practices, through the presentation of the concept of the subject found in Descartes, Freud and Lacan.

Keywords: Subject, Subjectivity, Psychoanalysis, Mental health, Public health policies.


 

 

“Temos de nos aperceber que não é com a faca que dissecamos,
mas com conceitos. Os conceitos têm sua ordem de realidade
original. Não surgem da experiência humana – senão seriam bem
feitos. As primeiras denominações surgem das próprias palavras,
são instrumentos para delinear as coisas. Toda ciência permanece,
pois, muito tempo nas trevas, entravada na linguagem”

(Lacan, 1986, p. 10).

 

O presente artigo surge da necessidade de conceitualizar questões levantadas pela minha prática em saúde mental ao longo da Residência Integrada em Saúde no Grupo Hospitalar Conceição do ano de 2004 ao ano de 2006.

Dentre muitas questões possíveis para fins deste artigo, deter-me-ei em apenas uma, por ela me parecer ser central no sentido de ser agregadora, isto é, ponto de convergência de muitas questões e, ao mesmo tempo, abertura para muitas outras – a saber, a subjetividade no trabalho com saúde mental.

Atualmente fala-se muito da necessidade de respeitar ou de levar em conta a subjetividade, no caso, uma vez que estamos no âmbito da saúde, a subjetividade do paciente ou usuário do sistema de saúde.

A Política Nacional de Humanização – PNH – do Sistema Único de Saúde – SUS –, que mesmo não sendo uma proposta que diga respeito especificamente à saúde mental, mas à construção de novos modelos de gestão e atenção na saúde em geral, parece referir-se à questão da subjetividade. Digo parece referir-se, uma vez que quando se fala em PNH ou simplesmente em humanização ou processo de humanização do atendimento, vem junto, subentendida, certa noção de humano, de sujeito e de subjetividade, mas tais noções não aparecem de modo explícito.

Nesse sentido, poder-se-ia pensar até mesmo que nosso sistema de saúde – o SUS – foi estruturado visando respeitar a subjetividade de seus usuários no momento em que tem como base os princípios da integralidade, eqüidade e universalidade, de modo que seus usuários devem ser atendidos em sua integralidade, isto é, nas suas diferentes e complexas necessidades, recebendo, assim, em extensão e intensão1 o cuidado de que precisam, mas de modo que todos tenham igual acesso aos serviços de saúde. Um sistema de saúde estruturado tal como hoje se encontra teria, então, como efeito a humanização de seus serviços, do atendimento. Mas de que conceito de subjetividade se trata quando se fala nesse processo de humanização?

Afinal, do que se trata quando se fala em subjetividade? Será que, independente de quem fala, trata-se sempre da mesma coisa, isto é, do mesmo conceito de subjetividade?

Sabe-se que diferentes conceitos partem de diferentes campos epistemológicos, atribuindo diferentes funções – no caso, à subjetividade – e trazem, com isso, diferentes efeitos na prática em saúde – no caso, saúde mental.

É de tal modo arraigada – quase “naturalizada” – a concepção de sujeito, da qual deriva a de subjetividade, que a quase totalidade de nós, homens e mulheres ocidentais que vivem no século XXI, sequer imagina que se trata de uma construção particular a que se chegou ao longo da história, e que advém como resposta a questões e problemas aos quais se propõe resolver.

Portanto, esta concepção de sujeito não é natural – o que aqui quer dizer, ela não é algo da “natureza do homem” (o que quer que isso possa querer dizer), ou inata, isto é, ela não é da ordem de um dado da natureza e, por isso, determinadamente óbvia e necessária, apesar de que toda ciência atual que se construa a partir desta concepção se esforce para sustentá-la com esse suposto estatuto de natureza.

A noção de sujeito de que se está falando aqui é a que foi proposta por Descartes em seu cogito. A célebre formulação de Descartes, “cogito ergo sum”, de seu Discurso do Método tem diferentes interpretações, portanto também diferentes traduções. “Penso, logo sou” e “Penso, logo existo” são as mais conhecidas. A questão do estatuto do articulador “logo”, presente nas proposições recém-referidas, é o que esclarece do que se trata para Descartes, uma vez que não se trata de uma proposição dedutiva, que é justo o que o “logo” leva imediatamente a pensar. Assim, não é porque penso que sou ou existo, mas o estatuto de meu ser ou de meu existir é todo dado pelo pensar. Por isso, Vallejo e Magalhães afirmam que o “cogito ergo sum” deve ser tomado como uma proposição de natureza analítica “na qual o que se formula no predicado tem que estar incluído no sujeito do enunciado” (1981, p. 15). Dessa forma, o pensar envolve em si mesmo o ser ou existir, de modo que não haveria nada da ordem do ser ou do existir do sujeito fora desse pensar.

É justamente na pura reflexividade de Descartes que se postula uma perfeita coincidência do sujeito consigo mesmo e brota a concepção do sujeito como agente absoluto, ponto de partida da totalidade de seus atos e plenamente coincidente consigo mesmo. O sujeito cartesiano não é marcado por nenhuma ruptura, há uma perfeita possibilidade de que o sujeito coincida consigo mesmo na reflexão. As duas teses, a do sujeito agente e a do sujeito adequado, são básicas na colocação tradicional da noção de sujeito (1981, p. 15).

No sentido que aqui interessa, Descartes propõe que nossa existência é dada no registro da consciência, no registro do pensamento, da reflexão, de modo que há uma coincidência entre eu, sujeito, consciência e pensamento, pois o sujeito identifica-se com o cogito, e por meio deste se identifica com a consciência. Trata-se, portanto, de um sujeito agente, centrado no cogito – “com Freud faz irrupção uma nova perspectiva que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se confunde com o indivíduo” (Lacan, 1985, p. 16).

Com o descobrimento do inconsciente freudiano, o modo como Freud conceitua o inconsciente em seu sistema de pensamento altera de forma completa a conceitualização tradicional – pré-freudiana – de sujeito. Tal descoberta altera de tal modo a noção de sujeito, que Lacan, em seu segundo seminário, a nomeia de “revolução coperniciana” (Lacan, 1985, p. 10). Na teoria freudiana, o sujeito é um sujeito fendido, é um sujeito marcado por um intervalo aberto entre as tópicas – pré-consciente, consciente e inconsciente. É um sujeito subordinado a uma outra cena, a um outro lugar além dele – o inconsciente –, destinado a uma não-convergência consigo mesmo, a “uma impossibilidade de nomeação do sujeito como área completa ou adequada” (Vallejo e Magalhães, 1981, p. 17), uma vez que o sujeito é determinado a partir de uma ordem inconsciente. É esse – de que eu ou sujeito não é igual à consciência, mas é determinado a partir do inconsciente, que o escapa – o descentramento que permite Lacan nomear a descoberta freudiana do inconsciente de revolução coperniciana, pois de fato descentra, tira do centro o sujeito, até então idêntico ao eu ou à consciência. De acordo com Lacan, “tudo o que Freud escreveu tinha por meta restabelecer a perspectiva exata da excentricidade do sujeito com relação ao eu” (Lacan, 1985, p. 63). Outra vez a questão aparece em função do centro anteriormente – vimos que justamente em Descartes – atribuído ao sujeito com relação ao eu e à consciência. Centro que formava uma unidade sem rupturas. Em Freud, no entanto, o sujeito está fora do centro, é excêntrico ao eu. Mas como pode isso? Onde está, então, o sujeito no sistema conceitual de Freud? Justamente no inconsciente. O eu, sim, segue na ordem da consciência. Temos, então, que o sujeito, a partir de Freud, é o sujeito do inconsciente, e o eu é que é da consciência! É por isso que afirma Lacan:

O inconsciente escapa totalmente a este círculo de certezas no qual o homem se reconhece como um eu. É fora deste campo que existe algo que tem todos os direitos de se expressar por [eu] e que demonstra este direito pelo fato de vir à luz expressando-se a título de [eu]. Justamente aquilo que é o mais não-reconhecido no campo do eu que na análise se chega a formular como sendo [eu] propriamente dito (Lacan, 1985, p. 15).

E um pouco adiante, Lacan completa seu raciocínio a respeito da revolução freudiana: “tudo se organiza, cada vez mais, numa dialética em que [eu] é distinto do eu” (Lacan, 1985, p. 15). Para fazer notar esta diferença entre estes distintos “eu”, Lacan se vale de um recurso de que a língua francesa dispõe: usa o pronome [je] (aqui traduzido e referido sempre como [eu]) para referir-se ao sujeito do inconsciente, e o moi (aqui traduzido e referido sempre como eu) para referir-se ao eu como função da consciência, ligado ao imaginário, embora ambos sejam pronomes pessoais que designem a primeira pessoa do singular – portanto, que designem eu.

É de fundamental importância ressaltar que esse [eu] do qual fala Lacan como o [eu] da ordem do inconsciente é o que, na psicanálise, vai se formular como sendo o [eu] propriamente dito, ou o “eu” que importa no sentido de ser o mais próprio de cada sujeito. No entanto, na mesma frase, Lacan o coloca como o mais não-reconhecido. Como pode? Qual o sentido disto? É que estamos realmente frente a uma subversão do sujeito em seu sentido cartesiano. O sujeito ou o eu que importa, que é determinante, não é mais o eu da consciência reflexiva, autônomo, auto-suficiente, que se reconhece em seus pensamentos e ações, mas esse sujeito que escapa à consciência, às suas certezas, isso que alguém não reconhece como sendo ele mesmo ou si mesmo, como Freud apresentou em seu Unheimlich (O Sinistro). Isso é o [eu]. Dito ainda de outra forma, “o núcleo de nosso ser não coincide com o eu. Eis o sentido da experiência analítica” (Lacan, 1985, p. 62),

É assim que Lacan, fazendo uso das ferramentas conceituais de sua época, propõe um retorno à obra de Freud e realiza uma releitura desta. O projeto em si – a idéia de descobrir a determinação própria do psiquismo – é o mesmo em Freud e em Lacan, por isso trata-se de uma releitura. No entanto, Ogilvie destaca o que ele considera um traço de originalidade no projeto de Lacan, a saber, “é o fato de abordar essa questão pelo viés da trama filosófica que ela representa, ordem de problemas da qual Freud, ao contrário, sempre se manteve cuidadosamente à distância” (1988, p. 31).

Retomemos ainda uma vez o cogito cartesiano para ver o que Lacan, a partir de seu referido traço, propõe como leitura possível do descentramento do sujeito já efetuado por Freud.

Lacan, de acordo com Vallejo e Magalhães, faz duas formulações para caracterizar, no lugar do cogito cartesiano (“penso, logo sou” ou “penso, logo existo”), a estrutura do cogito freudiano. “A primeira é: penso onde não sou, portanto, sou onde não penso” (Vallejo e Magalhães, 1981, p. 155), para marcar o sujeito como fendido – ele está dividido entre ser e pensar – e para marcar um sujeito subordinado a uma estrutura que o determina – ao invés de ser um sujeito agente, que se determina. No entanto, esta primeira formulação, por sua ambigüidade, deixa espaço para entender-se o inconsciente como o irracional – “sou onde não penso” –, e de modo algum é esse o intuito de Lacan, pois seria retornar à concepção da qual se quer sair: todo o esforço de Freud e de Lacan, como já afirmado anteriormente, é o de “buscar o tipo de determinismo adaptado àquilo que se apresenta, justamente, como fugaz” (Ogilvie, 1988, p. 19), a realidade psíquica. E se tal determinismo é buscado, é porque a realidade psíquica não é o irracional – portanto, o inconsciente também não.

A segunda formulação lacaniana para o cogito freudiano é: “eu não sou ali onde sou o brinquedo de meu pensamento, penso o que sou ali onde não me penso pensar” (Vallejo e Magalhães, 1981, p. 155). No “ali onde não me penso pensar” desta nova formulação há o pensamento inconsciente – e não mais o irracional –, que se opõe à reflexividade da consciência cartesiana – “o pensamento inconsciente é um descentramento das funções do sujeito porque funciona a expensas de uma ordem que ele, o sujeito, não regula e que, portanto, o determina” (Vallejo e Magalhães, 1981, p.155). No entanto, por não ser consciente nem por isso é menos estruturado.

Ogilvie mostra o percurso de Lacan, desde sua Tese de Medicina e dos trabalhos que dela dependem diretamente, para determinar tal estrutura. Ele nos mostra que Lacan constitui a nova definição de sujeito

articulando o que até então nunca fora relacionado: uma caracterização antropológica, uma deficiência fisiológica, aberrações estruturais de comportamento (as formações do inconsciente), uma linguagem. Seguiu-se daí, paradoxalmente, que escutar o sujeito não permitia ouvi-lo, enfim, dizer sua verdade, mas verificou-se, ao contrário, segundo a fórmula de Lacan, que sua estrutura característica provinha do fato de que isso já fala dele desde sempre (Ogilvie, 1988, p. 126).

A estrutura característica, então – isso [ça, id, es] que já fala desde sempre – é a estrutura da linguagem. Chaves propõe, também a partir da obra de Ogilvie, que o percurso de Lacan até a estrutura da linguagem é “inicialmente determinado pelo ‘aspecto social’, em seguida pela ‘dimensão imaginária’, e por último, pela ‘dimensão da linguagem’, subvertido assim ao significante” (2002, p. 68).

Sobre a substancial importância da linguagem, dos símbolos, na vida do homem, Lacan afirma que “os símbolos efetivamente envolvem a vida do homem numa rede tão total que conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão gerá-lo ‘em carne e osso’” (1998, p. 280).

A linguagem está aí desde antes do nascimento de cada um, e nascemos nela antes de nascermos propriamente “em carne e osso”: já existíamos no desejo de nossos pais, no que eles falavam do que seríamos, de como eles gostariam que fôssemos.

É nesse sentido que Lacan afirma que “o inconsciente é o discurso do outro” (1998, p. 266), bem como que “o inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente” (p. 260); falta porque veio do outro, no caso, do Outro (que é um conceito de Lacan que visa justamente dar conta desse Outro, que não corresponde propriamente a um outro ser humano, isto é, a um outro semelhante, mas a esse Outro do discurso de cada um que fala).

Retomemos o percurso até aqui traçado. Do sujeito cartesiano, centrado na consciência reflexiva, no cogito, chegamos ao sujeito freudiano, descentrado, situado fora desse centro da consciência e determinado pelo inconsciente – sujeito do inconsciente –, para o qual, em Lacan, permanece a mesma excentricidade – do sujeito do inconsciente [eu], obviamente – em relação ao eu. Então, o que é acrescentado por Lacan?

Seguindo as pistas de Freud, Lacan propõe, como vimos acima, o inconsciente estruturado como linguagem – regido pelas leis da linguagem –, e o efeito disso é que o sujeito do inconsciente é, então, o sujeito do discurso ou da fala.

No entanto, como já antecipado na distinção efetuada por Lacan entre [eu] e eu, o sujeito do discurso ou da fala não corresponde àquele que fala – o eu. No momento em que alguém fala, há aquele que fala e aquele de quem se fala, e não há coincidência entre eles. Trata-se da diferença entre, por um lado, esse que fala – eu –, que corresponde ao sujeito do enunciado, e por outro, esse de quem se fala, o sujeito do inconsciente – [eu] – ou sujeito da enunciação.

Podemos nos perguntar: mas como pode haver dois sujeitos quando alguém fala? É que, para a psicanálise, diferentemente do que entendem outras correntes de pensamento, a fala não apenas comunica algo – um conteúdo –, mas antes disso, por meio dessa mensagem o emissor se posiciona em um lugar determinado em relação ao receptor e ao código.

Assim, afirma Lacan:

A forma pela qual se exprime a linguagem define, por si só, a subjetividade. Ela diz: “tu irás por aqui, e quando vires tal e tal, seguirás por ali”. Em outras palavras, refere-se ao discurso do outro. Como tal ela se envolve na mais alta função da fala, na medida em que implica seu autor ao investir seu destinatário de uma nova realidade: por exemplo, quando por um “tu és minha mulher” um sujeito marca-se como sendo o homem do conjungo. Essa é, com efeito, a forma essencial de onde deriva toda fala humana, em vez de chegar a ela (1998, p. 299).

Portanto, não é que se chegue com a fala a simplesmente dizer algo, um conteúdo, para um outro, mas que a fala situa e diz algo do próprio sujeito quando ele fala que não corresponde ao conteúdo da mensagem. E isso que diz ou situa o próprio sujeito na relação da fala é o sujeito da enunciação – “pois, nesta [na fala], a função da linguagem não é informar, mas evocar. O que busco na fala é a resposta do outro” (Lacan, 1998, p. 301). Encontramos o sujeito da enunciação no modo como ele situa o outro para quem se dirige – o Outro, na verdade –, no que ele demanda para esse outro a quem dirige sua fala, pois é “marca de nosso próprio pensamento, [...] que a fala sempre inclui subjetivamente sua resposta” (p. 299), o que quer dizer que inclui justamente porque o outro de que aqui se trata não é um outro semelhante, mas é o Outro de cada um, o Outro da linguagem, o Outro inconsciente; é ele que já está incluído na resposta da fala de cada um. E o lugar que um dá para o outro – semelhante –, para quem fala, é determinado por esse Outro de cada um. “Por conseguinte, vê-se que o problema é o das relações, no sujeito, entre a fala e a linguagem” (p. 281). Sim, pois dessa forma, somos forçados a admitir que quando falamos dizemos mais e outra coisa do que o que pensamos falar.

É importante assinalar, portanto, uma vez que a função da fala não é propriamente emitir um conteúdo, não sendo dessa forma funcional, que há uma “antinomia imanente às relações da fala com a linguagem. À medida que a linguagem se torna mais funcional, ela se torna imprópria para a fala e, ao se nos tornar demasiadamente particular, perde sua função de linguagem” (Lacan, 1998, p. 300). A fala é, portanto, o modo particular, o modo como cada um faz uso da linguagem.

Assim, “o que é redundância para a informação é precisamente aquilo que, na fala, faz as vezes de ressonâncias” (p. 300). O particular de cada um é o que se repete, o que ressoa na fala. Encontramos essas ressonâncias na fonética; e o significante é, na lingüística, o elemento fonemático, sonoro. É justo por isso que Lacan inverte o algoritmo do signo proposto por Ferdinand de Saussure, no qual o significado ficava acima da barra e o significante abaixo. Para Lacan, o significante fica acima da barra por ser o elemento que se repete na cadeia discursiva. Por isso é possível afirmar que a lógica do inconsciente é a lógica do significante, como vemos abaixo.

Encontramos em Ogilvie uma importante citação de Lacan em seu Seminário 11: “o inconsciente depende da lógica pura, em outras palavras, do significante” (Ogilvie, 1988, p. 41).

Sujeito é, então, sujeito do inconsciente, que é sinônimo de sujeito do discurso, sujeito da enunciação, sujeito do significante. Mas que diferença faz ter esse ou outro dos conceitos de sujeito – de subjetividade, conseqüentemente – aqui apresentados? Como consta na epígrafe deste artigo, é com os conceitos que dissecamos as coisas. Desses conceitos teremos uma prática clínica ou outra.

Toda prática clínica que toma como base o conceito de sujeito cartesiano não fará diferença entre fala e comunicação, pois considerará que esse que procura atendimento sabe o que diz; e se diz que procura atendimento porque, por exemplo, tem alucinações – ou porque sua esposa, que o leva, assim o diz –, esse que escuta toma esse dito como verdade, como certo, na medida em que se trata de um sujeito reflexivo, e que portanto sabe dizer ou comunicar esse conteúdo que pretende comunicar. Nesse mesmo sentido, podemos pensar que não fará diferença alguma com relação a esse conteúdo informacional se ele é dito por um – o paciente aqui em questão – ou pela esposa, a não ser no caso de o paciente estar em surto, quando será preciso, então, que outros informem esse conteúdo por ele para garantir a verdade. Nessa mesma lógica, não faz diferença alguma para o tratamento – o que vai ser ali trabalhado – se o paciente combina um horário para atendimento e não comparece, pois no caso dele estar internado no hospital-dia do GHC, por exemplo, a maioria dos técnicos o chama na sala dos pacientes para o atendimento.

No entanto, se tomamos como referência para o trabalho clínico em saúde mental o conceito de sujeito da psicanálise, que resulta em uma necessária diferenciação entre fala e comunicação, o que importará no tratamento é justamente o que é falado – ou evitado de falar –, e não propriamente o conteúdo comunicado. Vimos também que quando o sujeito fala é que podemos ter acesso ao sujeito do inconsciente – o [eu] ou sujeito da enunciação –; portanto, não se trata de que não haja conteúdo comunicado ou que ele não interesse: o que define a posição particular de cada um é o modo como fala – é esse de quem se fala –, e não exatamente aquilo que é falado. Portanto, o fato de um paciente ser trazido pela esposa não é um fato qualquer, bem como se ele não comparece nos horários marcados, pois esse ser trazido, bem como esse não comparecer, podem ter diferentes sentidos, dependendo de quem se tratar. Assim que chamar os pacientes indistintamente para seu atendimento – além de partir do pressuposto de que ele não pode ou não consegue organizar seus horários, o que não é sempre o caso, e mesmo quando for, é uma questão que merece ser trabalhada, já que na vida é preciso conseguir cumprir horários – certamente não parece ser uma boa regra.

Tomemos um exemplo específico de um paciente internado no hospital-dia do GHC durante meu período de residência.

Trata-se de um homem de 33 anos, que conforme relatado por ele e pela esposa, interna por depressão e episódios convulsivos, bem como delírio paranóide e alucinações, e também episódios de agressão física à esposa e filhos.

Esse paciente, desde o início de seus atendimentos comigo, apresentava dificuldade em comparecer aos horários marcados, bem como não via sentido em falar a alguém do que lhe sucedia. Ele também não fazia diferença entre falar para um médico, para uma psicóloga, para a terapeuta ocupacional ou enfermeira. Durante o tratamento, ele teve alguns momentos de maior desorganização mental, quando estava se aproximando de questões que, segundo ele, nunca tinha conseguido falar. Nesses momentos, por várias vezes lhe ofereci outro horário na semana, além daquele combinado. No entanto, mesmo estando extremamente desorganizado e angustiado, ele jamais quis marcar outro horário, alegando que todos os seus colegas eram atendidos apenas uma vez por semana e que ele era igual a eles.

A questão desse paciente, devido a sua estrutura – trata-se de um psicótico –, é exatamente a falta de recursos para lidar com a diferença. Assim, aceitar seus pedidos e mantê-lo nessa igualdade com seus colegas é não tomar o que há de próprio nesse sujeito e seguir estando de acordo com o que lhe causa sofrimento, deixando-o seguir no mesmo sofrimento. Essa questão aparece na indiferença (acima referida) que ele fazia entre os diferentes técnicos e os espaços do tratamento, assim como no número de entrevistas e no fato de a maioria dos técnicos chamar os pacientes para o atendimento (também já referido), pois ele inicialmente reclamava que eu não o chamava.

Podemos ver, então, que a questão não é o conteúdo que é falado, pois não há problema algum em um paciente dizer que quer ser tratado igualmente aos outros, como ele afirmava quando eu não o chamava para o atendimento, por exemplo. A questão é a que vem tal conteúdo, o que é dito ao se dizer tal coisa. E responder desde uma referência teórica ou outra produz, portanto, diferentes efeitos.

Vimos que só a fala particulariza, permite trabalhar a partir e com o que cada um tem de particular, a linguagem como comunicação não. Então, quando ficamos no registro meramente da linguagem – como é o caso de todas as terapias que trabalham com o que o paciente diz, mas tomam esses ditos como conteúdos informacionais e não como falas – não levamos em conta, não estamos trabalhando com o particular daquele sujeito, mas com algo que é indiferente a que seja este ou outro sujeito que diz aquilo que está sendo dito. Estamos no registro da generalidade, da igualdade.

O mais próprio do ser humano, o que o diferencia dos animais, é o fato de ser um ser de fala ou “fala-ser” (expressão de Lacan: parlêtre). O uso que o homem pode fazer da linguagem é o que define, na psicanálise, sua humanidade.

De que conceito de humano se parte para se chegar ao de humanização nas políticas e processos de humanização da saúde? Como já anteriormente apontado, tal proposta de humanização traz junto, subentendido, também algum conceito de sujeito. Qual seria esse conceito? Sujeito seria equivalente a humano nessa proposta?

Eduardo Mendes Ribeiro, em seu artigo Humanizasus: um projeto coletivo, apresenta os princípios e diretrizes que orientam a Política Nacional de Humanização. No entanto, o conceito de sujeito do qual ele parte para falar de tal processo não é por ele explicitado. É possível, entretanto, pensar que se trate ali do sujeito cartesiano, uma vez que a contraposição que ele faz é entre a racionalidade objetiva – de onde ele deriva o uso dos conhecimentos científicos e aparatos tecnológicos – e a tradição clínica – onde ele inclui o que denomina de relações intersubjetivas. Ele assim o afirma: “o desafio a ser enfrentado contemporaneamente é o de evitar a supervalorização da dimensão científico-tecnológica no campo da saúde, em detrimento da tradição clínica, pautada pelas relações intersubjetivas” (2004, p. 81).

E de que se trata quando se fala aqui de intersubjetividade ou relações intersubjetivas?

Encontramos um indicativo da resposta à pergunta recém-levantada seguindo mais adiante no texto de Eduardo Mendes Ribeiro:

tão ou mais importante do que discutir o valor e a definição de humanização, é apresentar situações e dispositivos concretos que produzem experiências “humanizadoras”, (...) experiências que, quando implementadas e divulgadas, despertam os atores sociais envolvidos para o reconhecimento de seus direitos, e para a viabilidade de propor novas formas de relação em que se sintam exercendo mais plenamente sua cidadania (p. 83-84).

Relações intersubjetivas, nesse contexto, parecem ser relações entre sujeitos tomados como cidadãos; portanto, sujeitos ou indivíduos centrados na consciência reflexiva cartesiana, na qual sujeito ou indivíduos e humano ou ser humano coincidem, pois o que define algo como sujeito ou como humano é seu pensar. As relações intersubjetivas, dessa forma, seriam as relações entre esses sujeitos da consciência reflexiva, sujeitos agentes e centrados no cogito, sinônimo de relações entre homens ou cidadãos (atores sociais).

A partir de práticas dos trabalhadores em saúde mental – referidas ao longo deste estudo –, bem como do artigo de Eduardo Mendes Ribeiro, extraído do volume dedicado ao tema da Humanização no Boletim da Saúde (da Escola de Saúde Pública do RS), conclui-se que o conceito de sujeito, e conseqüentemente o de subjetividade que norteia tais práticas e tais propostas são, respectivamente, o sujeito cartesiano (racional e reflexivo) e a subjetividade como sinônimo de individualidade; relações intersubjetivas equivalendo, dessa forma, a relações entre homens, indivíduos ou cidadãos.

No entanto, enquanto o mais particular do homem é o fato de ser um “fala-ser”, será que para que se possa humanizar o atendimento em saúde mental – e mesmo o atendimento na saúde em geral – não seria preciso levar em conta esta dimensão da fala, do particular?

Poder-se-ia, então, levantar a questão de como escutar a fala de cada um nos serviços públicos de saúde mental, dadas as particularidades técnicas do trabalho clínico nesse ambulatório: tempo de duração dos atendimentos, sua freqüência, ausência de pagamento diretamente a quem realiza o trabalho, o setting sem divã, o pedido de tratamento ser dirigido a uma instituição e não a um nome, dentre outros? Seria possível?

Se, como vimos, o que define a posição particular de cada um é o modo como fala (esse de quem se fala, o sujeito da enunciação), então mesmo em uma instituição pública de saúde, com seu particular funcionamento e suas limitações, tendo alguém que escute esse de quem se fala e suporte sua enunciação, a subjetividade em seu sentido mais radical, no qual ela guarda o que há de mais humano no homem, é levada em conta.

Nas palavras de Goidanich: “falar-se, constituir-se a partir de um lugar particular da inserção na linguagem, tais parecem ser os aspectos que, muito mais do que um divã, um número mínimo de sessões por semana ou o pagamento de honorários específicos indicam a possibilidade de um trabalho psicanalítico (2001, p. 29).

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Heloisa Helena Marcon
Piazza Gransci, 9 – 61100 – Gabicce Mare (PU) – Itália
E-mail: heloisamarcon@yahoo.com.br

Recebido em 23/05/06
Versão revisada recebida em 12/09/06
Aprovado em 05/03/07

 

 

Notas

IPsicanalista (Participante da APPOA); Mestre em Filosofia (UFRGS); Especialista em Saúde Mental (RIS-GHC).
1Extensão e intensão no sentido aproximado de horizontalidade e verticalidade, respectivamente; ou seja, em quantidade e intensidade ou qualidade adequadas a cada usuário.