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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.20 São Paulo jun. 2007

 

RESENHAS

 

Sobre a atualidade do mal-estar

 

 

Érico Bruno Viana Campos1

Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 

BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 304 p. ISBN: 852000492X.

A interpretação da Cultura é uma das temáticas mais tradicionais de “aplicação” da Psicanálise. Inaugurada e propagada por Freud, constitui um dos pontos fundamentais de circunscrição do campo de saber psicanalítico. Embora tenha sido alvo de críticas contundentes por parte de cientistas sociais e tenha perdido sua importância em alguns setores do movimento psicanalítico, a relação entre Psicanálise e Cultura tem sido resgatada nos últimos anos por vários autores, principalmente por aqueles que se inserem na linhagem da psicanálise francesa.

Embora haja razões intrínsecas ao movimento psicanalítico que justifiquem esse resgate, não podemos deixar de observar que o reforço que as interpretações psicanalíticas da Cultura ganharam decorre principalmente de uma série de questões colocadas pelo contexto sócio-histórico da contemporaneidade. A explosão da violência, as novas formas de sofrimento psíquico, a biologização do social e a crise da psicanálise estão no centro das preocupações desse começo de século XXI. O livro de Joel Birman ocupa-se dessa complexa interpenetração entre saberes, ideologias e práticas que configuram o mal-estar na atualidade.

Em sua terceira edição, esse livro pode ser considerado um clássico, devido a seu impacto na formação da nova geração de psicanalistas e psicólogos brasileiros, e pela virtude de amarrar em um todo coerente uma série de tramas conceituais abertas pelas novas formas de subjetivação e pelos desdobramentos da pós-modernidade.

A proposta de Birman possui uma dupla finalidade. Parte de uma posição genuinamente freudiana acerca da interface Psicanálise e Cultura, acreditando que é na análise dos limites e impasses desses dois campos que se possa chegar a uma contribuição mútua. Esse exercício é disparado por um problema bastante pertinente, a saber, a insuficiência dos instrumentos interpretativos da psicanálise no que concerne às novas modalidades de inscrição das subjetividades na atualidade. Nesse sentido, esboçam-se duas linhas de investigação. Por um lado, trata-se de pensar as condições sócio-históricas que organizam as formas de subjetivação na atualidade, caracterizando as novas formas do mal-estar na cultura; por outro, refletir sobre os fatores extrínsecos e intrínsecos à teoria psicanalítica que motivem a crise da psicanálise na contemporaneidade.

Sendo uma coletânea de diversos artigos e notas para palestras que abordam diferentes aspectos de uma linha de pesquisa, a articulação geral das temáticas tratadas pelo livro é costurada em sua apresentação, delineando os quatro eixos que configuram os destinos do desejo no mal-estar da atualidade: (1) os impasses da psicanálise; (2) as novas formas de subjetivação; (3) as drogas; (4) a violência.

Birman parte da obra fundamental acerca da interpretação psicanalítica da cultura, O mal-estar na civilização (Freud, 1929), colocando-a em perspectiva com o mal-estar contemporâneo, por meio de um referencial analítico foucaultiano. A questão colocada é: se Freud analisou e descreveu as características do mal-estar inerente à condição trágica do sujeito moderno, qual seria o estatuto da questão hoje? Tendo como baliza uma concepção de pós-modernidade, oriunda da constelação teórica francesa por onde circula, Birman estabelece uma ruptura epistemológica para pensar o estatuto da concepção de sujeito no devir histórico.

A apropriação feita pelo autor da idéia de ruptura epistemológica de Bachelard (2001) já é de longa data, remonta a seus estudos sobre a constituição do pensamento freudiano (Birman, 1989, 1991). No texto ora resenhado pode-se observar claramente a leitura estruturalista desse conceito, estabelecendo duas epistemes distintas, que configuram as possibilidades de subjetivação em um determinado contexto social e cultural. Desse modo, configura-se a tese de que a pós-modernidade seria decorrência da falência dos projetos sociais de superação do mal-estar, levando à ruína do sujeito epistêmico e do indivíduo social, e conseqüente ameaça de niilismo de relativismo cultural. A fragmentação da subjetividade constituiria, assim, o aspecto fundamental do mal-estar na atualidade.

Nesse aspecto, Birman apóia-se no discurso sobre a pós-modernidade que ganhou relevo nas ciências humanas nas últimas décadas (Baudrillard, 2000; Giddens, 1991; Bauman, 1998). Os principais autores de referência são Debord (1997) e Lasch (1984), com os conceitos de sociedade do espetáculo e cultura do narcisismo, respectivamente. Deles Birman extrai o essencial das descrições sobre a sociedade pós-moderna em suas características de exibicionismo, auto-centramento e esvaziamento das trocas intersubjetivas. A tese defendida é que a fragmentação da subjetividade trouxe como reação o autocentramento do sujeito no Eu, porém de uma forma distinta do individualismo moderno. Se a subjetividade moderna constitui-se no duplo registro da interioridade e da reflexão sobre si mesmo, a subjetividade contemporânea sustenta o paradoxo de um autocentramento voltado para a exterioridade, em que a dimensão estética, dada pelo olhar do outro, ganha destaque.

O interessante da tese de Birman é sua interpretação desse conjunto de características pelo viés da compreensão psicanalítica de sujeito. Defende, então, uma interpretação do narcisismo, espetáculo e consumo pelo prisma da psicanálise. A relação dual narcísica, na mortal armadilha da ilusão da completude imaginária, é convocada como eixo estruturante da subjetivação contemporânea. Deveríamos, portanto, passar do paradigma da estrutura neurótica para analisar o potencial heurístico da perversão em lançar luz sobre o mal-estar na atualidade. A idéia de uma captura da subjetividade contemporânea no registro do Imaginário, em detrimento do Simbólico, constitui a principal contribuição do autor para uma interpretação psicanalítica da Cultura.

Uma decorrência direta dessa interpretação, que parte de uma analogia entre o plano do social e da psicopatologia, é a conclusão de que a ética da violência que caracteriza o mal-estar na atualidade deve ser entendida no campo da anulação da alteridade do outro e de sua utilização como objeto de predação e gozo. Não sendo à toa, portanto, que as chamadas psicopatologias contemporâneas se organizem em torno dessa problemática. Dessa forma, manifestações tão díspares como a depressão, a síndrome do pânico e as toxicomanias &– onde podemos incluir também os distúrbios psicossomáticos e da imagem corporal &– encontram, na interpretação de Birman, o estatuto de sintomas no tecido social de um mesmo ordenamento lógico da subjetivação contemporânea. Seriam resultado dos desdobramentos da exigência de reconhecimento imaginário da completude, veiculado pela fetichização e reificação do outro &– devorado e descartado na fluidez das identidades efêmeras da contemporaneidade.

Munido desse referencial teórico, Birman traz uma série de contribuições importantes para o campo das psicopatologias contemporâneas, quer seja na circunscrição da problemática das toxicomanias, quer seja na denúncia da medicalização social.

Esse último ponto, a propósito, é a via de articulação com a outra grande temática do livro, que é entender a assim chamada crise da psicanálise. Birman faz uma análise muito interessante do avanço da psicofarmacologia na fundamentação do discurso médico, denunciando a ideologia por trás das novas tecnologias de gerenciamento do sofrimento. Nesse ponto encontramos a vertente mais política do trabalho de Birman, aquela que muitas vezes infelizmente é tomada também de forma ideológica, fazendo com que uma importante posição de resistência e revelação de contradições se torne uma militância estéril.

É importante lembrar, contudo, a denúncia que Birman faz ao próprio campo da psicanálise, naquilo que identifica como concessões que traem a essência de seu campo de saber. De forma bastante resumida, o argumento pode ser expresso em uma dupla retirada: (1) o abandono do social em detrimento do individual; (2) o abandono do corpo e dos afetos em detrimento da linguagem. Esses posicionamentos do movimento psicanalítico contribuíram sobremaneira para o movimento de retirada do sujeito, que caracteriza o mal-estar na pós-modernidade.

Embora não possamos nos estender sobre todos esses aspectos, é importante assinalar o esquema teórico que integra algumas das dimensões em jogo no campo de forças descrito pelo autor. Segundo ele, há um perigoso conluio na retirada do Sujeito na atualidade, que se alimenta do ciclo vicioso entre: (1) a exigência performática da sociedade de consumo ditada pelos modos de subjetivação da pós-modernidade; (2) a posição de recusa do indivíduo em qualquer penetração na dimensão propriamente psíquica e simbólica do sofrimento, cujo maior exemplo é o quadro depressivo; (3) os rótulos sintomatológicos e sem etiologia subjetiva fornecidos pelos manuais diagnósticos e estatísticos da psiquiatria organicista.

Voltando a abordar a questão pelo campo da psicopatologia psicanalítica e a relação do Indivíduo com a Cultura, que é o recorte da presença resenha, podemos ainda apontar alguns aspectos interessantes da leitura proposta por Birman. Um deles é o que vem da denúncia do posicionamento do movimento psicanalítico em relação à Cultura, o que o faz afirmar categoricamente que a Psicanálise encontra-se, na atualidade, à prova do social. Na convicção de não desviar dessa tarefa e resgatar o verdadeiro sentido de uma interpretação psicanalítica da cultura é que Birman esboça seu retorno a Freud. Analisando a interpretação freudiana, e mostrando seu alcance ao referencial moderno, mostra o germe da leitura do desamparo pós-moderno nos impactos que a leitura da pulsão de morte trouxe ao discurso freudiano acerca do social. Em um dos capítulos mais elucidativos do esquema de leitura que faz da obra freudiana (p. 121-146), defende a tese da gestão interminável do conflito pelo sujeito, uma vez que o conflito entre natureza/pulsão e cultura/civilização configura-se de forma estrutural, sem possibilidade de ultrapassagem da posição original de desamparo. Esse segundo discurso freudiano sobre o social, característico do final da obra, é o fio da meada que Birman tomará para tecer seu próprio quadro do mal-estar na atualidade.

É interessante notar como a leitura de Birman da obra freudiana, bem como seu próprio esquema de construção teórica, opera com o que poderíamos chamar de uma metapsicologia da descontinuidade. Podemos assinalar uma série de rupturas nesse percurso. A primeira seria a ruptura que constitui o campo da Psicanálise. A segunda seria a ruptura interna ao campo psicanalítico, em seus diferentes discursos sobre o Social. A terceira seria a ruptura entre as configurações sociais modernas e pós-modernas. Embora possamos entender o viés diacrônico do autor e sua preocupação estrutural, é preciso assinalar os perigos que tal recorte pode trazer para o leitor desavisado.

Não caberia, no contexto desta resenha, discutir em amplitude essa questão, que precisaria de uma série de intermediações, inclusive para fazer jus à complexidade da proposta de Birman. Mas se uma das grandes virtudes do trabalho de Birman, e provavelmente uma das razões de seu impacto, foi justamente a denúncia das ilusões, creio que seja mais do que justificado apontar as armadilhas ideológicas que alguns atalhos teóricos podem criar.

Nesse sentido, parece-me particularmente importante apontar dois tipos de interpretação que enfraquecem o potencial da contribuição de Birman: (1) a naturalização e a dicotomização entre modernidade e pós-modernidade; (2) a passagem imediata da estrutura psíquica para a social.

Sobre o primeiro ponto, é preciso denunciar o uso ideológico que muitos fazem sobre a questão da pós-modernidade, que não é um conceito unívoco, e muito menos um ponto pacífico nas ciências humanas. Também não convém entrar na querela se jamais fomos modernos ou se ainda não somos pós-modernos, mas a questão é que uma abordagem estrutural do social tende a dicotomizar sobremaneira dois contextos que não são distintos.

O mesmo engodo pode ser encontrado na passagem da dimensão psíquica para a social. A relação que a psicanálise estabelece entre os planos do infantil, no psíquico, e do cultural é de analogias e interpretações pontuais, sem buscar esgotar as especificidades de cada campo. Se perdermos essa especificidade de vista, corremos o perigo de anularmos a própria especificidade da dimensão psíquica. Algumas leituras desse tipo de interpretação podem nos colocar em um lugar desconfortável, já que abre espaço para uma sobrevalorização dos aspectos sociais na determinação do sofrimento psíquico, caindo em um culturalismo estéril e anacrônico. Como se a questão da redução ao biológico se resolvesse apenas com uma ampliação em direção ao social.

Um terceiro viés problemático é uma leitura saudosista, típica do lugar-comum acadêmico. Penso que a transposição muito imediata entre a configuração narcísica do sujeito e da sociedade pode levar à conclusão de que a cultura pós-moderna é doente; ou ainda, à degradação de um ideal de saúde social que nunca tivemos. Pode até parecer absurdo ao leitor encontrar uma afirmação tão anti-psicanalítica nesse ponto da argumentação, mas esse tipo de raciocínio pode, de fato, levar a uma patologização do social muito semelhante, do ponto de vista moral, com a medicalização do social. Um exemplo de denúncia desse viés pode ser encontrado na análise que Costa (2003), ainda nos anos 80, fez da cultura do narcisismo.

Esses são alguns pontos que gostaria de assinalar na apreciação da linha de investigação aberta por Birman nesse seu livro seminal. Penso constituírem pontos de aprofundamento importantes na construção de uma interpretação psicanalítica da cultura na atualidade. Interpretação esta que se mostra cada vez mais urgente e necessária, haja vista o desdobramento avassalador das teses previstas na interpretação da ética da pós-modernidade nesse nosso início de século. A pergunta que deveríamos nos fazer com mais freqüência, contudo, seria: até que ponto estamos de fato elaborando esse conhecimento, e até que ponto não estamos simplesmente repetindo-o compulsivamente, na tentativa de ligar o desamparo que nos violenta?

 

Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Lisboa: Edições 70, 2001.

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade do consumo. Lisboa: Edições 70, 2000.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BIRMAN, Joel. Freud e a experiência psicanalítica: a constituição da psicanálise. Rio de Janeiro: Taurus-Timbre, 1989.

BIRMAN, Joel. Freud e a interpretação psicanalítica: a constituição da psicanálise. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1991.

COSTA, Jurandir Freire. Violência e psicanálise. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FREUD, S. (1929). O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1994. vol. XXI.

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1984.

 

 

Endereço para correspondência
Érico Bruno Viana Campos
E-mail: ericobvcampos@uol.com.br

 

 

1Psicólogo; Mestre e Doutorando em Psicologia (Instituto de Psicologia/USP); Bolsista CNPq.