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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.20 São Paulo jun. 2007

 

RESENHAS

 

 

Helenice O. Rocha1

Universidade São Marcos

Endereço para correspondência

 

 

MENEZES, Lucianne Sant’Anna de. Pânico: efeito do desamparo na contemporaneidade – Um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, FAPESP, 2006. 240 p. ISBN 85-7396-431-6.

Não constitui novidade no campo da psicanálise o interesse em buscar articulações entre as questões sociais e o sujeito psíquico. Este interesse permanente confirma a tese freudiana da necessidade em pensar a constituição do sujeito como algo que não é dado a priori, mas como um processo também determinado pela força da cultura.

Desde Totem e tabu (1913), passando por Psicologia de grupo e análise do ego (1921), O mal-estar na civilização (1930), e culminando em Moisés e o monoteísmo (1938), Freud nos advertiu que a compreensão dos processos individuais (incluindo aqui suas dimensões patológicas), necessita de uma teorização que permita conectar esses processos ao funcionamento social.

O livro de Lucianne Sant’Anna de Menezes abre um campo para a (re) exploração do sujeito em sua dimensão social. Apenas esse estudo já seria fecundo o bastante, e da maneira sistemática como foi empreendido pela autora já nos ofereceria um campo vasto para reflexões. No entanto, a problematização central deste trabalho vai além. Ela gira em torno da articulação entre os fenômenos sociais contemporâneos e o pânico como experiência do campo psicopatológico do angustiante.

Dentre as várias conseqüências das articulações feitas neste livro, fruto da dissertação de mestrado da autora, encontramos a prova evidente da riqueza para as teorias psicanalíticas proveniente da pesquisa universitária.

É, portanto, em uma disposição rigorosa que Lucienne se coloca para esmiuçar, em um primeiro momento de seu trabalho, aquilo que Freud denominou de “o angustiante”, com a finalidade de examinar a problemática do pânico. Ao inclinar-se sobre esta questão, a autora nos leva a uma incursão no pensamento freudiano, que vai desde As neuropsicoses de defesa, texto de 1894, até a metapsicologia.

Ao explorar a concepção psicanalítica do afeto, a autora refaz os trajetos freudianos a respeito desse conceito, demonstrando as alterações que ele sofreu ao longo do tempo. Assim, realiza um minucioso trabalho de articulação entre o afeto e a angústia na obra de Freud, para apresentar, em um segundo momento, o pânico como uma expressão dos diferentes modos do afeto de angústia.

Encontramos, durante a exploração deste campo, uma profunda teorização da angústia que não exclui as contradições e dúvidas a respeito de quantas teorias sobre ela podem ser pensadas. Apoiada na idéia de uma só teoria da angústia, cuja origem desse enigmático afeto é localizada em uma experiência traumática primitiva, e cujas manifestações posteriores se configuram como revivescências desta, a autora insere em seu texto a proposta de pensar a angústia como um afeto fundado sobre o desamparo (Hilflosigkeit).

Assim, tendo como operador metapsicológico fundamental a noção freudiana de Hilflosigkeit, o texto possibilita uma articulação clara e precisa entre este conceito e a angústia. Em sua dimensão metafórica, o estado de desamparo – fruto da precariedade do funcionamento do psiquismo primitivo, e que revela em última instância a falta de garantias sobre a existência – pode ser pensado, conforme sugere Lucienne, como uma experiência estruturante do psiquismo e como concretização desse desamparo na situação traumática.

Dessa maneira, a autora nos remete à possibilidade de pensar o pânico como a resposta psíquica frente à desilusão provocada pela perda de um ideal protetor que até então, de maneira onipotente, assegurava ao sujeito sua estabilidade. O pânico é, nesta perspectiva, a experiência de uma expressão máxima de angústia e uma evidência clínica do desamparo.

Após concluir esse primoroso trabalho em torno do campo do angustiante, a autora nos propõe uma descentralização do olhar clínico em direção à cultura, ao abordar a natureza e a construção do vínculo social a partir da perspectiva da lei, dos ideais e das identificações.

É novamente das teses freudianas, mais especificamente da história do mito originário da humanidade contada em Totem e tabu, do mecanismo de funcionamento dos grupos descrito em Psicologia de grupo e análise do ego e do mal-estar como conseqüência da renúncia pulsional frente às exigências da cultura enunciado em O mal-estar na civilização, que o texto de Lucianne se nutre para elucidar os processos que constituem e regulam os laços sociais.

Nesse ponto do livro, a ênfase recai no ser humano como ser social. No entanto, a partir dos conceitos de identificação, ego ideal, ideal do ego e pai simbólico, entre outros, opera-se uma relação inevitável entre o ser social e o ser pulsional. A autora recorta de maneira conseqüente, de cada tese freudiana acima mencionada, os pontos em que a experiência do desamparo como condição estruturante do sujeito aparece determinando e sendo determinado pelo social. Assim sendo, durante todo seu percurso pelos textos políticos de Freud, a autora permanece fiel à motivação principal do trabalho, na medida em que não se afasta da problemática do pânico.

Na última parte do livro vemos, na brilhante articulação entre o desamparo e a contemporaneidade, o desenvolvimento da hipótese central do trabalho de Lucienne, ou seja, do fenômeno do pânico como uma expressão subjetiva encontrada pelo sujeito frente ao desamparo na contemporaneidade. Poderia ser o pânico um dos efeitos das novas formas de subjetivação? Seria o pânico uma das expressões do mal-estar contemporâneo?

Para a investigação dessas questões, a autora responde de maneira consistente e responsável, passando longe do risco de usar as teorias até então apresentadas como ferramentas para psicanalisar o social. Pelo contrário, ao fazer uso também de outros campos do saber na tentativa de encontrar subsídios para responder às perguntas feitas acima, o resultado obtido revela-se ao mesmo tempo inteligente e profícuo.

Da sociologia são usados principalmente os estudos de Anthony Giddens e Zigmunt Bauman para se estabelecer um diálogo com as concepções da psicanálise. Das produções psicanalíticas atuais, a autora remete-se principalmente aos trabalhos de Joel Birman.

É por meio da contemplação da modernidade e suas repercussões na cena social atual que compreendemos, na leitura deste livro, as diferentes formas de subjetivação e a conseqüente re-configuração do velho mal-estar. É na subjetividade autocentrada, cujo efeito é a fragilização dos vínculos sociais; na subjetividade, cuja ênfase recai no exterior em detrimento do interior; na cultura, onde não se pode mais contar com a figura do pai protetor, já que se trata de um deslocamento radical da ordem paterna como referencial central, que a autora recoloca a questão do pânico como uma produção social, incluindo aí a dimensão masoquista, o amor à servidão que busca proteger o sujeito de seu desamparo. O traço masoquista principal é, nesta perspectiva, desenhado pelo apelo à proteção do pai.

A autora nos convida a pensar o pânico como fenômeno do campo da angústia e como algo que resulta da relação com o grupo. Conforme sublinha Lucienne, a contemporaneidade oferece poucas alternativas para processos alteritários legítimos. No lugar destes aparecem os processos de subjetivação apoiados no narcisismo, e cujo resultado é a experiência, sempre terrorífica, do vazio. Assim, a tese na qual a autora se apóia é a de que “o pânico expressaria o descompasso entre as exigências do tipo psicológico ideal atual, da exaltação desmesurada do eu e da estetização da existência, e a incapacidade no cumprimento dessas exigências” (p. 220).

Todas essas questões, delicadamente alinhavadas pela autora, permitem e – por que não dizer – nos convocam para uma reflexão de certa forma urgente para que a esta obra e a todas as indagações aqui levantadas, o leitor responda a partir de suas próprias inquietações – resultado de toda boa leitura psicanalítica –, com sua disposição para pensar o pânico como um sofrimento individual, mas sobretudo, como nos adverte Lucienne, “como um grito de alerta para o desamparo radical do sujeito contemporâneo” (p. 227).

Pânico: efeito do desamparo na contemporaneidade é um estudo psicanalítico dirigido a todos aqueles que se interessam pelo “pathos” psíquico e pelo campo social, e que não vendo neles qualquer possibilidade de uma dicotomização, não correrão o risco de trabalhar na esterilidade.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, S. (1894). As neuropsicoses de defesa. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. vol. III.

FREUD, S. (1913). Totem e tabu. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. vol. XIII.

FREUD, S. (1921). Psicologia de grupo e a análise do ego. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. vol. XVIII.

FREUD, S. (1930). O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. vol. XXI.

FREUD, S. (1939[1934-38]). Moisés e o monoteísmo. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. vol. XXIII.

 

 

Endereço para correspondência
Helenice O. Rocha
E-mail: helenice.o.rocha@uol.com.br

 

 

1Psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae); Mestranda em Psicologia (Universidade São Marcos).