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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.21 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Patologias narcísicas e doenças auto-imunes: a vivência da temporalidade

 

Narcissistic pathologies and auto-immune diseases: the experience of temporality

 

 

Julio Verztman; Teresa Pinheiro; Alexandre A Jordão; Fernanda Montes; Mariana T. Barbosa

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apresentamos aqui os resultados de uma pesquisa clínica em psicanálise, particularmente a vivência da temporalidade de nossos pacientes. Apresentamos um breve apanhado sobre a noção de tempo em Winnicott, antes de adentrarmos na descrição e análise de nosso material. Encontramos em Winnicott uma ferramenta extremamente valiosa na noção de continuidade no tempo como pedra angular da construção de si. Para os sujeitos de nossa amostra, o continuar a existir pode não apresentar as características pré-reflexivas reconhecidas em outros indivíduos, o que nos convoca a pensar sobre as origens psíquicas da sensação de fluxo temporal. Descreveremos nossos resultados a partir de cinco eixos: cronologia, narrativa de si no tempo, sensação de movimento no tempo, vivência do passado e dimensão de futuro.

Palavra-chave: Temporalidade, Psicanálise, Continuidade da existência, Subjetivação, Narrativa.


ABSTRACT

We aim at demonstrating the results of a clinical research in psychoanalysis that focuses, particularly, on the patients’ experience of time. A brief summary of the notion of time in some of Winnicott’s writings is presented to further describe and analyze our material. We find in Winnicott’s notion going on being an extremely valuable tool since it is a keystone of self construction. Subjects in our research sample indicate that the going on being may not present pre-reflexive characteristics found in most individuals, demanding an investigation of the psychical origins of the sensation of passing of time. Our results are described from five axes: chronology, self narrative in time, sensation of movement in time, experience of past and dimension of future.

Keywords: Temporality, Psychoanalysis, Going on being, Subjective ness, Narrative.


 

 

Este texto compõe uma série de quatro artigos, cuja finalidade é trazer os resultados de uma pesquisa clínica em psicanálise intitulada “Patologias narcísicas e doenças auto-imunes: comparação clínica sob a ótica da psicanálise” 1. Tal pesquisa foi realizada por meio de um convênio entre três órgãos da UFRJ: o Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, o Instituto de Psiquiatria (IPUB) e o Serviço de Colagenoses do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF). Nossa investigação retirou seus dados do atendimento psicanalítico oferecido a duas amostras diferenciadas de mulheres adultas, entre 18 e 45 anos: pacientes melancólicas oriundas do IPUB e pacientes portadoras de lupus eritematoso sistêmico (LES)2, encaminhadas pelo HUCFF. A metodologia da pesquisa está descrita em dois artigos já publicados (Pinheiro e Verztman 2003; Verztman, Pinheiro e Montes 2004), além de ser minuciosamente analisada em outro artigo específico sobre metodologia, atualmente submetido para publicação e que pertence à serie de artigos descrita acima.

Dividimos a análise de nosso material em três eixos, que nos pareceram mais pertinentes à clínica com a qual nos deparamos: a temporalidade, a corporeidade 3 e a transferência. Este escrito representa um esforço no sentido de circunscrever as vicissitudes do eixo da temporalidade, e para este fim decidimos apresentar alguns aspectos sobre a noção de tempo em Winnicott, antes de adentrarmos na descrição e análise de nosso trabalho.

A temporalidade não é daqueles assuntos sobre os quais os psicanalistas costumam explicitamente escrever. Entre os autores &– incluindo Freud &– que alcançaram maior projeção na literatura psicanalítica, poucos foram aqueles que desenvolveram conceitos dirigidos diretamente à compreensão de como o sujeito vive no tempo. Exceção feita a Lacan, que com sua proposição sobre o tempo lógico (ver Porge, 1998) produziu uma nova concepção sobre o desenrolar do encontro analítico, a categoria do tempo permaneceu como um implícito trazido para nossa disciplina pelo senso comum, a partir de raízes filosóficas ou científicas diversas. Mesmo assim, o modo como cada autor concebe a passagem do tempo influencia diretamente sua teoria sobre a mente e sua proposta clínica.

Encontramos na obra de Winnicott uma ferramenta extremamente valiosa tanto para o manejo clínico de nossos pacientes quanto para a descrição e análise daquilo que fazemos. Isto porque, ao contrário de Freud &– que privilegiou o tempo em sua dimensão de instante e descontinuidade e concedeu a este características espacializadas (J.A. Miller, 2000; Gondar, 2005; Almeida 2005)4 &–, Winnicott faz da continuidade no tempo a pedra angular da construção de si. Os sujeitos de nossa amostra demonstram que o continuar a existir pode não apresentar as características pré-reflexivas reconhecidas em outros seres humanos, e nos convocam a pensar sobre as origens psíquicas da sensação de fluxo temporal.

 

Winnicott e o fluxo temporal

Pediatra atento a períodos muito precoces da vida, Winnicott empenhou seus esforços para a construção de uma teoria do desenvolvimento emocional humano, em que as experiências são gradativamente organizadas até que se tornem reais. Para ele, nos primórdios de sua vida, estando ainda indistinto do ambiente circundante, o bebê não pode ser pensado como um indivíduo isolado. “Isso que chamam de bebê não existe” (Winnicott, 1953, p. 165), ou seja, não faz sentido considerar nada que lhe aconteça, a menos que ganhe relevo a relação que ele estabelece com o ambiente. A mãe é quem executa o papel de proteger o bebê e de se dedicar a ele de modo a que suas necessidades sejam atendidas. Para tanto, ela ingressa em um estado de preocupação (Winnicott, 1956) no qual se torna habilitada a se identificar com seu filho e saber, mesmo imaginariamente, tudo que ele precisa. Cumprindo suficientemente bem sua função, tal mãe, que para Winnicott representa o ambiente, estabelece as condições para que o impulso rumo ao desenvolvimento, presente no bebê, siga seu curso sem demasiadas perturbações.

Esta ainda é uma fase de dependência absoluta. Do ponto de vista do bebê, este se sente de tal forma fundido com a mãe, que nem sequer percebe seus cuidados. Representando esse ambiente indissociável do bebê, a mãe, com sua disponibilidade, isola a continuidade da existência do self em formação, com o intuito de evitar que invasões traumáticas atrapalhem o delineamento desse continente subjetivo. Quanto à experiência do tempo, o bebê deve vivê-lo em continuidade com o tempo do ambiente. A mãe deve ser capaz de doar muito de seu próprio tempo para que o bebê futuramente tenha uma existência temporal separada. Nessa fase de dependência absoluta, o infans vive em um tempo contínuo que ele ainda não é capaz de perceber, mas que é extremamente eficaz. Esta continuidade é emprestada à mãe, na medida em que, por seu grau incipiente de desenvolvimento da memória, ele só é capaz de perceber instantes. É a continuidade dos cuidados maternos que articula esses instantes em uma cadeia que será a base de sua existência temporal inconsciente.

O self, para se constituir, deve ultrapassar essa relação de dependência absoluta, destacar-se dessa célula mãe-bebê e se diferenciar (Gondar, 2005) do ambiente, traçando as fronteiras entre interior e exterior. Esse processo extremamente complexo tem como uma de suas conseqüências a inserção do self em um tempo ordenado em termos de passado, presente e futuro. A conquista dessa experiência temporal compõe a realização, isto é, “a apreciação do tempo e do espaço e de outros aspectos da realidade” (Winnicott, 1945, p. 222-223).

Como ponto de partida para o desenrolar dessa trajetória rumo à independência, Winnicott demarca uma continuidade em existir no tempo, um seguir sendo sustentado pelo ambiente. A constância dos cuidados maternos, a regularidade da presença do outro, guarnece a continuidade da linha da vida do bebê. Sua proteção impede que o ambiente se apresente de forma incompreensível e ameace o bebê de ter sua continuidade rompida. A falta dessa proteção em um momento tão precoce, representaria uma ansiedade impensável, uma ameaça de aniquilação, o próprio enlouquecimento. Mesmo em suas ausências, a mãe deve estar atenta para respeitar o limiar temporal tolerável por seu filho, pois uma vez superado esse limiar, o trauma é dificilmente reparado.

O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe ficar distante mais do que x minutos, então a imago se esmaece (...). O bebê fica aflito, mas essa aflição é logo corrigida, pois a mãe retorna em x + y minutos. Em x + y minutos, o bebê não se alterou. Em x + y + z minutos, o bebê ficou traumatizado. Em x + y + z minutos, o retorno da mãe não corrige o estado alterado do bebê. O trauma implica que o bebê experimentou uma ruptura na continuidade da vida, de modo que as defesas primitivas agora se organizaram contra a repetição da “ansiedade impensável” ou contra o retorno do agudo estado confusional próprio da desintegração (Winnicott, 1967, p. 135).

Nesse estágio muito primitivo, a falha materna não é entendida como tal. O desaparecimento da mãe deixa o bebê extremamente confuso. A continuidade da criança se torna ameaçada, constituindo um trauma que engendra defesas contra o aniquilamento. Em alguns casos, é possível restaurar a continuidade por um cuidado intensivo, mas em outros, a linha da vida não torna a unir suas extremidades. Nessas circunstâncias, o futuro self fica privado do sentimento de continuidade da existência. Envolto por um ambiente fidedigno, ao contrário, o bebê tem a preservação da linha da vida, e o processo de realização transcorre sem maiores percalços, alimentando o sentimento de existir continuamente.

A apreciação da realidade externa em sua dimensão espaço-temporal está intimamente vinculada à diferenciação do self. As áreas interna e externa são erigidas pelos mesmos processos, e não constituem pólos isolados. À continuidade no tempo acrescenta-se também uma continuidade espacial entre o dentro e o fora, que abre uma via para que o self adquira características da realidade externa. Pautada nesse contato, a realização confere ao self a temporalidade que rege a realidade. Anteriormente à realização, a continuidade no tempo não era sentida: o bebê vivia no infinito, sem perceber a distinção entre o passado, o presente e o futuro (Davis e Wallbridge, 1982), capacidade que só se torna possível em decorrência da apreciação da realidade. Esta apreciação da realidade é progressiva e sofistica-se até o ponto no qual o sujeito se reconhece como mortal, momento em que a roda do tempo, em sua dimensão de passado presente e futuro, pode ser subjetivada.

A realização proporciona ao bebê sentir que segue sendo por meio da disposição de suas experiências em uma linha temporal, da organização dos eventos em relações de anterioridade, posterioridade ou simultaneidade entre si. Este sentimento de que o tempo passa decorre da observação das transformações do self e do mundo, que servem de indícios da duração do tempo. Outro elemento que contribui para o início de uma duração pessoal é, como propõe Santos (2005), a integração entre duas formas de viver o tempo: um tempo parado e monótono proporcionado pela constância dos cuidados maternos &– tempo da estabilidade &– e um tempo próprio da excitação, do movimento em direção a algo &– tempo da instabilidade. É a coadunação dessas duas experiências que proporcionará ao bebê a percepção de que a temporalidade não o aniquila; de que ele permanece, apesar do tempo passar.

Cabe ressaltar, no entanto, que o sentimento de continuidade da existência não se restringe às perspectivas temporal e espacial, é igualmente o “estofo do valor da vida, (...) o solo da experiência de unicidade de si” (Costa, 2002). É esta vivência que atribui valor à vida e capacita o sujeito a qualificar as experiências e os afetos por meio de uma referência a um self. Com o sucesso da realização, é inaugurada a construção de uma história de si. Essa seqüência temporal, que organiza os acontecimentos, serve para ancorar o que o self foi, é e será, sem que ele seja destituído de sua unicidade e continuidade. Todas as experiências são sentidas como reais. A relação com os objetos do mundo adquire intensidade e significância (meaningfulness). Viver, nesse contexto, vale a pena.

Todavia, sem esse sentimento de continuidade da existência, tudo se torna inútil. A própria vida parece destituída de qualquer razão. O esforço da existência é grande demais devido ao desgaste provocado pelas reações defensivas. Quando o ambiente não é competente o suficiente para fornecer uma proteção e um cuidado que tecem a continuidade da vida, todos os processos de desenvolvimento, inclusive a realização, ficam prejudicados. No que tange à realização, o que ocorre é que o estabelecimento da relação com a exterioridade se dá em um ritmo muito além da compreensão do bebê. Ao invés de ser ele quem age em direção ao mundo, este se antecipa e se impõe ao bebê, rompendo a linha de sua vida. Esta imposição pode se dar por meio da invasão de estímulos que o bebê ainda não discerne e dos quais não consegue se livrar por si próprio, ou de demandas excessivas do ambiente. Em ambas as situações, o bebê, confuso, restringe-se a reagir, com o fim de se esquivar do profundo “desconforto físico-mental” (Costa, 2002) que acompanha a ruptura da sensação de continuidade. O trauma winnicottiano desdobra-se em uma dificuldade de observar os aspectos do mundo e de se enriquecer com ele. O tempo passa a ser regido por uma outra lógica, distinta do fluxo passado-presente-futuro, comum à maioria dos sujeitos. Há, ainda, exemplos mais radicais de trauma, em que a instauração de uma lógica temporal torna-se extremamente complicada. Tais exemplos são resultados do comportamento materno errático, que impede a criação de qualquer padrão defensivo.

Concluindo esta breve apreciação sobre a concepção de temporalidade em Winnicott, percebemos que toda sua teoria repousa no valor temporal da continuidade. Como pudemos observar, mesmo a aquisição da noção de espaço é banhada pelo valor daquilo que é contínuo entre nós e nossos semelhantes, o que se desdobrará em um de seus conceitos mais férteis, o de espaço potencial. Por esta razão, inspiramo-nos em seu pensamento para descrever as vivências temporais de nossos pacientes, na medida em que alguns deles fazem da descontinuidade temporal seu principal signo de sofrimento.

 

Alguns parâmetros de nossa pesquisa

Percebemos que mesmo em uma amostra tão pequena quanto a nossa (onze sujeitos), há uma grande variedade de formas de vivenciar o tempo. Organizamos nossa análise do material em alguns aspectos que indicam organizações temporais distintas daquelas habitualmente descritas no campo psicanalítico, na medida em que muito já se escreveu sobre a temporalidade neurótica. Dividiremos esta parte do artigo em cinco eixos principais: 1) localização temporal ou cronologia; 2) narrativa de si no tempo; 3) percepção de movimento no tempo; 4) vivência do passado; e 5) dimensão de futuro.

Ressaltamos ainda, antes de prosseguir, que dentre nossas duas subamostras, a de pacientes lúpicas apresentou um grau maior de heterogeneidade quanto ao perfil clínico. Isto era de se esperar, na medida em que o LES não é uma categoria clínica da psicanálise, nem pretendemos que ele assim o seja. Nessa sub-amostra encontramos sujeitos neuróticos &– sobretudo histéricas &–, embora tais sujeitos não tenham sido maioria. Como nosso interesse principal é investigar outro modelo de organização subjetiva, o modelo narcísico 5, descreveremos de modo unificado aquelas características apresentadas pelas pacientes das duas sub-amostras (ou seja, melancólicas e lúpicas não histéricas) que se enquadraram nessa forma de organização psíquica, deixando de lado a temporalidade da histeria.

 

Cronologia

Comecemos pela capacidade de localização temporal, ou o que em nosso senso comum denominamos de cronologia. Este é sem dúvida o aspecto da vivência temporal mais próxima dos parâmetros fornecidos pela espacialidade6. A própria idéia de localização já indica esta qualidade. Uma qualidade que permite comunicar a nossos semelhantes fatos que também podem ser localizados por eles segundo um modo minimamente homogêneo de medida do tempo. De modo geral, nossos pacientes são capazes de reconhecer os critérios atribuídos pela cultura para medir e dividir o tempo, o que produz normalmente a idéia de uma infinidade de instantes descontínuos, que podem ser localizados dentro das categorias passado, presente e futuro. Ao se submeter a esses parâmetros, esses sujeitos penetram em uma ordem simbólica que os distancia das psicoses.

Apesar dessa submissão, percebemos que, mesmo neste aspecto mais espacializado do tempo, muitos de nossos analisantes apresentam peculiaridades na ordenação dos fatos de suas vidas, mais precisamente na narrativa deles, que parecem diferenciá-los daqueles que organizam suas cronologias de vida em função do modelo do recalque. Notamos que eles expressam uma hipertrofia do presente, como se o tempo fosse quase completamente presentificado. Em função dessa característica, as relações de anterioridade, posterioridade e simultaneidade se alteram.

Recorreremos aqui a um exemplo para melhor ilustrar esse tempo presentificado. Isabela diz ter lido no jornal que os velhos devem ir para asilos. Resolve, então, ligar para um asilo, a fim de reservar sua vaga. Fica indignada quando a atendente lhe diz que não pode fazer a reserva, já que não tem a idade suficiente para tal, e deve aguardar a velhice. A velhice é para Isabela (uma mulher de meia-idade) um acontecimento presente, algo que não tem para ela uma dimensão metafórica de se sentir velha, de estar deprimida, de se perceber sem energia. Este fato ocorreu em sua análise em um momento em que o tempo começou a se diferenciar para ela, porém a efemeridade dessa diferenciação fez com que aquilo que poderia significar a inscrição de um futuro fosse imediatamente capturado pelas garras poderosas do presente &– presente que é o lugar onde vive, ou melhor, não vive.

Principalmente nas pacientes consideradas por nós como mais graves, ou mais distantes dos parâmetros temporais comuns, percebemos outros problemas na construção de uma cronologia, como grandes lacunas na história de vida, vivências de simultaneidade entre eventos ocorridos em épocas longínquas entre si ou até grandes inversões temporais. Um fragmento da análise de Lúcia demonstra parcialmente alguns desses aspectos. Seu analista refere-se a ela nas seguintes palavras:

“Lúcia se perde temporalmente em seus relatos. Como se o tempo não atendesse a uma ordem cronológica. O passado distante se confunde com o passado recente e com o presente. É muito difícil ela se localizar no tempo, e ficamos tentando juntar estes retalhos que são sua vida, para ajudá-la a construir uma narrativa. Como eu fazia muitas perguntas sobre como e quando tal fato havia se dado, ela resolveu fazer um arquivo. Nesta sessão, traz com ela um calhamaço e me entrega: ‘a senhora quer saber sempre sobre minhas internações. Está tudo aqui. Tudo o que eu tenho, pois tem internações e exames que o hospital não dá cópia’”.

O analista &– no lugar de testemunha, de alguém que pode olhar com interesse para sua vida &– auxilia uma nova organização do tempo. Ao recolher e ordenar papéis referentes a exames e internações, e ao associar tais acontecimentos a circunstâncias da moradia de Lucia na época em que ocorreram, por exemplo, criam-se ligações entre fatos heterogêneos, permitindo a noção de que um tempo se passou. Este fragmento também exemplifica, no caso das pacientes lúpicas, a importância da doença orgânica, dos cuidados derivados e das denominações médicas resultantes naquilo que será considerado pelo sujeito como sua história. Sem tais cuidados, sobressaem-se grandes lacunas, impossíveis de serem preenchidas, o que demonstra a importância do olhar interessado do outro para a sensação de que o tempo passa e se diferencia. É, no entanto, com o intuito de preencher essas lacunas que tais sujeitos lançam mão de ligações estranhas de simultaneidade entre fatos longínquos ou operam inversões cronológicas.

Um exemplo de inversão cronológica pode ser verificado pelo exemplo de Aurora. Ela relata uma experiência traumática de abuso sexual e refere-se à presença de sua filha em uma cena em que ela não poderia estar presente em função de sua idade quando do acontecimento. A repetição do relato e o estranhamento dessa inversão por parte da analista produziram a percepção de que ela poderia estar condensando diferentes cenas que possuem relação temporal entre si, e portanto, fazem parte de um fluxo que passou a se movimentar.

 

Narrativa de si no tempo

Começamos agora a nos aproximar de uma modalidade de vivência temporal que pode ser considerada como subjetiva. Para além das medidas e localizações gerais que atribuímos a um tempo experimentado como comum à nossa coletividade, rearrumamos os eventos que vivemos segundo os valores que tiveram em nossa trajetória. Sem que neguemos esse tempo formado de instantes descontínuos que podem receber uma medida universal, e sem que percamos a capacidade de nos orientarmos nele, podemos perceber grandes disparidades na duração que alguns momentos de nossas vidas terão em comparação com suas respectivas medidas gerais. Essa heterogeneidade entre um tempo geral do mundo e um tempo pessoal que é um desdobramento da vida é uma das marcas dos processos de personalização, realização e integração. Um dos aspectos que dá estofo à experiência do self é exatamente a possibilidade de construir uma narrativa de si recheada por vivências nas quais o sujeito ocupa um papel destacado e privilegiado no mundo, em que ele se percebe criando, e por isso mesmo, pertencendo ao tempo do mundo. Em outras palavras, uma narrativa na qual o que o sujeito narrar lhe concerne, mesmo que de forma implícita ou inconsciente; na qual os eventos têm relação com suas ações, sentimentos, desejos ou pensamentos &– ou seja, com seu próprio tempo.

Com muitas de nossas clientes só percebemos o desenvolvimento desse tempo pessoal se nos despojarmos de algumas expectativas que um analista costuma ter quando está diante de seu cliente. Em primeiro lugar, elas falam de si com palavras semelhantes às utilizadas para a descrição por um terceiro. A própria palavra eu, além de pouco utilizada, tem freqüentemente esvaziada sua significação. Em suas histórias, pudemos em muitos casos correlacionar este privilégio da linguagem na terceira pessoa com formas discursivas utilizadas no ambiente próximo para descrever e qualificar o sujeito. É como se o sujeito só pudesse ser descrito pela linguagem da objetividade, produzindo uma crença à qual ele adere e reproduz em seu próprio discurso. Este refúgio, na forma discursiva da terceira pessoa, conduz a uma sensação permanente de exterioridade de si e do mundo, sensação que pode ser uma das molas para a procura de cuidado. Isto na verdade é um paradoxo, na medida em que é essa exterioridade que os define e torna-se sua principal âncora.

Na linguagem corrente, um dos fatores que concorrem para a polissemia e permanente abertura do sentido para o novo e o surpreendente é exatamente a diferença de perspectiva dos sujeitos de fala. A permanente tensão entre as perspectivas da primeira e terceira pessoas permite ao sujeito construir narrativas menos cristalizadas e mais pessoais, abdicando-se, entretanto, de enunciados de valor universal, portadores de um sentido unívoco. O esvaziamento da perspectiva da primeira pessoa entre algumas de nossas clientes &– pelo menos no modo como a perspectiva da primeira pessoa é habitualmente empregada &– produz uma pretensão de univocidade do sentido, que é o único modo como esses sujeitos se sentem confortáveis pertencendo à comunidade lingüística. A conseqüência mais imediata desse arranjo é o valor da obviedade. Os significados são tomados como universais, como óbvios. Há enorme estranheza quando o outro não compartilha daquilo que seria óbvio. Na medida em que os significados são tomados como dados a priori e não interpretados, o sujeito se apresenta como um observador, e esse papel se torna uma das poucas possibilidades de ele se tornar um agente narrativo.

Em Freud, temos a construção de um aparelho de linguagem, que é na verdade um aparelho de interpretação, sobretudo dentro do modelo histérico. Em nossas pacientes, o que encontramos é uma posição subjetiva que aponta para um ideal de universalização, ou melhor dizendo, de homogeneização. O tempo no qual elas se reconhecem é um tempo homogêneo, muito pouco diferenciado do tempo do mundo, no qual a noção de que cada um tem seu tempo segundo seus valores e suas ações conta pouco. A própria noção de interpretação é pouco valorizada.

Esta característica manifesta-se em seus discursos de várias maneiras: como um privilégio do relato de fatos gerais nos quais temos que fazer enorme esforço para perceber o papel do sujeito neles; no uso freqüente de termos neutros e pouco pessoais para falar de si; pelo pouco apreço que algumas pacientes lúpicas têm por seus nomes próprios, chegando em alguns casos a dizerem que seus nomes não têm importância &– “a senhora pode me chamar como quiser!”; entre outros modos. Há outro aspecto, entretanto, que merece destaque: a pouca utilização de termos e comportamentos que qualificam ou indicam sentimentos. É evidente que aqui temos que nos despir de suposições que fazem coincidir expressão de sentimentos com o vocabulário da interiorização romântica proveniente do século XIX. Feita essa ressalva, Lúcia, por exemplo, no início de sua análise, falava em um tom absolutamente monocórdico, parecia que tudo para ela tinha o mesmo valor. Falava da morte de sua mãe ou de uma ida ao supermercado com a mesma cadência e tom. Era como se a exteriorização de qualquer sentimento a arrancasse de sua posição de mistura com o ambiente, de alguém que fala de um lugar geral, de um lugar de muitos. Os sentimentos costumam indicar um valor, costumam demonstrar como um sujeito é afetado por qualquer aspecto do mundo &– uma afetação que por mais comum que seja a muitos, traz algo de radicalmente singular. Esta possibilidade de sentir não é algo que faça parte inexorável de nossa natureza; ao contrário, deve ser estimulada pelo ambiente, que fornecerá assim a possibilidade de uma existência pessoal no tempo. O entorno de Lúcia não foi capaz de se constituir desse modo, porém como esta capacidade costuma persistir em estado potencial, ela vem conseguindo expressar sentimentos na análise de um modo que nossa equipe não esperava. Isto ocorrendo, há possibilidade de maior estabilidade de si no tempo.

 

Sensação de movimento no tempo

Uma das principais características da temporalidade humana, dentro de uma perspectiva bergsoniana 7, é o seu caráter de fluxo, de permanente avanço em direção ao novo, em que se sobressaem as noções de movimento, diferenciação e continuidade. É a orientação dos seres para a ação e um número variável de escolhas quanto a realizá-la que produzem os diferentes ritmos do movimento, os quais caracterizarão as existências individuais e indicarão as marcas temporais de cada um. Não é possível a nenhum ser fazer parar ou regredir o movimento inexorável do tempo; entretanto, é facultado a cada um possuir um ritmo próprio, que passa a pertencer e enriquecer o tempo geral do mundo. O ritmo de cada um não pode se chocar frontalmente com o ritmo do mundo, sob pena da vida se tornar incompatível ou precária.

Quando vivemos em um ambiente favorável e fomos alvo da ilusão de que, ao menos em certa época de nossas vidas, o mundo se movimentava em um compasso parecido com nossas necessidades e anseios, fomos encorajados a nos movimentar. Nossas ações, além de serem percebidas como nossas após laborioso processo, colocam em marcha uma promessa de contribuição pessoal àquilo que ainda não carrega nossa marca. Só conseguimos nos posicionar desse modo diante do mundo, e apresentar uma confiança tola no sucesso de nossa empreitada, se o tempo não foi para nós um fator traumatizante, se tivemos a chance de a cada espera que a vida nos impingiu não tivermos desaparecido. Se a passagem do tempo não representar apenas uma perda daquilo que já passou e puder nos propiciar objetos que permaneçam e novos objetos dos quais possamos nos servir, encaramos o futuro como uma possibilidade infinita de novos movimentos, nossos e do mundo, em um enriquecimento permanente de temporalidades distintas. É evidente que essa ilusão esbarra permanentemente nas disparidades temporais que a vida impõe a todos e nos conflitos que daí advém. Este germe do movimento pessoal permanece, entretanto, e nos empurra rumo ao futuro desconhecido, mantendo-nos ativos, a despeito da vida nos contrariar.

Para alguns sujeitos de nossa pesquisa, percebemos grandes dificuldades na produção de uma sintonia temporal satisfatória, que faça com que eles percebam que o tempo passa e que eles se movimentam no tempo. Algumas delas verbalizam ou expressam o fato de terem sido abandonadas pelo tempo, um “abandono desde sempre” como afirma Isabela. Outras, como Valquíria, tiveram que se antecipar a seu próprio tempo, contando para isso com sua “lucidez”, com uma capacidade de ver quando criança aquilo que nenhum adulto conseguia enxergar. Em ambas as possibilidades, contudo, o mundo deve sempre ter a mesma conformação para que elas se sintam confortáveis com seu movimento. Estar sozinha, para Isabela, sobretudo no início da análise, o mesmo que uma suspensão temporal, ou seja, o tempo se transformava em perda contínua, já que contando pouco com a manutenção de sua própria imagem, não conseguia reter a imagem de quem se ocupava dela. Para Valquíria, o contato com a homossexualidade de sua filha fez desmoronar um universo moral rígido e monovalente, que garantia a certeza de sua permanência no tempo. Há, nos dois casos, uma sensação de que a velocidade do mundo (das pessoas que o habitam ou dos valores que o sustentam) não é a que deveria ser, e como ocorreu em outras situações clínicas da pesquisa, essa velocidade é maior do que a capacidade do sujeito de suportá-la.

Exploraremos dois aspectos desse descompasso de movimento temporal: o privilégio das imagens e as vivências de descontinuidade. Comecemos pela primeira, ou seja, pela experiência de falar contando com imagens aparentemente neutras e que não transmitem a idéia de movimento (ver: Holanda Martins e Pinheiro, 2001). Isabela, quando se refere ao passado, evoca uma imagem de si magra e reconhece o presente associado a uma imagem de si gorda. Como duas fotografias colocadas em pontos extremos de uma parede, a distância entre elas dificulta as associações necessárias para que a segunda fotografia surja como um resultado, ou como futuro da primeira. É como se ela própria estivesse na maior parte do tempo no meio da parede, sendo as duas fotografias flashes efêmeros de sua vida. Utilizamos a palavra imagem para diferenciá-la da noção de cena porque uma cena implica em uma relação dinâmica entre personagens, muitas vezes em uma profusão de imagens, com possibilidade de mudanças no papel de cada um, ou com a idéia de que a cena remete a outras cenas, mesmo quando estas estão indisponíveis no momento. Há certa expectativa e confiança na continuidade da cena e a suposição de um recheio entre as cenas que portará o sentido. As imagens, tais como são usadas por muitos de nossos clientes, não apresentam esta característica, que tem seu paradigma na fantasia histérica. Ao contrário, nossos clientes falam de imagens solitárias, que não se correlacionam com palavras, sentimentos ou ações; nem possuem enredo, trama, finalidade ou personagens. Percebemos que um caminho associativo minimamente disponível é a articulação com outras imagens, como no exemplo acima de Isabela. Desta forma, indo de imagem em imagem, o sujeito pode reconhecer a sensação da passagem do tempo; as imagens associadas é que serão capazes de lhe fornecer uma dimensão precária de temporalidade.

Algumas de nossas pacientes se colocam como observadoras de sua própria vida, cuja história passa a ser a conexão nem sempre fácil dessas diversas imagens. O tempo não vai do passado ao futuro, mas de uma imagem a outra. Perguntamo-nos se essa relação entre as imagens teria um certo cunho de contigüidade, o que implicaria em uma organização de forte matiz espacial em comparação com a continuidade temporal. Por essa razão, estabelecer uma narrativa sobre si mesma no tempo parece ser uma tarefa difícil porque a simples conjugação de imagens resiste a essa narrativa. A tarefa do analista, nesses casos, é temporalizar tais imagens &– estimulando novas associações a partir do vínculo transferencial e inserindo o sujeito na dimensão da continuidade de sua duração.

Intimamente ligado a esse discurso imagético está o fracasso da sensação pré-reflexiva de continuidade da existência. O continuar a ser parece estar sempre prestes a ser rompido. O tempo apresenta-se como fragmentado, organiza-se em blocos de acontecimentos, nos quais a temporalidade é apresentada como congelada, podendo no máximo estender-se sem nenhuma modificação e perpetuar um presente sem fim nem início. A desorganização temporal que encontramos nesses casos estaria relacionada a um fracasso do processo denominado por Winnicott de realização.

O caso de Isabela talvez seja um exemplo dos efeitos produzidos pela sensação de descontinuidade subjetiva. No início da análise, ela fazia ligações telefônicas freqüentes a sua analista, mantendo indiferença quanto ao conteúdo das conversas. Bastava que o telefone fosse atendido para que se sentisse aliviada, como se o telefone assegurasse a existência do analista e dela mesma. Havia uma demanda dirigida ao olhar do outro para que ela pudesse se organizar narcisicamente. Sua própria existência precisava ser assegurada pelo outro constantemente. Quando se encontrava sozinha, relatava que era tomada por grande desespero e tinha a sensação de que “as coisas iam acabar”. Descrevia essa sensação como um enorme mal-estar físico e contava que esse mal-estar sempre esteve presente de alguma forma em sua vida. No início do atendimento, recorria a inúmeras empregadas, que funcionavam quase como babás. Fez uma primeira tentativa de ir ao cinema sozinha, tendo uma empregada a postos do lado de fora do cinema. O tempo de retenção do outro na mente começou a se ampliar paulatinamente, até que ela pôde dispensar por mais tempo a companhia dessas empregadas.

 

Vivências do passado

Como um desdobramento dos itens anteriores, percebemos algumas peculiaridades nas experiências de alguns de nossos pacientes com relação ao passado. Como já vimos, o passado para eles pode ser o lugar de uma imagem parada, um tempo muito similar ao presente, um tempo quase inacessível em função de sua descontinuidade com o presente, um tempo difícil de localizar, um tempo difícil de lembrar, entre outras possibilidades. Procuraremos agora acrescentar alguns aspectos ainda não discutidos. Em primeiro lugar, em se tratando de sujeitos melancólicos que compõem uma parte de nossa amostra, discorreremos sobre a figura do destino. Sabemos (ver Lambotte, 1997) que a noção de um destino de eterno sofrimento é um dos elementos que fornecem sentido à existência do melancólico. É a assunção de uma trajetória penosa inscrita desde sua origem &– em função de uma má estrela, falta de sorte ou qualquer outra explicação baseada na suposição sobre a inutilidade da existência e da ação humana &– que faz o sujeito compreender, ou melhor, saber absolutamente seu papel no mundo. O destino é para o melancólico o fio que liga todas as pontas de sua existência, participando de seu início e prevalecendo em seu porvir. Contrariamente às nossas expectativas anteriores, nem mesmo entre as pacientes claramente melancólicas essa referência a um destino definido foi recorrente ou majoritária. À exceção de Isabela, que afirma saber que seu destino é “ser pobre e sozinha”, para os outros sujeitos, esta pressuposição de uma trajetória fechada traçada desde um lugar de origem não foi preponderante.

A própria idéia de origem mostrou-se difícil de constituir e alcançar o vigor épico que apresenta para outros tipos de sujeito. A origem, para elas, é o relato dos fatos que culminaram com o nascimento e o crescimento. Além desses fatos, geralmente equivalentes àqueles narrados por um terceiro, há muito poucos a serem acrescentados pelo sujeito, os quais poderiam se constituir em sua versão particular da origem. Notamos, principalmente entre aqueles que se organizam segundo o modelo narcísico, uma inibição da imaginação retroativa, atividade psíquica fundamental que alimenta o terreno da fantasia. Este tipo de imaginação contribui para a atribuição de sentido, para o preenchimento de algumas lacunas biográficas e para fortalecer todos os componentes da ilusão. Esses pacientes, pelo contrário, procuram depurar tudo aquilo que em suas histórias seria pura versão. Como jornalistas obsessivos de si mesmos, eles somente mantêm dentro de si aquilo que pode ser relatado e confirmado por muitos; nunca algo imaginado por apenas um, o que pertenceria ao terreno da ficção, do qual eles procuram fugir. À ficção eles estão permanentemente contrapondo fatos. Tornam-se escravos dos fatos.

Outro aspecto sobre as vivências do passado a ser realçado são as poucas referências acerca de projetos dos pais para suas vidas. Este é um aspecto que muitos deles não conseguem formular. Um projeto paternal, mesmo que implícito, é um signo inquestionável de desejo e, portanto, de algo que não pode ser qualificado como um fato objetivo, mas como uma posição valorativa. Por algum motivo, que varia segundo cada trajetória, a introjeção desses projetos não se concretizou e não pôde ser nomeada ou fantasiada. É como se a pergunta “o que queres de mim?”, tão importante para o sujeito neurótico, devesse ser evitada em quase todos os níveis, até que o desejo dos pais ou do outro relevante pudesse ser representado apenas por suas características físicas, pelo cuidado das necessidades vitais, por um sorriso efêmero conservado como jóia preciosa, por imagens esparsas não conectadas ou por determinadas habilidades no manejo da vida, com os quais o sujeito procura se identificar. “O que queres de mim?” é uma pergunta que põe em marcha uma forma de traumatismo &– o traumatismo silencioso de alguém que não experimentou por tempo suficiente a satisfação produzida pelo encontro do olhar desejante do outro com sua própria imagem. Esta pergunta, “o que queres de mim?”, só pode ser formulada em um momento em que o sujeito adquire um grau razoável de confiança no desejo do outro, para que o enigma deste mesmo desejo funcione como móvel para sua existência. A precocidade com que algumas de nossas clientes se depararam com este enigma fez com que a única saída encontrada por elas tenha sido a desvalorização da própria idéia de enigma, que será deslocada para a dicotomia mais absolutizante existência versus aniquilamento. Todo o exposto até agora neste artigo demonstra uma engenhosa construção subjetiva no sentido de tecer uma existência, ou segundo nosso ponto de vista, um não aniquilamento.

Para encerrar este tópico, falaremos brevemente sobre a experiência de ruptura no passado. Neste ponto percebemos algumas diferenças entre as pacientes melancólicas &– especialmente duas delas &– e as pacientes lúpicas. Isabela e Elizabeth fizeram-se representar pela depressão nas entrevistas de triagem, afirmando que são deprimidas. A depressão que experimentavam naquele momento não era algo novo, desconhecido ou surpreendente. Esse estado de espírito, mesmo que apresentasse pequenas oscilações ao longo de suas vidas, era o que lhes permitia se reconhecerem &– “eu sempre fui deprimida doutora, não sei se posso ser diferente”, proferiu Elizabeth logo no início do encontro. Frases como essas foram menos ouvidas entre as pacientes lúpicas. A experiência de uma doença física crônica e incurável como o LES, que acomete os mais variados órgãos e sistemas, marcou de forma substancial o passado dessas pessoas. Percebemos que aquelas que não se estruturaram como histéricas &– como dissemos, estas últimas também existem em nossa amostra &– reinventaram suas histórias em função de uma nova continuidade temporal fornecida pelos sintomas físicos, pelos cuidados médicos, pelos exames, pelos diagnósticos associados, enfim, por um novo olhar direcionado ao sujeito, que dele se apropria para construir uma nova narrativa. Curiosamente8, um acontecimento potencialmente traumático como o lupus é vivenciado por alguns sujeitos como uma nova finalidade vital à qual eles se entregam de forma obstinada e corajosa, duas de suas principais marcas identificatórias.

 

Dimensão de futuro

A noção de futuro para esses sujeitos também apresentará peculiaridades em função de todos os percalços já descritos no item anterior; entretanto, novos aspectos devem ser acrescentados. Em primeiro lugar, percebemos um novo valor para o tema da obviedade, que se desdobra na previsibilidade do futuro. O futuro só pode ser suportado se ele for completamente antecipado, desprovido de surpresas e imprevistos. Só o óbvio pode cumprir este papel. Neste contexto, o futuro só pode chegar de forma imediata. Não há o passar de um tempo que dure; há um salto ligeiro de um ponto temporal a outro. Como exemplo, podemos retornar ao caso de Isabela, que tenta uma vaga no asilo antes mesmo que chegue a velhice.

Um outro ponto que destacamos nesta forma discursiva diz respeito à idéia de ação no futuro. Como podemos perceber na vinheta de Isabela, a espera gera um enorme sofrimento, e podemos falar em uma tentativa de achatamento dessa capacidade. Lembremos que o tempo de espera seria intrínseco à dinâmica do desejo, sendo que entre o desejo e sua realização há um intervalo que imprime movimento à vida. Nos casos a que estamos nos referindo, a espera parece não ser um tempo capaz de promover ações. Além disso, quando Isabela pensa em sua velhice, já liga para providenciar sua vaga no asilo e “torna-se” velha. Tornando-se velha, ela presentifica o futuro e não entende quando o outro, no caso a recepcionista, não vive o mesmo presente que ela. O máximo que o outro pode lhe oferecer é remetê-la de volta ao futuro &– “quando a senhora ficar velha...” &–, mas esse futuro para ela já se tornou um ponto no infinito, o qual ela já não tem mais esperanças de alcançar. A distância entre o que se é e o que se quer ser é tênue, e o tempo de espera suportável para tal é tão pequeno, que aos nossos olhos ele parece não existir.

A espera é traumática porque ela põe em marcha uma sucessão diferente da produzida pelo trinômio desejo/espera/satisfação. Como demonstramos anteriormente, o binômio existência/aniquilamento faz com que a maior parte da espera seja tomada como aniquilamento. Para outros sujeitos, durante o tempo de espera o objeto é conservado por um tempo que permita a realização de outras ações, e com isso, a vida mantenha seu movimento. Ao contrário, para alguns de nossos clientes, em alguma medida o mundo e o próprio sujeito não se conservam em sua relação dinâmica durante o tempo de espera. Parafraseando Althusser, para elas o futuro demora muito tempo, mas não dura. A espera recoloca o sujeito na permanente perspectiva de desaparecer, e toda sua vida gira em torno da criação de dispositivos para que ele não precise esperar. Ele vive entre a inibição da ação e a impulsividade. Não agir &– as crises depressivas dão testemunha disso &– significa que qualquer ação porta o signo da indiferença, ou seja, nada é preciso esperar de qualquer ação futura. No caso da impulsividade, fenômeno comum em nossa amostra, o sujeito parece tentar segurar o ar à sua frente com as mãos, na medida em que está sempre antecipando suas ações para que seu móvel coincida com sua atualização. Há a ilusão provisória de que não há espera, ilusão que logo se esvai quando se entra em contato com as conseqüências da ação impulsiva.

 

Considerações finais

Em função do exposto acima, podemos concluir que a vivência do tempo para algumas pacientes de nossa pesquisa é diferente da temporalidade neurótica classicamente descrita pela psicanálise, na qual a permeabilidade entre os diferentes registros ou instâncias psíquicas fornece maior possibilidade de um fluxo temporal contínuo. No material que apresentamos há indícios suficientes de que o fluir pessoal no tempo é um processo que deve ser favorecido pelo ambiente para que o tempo não seja pura exterioridade, não seja algo somente vivido pelos outros, ou por aquele que apenas observa os outros e aquilo que deveria ser si mesmo. Pretendemos demonstrar em outro artigo &– sobre a transferência com esses pacientes &– que essa defesa psíquica poderosa &– a qual visa o congelamento do tempo; defesa mal-sucedida como muitas outras &– pode ser manejada no tratamento psicanalítico a partir de formas específicas de cuidado. Assim, terminamos nosso artigo indicando sua continuidade, o que, aliás, está em perfeita conformidade com tudo o que desenvolvemos neste trabalho.

 

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Endereço para Correspondência
Julio Verztman
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e-mail: mari_tb@hotmail.com

recebido em 22/03/06
aprovado em 15/12/06

 

 

Julio Verztman
Psicanalista; Psiquiatra; Doutor (IPUB-UFRJ); Psiquiatra do IPUB-UFRJ; Pesquisador (Auxílio FAPERJ); Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC).

Teresa Pinheiro
Psicanalista; Professora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica (IP-UFRJ); Pesquisadora (CNPq); Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC).

Alexandre A Jordão
Psicanalista; Doutor em Teoria Psicanalítica/UFRJ; Coordenador e Professor da Pósgraduação (Latu senso) em Teoria Psicanalítica (UNI-IBMR); Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC).

Fernanda Montes
Psicóloga; Mestre e Doutoranda em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC).

Mariana T. Barbosa
Psicóloga; Mestranda do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC).

1. Os coordenadores da pesquisa são Teresa Pinheiro (PPGTP-IP-UFRJ) e Julio Verztman (IPUBUFRJ). Cabe ressaltar o papel da Drª Glória Araújo, psiquiatra do Serviço de Colagenoses do HUCFF-UFRJ, responsável pelo encaminhamento das pacientes lúpicas, além de participar freqüentemente de nossas reuniões e encontros científicos.
2. O termo Lupus foi usado para descrever condições cutâneas mórbidas há pelo menos sete séculos, mas Kaposi faz referência ao Herpes esthiomenos, de Hipócrates (430 a 370 a.C.), e o Herpes ulcerosus, de Augustus Susitamis (1510 a 1560). O Lupus Eritematoso Sistêmico, descrito pela primeira vez por Biett em 1833, é uma afecção freqüente, que aparece em 30 a 40 casos para cada 100.000 habitantes, sendo mais freqüente em mulheres, na proporção de 7:1 e atingindo sobretudo as idades entre os 20 e os 40 anos. O LES (Lupus Eritematoso Sistêmico) é uma doença do tecido conjuntivo, auto-imune, com manifestações predominantemente cutâneas, cardiovasculares, renais, nervosas e articulares, dentre outras, mas que pode comprometer praticamente todo o organismo e levar à morte (ver Verztman e De Paola 1981; Araújo 1989, 2000). Em uma determinada fase da vida, o organismo passa a não reconhecer suas próprias proteínas e as destrói através de seu sistema imunológico.
3. O artigo sobre as vivências do corpo entre nossos pacientes encontra-se pronto, estando no momento em processo de avaliação para publicação em periódico.
4. Vejamos algumas passagens desses autores sobre a espacialização do tempo freudiano: “o que podemos encontrar tanto em Freud como em Lacan são esquemas espaciais. Lacan tentou restituir nesses esquemas espaciais a função temporal, mas evidentemente não podemos escrevê-la. Nesses esquemas, só podemos escrever lugares” (Miller, 2000, p. 74); “na impossibilidade de uma síntese, a descontinuidade permanece o dado básico, ou seja, todos os processos psíquicos se exercem descontinuamente... Essa descontinuidade levará Freud a privilegiar, no plano do psiquismo, o instante como realidade temporal, em detrimento do fluxo contínuo da ‘duração’ fenomenológica” (Gondar, 1995, p. 39); “todo esse conjunto de propriedades e relações delineia um conceito de inconsciente essencialmente espacializado, plenamente atemporal, regido pela dinâmica do processo primário, em cujo conteúdo convivem pensamentos contraditórios e depositam-se representações de coisa às quais a linguagem pode ou não denotar” (Almeida, 2005, p. 7).
5. Nossa definição de modelo narcísico está desenvolvida em Pinheiro e Verztman (2003). No caso de nossa pesquisa, um paradigma de patologia narcísica, representada em nossa amostra, é sem dúvida a melancolia.
6. A visão sobre a temporalidade expressa neste artigo é profundamente influenciada pelas propostas de Henry Bergson sobre o tema. Segundo esse autor (ver Bergson, 1907; Bérgson, 1896, cap. 3; Moore, 1996; e Mullarkey, 1999, sobretudo cap. 1), existiriam duas perspectivas principais acerca da temporalidade: um tempo espacializado, medido e dividido em uma série de instantes descontínuos; e um tempo contínuo da duração. Embora, como proponha Mullarkey, essa distinção entre tempo-duração e tempo-espacializado na obra de Bergson seja muito mais complexa do que a definição simplificada acima, a diferenciação entre um tempo próprio da ciência e um tempo que poderíamos chamar da primeira pessoa, parece-nos interessante para fins analíticos e descritivos. Uma aproximação entre a noção de duração bergsoniana e a temporalidade em Winnicott vem sendo proposta por outros autores, sobretudo Costa (2004) e Gondar (2005).
7. Podemos nos aproximar de uma definição sobre a du ração em Bergson por meio dessa passagem de sua Evolução criadora: “de resto, não há estofo mais resistente nem mais substancial. Porque nossa duração não é um instante que substitua um instante: jamais haveria a não ser o presente; nunca prolongamento do passado no atual; jamais evolução, jamais duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que rói o futuro e infla ao avançar. A partir do momento que o passado aumenta sem cessar, infinitamente ele também se conserva” (Bergson 1979, p. 16). Este aspecto está melhor desenvolvido em nosso artigo sobre a imagem corporal, que já foi enviado para publicação.