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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.21 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGOS

 

De um feminino ao outro1

 

From one femininity to the other

 

 

Viviane Carla Dall’Agnol

Escola de Estudos Psicanalíticos
Faculdade Montserrat, Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda a questão da construção da feminilidade, levando em consideração o processo de alienação e separação mãe/filha. A teoria psicanalítica, principalmente nas contribuições teóricas de Sigmund Freud e de Jacques Lacan, foi abordada e discutida, com o objetivo de auxiliar na elaboração deste construto, qual seja, a ressurgência da feminilidade.

Palavra-chave: Ressurgência, Feminilidade, Alienação/Separação, Maternidade, Relação mãe/filha.


ABSTRACT

The article examines the construction of femininity, taking into account the process of mother and daughter alienation and separation. The psychoanalytic theory, especially the theoretical contributions given by Sigmund Freud and Jacques Lacan, have been discussed with the aim of drawing up the construct, that is, the resurgence of other figures of femininity.

Keywords: Resurgence, Femininity, Alienation/Separation, Maternity, Mother/Daughter relation.


 

 

A questão relativa à construção da feminilidade é sempre um tema que oferece dificuldades, visto que esta é um objeto de estudo que de alguma forma não se deixa apreender. Entretanto, pode-se estudá-la por meio de elementos particulares, de sintomas e manifestações conexas a ela, as quais podem ser exemplificadas pela depressão, pelo abuso sexual e pela maternidade. Este trabalho, por sua vez e de uma forma diferenciada, tem o interesse de dar continuidade ao que os autores psicanalíticos, principalmente Sigmund Freud e Jacques Lacan, apresentaram como alternativas para a conceituação do que seja a feminilidade na mulher.

Para percorrer o caminho da construção da feminilidade, parte-se de um dado clínico referente à relação mãe/filha. Esse dado revela que entre mãe e filha existe uma especificidade, marcada pela via imaginária, que afeta o processo de alienação e separação proposto por Jacques Lacan. Apesar de Lacan (1972-73) afirmar que não é a anatomia que determina a forma pela qual homens e mulheres se posicionam do lado masculino ou feminino, mas a maneira como se submetem ao falo &– significante do desejo &–, somente a menina é enfocada, levando-se em conta a proposta de Freud (1905a) de diferenciação entre a constituição do menino e a da menina. Freud (1925) pontua que há uma ligação da menina com a mãe, a qual causa impacto diferenciado em relação à ligação do menino com a mãe. Esse impacto é vivido a posteriori, momento em que a separação entre as duas será percebida pela menina como uma falta de amor a ela. Bergès e Balbo (2003) também apóiam essa proposta, visto entenderem que o fato de a menina desejar inicialmente a mãe é o que lhe custa mais caro, pois a mãe é sempre o objeto de desejo da filha.

Nesse sentido, pode-se ter os casos clínicos de Sigmund Freud como referência singular do dado clínico, especialmente nos artigos Um caso de cura pelo hipnotismo (1892-93); Estudos sobre histeria (1893-95), particularmente os casos da Srª Emmy von N. e da Srtª Elizabeth von R.; e Fragmento da análise de um caso de histeria (1905b), mais conhecido como “Caso Dora”. Nesses casos, os traços histéricos são um sintoma comum, vinculado a uma estrutura recheada de imaginário, no qual se verifica a ligação de um feminino ao Outro.

No primeiro caso referido &– Um caso de cura pelo hipnotismo &–, trata-se de uma paciente com dificuldade em amamentar seus três filhos. O primeiro, depois de derrotadas tentativas, foi alimentado por uma ama-de-leite, mas diante do mesmo sintoma, quando do nascimento do segundo filho, Freud é chamado para escutar essa mulher. Nessa época, ele ainda utilizava o hipnotismo, e diante da fala da paciente, sugere que ela reclame seus direitos de ser alimentada, para que possa vir a fazer o mesmo com seu filho. Essa reivindicação dirigiu-se especificamente à mãe, o que ela não tinha o hábito de fazer. Após essa reclamação materna, a paciente começa a amamentar seu segundo filho. Esse fato ocorre novamente quando nasce o terceiro filho, e mais uma vez Freud é chamado para tratá-la, obtendo o resultado do alívio do sintoma, tocando no ponto mais importante, significante da relação mãe/filha. Havia nessa situação uma impossibilidade de alimentar seus próprios filhos, visto que sua própria mãe não a supria, não a alimentava, e dessa forma, ela (filha) não supunha outra maneira de dar o que não havia recebido.

Na Srª Emmy von N. observa-se do lado materno a dificuldade de colocar as filhas como objeto de desejo, visto que elas eram responsabilizadas pela perda de seu marido, em virtude de que na época do adoecimento deste, elas ainda demandavam muita atenção por serem pequenas. A Srtª Elizabeth von R., por sua vez, era uma filha exemplar, que ao se responsabilizar pela felicidade da família, anula-se como sujeito feminino, almejando um homem de outra mulher (a irmã).

Dora, por fim, revela o que Freud deixou de escutar, ou seja, que seu amor e sua questão de análise dirigia-se à Sra. K., e não ao Sr. K. A questão era saber como aquela mulher era feminina e cativava os homens, inclusive seu pai. Então, como refere Melman (2005), Freud questiona-se até o fim de sua vida sobre “o que quer a mulher?”, procurando teorizar uma questão que ele abordou falicamente. A pergunta que Freud (1933) faz &– “Was will das Weib?”, ou seja, “O que quer a mulher?” &– supõe a possibilidade dA mulher, posição complicada, e por isso transformada por Lacan (1972-73) para “uma mulher”. Dessa forma, pode-se levantar a hipótese de que Freud correspondeu à demanda da histérica, ou seja, de apontar sua falicidade e não sua falta, aquilo que a faria feminina, isto é, sua relação com uma Outra mulher, sendo essa primeiramente a mãe.

O que se coloca, dessa forma, é o processo de alienação e separação. A alienação, segundo Lacan (1964), é o momento em que há a fusão entre os significantes do bebê e do Outro. Isso porque o bebê é tudo para a mãe, o falo que a complementa, e assim ela procura fazer o mesmo para seu bebê, ou seja, por algum tempo ela encarna o Outro. Sabe-se do engodo dessa completude ideal, pois mesmo na alienação não é possível que o sujeito possa ser totalmente representado no Outro, porque esse Outro, para constituir um outro sujeito, deve ser barrado, estar marcado pelas três faltas indicadas por Lacan (1956-57) &– Versagung2 (frustração), Entbehrung (privação) e Kastration (castração). Caso contrário, o bebê será simplesmente uma extensão de seus genitores.

O processo de separação, por outro lado, configura a eterna presença da falta de que nem o Outro, nem o sujeito possuem a completude. Os três tempos do Édipo caracterizam esse processo de separação, a partir da frustração, da privação e da castração, em que não existe apenas um significante, mas que um significante auxilia a criação de outro significante. Eis o que Lacan explicita: “um significante é o que representa um sujeito para um outro significante” (1964, p. 197). Assim, produz-se um resto que formará o objeto a, objeto causa de desejo.

Essa segunda operação caracteriza-se pela diferenciação entre significantes do bebê e do Outro, ou seja, como sujeitos distintos e com significantes particulares, apesar de entrelaçados. Dessa forma, o sujeito aparece primeiro no campo do Outro, pois segundo Lacan, não existe sujeito sem o Outro. E como nos afirma Freud (1905a), quando a mãe ensina seu filho a amar, está apenas cumprindo sua tarefa; afinal, ele deve transformar-se em um ser humano capaz, dotado de vigorosa necessidade sexual, podendo realizar em sua vida tudo aquilo a que os seres humanos são impelidos pela pulsão. A separação encerra a circularidade da relação do sujeito ao Outro, produzindo o campo da transferência e o da suposição de saber, afastando o saber como tal.

A relação fundamental de alienação com o Outro é a preparação do bebê como sujeito, até que chega o momento de descolar-se da teoria do Outro. E quando esse momento de construir uma teoria própria ocorre, o que fazer com essas marcas e afetos deixados pela função materna? Como não se deixar apreender, e ao mesmo tempo usufruir desse espelho que aponta e diz a forma, como a mulher pode construir o caminho para a feminilidade? É chegada a hora de a menina crescer e desejar ser uma diferente de sua mãe. Nesse momento é que ela &– menina &– se encontra com ela: mulher feminina. Esse encontro significa ter que se enfrentar, para além do reconhecimento da diferença, para o desafio de construir um estilo feminino próprio.

Dessa maneira, a relação mãe/filha é fundamental na construção de uma outra mulher, na construção da feminilidade. Ao mesmo tempo em que a mãe é aquela que oferece os primeiros significantes a essa menina, alienação muito necessária, também é aquela que terá que oferecer um novo olhar e espaço para esses significantes femininos, agora presentes em sua filha. É uma demanda que possui duas mãos: a demanda de amor à filha e desta a sua mãe, o que faz parte da alienação. Segundo Zalcberg (2003), o fato de a mulher ter de continuar insistindo na demanda de amor à mãe para dar alguma consistência a seu ser, turva a distância a ser mantida entre demanda e desejo, dificultando o surgimento deste em sua vida, independentemente do desejo do Outro.

Assim, tem-se uma questão: até quando essa alienação é possível? Provavelmente até quando uma atender à demanda da outra. Ou seja, até que a filha ocupe o lugar de objeto a. Lacan (1971-72a) considera que esse objeto a é o que determina o ser falante quando tomado nos discursos. Entretanto, nada se sabe sobre ele, pois ele se apresenta como indício, não há como prever e determinar o desejo. E é isso que faz com que o sujeito seja singular.

Na dissertação de mestrado por mim realizada (Dall’Agnol, 2005), o caso Helena, construído para apontar o constructo da ressurgência, apresenta essas questões, que de forma sucinta relato a seguir. Helena permanece como objeto a até o momento em que ela, mediante suas dificuldades escolares, deixa a mãe sem respostas, sem o saber que até o momento supunha ter sobre ela e a filha. Esse não-saber foi um passo necessário para que Letícia (mãe de Helena) abrisse mão de um saber absoluto, pois procura uma analista que possa lhe oferecer algum saber. Todavia, a analista não oferece saber, mas uma escuta que começa a questionar a posição de Helena na vida dessa mãe, que desejou ter uma filha para sua companhia.

Acontece que Helena se protege dessa sabedoria por meio de um sofrimento muito particular, pois ao mesmo tempo em que deseja ter um saber próprio, portanto separado de sua mãe, é aterrorizante para ela supor um Outro somente seu, que não é compartilhado com o grande Outro materno. Isso atravessa grande parte da construção do caso, durante o qual Helena permanece alienada, arriscando por vezes movimentos de separação. E é somente a partir de uma separação supostamente efetiva que a feminilidade de Helena emerge.

Há algo que perpassa cada movimento de progresso que Helena realiza, qual seja, absorver aquilo que não lhe oferecem. A Helena é oferecido, principalmente pelo grande Outro materno, o que a cultura chamaria de muito amor, “uma mãe que faz de tudo por sua filha, não existindo mãe igual” (sic). Essa fala, escutada incessantemente no meio onde ela vive, indica que nada faltará a essa filha “tão amada”. Mas é exatamente esse ponto que se transforma no eixo do encaminhamento da questão de pesquisa sobre o que pode ser apontado a respeito das alternativas para a conceitualização do que seja a construção da feminilidade na menina, considerando a relação específica mãe/filha. O que a mãe pode oferecer à filha? A hipótese é de que lhe oferece esse não-saber; assim, é marcado o processo de alienação e separação.

Esse processo que Jacques Lacan apresenta instala-se e reinstala-se na vida de uma menina. Há sempre que se alienar e se separar de um Outro. Na construção da feminilidade, esse processo está de forma intensa vinculado ao Real, que vem mediante o registro Imaginário, e pode ser identificado como ressurgência.

O termo ressurgência origina-se em fenômeno natural, no qual as águas de um rio, depois de se tornarem subterrâneas em uma parte de seu curso, reaparecem na superfície do solo. Segundo o resultado da pesquisa, é um conceito que diz respeito a um momento particular de surgimento de algo que estava adormecido. Pode-se identificar, por exemplo, na adolescência, mas salienta-se que não são equivalentes. Ressurgência, dessa forma, é o momento em que aquela que era menina pode vir a tornar-se mulher fe-menina, configurando, assim, o que se propõe como terceiro momento da construção do enigma da feminilidade3. Um momento em que se deve pensar que além das mudanças corporais advindas da maturação biológica, ocorrem mudanças psíquicas, as quais são vividas paralelamente com as lembranças da infância. Essas recordações apresentam-se muito vivas, assim como no período anterior. Entretanto, existe uma diferença fundamental: o saber suplementar sobre essas vivências. Um saber que agora não depende somente do Outro materno, mas que está em construção, está sendo subjetivado intensamente, e transformado em uma teoria que é própria do sujeito. Dessa forma, o desligamento da autoridade dos pais &– pela qual se cria a oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a nova e a velha geração &–, é transformado no próprio pathos. É o sofrer pela paixão4 de ser eu mesmo. Dessa maneira, na ressurgência, o corpo ocupa uma posição privilegiada, em que o sintoma se instala, visto que ele é o lugar do Outro, substituto do primeiro Outro materno, não mais personificado.

Horney (1967) elabora uma contribuição referente ao momento da ressurgência adolescente, importante para tratar a questão da invasão do Real na mulher pela via imaginária, trabalhada na obra lacaniana. De acordo com a autora, duas condições concorrem para os problemas acerca da feminilidade: a primeira condição seria que mudanças na personalidade freqüentemente aparecem na adolescência, e são vistas como próprias de uma fase normal e até mesmo esperada, sem caráter patológico, apesar de esses conflitos terem suas bases na primeira infância. A segunda, que essas transformações surgem em torno da época da primeira menstruação, e somente em um momento posterior as mulheres são capazes de atentar para o impacto que esse acontecimento teve em seu psiquismo.

As possibilidades de mudanças decorrentes do desenvolvimento da puberdade, e mais especificamente pelo acontecimento da menarca, propiciam atentar para o que invade o corpo na ressurgência. É o Real do corpo que se instala, se escreve, e a partir daí, a menina procura várias formas de escrever o que vem de fora, o que não é passível de explicação, mas de tornar-se, inscrever-se no simbólico, através de uma falta. Nesse sentido, Horney (1967) realiza uma teorização importante, afirmando que de nada adiantam os esclarecimentos intelectuais referentes às transformações corporais, pois os medos são profundos e não são atingidos pela explicação; e que duvida de que casos como esses sejam acessíveis a algum tipo de psicoterapia com um instrumento que não a psicanálise. Isso porque essas transformações indicam uma fundação insegura em toda a personalidade. Ou seja, o corpo não é só corpo, nada há de normal nessa invasão que ocorre periodicamente no corpo feminino. É um acontecimento que devasta, ou seja, não é passível de não ser percebido, a menos que ocorra uma denegação, da qual as conseqüências podem ser lidas na tese de doutorado de Lacan (1932), no conhecido Caso Aimée.

Assim, o estado de ressurgência engloba um conceito importante da obra lacaniana &– ravage &–, que trata da devastação entre o sujeito em construção e o Outro. É a presença viva do Real que corta a possibilidade de uma equiparação psíquica e de identificação ao feminino materno. O desta será a constituição de um Outro feminino, do qual nem ela mesma (ressurgente) tem acesso a priori, quanto menos o Outro materno.

Sendo assim, na mulher o impacto do imaginário diferenciado, e que vem sendo construído desde sua origem, é o meio pelo qual a menina se utiliza para aceder ao status de feminina. É a partir desse impacto do imaginário com o Real que ocorre a possibilidade de inscrição no simbólico. Sendo assim, a ressurgência oportuniza o exercício da feminilidade. Ou seja, a menina que permanece alienada ao Outro não terá como se inscrever na ordem feminina, estará sempre à mercê de uma outra mulher, assim como ocorria nos casos freudianos, nos quais a histérica per faz et nefas5 produzia um feminino: um exercício falso, no qual o próprio sujeito esconde a ressurgência, o corpo que dele faz parte. É não fazer do corpo o templo, o espaço de interrogação do feminino, mas o depósito de seus sintomas. Há uma linha muito tênue entre o exercício da feminilidade, no qual a falta está sempre em voga, mas relacionada a uma nova escrita do próprio estilo, e o exercício da feminilidade produzida e teatralizada, para negar a necessidade de um eterno refazer, na qual a mulher produzida coloca-se como objeto diante do desejo do Outro.

Na cultura atual é comum estar de frente com uma mulher que tenta lidar com os excessos do cotidiano feminino &– os quais não são apenas os exercícios dentro do lar, mas também os fora dele &–, que causam verdadeiras tempestades, caso esse feminino seja forjado, pois sempre haverá um furo do qual ela não dará conta. A exigência de que se pode e se deve dar conta traz consigo uma posição preocupante, visto que a mulher enrijece sua maneira de exercer a feminilidade, e sempre usa a mesma máscara para não se deparar com a diferença. A feminilidade aparece como um sacrifício real feito a um Outro.

Não se trata, portanto, de identificar a feminilidade a uma estrutura psíquica, como comumente se faz com a histeria. A feminilidade possui uma estrutura própria, que se coaduna com a estrutura psíquica. É uma estrutura que mantém o campo aberto, saindo do campo do signo (corpo como corpo), e que na mulher aparece no Real do corpo.

Em suma, a ressurgência fornece os elementos necessários para realizar a presença da falta, e conseqüentemente da inscrição simbólica, fazendo e perfazendo o caminho entre o gozo fálico e o gozo Outro, entre estar alienada a uma lei, ao mesmo tempo que está separada dela. É saber que a mãe nada pode lhe ensinar/transmitir sobre a feminilidade, conforme indicado no caso Helena (Dall’Agnol, 2005). Esse nada, entretanto, deve ser recortado. Uma passagem do caso Helena pode exemplificar esse dizer.

Helena relutou um pouco diante do que estava acontecendo com ela. De alguma forma, não queria menstruar nem usar absorvente, mas esse fato veio a modificar inclusive sua posição no tratamento. Helena, que brincava muito no chão com jogos, inicia uma série de vai-e-vem entre o chão, a mesa e a poltrona. Ora brincava como uma menina, ora sentava na poltrona, falando ou não.

Nas sessões que transcorreram entre esse vai-e-vem, ela dizia: “não sou mais criança, né? (sic). Questiono: “não és mais criança, e agora, Helena?” (sic). Ao que ela responde: “sou uma moça” (sic). E a isso se soma uma série de sessões6 em que ela não ocupava somente um dos espaços, mas tomou conta de todo ele quando resolve brincar sobre o dia-a-dia de uma casa. Durante cinco sessões, em cada uma, ela retratava uma parte do dia, iniciando pelo café-da-manhã, depois almoço, trabalho, janta e dormir. Algo dentro desse espaço era recortado para tomar lugar e ocupar uma posição.

Passado esse tempo, Helena começa a pensar muito, fala muito pouco e brinca também muito pouco. Nesse momento, parece ocorrer uma desistência de Helena em atentar para o que pode ser modificado. Ela rende-se mais uma vez ao desejo da mãe, afirmando que a mãe sempre tem razão, e que ela não consegue fazer nada sozinha. Entrega-se pela fala: “Tenho que me conformar” (sic). Com-formar? No instante dessa fala há o deslizamento do significante, encontrando-se uma oportunidade de Helena novamente enfrentar o que a formava.

Essa palavra &– conformar &– entra na cadeia significante, sendo tomada em outra direção que não da pura identificação com o discurso materno. Os elementos da feminilidade materna são tomados como recursos para uma nova estruturação feminina, e dessa maneira, o traço de sua marca pode se inscrever; a mãe de Helena não mais se apresenta em seu discurso de modo unívoco, mas se fazia presente na apropriação de seus traços.

Nesse sentido, retoma-se a questão da alienação e da separação elaborada por Lacan (1964), propondo uma leitura em três tempos distintos, os quais serão exemplificados pelo caso acima mencionado.

O primeiro tempo é o de alienação &– Tempo de Aceitação &–, no qual a criança necessariamente diz sim para tudo que vem do Outro, não havendo possibilidade de ser diferente, pois esse Outro é aquele que constitui, transmitindo os primeiros significantes, que reconhece no bebê suas necessidades primordiais. Nas palavras de Helena, esse Outro é a fôrma que prende, fazendo uma borda para dar sustentação para que ela possa ter um ponto de partida, e no momento seguinte passar para o próximo tempo.

O segundo tempo é o da separação, marcado pelo não &– Tempo de Oposição &–, de reivindicar algo próprio, dispensando temporariamente os significantes que lhe foram impressos, negando tudo que vem do Outro, numa tentativa desenfreada de não ser igual, sendo diferente pelo seu avesso. No caso de Helena, o saber estava em sua mãe, enquanto ela era a menina que não sabia. O sintoma de dificuldade de aprendizagem enunciou seu processo de separação, abrindo a possibilidade de ela não ser formatada de acordo com a demanda do Outro, mas marcada por ele.

O terceiro tempo &– Tempo de Diversidade &– é aquele em que a criança aceita as marcas deixadas pelo Outro, levando em conta seu próprio estilo de carregar esses traços significantes. Tempo em que o sim da alienação é atravessado pelo não do tempo de separação, favorecendo o deslizamento significante, assim como ocorreu com Helena, em que o significante conformar possibilitou que &– por meio da fôrma, necessária e constituinte &– suplantasse uma nova forma, uma reinvenção a partir do primeiro modelo.

Sendo assim, o obstáculo que a mãe pode colocar a esse reconhecimento (o da própria castração) pode mostrar-se central na determinação da construção da feminilidade. E é somente frente à perda da mãe como eu ideal que a menina pode tê-la como inspiração, e não como protótipo da feminilidade. É a partir desse instante que ela poderá reinventar e exercer a feminilidade a cada nova composição.

A constituição psíquica da mulher feminina está, dessa maneira, inevitavelmente ligada à castração, mas há algo além dessa marca narcísica deixada pela falta, e que parece não estar circunscrita à questão fálica. A feminilidade está para além dela. Lacan afirma que “é do Real que a mulher toma sua relação com a castração. (...) O não todas quer dizer, (...) não [é] impossível que a mulher conheça a função fálica” (1971-72b, p. 43). Ou seja, é possível que a mulher assuma os riscos que advêm do Real, o que não significa que a mulher seja uma fora-da-lei, pois não está fora totalmente. Uma mulher feminina transita através do corpo Outro, entre o que pode e o que não pode, sendo o momento de ressurgência propício para essa experimentação das marcas deixadas pela infância.

O ressurgir é, dessa forma, colocar-se no caminho que transcende o pulsional, o Real, sustentado pelo traço imaginário da identificação, para construir um aparato psíquico e uma progressiva autonomia feminina. É quando o terceiro tempo se instala.

 

Referências

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recebido em 05/08/06
versão revisada recebida em 05/04/07
aprovado em 20/04/07

 

 

Viviane Carla Dall’Agnol
Psicóloga Clínica; Psicanalista em Formação; Mestre em Psicologia do Desenvolvimento (Universidade Federal do Rio Grande do Sul); Membro da Escola de Estudos Psicanalíticos; Professora (Faculdade Montserrat/RS)

1. Artigo extraído da dissertação de Mestrado De menina a mulher: um ensaio sobre o enigma da feminilidade na clínica psicanalítica, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Programa de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento, subvencionado pela Capes, no período de 2003 a 2005 (Dall’Agnol, 2005).
2. Versagung tem sido traduzido como frustração, mas tem um sentido mais positivo e claro quando utilizada a tradução impedimento. Um bom exemplo é “a tropa frustrou (impediu) o ataque inimigo”.
3. O primeiro e o segundo são respectivamente as relações iniciais e a experiência do complexo de Édipo.
4. Considera-se paixão a partir das acepções gregas páthos e páschein. O primeiro refere-se ao discurso de padecimento ou sofrimento da alma, enquanto o segundo é um indicador do discurso de passivamento da alma, no sentido de que quem passiva suporta, e não aquele que estagna frente a uma situação.
5. Pelo lícito e pelo ilícito ou por todos os meios.
6. Ato falho que a autora da dissertação teve durante a escrita da construção do caso. E, por se tratar de uma pesquisa psicanalítica manteve-se o “se” a mais, que indica na escuta “secessão”, significante que designa o ato de se separar do que estava unido.