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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.21 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGOS

 

O amor é fogo!

 

Love is fire!

 

 

Sandra Niskier Flanzer

Tempo Freudiano/Associação Psicanalítica
Unicarioca

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo destina-se a deflagrar o paralelo existente entre o amor e o vocábulo “fogo”, paralelo muito presente na clínica psicanalítica &– uma vez que o amor de transferência revela-se, para o analista, com sua face flamejante. Procura-se, também, acentuar o aspecto (contido na relação do sujeito com o Outro) da impossibilidade de um encontro perfeito. Para realizar esta aproximação, serão apresentados fragmentos de textos freudianos e lacanianos nos quais se pode encontrar a presença desses significantes específicos.

Palavra-chave: Amor, Transferência, Incompletude, Feminino, Sujeito.


ABSTRACT

This article intends to expose the existing parallel between love and the expression “fire”, so present in the psychoanalytic field, since the transference love reveals itself to the analyst with its flashy aspect. The article also intends to emphasize the aspect (included in the relationship between the subject and the Other) of the impossibility of a perfect encounter. In order to accomplish such approximations, fragments of Freudian and Lacanian texts will be presented, where the presence of these specific terms will be found.

Keywords: Love, Transfer, Incomplete, Feminine, Subject.


 

 

“O que acontece quando o martelo bate na rocha?
Saem centelhas.
Então, a centelha é o resultado do golpe
do martelo sobre a rocha.
Mas nenhuma centelha é o único resultado”
(Sabedoria Judaica)1

 

Pretendo, no presente artigo, salientar o caráter vívido, ardente, e por vezes até incendiário do amor de transferência, tão concernente à prática dos psicanalistas. Partindo da verificação clínica proposta por Freud de que “onde há fumaça há fogo”, discorrerei sobre o fogo (elemento curiosamente bastante citado nas obras de Freud e Lacan), a fim de apresentar suas interseções com a temática do amor. O que há de incendiário na sexualidade humana, bem como no encontro (impossível) entre um homem e uma mulher?

Tentarei responder esta pergunta, inicialmente apresentando, no item 1, o texto freudiano Sobre a aquisição e o controle do fogo (1932), referência que nos abre a uma abordagem do caráter fálico do sujeito psicanalítico, assim como a sua divisão estrutural. No item 2, examinaremos esse caráter fálico sob a ótica dos textos lacanianos, ótica esta que inclui uma certa mortificação na cena neurótica evidenciada pela histérica (que com seu corpete, revela o vazio). No item 3, relembro ao leitor um pequeno caso descrito por Freud em Sobre os mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos (1893) caso este dotado de significantes ligados ao vocábulo fogo, e que por isso nos permitem circunscrever o que está em jogo quando se trata do amor, segundo a psicanálise. Todas essas referências servem para ilustrar o que aqui pretendo salientar: que entre um homem e a mulher não há um encontro perfeito.

 

Introdução

Freud, em Observações sobre o amor transferencial, alude ao dito atribuído a Hipócrates para caracterizar a situação transferencial, alegando que as doenças que os remédios não curam, o ferro cura; as que o ferro não pode curar, o fogo cura; e aquelas que o fogo não pode curar devem ser consideradas “inteiramente incuráveis” (Freud, 1915[1914], p. 221). Portanto, para Freud o fogo advém como o elemento último, o mais poderoso. Neste mesmo contexto, ele também afirma que o amor é algo que irrompe a cena analítica, tal como se, durante uma peça teatral, surgisse repentinamente um grito: “Fogo!”. Dada a natureza estarrecedora que Freud atribui a este elemento ao longo de sua obra, realizarei um paralelo do fogo com o amor de transferência, rastreando as diversas referências freudianas e lacanianas acerca do fogo.

É Lacan quem oferece a mais fecunda alusão ao que se pode depreender de incendiário nas elaborações freudianas, ao analisar o sonho “pai, não vês que estou queimando?”, descrito por Freud no sétimo capítulo d’A interpretação dos sonhos (1900). Examinando o conceito de repetição, Lacan anuncia que todo sonho é um encontro marcado com um real que escapole. O pai, que deixara o filho morto sendo velado no quarto ao lado para ir descansar, sonha que o filho lhe interroga: “pai, não vês que estou queimando?”, e de fato, é subitamente despertado pela realidade queimante da vela tombada, que faz a cama e o braço do filho incendiarem-se. O sonho deste pai, diz Lacan, é exemplar daquilo que o texto de Freud sustenta de nodal: o encontro sempre faltoso. O sonho homenageia essa realidade faltosa, que só pode se dar repetindo-se, infinitamente, sem jamais atingir o despertar.

A frase promulgada pelo filho, prossegue Lacan, “ela própria é uma tocha &– ela sozinha põe fogo onde cai &– e não vemos o que queima, pois a chama nos cega sobre o fato de que o fogo pega no real” (Lacan, 1963/4, p. 61). O real é aquilo que está para além do sonho, que o reveste, camufla. Diz Lacan: “esta dimensão deve ser evocada num registro que não é nem do irreal, nem do desreal: trata-se do não-realizado. Não é jamais sem perigo que se remexe algo nesta zona de larvas”. Este registro do não-realizado parece referir-se a algo que não pode ser definitivamente decantado pelo simbólico, algo que resta sem representação. Quanto à zona de larvas, é precisamente o terreno que me interessa destacar. As articulações lacanianas extraídas do Seminário 11 primam por revelar também o aspecto flamejante da transferência, aspecto tramado na análise, que Lacan promove sobre o estatuto do inconsciente.

Se o fogo é o elemento que traz a mais estreita relação com o real (visto que Lacan afirma que “o fogo pega no real”), vejamos, a seguir, como isso se coloca a partir do texto freudiano.

 

Algumas referências freudianas sobre o fogo

Em A aquisição e o controle do fogo, de 1932, Freud correlaciona o fogo com a excitação sexual masculina, assim como a água com a micção, ao servir-se de uma interpretação sobre o mito de Prometeu. Esta correlação acerca da estreita associação, fisiológica e psíquica, entre as duas possíveis funções do pênis (a micção e a ejaculação) já havia representado a chave para a análise do primeiro sonho de Dora, exposta na descrição de seu caso clínico (1905[1901]), e reaparece novamente na narrativa do caso do Homem dos lobos (1918[1914]). Este artigo visa, ainda, ampliar uma nota de rodapé indicada em O mal-estar na civilização (1930), na qual Freud mencionara superficialmente suas formulações a respeito da aquisição humana do controle sobre o fogo.

Freud assevera a hipótese de que, com a finalidade de adquirir controle sobre o fogo, os homens tiveram de renunciar ao desejo de apagá-lo com um jato de urina. A maneira pela qual Prometeu transportou o fogo, tendo roubado dos deuses, escondido no interior de um “pau oco” e trazido aos homens, instigam Freud a afirmar que, por outro lado, o que os homens contêm em seu tubo-pênis não é o fogo, mas aquilo que serve para apagá-lo: a água, a urina. Para Freud, o fogo é análogo à paixão do amor, é um símbolo da libido, devido ao calor que irradia e também às suas chamas, que se assemelham ao falo em estado de atividade: “quando falamos do ‘fogo devorador’ do amor ou das chamas que ‘lambem’ &– comparando assim o fogo a uma língua &–, não nos distanciamos do modo de pensar de nossos ancestrais primitivos” (Freud, 1932, p. 230). Uma das suposições freudianas para o mito da aquisição do fogo é a de que o homem primitivo teria tentado, durante muito tempo, apagar o fogo com sua própria urina, este ato significando uma luta prazerosa com um outro falo. De fato, é ao registro fálico que ele parece se referir, ao utilizar o significante “controle”.

Um passo adiante leva Freud a relembrar fênix, a ave que “tão logo é consumida pelo fogo, surge rejuvenescida mais uma vez, e que de preferência e antes de ser uma alusão ao sol que se põe no crepúsculo vespertino, a fim de novamente erguer-se, é, muito provavelmente, uma alusão ao pênis que surge revivescido, depois de haver relaxado” (Freud, 1932, p. 231). Freud reconhece em ambos os mitos o mesmo conteúdo: o renascimento dos desejos, após estes terem sido “extintos pela saciedade”. Remonta, nada mais nada menos, do que à indestrutibilidade desses desejos.

O curioso é que Freud demarca, a propósito do que estou sublinhando, uma partição essencial, representada propriamente pelo órgão sexual masculino, que possui duas funções (duplicidade, segundo ele, experimentada pelo homem com evidente desagrado): ele serve para o esvaziamento da bexiga, bem como realiza o ato de amor que satisfaz o desejo da libido genital. Todavia, Freud destaca o fato de que, na realidade, esses dois atos são mutuamente inconciliáveis, tal como são incompatíveis o fogo e a água! Quando o pênis se encontra em estado de excitação (Freud o compara a um pássaro), e portanto, enquanto experimenta sensações que sugerem o calor do fogo, a micção é impossível. Por sua vez, quando o órgão está servindo para eliminar urina (a água do corpo), todas as suas conexões com a função genital parecem ter se extinguido.

Essa análise freudiana evoca algumas considerações. Encontra-se aí estampado um importante elemento &– a disparidade &– já elaborada por ele, por ocasião dos Artigos sobre a psicologia do amor (1910-1918), e novamente inserido no contexto fálico da sexualidade: ao sujeito desejante, ou isto ou aquilo. Em suas palavras, assim compõe-se a divisão dos humanos no campo sexual: “lá onde amam, não desejam; onde desejam, não podem amar”. Há uma incompatibilidade no terreno do amor, tal como são incompatíveis o fogo e a água: onde um pode brotar, o outro já se demoveu. A fim de realizar um paralelo entre o fogo e o amor, devemos conservar a idéia de que, para além das escolhas amorosas (implicando em que o sujeito perca necessariamente algo), a incompatibilidade é inerente ao próprio estatuto fálico. Pênis versátil, mas incompleto; fênix que renasce das cinzas a cada vez, anunciando que qualquer volúpia decorrente do desejo só pode se fazer valer por estar marcada pela morte, pelo incêndio que propriamente a constitui.

Freud estampa essa cisão, essa partitura, tão particular ao campo do amor. A impossibilidade de fazer coadunar a dimensão fálica com a realização sexual aqui designa a incompatibilidade atávica do campo dos investimentos pulsionais. Trata-se da incompletude fundamental do sujeito, do encontro com o que não se realiza de forma inteira. Se não há como conciliar as duas utilidades atribuídas ao pênis, isto conduz Freud a denominar, singularmente: “a antítese entre as duas funções poderia levar-nos a dizer que o homem apaga o seu próprio fogo com sua própria água” (Freud, 1932, p. 233).

Dinâmica curiosa, senão perspicaz, na qual se insere o sujeito no campo das articulações amorosas. É nesta direção que articulo que o amor é fogo: fundamentalmente no sentido de que há um real em jogo, nas entrelinhas das relações promovidas pelo amor. Algo não se apaga, algo insiste, seja por não encontrar conciliação possível no Outro, seja por asseverar que, no cerne da estruturação do sujeito há um antagonismo inerente, que revela, vez por outra, seu caráter ardoroso. Há algo, portanto, que estruturalmente teima e queima, estando para além do falo e de suas possíveis representações.

Este é o verdadeiro aspecto larval, tão próprio do sujeito, que intermedeia a relação do homem com uma mulher: as trevas as quais Freud tratou de escancarar nos exemplos mencionados em O estranho (1919), e ao designar, por meio deles, o caráter “demoníaco” da presentificação da pulsão de morte. Trata-se do inferno de onde emergem, para o sujeito, as labaredas do real. Ao localizar na representação fálica este estatuto demoníaco, Freud levanta o véu que a fantasia do sujeito esforça-se por tentar encobrir, tornando exposto o que há de mais candente no universo dos investimentos amorosos: o desatino de sua incompletude, descortinado na fogueira do amor.

 

O caráter fálico, presente na teoria freudiana, sob a ótica dos ensinamentos lacanianos

O falo fora determinado por Lacan, no Seminário 5, como um objeto privilegiado, dada a sua condição de significante. Ele ocupa um lugar específico no que se produz no significante no além do desejo, ou seja, em todo o campo que se situa para além da demanda. O falo, afirma Lacan, em geral, é o significante do significado. A questão do significante do desejo coloca-se neste contexto: o que exprimirá este significante do desejo não é um significante comum, mas na verdade algo que se deve a uma “forma prevalente do impulso, do fluxo vital, mas que nem por isso deixa de estar preso na dialética a título de significante”, com o que a própria passagem para o registro do significante “sempre comporta de mortificado para tudo que ingressa na dimensão do significante” (Lacan, 1957/8, p. 396 &– nosso grifo).

Há uma mortificação interposta, portanto, na dimensão fálica &– é o que se pode entrever, a partir dos postulados lacanianos, no cerne desta coletânea de artigos freudianos. Mais ainda: a mortificação é o que se pode depurar da experiência analítica. Isto ao que o sujeito se vê defrontado, esta mortificação, não é senão a feminilidade, determinando para o sujeito que, no escopo no desejo, há a presença de uma ausência. Isso se articula de forma a consumar aquilo que Lacan nomeou como a inexistência da relação sexual. Persigamos, então, alguns elementos da temática da feminilidade que nos lançam para mais perto desse fogo.

À posição da mulher na histeria, Lacan atribui como destino o movimento de fazer-se máscara. Ela faz-se máscara para, por detrás desta máscara, ser o falo. Todo o comportamento da histérica pode ser iluminado pelo gesto que ela faz, de levar a mão ao botão de seu corpete. Não se trata de olhar o que está por trás do botão, adverte Lacan, visto que, lá por detrás, onde está o falo, este não será encontrado. A histérica, em sua provocação, faz indicar o lugar &– para além da máscara &– de algo que é apenas apresentado ao desejo, já que a este não é oferecido acesso, pois que constitui algo, por um lado, marcado e apresentado por detrás de um véu, mas que, por outro, não pode ser achado ali. Anuncia Lacan, sobre a fala da histérica: “não vale a pena você abrir meu corpete, porque não encontrará o falo, mas, se levo minha mão ao corpete, é para que você aponte, por trás deste corpete, o falo, isto é, o significante do desejo” (Lacan, 1957/8, p. 393).

Então, o corpete da histérica visa marcar uma falta, representando para o sujeito a presença de uma ausência: a presença do vazio, da morte. A histérica está em posição de atestar aquilo que, para além dela, não se pode mesmo encontrar, pois não está em lugar algum. Neste sentido, lembremos que a histeria é uma estrutura de base; ela exemplifica a manobra neurótica por excelência, que assevera o que há de radicalmente perdido no terreno do amor. Na verdade, por meio de uma positivação, cada relação amorosa determina a existência de algo que não pode ser positivado, algo que mesmo a esfera do amor, por mais arredondada que seja, não possui recursos para fazer completar. Parafraseando Lacan:

Aqui, a mortificação ambígua apresenta-se sob a forma do véu, aquele que vemos reproduzir-se todos os dias sob a forma do corpete da histérica. Essa é a posição fundamental da mulher em relação ao homem no que concerne ao desejo, ou seja, que lá, atrás da combinação, sobretudo não vá procurar ver, porque, é claro, não há nada ali, nada a não ser o significante. Mas trata-se de nada além, justamente, do significante do desejo (Lacan, 1957/8, p. 396).

Elucidados pela manobra histérica, podemos admitir, com Lacan, que o amor, bem como a fantasia, primam por “velar o nada”. A fantasia (esse véu) promove que ali onde não há nada, haja o falo. Por detrás desse véu, desdobra Lacan, há &– bem como não há &– algo que não convém ser mostrado, algo sobre o qual se requer um certo pudor, ao preço de que se evidencie, para situar nos termos dos quais ora me valho, o demoníaco, o infernal. O véu que encobre o falo no homem é o mesmo que encobre o significante do falo da mulher. Diz ele: “o desvelamento que só mostra nada, isto é, a ausência do que é desvelado, é precisamente aquilo a que se liga ao que Freud chamou, a propósito do sexo feminino, o Abscheu, o horror que corresponde à ausência como tal, a cabeça da medusa” (Lacan, 1957/8, p. 396).

No artigo A cabeça da medusa (1940), Freud correlacionara o terror da visão da medusa ao horror da castração, da decapitação. O confronto com a cabeça da medusa (uma analogia ao órgão sexual feminino) torna seu espectador, literalmente, petrificado. Para além das considerações já pronunciadas por Freud a esse respeito em O tabu da virgindade (1918), então ligadas à impotência psíquica (que paralisa tanto o pênis quanto o sujeito), vale salientar que esta metáfora toma o lugar de uma representação dos órgãos genitais femininos. Segundo Freud, a metáfora “isola seus efeitos horripilantes dos dispensadores de prazer” (Freud, 1940, p. 330). Ora, temos aí indícios do quão cindida, cortada ao meio é a vivência, para o sujeito, do campo das pulsões, visto que não há como isolar coisa alguma nesta vida sem que se perca de um lado e de outro. Mais que isso: não há como isolar o que já é, por si mesmo, oculto e tenebroso, isto é, a feminilidade propriamente dita. Sobre este aspecto, acena Lacan, no Seminário 10:

É enquanto que ela quer meu gozo, isto é, gozar de mim &– não pode haver outro sentido &– que a mulher suscita a minha angústia, e isto por uma razão simples, inscrita há muito tempo em nossa teoria: é que não há desejo realizável sobre a via na qual o situamos senão implicando a castração. É na medida em que se trata do gozo, isto é, que é a meu ser que ela quer mal, que a mulher só pode alcançá-lo, castrando-me (Lacan,1962/3, Lição XIV, p. 10).

Uma mulher revela para o homem seu quinhão a ser perdido; ela sinaliza, potencializa, a presença da morte no interior de seu desejo, representada pela castração. O véu que a encobre, trabalho ofertado de bom grado pelo amor, é também a revelação de uma angústia. Tal como faz a histérica na dinâmica do corpete, o véu promovido pelo amor é também o véu que vela o falo.

Sobre isso, remeto novamente à “vela” que incendeia o quarto do filho, no sonho “pai não vês”: como vimos, ali o filho está sendo “velado”. Prova de que o que há para além da realidade faltosa prima por esconder-se, ocultar-se. No entanto, isso não descansa, e é por isso que o pai acorda em desespero: pois ele desejara, por instantes, repousar. Pode-se considerar que essa cena também denuncia a inerência de uma partição, uma vez que o pai, assim como todo sujeito, na verdade sonha a fim de continuar dormindo. Perspectivando esta cisão, conclui-se que não há mesmo, para o sujeito em pleno exercício pulsional, muito descanso possível.

Sobre essa partição, apontada por Freud na metáfora da cabeça da medusa, aproveito para aludir ao impossível que há no terreno do amor. O amor é como uma esfera (síntese proferida por Lacan no Seminário 8, 1960/1). Esta esfera, que serve ao sujeito para oferecer-lhe a ilusão de uma completude, Lacan irá chamar, no Seminário 20, de tendência a se fazer Um (o Um da unidade, da fusão, da totalidade): “nós dois somos um só”. Todo mundo sabe, com certeza, que jamais aconteceu, entre dois, que eles sejam só um, mas, enfim, nós dois somos um só. É daí que parte a idéia do amor (Lacan, 1972/3, p. 65).

No entanto, o amor é uma ilusão. Recoloca em cena, para o sujeito, uma divisão estrutural. Estou tratando de cernir a presença de uma ausência no cerne dessa esfera, a notícia de que o objeto (a), por não ter feito parte dela, não será, justamente por isso, capaz de fazê-la encaixar. Estou buscando figurar a precisão de uma articulação subjetiva expressa nos movimentos do sujeito, que reafirma a irredutibilidade de uma falta. Ao delegar ao Outro a incumbência de vir a aplacar a angústia, decorrente desse ardente corte inaugural, e ao conferir-lhe o lugar dessa metade perdida a ser recuperada, o sujeito só faz debruçar-se mais ainda sobre a angústia; daí a natureza desatinada e pungente de todo amor. É neste sentido que ressalto que o amor é fogo.

O amor é fogo! “É fogo”, tal como popularmente bradamos, quando aludimos a algo que nos incomoda bastante. O amor é fogo exatamente pelo fato de que, ao aceder ao lugar desejante, o sujeito torna-se apto a perceber que o Outro de maneira alguma constitui um objeto total (capaz de devolver a essa esfera seu estatuto de inteireza). Ao contrário, o sujeito repara &– daí seu ardor &– que é por esse movimento que o Outro se torna, ele mesmo, totalmente objetalizado, devido a ser agora o instrumento do desejo do sujeito.

Nesta perspectiva, Lacan confere, no Seminário 20, a verdadeira dimensão do Outro, “mostrando que, como lugar, ele não se agüenta, que ali há uma falha, um furo, uma perda. O objeto a vem funcionar em relação a esta perda” (Lacan, 1972/3, p. 41). Lacan ressalta que aí se determina algo de completamente essencial à função da linguagem. Mais adiante, ainda no Seminário 20, ele interroga: “o que há com este Outro? O que há com sua posição em vista deste retorno pelo qual se realiza a relação sexual, isto é, um gozo, que o discurso analítico decantou como função do falo, cujo enigma resta inteiro, pois ela só se articula por fatos de ausência?” (Lacan,1972/3, p. 54).

São esses fatos de ausência que deflagram a imprecisão do encontro amoroso. É daí que se descortina para o sujeito uma sensação extremamente “vertiginosa e nauseante”, o “fenômeno labiríntico”, ao qual Lacan alude no Seminário 5 (Lacan, 1957/8, p. 397). Podemos correlacionar esta experiência da iminência de uma queda com o que fora abordado por Freud a propósito do unheimlich, sob o nome de visão do horror, presença do demoníaco, a fim de balizar aquilo que, com Lacan, nos faz chegar à seguinte fórmula: “não existe nenhum suporte do amor, já que, como eu lhes disse, dar amor é não dar nada que se tenha” (Lacan, 1957/8, p. 397 &– grifo nosso). Eis a faceta, por assim dizer, insuportável do amor. É seu labirinto incendiário, sua queda vertiginosa, aquilo que abrasa verdadeiramente o sujeito.

Entretanto, amando, o sujeito torna mais suportável aquilo que, paradoxalmente, o próprio amor o conduz a ratificar. Eis as voltas concernentes ao amor. Se o caminho do desejo é o que marca esta operação, Lacan ressalta, no entanto, o caráter ilusório do desejo, bem como a certeza ligada à angústia, no Seminário 10:

O desejo é ilusório. Por quê? Porque se dirige sempre para outro lugar, para um resto, constituído pela relação do sujeito ao Outro que vem se substituir aí. Mas isso deixa em aberto o lugar onde pode ser encontrado o que designamos com o nome de certeza. Nenhum falo em definitivo, nenhum falo onipotente é de natureza a fechar a dialética da relação do sujeito ao Outro e ao real, pelo que quer que seja de uma ordem apaziguadora (Lacan, 1962/3, Lição XVIII, p. 09).

Costurando estas várias considerações teóricas, seja o que for que procure velar, o amor, analogicamente representado pelo corpete da histérica, promoverá necessariamente aquilo que o falo assinala de mais incompleto. Seja o que for que o recurso ilusório do amor &– utilizado pelo sujeito do alto de sua face onipotente &– procure esconder, esta tentativa, em geral, vem fracassar. Pois há sempre o real, nada apaziguador, inconcluso e indeterminado por excelência.

 

Fragmento de um caso de histeria: onde há fumaça, há fogo

Para complementar este paralelo entre o amor e o fogo, realizo uma pequena imersão na seara dos exemplos clínicos freudianos, trazendo à tona um fragmento minucioso, descrito por Freud em Sobre os mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos (1893). Lucy, 30 anos, sofria de um mal curioso: perdera todo o sentido do olfato e era perseguida por sensações olfativas subjetivas, que lhes eram muito aflitivas. Sua percepção do nariz como órgão dos sentidos estava ausente. Quando Freud lhe indaga qual era o odor subjetivo pelo qual era mais constantemente perturbada, ela responde: “um cheiro de pudim queimado”. Freud presume, a princípio, que um cheiro de pudim queimado teria de fato ocorrido em sua experiência, atuando-lhe como trauma. Diz ele: “resolvi, então, fazer do cheiro de pudim queimado o ponto de partida da análise” (Freud, 1893, p. 128). A narrativa que se segue a esta afirmação dá conta de elucidar os inúmeros percalços e tropeços de Freud em seu percurso interpretativo, desembocando no seguinte desfecho: Lucy, que tomava conta de duas crianças órfãs de mãe, na verdade estava perdidamente apaixonada por seu patrão, e o tal cheiro de queimado ocorrera no momento em que ela recebera uma carta que a lançara na perspectiva de ter de abandonar a família para a qual trabalhava.

À medida que ele localizava as origens do cheiro de pudim queimado, o sintoma de Lucy se dissipava, até sua alta da análise. Mas Freud volta a intrigar-se, pois ela padece novamente e é obrigada a retornar a seu consultório algum tempo depois, acometida pela mesma moléstia, expressando-lhe que vinha sendo agora importunada por um outro cheiro, desta vez... o da fumaça de um charuto! Este charuto, conforme as interpretações de Freud permitem deslindar, vem significar, uma vez mais, a ocorrência de seu amor desenganado.

Pois então, vemos aí que o amor insiste. Este cheiro de queimado, advindo de qualquer objeto que seja, qualquer objeto que ali desempenhe o papel de figuração (no caso, curiosamente sempre associado à fumaça), teima em designar a presença encarnada de um amor fracassado. Amor este, por um lado, acentuado e abalizado pelo sintoma, mas por outro, camuflado, apenas insinuado. Tal como o corpete da histérica.

Pode-se supor, assim, que o cheiro de queimado é sempre uma conseqüência vivaz, que declara e ressalta aquilo que na verdade não está propriamente ali. Está oculto, uma vez restringido pela barra do recalque. Ao mesmo tempo, a fumaça é um sinal que avisa e sustenta que haja algo ali. E o que é que está ali? Para surpresa geral do sujeito, ou nem tanto assim, o que está ali é precisamente o amor, ilustrado com enorme propriedade nesse caso. Lá está o amor, e ele indubitavelmente pega fogo! Embora às vezes não se comporte tão escondido e acobertado assim. Utilizando-me deste exemplo como metáfora, a fumaça assinala enfaticamente a presença do amor, e faz alertar ao sujeito que há, na finalidade mesma do sintoma, um chamuscante desejo insatisfeito. Em uma análise, o analista deve perseguir esse cheiro de queimado. Ele constitui o ponto de partida, tal como as indicações de Freud permitem concluir.

O sujeito é sempre o ponto de partida do discurso analítico (esse ponto de partida esfumaçado que destaca Freud). Com Lacan, aprendemos que o sujeito não é outra coisa senão aquilo que desliza em uma cadeia de significantes. A fim de demonstrar que o signo se diferencia do significante, por exemplo, ele afirma, no Seminário 20:

Desde sempre, a teoria cósmica do conhecimento, a concepção do mundo vem brandir o exemplo famoso da fumaça, que não há sem fogo. E por que não colocaria eu aquilo que me parece? A fumaça bem pode ser também o signo do fumante. E mesmo ela o é, sempre, por essência. Não há fumaça senão como signo do fumante. Todos sabem que, se vocês vêem uma fumaça no momento em que abordam uma ilha deserta, vocês dizem logo para si mesmos que há todas as chances de que lá haja alguém que sabe fazer fogo. Até nova ordem, será um homem (Lacan, 1972/3, p. 68).

Assim, podemos aferir que o signo não é signo de alguma coisa, mas sim aquilo que significa que haja ali um significante &– um homem, uma mulher, qualquer coisa &–, que advenha como efeito do funcionamento do significante. A fumaça não é signo de algo para alguém, mas sim, signo do fumante. O signo, no amor, é sempre signo de um sujeito que ama &– um homem, mesmo que do sexo feminino.

Em Análise terminável e interminável (1937), Freud confere uma direção precisa para a análise. Questionando o american way of live, que visa apressar o decorrer das interpretações do inconsciente, tece uma ácida crítica à ótica de Rank, que presumia que se o paciente fosse capaz de lidar com o trauma do nascimento por meio de uma análise, estaria para sempre livre de toda a neurose. Freud realiza, então, a seguinte consideração, muito própria daquilo que procurei descrever neste artigo:

Não ouvimos muito sobre o que a colocação em prática do plano de Rank fez pelos casos de doença. Provavelmente, não fez mais do que faria o Corpo de Bombeiros se, chamado para socorrer a uma casa que se incendiara por causa de uma lâmpada a óleo emborcada, se contentasse em retirar a lâmpada do quarto em que o fogo começara. É fora de dúvida que, por esse meio, seria conseguida uma considerável diminuição das atividades dos bombeiros (Freud, 1937, p. 01).

Ao analista cabe poder lidar com esse implacável fogo. Não o fará, no entanto, sem emprestar a isso uma boa dose de sua angústia. Quanto ao sujeito, todas estas considerações levam a concluir que este é mesmo como “cinza”: preto e branco são duas metades que não o confortam, embora ele faça delas seu leme. Por vezes, ele entrega-se ao fogo &– seus amores &– para depois ser recolhido pó, aqui e ali, entre uma análise e outra.

Finalizo com a ilustração do corpete da histérica &– aquilo que sustenta que não haja nada ali. Esta alusão lacaniana decreta algo acentuadamente engendrado na estética feminina, e na cotidiana preocupação com a beleza, tão própria das mulheres. Assim, torno ao núcleo do que Lacan postulara no Seminário 10, ainda sobre o Unheimlich, para lembrar que o belo é o último recurso do sujeito antes da angústia. O que se encontra por trás da mulher, mesmo a mais encantadora delas, é a presença do nada. É com isso que se depara cada sujeito mergulhado na transferência caso, por sorte, encontre diante de si um analista. E caso, por coragem, consinta em se deixar entrecortar por essa experiência clínica tão ardente e chamuscante proposta, há mais de um século, pela psicanálise.

 

Referências

BREUER, J; FREUD, S. (1893). Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. vol. II.        [ Links ]

FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. vol. IV.        [ Links ]

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recebido em 02/12/04
versão revisada recebida em 13/03/07
aprovado em 16/03/07

 

 

Sandra Niskier Flanzer
Psicanalista; Doutora em Psicanálise (UFRJ); Membro do Tempo Freudiano/Associação Psicanalítica; Professora (Unicarioca).

1. Sabedoria judaica: TB Sanhedrin 34a; cf. TB Shabbath 88b.