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Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.11 no.21 São Paulo Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

Transformação e “cura” através da experiência de ser mãe

 

Transformation and “cure” through the experience of being a mother

 

 

Eliana Marcello De Felice

Faculdade de Psicologia, Universidade São Francisco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os estudos psicanalíticos sobre a maternidade revelam a importante influência da relação da mulher com a figura materna sobre as vivências emocionais relacionadas ao desempenho do papel materno. Antigos relacionamentos conflitivos e infelizes com a própria mãe estão geralmente na base de intensas angústias experimentadas pela mulher em sua condição materna. Pela análise do caso de uma mulher em sua primeira experiência de maternidade, este artigo pretendeu demonstrar que apesar dessa influência, existe a possibilidade de a maternidade converter-se em uma experiência psicologicamente transformadora e capaz de promover um efeito “curativo” para a mãe, ajudando-a a superar parcialmente seus primitivos conflitos com a própria mãe. O caso exemplifica a possibilidade de a maternidade atuar como uma “experiência emocional corretiva”.

Palavra-chave: Maternidade, Relações mãe-criança, Experiência emocional corretiva, Estudos longitudinais, Psicanálise


ABSTRACT

Psychoanalytical studies on maternity show the important influence of the woman’s relationship with maternal figure upon the emotional experience related to the performance of the maternal care. Past conflictive and unhappy relationships with her own mother are usually the basis of intense anguishes experienced by the woman in her maternal role. Through the analysis of a case of a woman in her first experience of maternity, this paper aims to demonstrate that, in spite of this influence, it is possible that maternity works as a changing psychological experience and being able to promote a “curative” result to the mother, helping her to partially resolve past conflicts with her own mother. The case exemplifies that maternity can act as a “corrective emotional experience”.

Keywords: Maternity, Mother-child relations, Corrective emotional experience, Longitudinal studies, Psychoanalysis


 

 

Diversos autores da psicanálise buscaram compreender os significados psicológicos da maternidade e suas origens em épocas remotas do desenvolvimento da menina. Entre eles, Klein (1975), que trouxe contribuições fecundas e inovadoras acerca do tema, ao descrever as fantasias da menina com o corpo da mãe e sua influência sobre a relação que ela vai estabelecer com seus bebês imaginários, e mais tarde com os bebês reais. Essas fantasias estarão na base de diversas angústias e sentimentos de culpa que a menina, e futuramente a mãe, experimenta em seus desejos de maternidade. A realização desses desejos, representada pelo nascimento de um filho, ao mesmo tempo que é fonte de ansiedades e temores, é também geradora de grande prazer, ao permitir uma feliz renovação das primitivas ligações da mulher com a própria mãe.

A relação da mulher com a figura materna tem geralmente forte destaque nos trabalhos psicanalíticos sobre a maternidade, por sua intensa influência sobre as vivências que a mulher experimenta ao se tornar mãe. Os clássicos trabalhos de Deutsch (1951) e Langer (1981), por exemplo, destacam o papel da relação mãe-filha, desde seus primórdios, na experiência psicológica da maternidade. Em trabalhos anteriores (De Felice, 2000, 2004), foi possível verificar que a instalação segura de uma “boa mãe” no mundo mental da mulher constitui-se geralmente na principal fonte de bem-estar e segurança para realizar seu papel de mãe. Inversamente, quando essa figura materna bondosa não se encontra firmemente estabelecida, predominando sentimentos de desconfiança e hostilidade na relação com a mãe interna, isto se converte na principal fonte de angústias e sentimentos de culpabilidade que acometem a mulher em seu percurso pela maternidade.

As relações da mulher com a própria mãe vão gerar modelos internos de maternidade. Modelos positivos, que transmitem a idéia de que ser mãe é uma experiência gratificante, feliz e enriquecedora, e modelos negativos, que contêm a imagem de mãe escrava, infeliz, sobrecarregada e danificada, são incorporados pela mulher desde sua infância. Tais modelos farão parte do universo mental feminino, e com eles a mulher tende a se identificar ao cumprir seu papel materno.

A forte influência das experiências infantis e do vínculo com a própria mãe sobre a experiência de maternidade levou alguns autores a discutirem sobre a existência de uma transmissão intergeracional. Welldon (1991), por exemplo, afirmou que a psicopatologia da maternidade pode ser vista como o produto de instabilidade emocional e individuação inadequada, causada por um processo que envolve, pelo menos, três gerações. Cramer (1997) enfocou a transmissão da visão de feminilidade e de maternidade de mães para filhas, e afirmou que são transmitidas representações do papel materno, que sempre carregam imagens do relacionamento passado entre mãe e filha de uma geração anterior. Verificando como as representações e configurações afetivas da mãe influem sobre o estilo de vínculo que ela vai estabelecer com seu bebê, Ammaniti (1991) discutiu extensamente a transmissão intergeracional dos modelos de representação e das configurações afetivas pessoais.

Os estudos citados trazem evidências de que a maternidade tem suas raízes nas etapas mais precoces do desenvolvimento da menina, e possivelmente até antes de seu nascimento, ligando-se às experiências de maternagem e relacionamentos mães-filhas que fazem parte das histórias familiares anteriores à sua existência.

Neste artigo, pretende-se demonstrar, por meio do caso de uma mulher em sua primeira vivência de maternidade, que apesar da tendência à repetição, na experiência materna, dos modelos incorporados e dos padrões estabelecidos nas relações anteriores mãe-filha, existe a possibilidade de que a maternidade se converta em uma experiência psicologicamente transformadora e capaz de promover um efeito “curativo” para a mãe, ajudando-a a superar parcialmente seus primitivos conflitos com a própria mãe.

O caso mencionado refere-se a Helena, nome fictício dado a uma participante de uma pesquisa de doutorado que tinha como objetivo realizar um estudo psicanalítico sobre a evolução da experiência de maternidade. Helena foi entrevistada inicialmente aos sete meses de gestação e em três momentos após o parto: aos quinze dias, um ano e meio e três anos.

Com trinta anos de idade na época da gestação, casada havia cinco anos, Helena engravidou pela primeira vez, fato que não ocorreu de forma planejada. Seus sentimentos com relação à gravidez eram muito ambivalentes. Quando soube que estava grávida sentiu-se em “estado de choque” e “muito perdida”, temerosa quanto ao futuro. Mas experimentou ao mesmo tempo um sentimento contrário, de aceitação do fato, e lembrou-se de um sonho, no qual havia encontrado um tesouro embaixo de uma piscina, o que a fazia pensar que a gravidez tinha-lhe uma significação mais positiva do que imaginava.

No decorrer da gestação, sua ambivalência persistia. Ao mesmo tempo que se sentia feliz com a perspectiva de ser mãe, afirmava não gostar de criança e não queria ouvir falar em enxoval ou maternidade. No entanto, gostava de observar as mudanças no corpo, cuidar da própria alimentação... Sua ambivalência em relação à gravidez e ao bebê (imaginário) refletiu-se também em um sonho, no qual ela se via mãe de um filho “horroroso, com o cabelo espetado, um nariz horrível e a pele cheia de buraquinhos”. Ao mesmo tempo que ficou decepcionada, achava-o lindo. O bebê imaginário amado, e ao mesmo tempo odiado e atacado, corporificou-se no sonho.

A forte ambivalência de Helena no tocante a sua gravidez denotava seus conflitos com relação à maternidade. Estes, por sua vez, pareciam estar ligados aos intensos conflitos que ela possuía com relação à figura materna. O vínculo de Helena com sua mãe sempre foi marcado por muita hostilidade e mágoas, como ela descreveu:

Minha mãe tem uma mentalidade muito negativa, me atrapalhou muito. Ela vivia sempre muito nervosa, chegava em casa batendo. Ela também me critica muito. Todo macacãozinho que compro ela diz que é feio, critica minha comida... Me colocando no lugar dela, às vezes penso: será que eu falaria isso para o meu filho? Será que ela não tem nenhum discernimento?

Segundo Helena, a mãe sempre lhe passou idéias negativas e repletas de desvalorização sobre a mulher. Helena relacionava-se com uma figura materna (interna e externa) que atacava sua feminilidade, e no momento atual atacava sua gravidez. Ela referiu-se a um intenso sentimento de incômodo que ela experimentou frente aos comentários de uma tia (representante da mãe interna) de que o corpo da mulher grávida se tornava deformado, o que refletia esses aspectos. A relação difícil e conflituosa com a mãe externa provocou a internalização de uma figura materna persecutória e destrutiva, gerando intensas angústias, que impediam Helena a possibilidade de usufruir plenamente o sentimento de alegria e realização por sua gravidez.

A partir desses conflitos com a figura materna, Helena passou a imaginar e desejar uma filha. Desconhecendo o sexo do bebê, descreveu suas expectativas com relação ao fato:

Agora eu gostaria que fosse uma menina, porque a gravidez me fez descobrir um monte de coisas sobre a mulher, e a gente ouve desde pequena um monte de bobagens sobre a mulher, como desvalorizada, e se for mesmo uma menina, vou me esforçar para não passar isso prá ela. Não sinto mais as mulheres como mais frágeis, inseguras, inferiores. Me senti assim a vida inteira, minha mãe sempre me passou essa idéia negativa sobre a mulher.

Através da filha imaginária, Helena desejava ter uma outra chance, recuperar sua auto-estima e recomeçar uma nova vida, na qual poderia construir um vínculo mãe-filha diferente do que viveu.

Entre os medos que Helena nutria durante sua gravidez, figurava o temor de um possível parto cesárea. Este lhe parecia uma intervenção na qual seu bebê lhe seria “arrancado” por uma equipe médica, que iria interferir e não respeitar seu ritmo natural. Esse temor parecia relacionar-se a uma angústia persecutória em relação a um objeto mau (a equipe médica), que ameaçava roubar seu bebê e provocar uma separação abrupta e violenta entre mãe e filho.

No tocante ao relacionamento conjugal, Helena afirmou ter sido sempre satisfatório e amoroso, porém durante sua gravidez o marido se afastou sexualmente dela, o que lhe provocou fortes sentimentos de abandono. Parecia que o afastamento do marido havia acentuado em Helena seus sentimentos de desvalorização, contra os quais ela tanto lutava, gerando-lhe muita mágoa e hostilidade em relação a ele.

Quinze dias após o parto, Helena foi visitada novamente. Tinha agora uma menina e relatou que por decisão da equipe médica, foi feito um parto cesárea. Suas angústias persecutórias expressas na gravidez, com relação a uma possível cesariana, permaneceram ativas durante o parto, levando-a a sentir essa experiência como muito ameaçadora.

Os primeiros contatos com a filha mobilizaram em Helena fortes sentimentos de amor e afeição:

Toda vez que ela chegava, eu chorava, eu olhava prá ela, me dava uma emoção tão grande, eu olhava aquele olhinho perdido de recém-nascido, e aquela mãozinha! A primeira vez que ela tocou no meu peito, me deu uma emoção, eu só chorava.

Porém, após poucos dias, Helena começou a se sentir atormentada por fantasias de morte e destruição em relação à filha:

Aí eu comecei a pensar nela, se eu ia cuidar dela, eu lembrava aquelas histórias de mãe que deixou o filho cair no chão, mãe que deixou o filho sufocar, sabe aquelas histórias? Eu fiquei morrendo de medo de fazer alguma coisa ruim prá ela... Eu tenho tido muitos pensamentos estranhos... Sabe aquelas mães que ficam nervosas e jogam o bebê longe?

Este material sugeria que Helena estava em contato com seus próprios impulsos hostis em relação ao bebê, identificada possivelmente com uma “mãe má”, cheia de ódio da filha. Ao mesmo tempo, seus sentimentos de amor por ela criavam uma situação de muita ambivalência, acarretandolhe preocupação por seu bem-estar e fortes sentimentos de culpa. Esta situação emocional correspondia à descrição de Klein sobre a atuação das angústias depressivas:

é o conhecimento inconsciente do ego, de que o ódio, bem como o amor, existe também, e que em qualquer momento pode chegar a dominar (a ansiedade do ego de ser arrastado pelo id, destruindo assim o objeto amado), o que provoca a dor, os sentimentos de culpa e o desespero que formam a base da tristeza (1981, p. 366).

A ocorrência de um episódio veio a reforçar as angústias que Helena vinha experimentando: enquanto estava sob os cuidados da avó paterna, a filha de Helena engasgou, chegando a desmaiar e tendo que ser levada para o pronto-socorro. Tal episódio atuou em Helena como uma confirmação de que suas fantasias de morte poderiam se concretizar, e a partir de então ela sentia que não poderia mais “desgrudar os olhos” da filha.

No entanto, Helena foi aos poucos conseguindo superar suas angústias. Suas forças de vida foram mobilizadas e seu intenso amor à filha ajudavam-na a superar seus temores de causar algum dano a ela e de não conseguir ser uma boa mãe. Paulatinamente, começou a se sentir mais feliz e realizada no papel de mãe.

Da mesma forma, seus antigos sentimentos de não ser merecedora do privilégio de ser mãe, provavelmente oriundos da relação com uma figura materna internalizada muito acusatória &– que lhe negava a permissão para ser mãe &– vinham sendo aos poucos eliminados:

Sempre me passou essa idéia de se eu merecia um nenê... Comecei a relaxar, comecei a pensar que é uma coisa tão boa que Deus me deu, e se eu tenho é porque eu mereço... Estou perdendo aquela angústia.

O relacionamento de Helena com o marido encontrava-se mais harmonioso nessa fase, inclusive com a superação das dificuldades na vida sexual que ocorreram durante a gravidez. O apoio que Helena recebia dele era-lhe muito benéfico, ajudando em muitos momentos para que suas angústias fossem acalmadas. Seu estado de maior tranqüilidade possibilitavalhe entrar em contato mais íntimo com a filha, já que diminuíam seus temores de ocasionar-lhe algum mal: “eu e ela estamos nos entendendo mais, já sei agora pelo olhar dela quando ela quer mamar”. O estado de “Preocupação Materna Primária”, descrito por Winnicott (1982) ia se instalando mais fortemente.

Um ano e meio após o parto, Helena iniciou seu relato afirmando que se transformou: percebia-se agora mais flexível, menos ansiosa e ao mesmo tempo surpresa com o fato de conseguir pensar sempre na filha em primeiro lugar. Verificava que não se importava por ter que alimentar e banhar a filha antes dela própria comer e tomar banho, o que antes acreditava que lhe seria muito pesado e difícil.

Estes aspectos pareciam estar associados a um dado da história de Helena, relativo ao fato dela possuir uma irmã gêmea. Até aquele momento, parece que a imagem da filha “misturava-se” à da irmã gêmea, e ela acreditava que teria que abrir mão do que era dela em favor da filha. Como com a irmã, ela teria que esperar para ser alimentada, banhada... Porém, Helena possuía recursos internos suficientes para conseguir fazer uma discriminação e assim passar a ver a filha como uma criança e ela como mãe, e não como duas rivais. Essa capacidade permitiu-lhe fazer renúncias &– de não ser a primeira &– sem ódio e com mais resignação.

A filha respondia a todo tratamento que lhe era dado e mostrava-se uma criança tranqüila, alegre, que dormia e comia bem. Estava sempre “de bem com a vida”, como Helena a definiu. Quando chorava ou ficava indócil, a mãe via nisso um pedido, uma necessidade, e não uma exigência. Dessa forma, o relacionamento entre mãe e filha vinha evoluindo muito satisfatoriamente. Helena sentia que conseguia compreender bem a filha, “entender o que é ter um ano e meio”, como ela expressou. Da mesma forma, a filha também a compreendia e sabia lidar com a mãe, por exemplo quando esta ficava nervosa. Havia entre as duas um entendimento afetivo muito adequado e uma relação de troca e respeito. Helena parecia haver conseguido realizar com a filha seu desejo de ter uma outra chance...

Com relação às angústias experimentadas logo após o nascimento da filha, relativas às fantasias de poder ocasionar algum mal ao bebê, Helena afirmou que “tudo isso passou”. Com o crescimento da filha, foi se sentindo cada vez mais confiante e segura. O teste de realidade ajudou Helena a se tranqüilizar e verificar que a filha estava se desenvolvendo bem.

Helena percebia que quando se sentia nervosa e cansada, procurava não “descontar” na filha: “eu procuro me controlar porque sei que é problema meu”. Verificava-se assim sua capacidade de discriminação, de não se “misturar” com a filha. A relação entre elas podia assim não ficar invadida por suas identificações projetivas (Klein, 1982), separando os conteúdos emocionais de uma e de outra.

Da mesma forma, Helena sentia inconscientemente a necessidade de não se deixar invadir pelas identificações projetivas de sua mãe. Esta costumava tentar minar a confiança da filha como mãe, comentando, por exemplo, que a neta estava sendo mal alimentada. Helena era levada assim a ter que retrucar e provar que aquela afirmação não era verdadeira. O que parecia é que Helena tinha que lidar com uma mãe real invejosa, levando-a a ter que travar uma luta com uma figura materna (interna e externa) que procurava destruir sua segurança e confiança enquanto mãe. Porém, nessa luta Helena contava com a filha como sua aliada, uma vez que, por meio de seu desenvolvimento satisfatório, ela lhe provava sua capacidade de ser uma boa mãe:

Até quando eu estava grávida eu ficava: ai, será que eu vou saber alimentar direito, colocar prá dormir, mas eu acho que relaxei, não fiquei ansiosa, preocupada, fiquei mais segura, vi o jeitinho dela, vi que ela estava se desenvolvendo bem, e não tinha motivo prá me preocupar.

Sua luta era para não se identificar introjetivamente com a “mãe má” que lhe era projetada pela mãe. Por conseguir se sair bem nessa luta, e por poder fazer uso de recursos pessoais muito satisfatórios, como sua força egóica, sua capacidade interna de discriminar entre a situação vivida com a mãe e a atual (com a filha), a experiência de maternidade para Helena tornou-se muito positiva e enriquecedora. Ela sentia, por exemplo, que seu espaço pessoal havia sido ampliado após o nascimento da filha:

Para nossa família, somou. É divertido sair com ela, ela é nossa companheira. A gente reorganizou nossa vida de lazer durante o dia, por causa dela. E ficou legal. Tudo o que antes eu achava um “saco”, agora acho legal por causa dela. Acho legal ver ela num parque, vendo os bichinhos, as descobertas dela... E meu marido também gosta. Para nós foi bom!

A relação com o marido também mudou para melhor, segundo Helena, e a família como um todo se sentia mais integrada e feliz. Helena descreveu o marido como um pai carinhoso, atencioso e dedicado. A vinda da filha colocou novas tarefas para o casal, que eles conseguiam realizar bem.

Pareceu que a maternidade foi para Helena uma experiência muito benéfica. Com o passar do tempo, ela pôde superar muito satisfatoriamente seus conflitos e angústias. Por exemplo, antes de ficar grávida suas expectativas quanto ao fato de ser mãe eram muito negativas, em função dos conflitos oriundos da relação com sua própria mãe; no entanto, houve uma modificação significativa com o passar do tempo:

Acho que ser mãe superou minhas expectativas. Eu nem queria ter filho, eu achava que era só trabalho e “encheção”, só aborrecimento, sua vida ia ficar só cuidar de criança... Quando eu via mães ficando neuróticas, sempre aquela coisa, eu não via a menor graça em ter filho. Eu pensava tanto no lado negativo, que o positivo me surpreendeu. Acho que pela minha educação também, minha mãe nunca falou que era bom ter filho, muito pelo contrário, era algo que atrapalhava, um peso, algo difícil.

O modelo de mãe passado para Helena pela própria mãe era muito negativo. Relacionava-se a uma experiência pesada, difícil e pouco gratificante. No entanto, ela conseguiu encontrar, na relação com a filha, o prazer e a alegria de ser mãe. Observou-se uma reformulação do modelo negativo e a maternidade tornou-se uma experiência gratificante e enriquecedora.

Por outro lado, Helena resolveu que não teria mais filhos. Apesar de achar a idéia de ser mãe novamente muito atraente, ela sentia que não tinha disponibilidade para isso, que implicaria em “ter que se ajeitar, arrumar horário para cuidar, ter que se sacrificar...”. Nessa decisão observava-se que o modelo de mãe incorporado da própria mãe fazia sua interferência, criando uma situação de muita ambivalência. Por um lado, sua experiência benéfica e gratificante com a filha pesava no sentido de desejar mais um filho, e por outro, a identificação com a mãe sobrecarregada e sacrificada levava-a a desistir da idéia.

Quando, três anos após o parto, Helena foi visitada novamente, relatou seus sentimentos de satisfação e prazer na vivência de seu papel materno. Descreveu a filha como uma criança interessada, dinâmica, ativa e bem humorada. A relação entre as duas continuava muito afetiva e carinhosa, e Helena sentia por vezes a necessidade de estabelecer mais limites à filha nessa fase, tarefa que ela conseguia executar sem grandes dificuldades.

Com o crescimento da filha, Helena sentiu que pôde ampliar suas atividades de trabalho e estudo, além de ter começado a fazer dança-do-ventre. Nesta atividade, que lhe era muito prazerosa, ela era acompanhada pela filha, que também gostava muito. Helena sentia que com isso transmitia à filha o quanto era bom ser mulher, valorizava sua feminilidade, ao contrário do que sempre a mãe fizera com ela. Aliás, em vários trechos de seu relato, Helena se comparava com a mãe e afirmava sua convicção de que agia com a filha de maneira muito mais adequada. Permanecia seu desejo de promover com a filha uma relação diferente da que teve com a própria mãe. Ela seguia com seu projeto de desenvolver uma relação mãe-filha mais bem sucedida, mais harmoniosa, sentindo que na competição com a mãe ela era a vencedora, pois havia conseguido ser uma mãe melhor. O sucesso que Helena experimentava como mãe não consistia simplesmente em uma decisão consciente, racional, de não repetir com a filha as experiências negativas que teve com a própria mãe. Ela verdadeiramente se sentia diferente da mãe, uma transformação havia se operado em sua maneira de viver a experiência, de forma que uma possível tendência inconsciente a repetir com a filha antigos conflitos oriundos da relação com a própria mãe não se apresentou. Para essa mudança psíquica provavelmente colaboraram os recursos internos de Helena, que agiram em seu inconsciente, como a força de seu ego, que manteve intactas sua capacidade de pensamento, de discriminação, além de sua capacidade de reparação, que lhe permitiu transformar vivências de ódio, mágoa e destruição na relação com a própria mãe, por outras de amor, cuidado e preservação na relação com a filha.

Helena procurava realçar seus sentimentos de amor pela filha, afirmando que se apaixonou por ela desde que a viu pela primeira vez, paixão que sempre permaneceu. Parecia que Helena havia reprimido o lado hostil da ambivalência que sentira inicialmente, quando tinha pensamentos de “jogar a filha longe”. O lado amoroso da ambivalência se sobressaiu e aparecia de forma bem manifesta: “eu sou apaixonada por ela, fico olhando pra ela, não acredito, acho ela o máximo! Às vezes eu fico mais melando que qualquer coisa”.

Um ano antes da entrevista, Helena teve uma intensa depressão, desencadeada, segundo ela, por um problema na tireóide. Foi um período muito difícil, no qual ela se sentia muito triste, desanimada, só desejava dormir, e qualquer atividade lhe representava um peso imenso. E foi graças à filha, segundo Helena, que ela resolveu procurar um médico e assim pôde curar-se:

Ela foi o único fator que me motivou a procurar ajuda. Não teve outro. Eu fiquei preocupada, eu não tinha mais nem disposição física prá cuidar dela; pensei que não era justo, eu precisava cuidar da minha filha, tão linda, tão fofa... Nessa época, eu não sentia nada, a única emoção que eu sentia era amor por ela, só isso. Não tenho nenhuma dúvida que se não fosse ela... Foi ela que me deu a vida, tenho certeza.

Nesse período de depressão, parece que Helena depositou na filha sua própria capacidade de viver, sua esperança, sua força de vida. O mundo escureceu e só restou a filha, que passou a representar sua salvação. Verificavase assim que Helena depositava na filha todas as coisas boas, e para ela dirigia seu lado amoroso de forma integral. No entanto, apesar da experiência tão gratificante e benéfica que a maternidade lhe representou, Helena prosseguia com sua decisão de não ter outro filho:

Às vezes até penso, que legal ter mais um filhinho, mas eu não tenho disposição, eu nem posso ter, tenho esse problema de tireóide, ia bagunçar com meus hormônios... E não quero mesmo, não tenho a menor vontade de ficar grávida de novo, de engordar, ficar com aquela barriga que parece um papel amassado... Depois ficar amamentando, ficar mergulhada com a criança, trocar fralda, ficar sem dormir, isso não me dá vontade, nem um pouco.

Parece que o lado hostil da ambivalência que Helena sentiu inicialmente na relação com a filha &– lado que apareceu somente nos primeiros tempos após o parto &– foi deslocado para a relação com o segundo filho (imaginário). Enquanto a filha representava tudo de bom e maravilhoso, esse segundo filho representava um “bagunçador”, que iria prejudicá-la, deixá-la feia, sobrecarregada... A ambivalência aparecia dissociada e a hostilidade era encoberta com racionalizações. Na relação com o segundo filho aparecia a identificação de Helena com a mãe que desvalorizava a feminilidade, a maternidade, e hostilizava o filho por ver nele um fator de sobrecarga e escravização. Essa dissociação possivelmente impedia que Helena pudesse realizar maior integração na relação com a filha, da mesma forma que com a figura do segundo filho.

De todo modo, apesar de permanecer um lado “escuro”, dissociado, que provocava limitações na experiência de Helena, ela conquistou na relação com a filha a oportunidade de desenvolver uma experiência muito positiva e gratificante. Ela conseguia se identificar e empatizar com a filha, respeitar seu ritmo próprio &– como por exemplo, perceber o momento mais adequado para tirar as fraldas &– e ser tolerante e muito afetiva com ela. Helena e a filha pareciam ter construído um vínculo muito saudável.

Essa constatação foi confirmada por de uma observação, realizada nessa fase, da relação entre Helena e a filha. Em uma das visitas à casa de Helena, a filha estava andando de velocípede pela casa, mostrando suas “manobras” com o brinquedo. Foi uma situação muito tranqüila e alegre, no qual foi possível perceber uma criança muito afetiva, desinibida e cheia de vitalidade. Helena interagia com ela com a mesma alegria e vivacidade. Em uma das “manobras”, a criança caiu do velocípede, o que se tornou motivo de muito riso e descontração. Após algum tempo, a menina foi muito tranqüilamente brincar sozinha em seu quarto, deixando que a pesquisadora e Helena conversassem a sós na sala. Esse comportamento da criança sugeriu a existência do que Winnicott (1990) chama de “capacidade para estar só”, uma aquisição no desenvolvimento psíquico, que se relaciona com maturidade emocional. Tal aquisição tem sua base na experiência de estar só na presença da mãe, que inicialmente funciona como ego auxiliar para o filho. Segundo o autor, a partir da percepção da existência contínua de uma mãe disponível, a criança poderá estar só e ter prazer em estar só, por períodos limitados. Tal capacidade indica que o indivíduo teve oportunidade, por meio de maternidade suficientemente boa, de construir uma crença em um ambiente benigno. Estes dados sugerem que Helena teve êxito na promoção de um desenvolvimento emocional satisfatório para a filha.

Um fato interessante relatado por ela indicou que a filha possibilitou uma reconciliação parcial entre Helena e a própria mãe. Em um episódio em que avó e neta saíram juntas e uma pessoa desconhecida teceu muitos elogios à menina, a mãe de Helena voltou chorando, muito emocionada e passou a mostrar-se mais prestativa à filha, ajudando-a mais. Helena notou a mudança e sentiu que isso ocorreu porque sua mãe passou a dar mais valor a ela e à neta. O que parecia é que, através da neta, a mãe de Helena pôde rever a relação que teve com a filha, e de certa forma fazer-lhe uma reparação. Helena também sentia que agora podia entender um pouco mais a mãe. Uma certa reconciliação tornava-se possível. Por intermédio da filha, operava-se uma transformação para a mãe e para a avó, permitindo alguma reparação para uma relação mãe-filha que fora construída sobre tantos conflitos.

O acompanhamento da experiência de maternidade de Helena, da gestação aos três anos de idade da filha, revelou uma evolução bastante favorável de suas vivências emocionais e da relação mãe-criança. O vínculo insatisfatório e conflitivo entre Helena e a própria mãe foi causa de intensas angústias e conflitos por ela experimentados em seu percurso pela maternidade. Insegurança, sentimento de não ser merecedora da prerrogativa de ser mãe, identificação com uma “mãe má” ou uma “mãe incapaz” foram algumas das vivências emocionais que lhe causaram muito sofrimento, originadas em grande parte pela falta de uma “boa mãe” firmemente estabelecida em seu mundo mental. No entanto, o contato com a filha ajudou-a gradualmente a superar parcialmente seus conflitos e angústias. Helena pôde transformar o “modelo de mãe” incorporado por meio da relação com a própria mãe, de um modelo negativo para um mais positivo. Conseguiu realizar com a filha seu antigo desejo de construir um vínculo mãe-filha mais feliz, harmonioso e saudável do que aquele que teve com a própria mãe, recuperando sua auto-estima tão atacada e denegrida como mulher e mãe.

Pode-se afirmar que para Helena, a maternidade atuou como uma “experiência emocional corretiva”, segundo a definição de Alexander e French (1956), isto é, terapêutica e curativa. Segundo os autores, uma “experiência emocional corretiva” é capaz de reparar a influência traumática de experiências anteriores com os objetos originais, e tanto pode acontecer durante um tratamento psicanalítico como na vida diária do indivíduo. Durante o tratamento psicanalítico, é a atitude do terapeuta, distinta daquela assumida pelo progenitor do paciente na situação conflitiva original, que permitirá ao paciente a oportunidade de enfrentar novamente, em circunstâncias mais favoráveis, as situações emocionais antes insuportáveis, e tratá-las de forma distinta das antigas. Desta forma, ocorre uma nova definição do problema, e é esta diferença entre as situações nova e antiga que possui alta significação terapêutica.

No caso da experiência de maternidade, a significação terapêutica parece ser dada pela relação com o filho, que “cura” parcialmente a mãe ao lhe possibilitar alguma redefinição de suas antigas situações conflitivas, geralmente com a própria mãe. Antigos relacionamentos conflituosos e infelizes com a própria mãe, que interferem de modo especial sobre a experiência de maternidade da mulher, podem ser em parte reformulados por meio da experiência com o filho, e assim alguma superação dos antigos conflitos pode acontecer. Uma relação feliz e satisfatória com o filho pode converter-se em uma “segunda chance” para a mulher, e antigas fantasias persecutórias e imaginariamente destrutivas podem ser substituídas por idéias de reparação e identificações mais favoráveis com uma mãe boa e amorosa. Cabe destacar que, como afirmam Alexander e French (1956), a transformação que se opera no indivíduo por meio de uma “experiência emocional corretiva” só é alcançada por uma experiência real vivida pelo indivíduo, que produz efeitos sobre seu psiquismo inconsciente; apenas a compreensão intelectual não basta. Essa compreensão racional da gênese dos conflitos tem, segundo os autores, uma importância acessória, pois é somente por meio das novas experiências vivenciais que se pode produzir resultados terapêuticos. Da mesma forma, pode-se afirmar que Helena alcançou, na relação com a filha, as condições necessárias para uma transformação interna, ocorrida em grande parte de modo inconsciente, o que possibilitou a reformulação de seus antigos conflitos. Mecanismos psicológicos como reparação, elaboração psíquica, capacidade de pensar, discriminar e aprender com a experiência estiveram envolvidos nas transformações obtidas.

Mas para haver essa mudança não pode haver excessiva rigidez psíquica. A capacidade de se deixar transformar pelas experiências, ou como afirmou Bion (1991), a capacidade de aprender com a experiência, é um recurso psicológico valioso, possivelmente vinculado às forças de vida do indivíduo, que buscam a renovação, o crescimento e o desenvolvimento. Essas forças, expressas pelos impulsos amorosos, podem sair vitoriosas na luta contra as tendências mais fixas e danosas que se impõem no mundo mental. Como afirma Klein (1991), a saúde mental se baseia “num interjogo entre as fontes fundamentais da vida mental &– os impulsos de amor e de ódio &– interjogo no qual a capacidade de amor é determinante” (p. 309). A pesquisa com as mães permitiu verificar que as mulheres para as quais a maternidade converteu-se em uma experiência transformadora foram auxiliadas por seu intenso amor ao filho, que funcionou como uma espécie de “motor” que as impeliu à mudança e ao crescimento, e tornou-se um aliado contra as tendências destrutivas e imaginariamente irreparáveis.

Cabe destacar, no entanto, que as mudanças que operaram no mundo mental materno foram parciais. Como foi visto no caso de Helena, a relação infeliz e conflituosa com a própria mãe deixou um lado escuro e dissociado em sua experiência, deslocado para a relação com o segundo filho imaginário, e que a impediu de estabelecer maior integração de seus afetos contraditórios na relação com a filha. Mesmo podendo ser em parte reformulada por meio da experiência de maternidade, a relação infeliz com a própria mãe provoca grandes doses de sofrimento para a mulher e uma insuperabilidade de alguns conflitos, pois essa relação consiste em um fator fundamental na promoção das condições necessárias para uma vivência de maternidade mais tranqüila e feliz. De certa forma, a relação de culpa, hostilidade e mágoas com a mãe interna fica impregnada na personalidade da mulher, deixando algumas marcas indeléveis.

 

Referências

ALEXANDER, F.; FRENCH, T.M. Terapéutica Psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 1956.        [ Links ]

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recebido em 28/03/06
versão revisada recebida em 15/03/07
aprovado em 19/03/07

 

 

Eliana Marcello De Felice
Doutora em Psicologia Clínica (Universidade de São Paulo); Docente da Faculdade de Psicologia (Universidade São Francisco); Autora dos livros: A psicodinâmica do puerpério e Vivências da maternidade e suas conseqüências para o desenvolvimento psicológico do filho.