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Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.11 no.21 São Paulo Dec. 2007

 

RESENHA

 

Elisa Marina Bourroul Villela

Universidade Presbiteriana Mackenzie
Universidade São Marcos

 

 

TRINCA, W. O ser interior na psicanálise: fundamentos, modelos e processos. São Paulo: Vetor, 2007. 380p. ISBN 8575851926.

Dos tempos pioneiros de Freud até hoje, a psicanálise tem sofrido transformações constantes, tanto nos planos metapsicológico e teórico, como na técnica e na prática clínica. Estes aspectos são mutuamente relacionados e influentes entre si, mas como afirmou Rapaport, a “teoria psicanalítica é suficientemente coesa para tolerar exclusão e inclusão sistemáticas de novas contribuições” (1982, p. 86). Walter Trinca, em O ser interior na psicanálise, desenvolve uma teoria dos processos mentais na saúde e nos processos patológicos, alargando as fronteiras da teoria psicanalítica sem jamais abandoná-la, mantendo-se fiel a seu método, conceitos e princípios. Apresenta, deste modo, uma contribuição original sobre a estruturação da vida mental, sua dinâmica, sobre a instalação das perturbações psíquicas, e conseqüentemente à prática clínica. Sua sistematização dos processos psíquicos e a estruturação de um modelo de funcionamento mental, coerente com a psicanálise freudiana, dão prioridade à observação clínica. Esta sistematização, no entanto, se configura distante de uma formalização ou axiomatização &– pelo contrário, é fluida e revela mobilidade de pensamento concomitante ao rigor científico.

A seqüência dos capítulos vai aproximando gradativamente o leitor das concepções nodais do pensamento do autor, das quais &– entre outras &– podemos elencar: o ser interior; self; os estados de mente oclusivo, inconsciente e consciente que revelam o grau de contato com o ser interior; assim como o papel fundamental que o distanciamento de contato desempenha nas perturbações psíquicas. Os conceitos de sistema mental determinante; constelação do inimigo interno; fragilidade e sensorialidade do self e mobilidade psíquica também são apresentados e discutidos. Introduzindo e reintroduzindo suas idéias no decorrer do texto, o autor aborda de forma cada vez mais profunda e complexa as conexões e articulações entre os vários fatores determinantes do desenvolvimento da personalidade, revelando-se, por fim, sua concepção globalizante, contextualizada e positiva do ser humano. Penso que este livro coroa a extensa obra do autor, de mais de 30 anos de trabalho clínico e de pesquisa, e se caracteriza pela iniciativa viva de enfrentamento e acolhimento das vicissitudes da compreensão do ser humano.

O cerne compreensivo (pluralista e integrador) na compreensão profunda do ser humano já se fazia presente em seus primeiros escritos, na década de 80. Na evolução de suas idéias evidenciam-se as contribuições de vários autores, em especial de Bion, Klein e Winnicott, e aí verificamos que Trinca não só aproveita o alcance de cada uma delas, como expande a discussão na busca de uma compreensão metodologicamente organizada dos sistemas mentais determinantes como base das patologias mentais.

Trinca defende que a tarefa humana é “realizar o nosso ser”, o que se contrapõe à angústia de dissipação do self. Esta angústia, descrita e estudada por outros autores como Klein, que a chamou de angústia de aniquilamento, e Bion, que a descreveu como resposta aos ataques maciços, segundo Trinca está relacionada à ruptura de contato com o ser profundo. Contra esta se armam defesas, e a escolha das defesas determinará o sistema mental determinante.

O sistema mental determinante de uma pessoa pode ser compreendido como a organização dos componentes emocionais em padrões característicos com dinâmica e significados inconscientes e condutas manifestas. Estes exercem sua ação no self e determinam as perturbações psíquicas. Trinca enfatiza a importância da atenção do analista ao sistema mental determinante, pois seu reconhecimento aponta para os focos nodais e sistemas de defesa daquela personalidade.

Nos primeiros capítulos, o autor retoma a noção de ser interior desenvolvida em trabalhos anteriores (1997a, 1997b, 1999, 2001) e a diferencia da noção de self. O ser interior é a noção da pessoa de seu próprio ser, o que fundamenta a alteridade e as relações com o mundo.

O ser interior preexiste aos cuidados maternos, portanto se distingue da subjetividade que está relacionada à cultura. Há uma semelhança com o que Winnicott define como espaço potencial, quando o indivíduo sente que a vida vale a pena de ser vivida. O sentir-se real é resultado do contato com o ser interior. Este núcleo essencial que não depende do outro, só do corpo físico, não se confunde com a pulsão &– esta é a fonte de energia para sua existência. Relativamente estável, o ser interior se expande, se desenvolve sem perder suas características essenciais. O que muda é relativo à atualização nos processos de relacionamento e às suas incorporações necessárias durante toda a vida. Assim, trata-se da dimensão da singularidade e especificidade a cada ser humano, como também do sentido de continuidade.

O ser interior influenciará a constituição e a organização do self. O self é o meio pelo qual a existência se efetiva; é o órgão de contato com o ser interior, assim como é responsável pela adaptação no mundo. O self como campo de experiências que envolve aspectos inconscientes abarca turbulências e conflitos. No ser interior não há conflito, ele é apenas. O self constitui-se pelas identificações &– estas se referem à dinâmica do self e não produzem nem assumem as características básicas do ser interior. Nas palavras do autor, “quando por qualquer razão o self passa a ser dominado por sistemas identificatórios, é que o ser interior está longe de exercer influência eficaz sobre ele. Neste caso, o indivíduo atrela-se aos componentes identificatórios, sem a correspondente elaboração e síntese influenciadas pelo ser interior” (p. 36). Este aprisionamento às identificações é o cerne dos estereótipos e dos preconceitos.

Uma maior ou menor influência do ser interior implicará em modalidades diferentes de self. O afastamento dessa influência corresponde a um distanciamento de contato da pessoa consigo mesma. As perturbações psíquicas serão então compreendidas dentro de um sistema único, que as classifica de acordo com o grau de contato com o ser interior. Quanto mais a pessoa se distancia de si mesma, mais grave é a natureza da perturbação psíquica; e quanto mais próximo é o contato com o ser interior, mais integrada e total se encontrará a pessoa. Em um eixo imaginário de um contínuo de contato, encontramos em uma das extremidades o alto grau de contato e influência do ser profundo, quando pode se dar um fluxo livre e criativo pleno de sentidos e significados pessoais às experiências no mundo. Na extremidade oposta, em um estado oclusivo de contato, há a alienação de si, configurandose a mais grave das afecções mentais: a catatonia. A compreensão deste estado vem da interlocução do autor com Bion, sendo que neste a função alfa malogra, a digestão não funciona e a mente tende à concretude. O ser profundo, como órgão transformador de elementos sensoriais em experiências emocionais, não exerce suas funções metabolizadoras. O self frágil ou saturado de sensorialidade estará pouco ligado ao ser interior.

No intermédio desses dois pólos opostos estão em graduação de distanciamento de contato outras perturbações, que podem se dar em estados oclusivos ou inconscientes, pois o estado consciente possibilita a mobilidade psíquica, ou seja, a “expansão da consciência”.

Trinca buscará uma coerência e unidade a este modelo de funcionamento mental, enfatizando a importância de se compreender as perturbações psíquicas dentro de um contexto totalizador. Desenvolve-se assim uma psicanálise relacionada ao ser interior, e como este se compõe com o conjunto dos demais aspectos da personalidade. O modelo construído estrutura-se a partir de um eixo central, que é um contínuo de contato com o ser interior, formando assim uma escala de perturbações psíquicas. Estas são compreendidas sob o aspecto dinâmico (em extensão e intensidade de contato) e aspecto estrutural, que determinará a natureza da perturbação. São quatro os fatores intrinsecamente relacionados que desempenham funções na instalação e na manutenção dos sistemas mentais determinantes: constelação inimigo interno, fragilidade de self, sensorialidade e distanciamento de contato.

A constelação do inimigo interno, movida pela pulsão de morte (Klein), movese no sentido da sabotagem ao contato com o ser interior. O resultado de sua atuação é a angústia do vazio, da dissolução do self. Se o self não é sustentado pelo ser interior, ele fica à mercê de aspectos parciais, fragmentários e conflitivos relacionados à sensorialidade e à fragilidade.

A sensorialidade é um sistema que aprisiona a mente, e é oposto à mobilidade psíquica &– que permite o “deixar-se penetrar-se pela vida das coisas” &– e leva à coisificação da experiência, diminuindo as chances do desenvolvimento de noções profundas de si mesmo e de uma relação mais integrada com o mundo. Sob o domínio da sensorialidade, a pessoa não discrimina o que é verdadeiro em si &– é a alucinose, definida por Bion &–, em que não há liberdade para pensar e a mente se torna repetitiva, compulsiva, condicionada. Winnicott (1975) usou a expressão “tantalizante” para definir uma forma não criativa de vida, submissa às referencia externas, que resulta na experiência de eterna insatisfação. Na mitologia grega, Tântalo é o rei que ao desafiar os deuses do Olimpo recebeu um castigo terrível: com água até os joelhos não podia saciar sua sede, pois o líquido fugialhe da boca, com árvores cobertas de frutas, não podia aplacar sua fome, pois os galhos escapavam-lhe das mãos, Tântalo é condenado a eternamente desejar saciarse com assados e néctares, dispostos em uma grande mesa preparada só para ele, porém sem nunca poder alcançá-los, por mais que se esforçasse. Um self sensorial condena a pessoa à procura em vão do sentido da vida fora de si mesma.

A fragilidade do self é estabelecida pelo distanciamento do contato quando não encoberto pela sensorialidade. Trinca nos mostra como a fobia constitui um caso único no exame dos distúrbios mentais, por evidenciar um estado puro, sem intercorrências das defesas sensoriais. Nas fobias, a pessoa está sob a força dos ataques a tudo que oferece sustentação à vida mental; desta forma, o self se esvazia e se distancia do contato com o ser interior, e no lugar da experiência de existência sobrevém a angústia de dissipação. Com o esvaziamento, o self não encontra soluções contra a angústia de aniquilamento e a pessoa é tomada pelo pavor, “a pessoa faltalhe a si própria”.

Cabe ainda ressaltar que o modelo apresentado por Walter Trinca ajuda a compreender as patologias contemporâneas, como as perturbações narcísicas, que não encontram coincidências nas classificações nosológicas clássicas. Na perspectiva da psicanálise contemporânea, o autor considera o contexto da pós-modernidade como facilitador para a instalação de sistemas evasivos relativos ao ser interior e uma maior impregnação de sensorialidade. As relações sociais intermediadas pelas leis de consumo, pela busca ideal narcísico e pela obediência a modelos e sistemas pré-estabelecidos, não sustentam o indivíduo. A ele falta algo, que é justamente o contato com o ser interior. Emerge a angústia frente ao vazio, que passa a inquietar o ser humano tanto no plano individual como no coletivo. No mundo humano coisificado há um aprisionamento a um universo sensorialmente construído e destituído de sentido.

No entanto, a perspectiva de Trinca sobre o ser humano é acima de tudo otimista. Para ele, o sentido do viver está na aproximação com o que há de verdadeiro em nós, e considera que todo indivíduo tem potencialidade para se desenvolver. Concebe, desta forma, a clínica psicanalítica orientada para a relação do paciente com seu ser profundo “núcleo de verdade existencial”. O foco do fazer clínico é na ajuda para que a pessoa descubra suas particularidades e os mecanismos que emprega, visando maior aproximação de si mesmo, e a busca de novas formas de enfrentamento das dores que o habitam.

 

Referências

RAPAPORT, David. A estrutura da teoria psicanalítica: uma tentativa de sistematização. São Paulo: Perspectiva, 1982.        [ Links ]

TRINCA, Walter. Dreams, psychic mobility and inner being. Free Associatons. London. 8[part4](48): 562- 575, 2001.        [ Links ]

TRINCA, Walter. Fobia e pânico em psicanálise. São Paulo: Vetor, 1997a.        [ Links ]

TRINCA, Walter. O espaço mental do homem novo. Campinas: Papirus, 1997b.        [ Links ]

TRINCA, Walter. Psicanálise e expansão de consciência: apontamentos para um novo milênio. São Paulo: Vetor, 1999.        [ Links ]

WINNICOTT, Donald, W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.        [ Links ]

 

 

Elisa Marina Bourroul Villela
Psicóloga Clínica; Especialista em Psicoterapia Psicanalítica; Doutora (Universidade de São Paulo); Professora (Universidade Presbiteriana Mackenzie; Universidade São Marcos).
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