SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número21 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.21 São Paulo dez. 2007

 

RESENHA

 

Nadiá Paulo Ferreira

Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Corpo Freudiano Escola de Psicanálise/RJ

 

 

ZIZEK, Slavoj; DALY, Glyn. Arriscar o impossível: conversas com Zizek. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Coleção Dialética). 211p. ISBN 8599102273.

Com certeza, é muito bem vindo o lançamento de mais um livro de Zizek, filósofo que nasceu na Eslovênia e faz questão de se apresentar como fiel seguidor de Jacques Lacan. Adotando a tendência editorial da entrevista, Glyn Daly, professor de Política na Faculdade de Artes e Ciências Sociais do University College, em Northampton, além de ocupar o lugar de entrevistador, é autor da Introdução, na qual apresenta um estudo sobre a obra de Zizek. Nele, Glyn destaca as duas grandes fontes de inspiração do que ele chama de paradigma zizekiano: o idealismo alemão (Kant, Schelling e Hegel) e a psicanálise (Freud e Lacan).

O conceito freudiano de pulsão de morte e a elaboração lacaniana sobre o real norteiam as reflexões desse livro, que têm como tema a pós-modernidade. Com a descoberta da pulsão de morte, deparamonos com o fato de que “não podemos passar diretamente da natureza para a cultura. Alguma coisa sai terrivelmente errada na natureza: ela produz uma monstruosidade antinatural, e eu afirmo que é para lidar com essa monstruosidade, para domesticála, que simbolizamos” (p. 83). Essa monstruosidade é uma das peculiaridades do Real. Independente das múltiplas faces do Real, a impossibilidade, o acontecimento e o trauma são suas principais características. O impossível deve ser compreendido como sinônimo de “grande ausência” e de “um vazio básico”. Nesse sentido, o Real é sempre o que nos falta, o que nunca é encontrado. Justamente por isto, o Real como acontecimento é continuamente traumático: “o problema do Real é que ele acontece, e esse é o trauma” (p. 89). “Um trauma ou um ato é simplesmente o ponto em que o Real acontece, e isso é difícil de aceitar” (p. 89).

A leitura lacaniana do conceito de pulsão não só admite configurações diferentes do Real, mas também possibilita múltiplas articulações borromeanas. Assim, em relação ao Real, temos três noções. O Real real “seria a Coisa horrenda: a cabeça da Medusa, o alienígena do filme, o abismo, o monstro” (p. 87). O Real simbólico é o que não se integra à significação. Zizek cita como exemplos as fórmulas científicas sem sentido, a física quântica, a fórmula da trimetilamina no sonho freudiano da injeção de Irma. O Real imaginário é “esse traço elusivo, que é totalmente insubstancial, mas incomoda você. Esse é o ponto do Real no Outro” (p. 88). Quanto ao Simbólico e ao Imaginário, o trino se repete. Em relação ao Simbólico, temos: o Simbólico simbólico que é “a fala dotada de sentido” (p. 88); o Simbólico real, que é idêntico ao Real simbólico (as fórmulas sem sentido); e o Simbólico imaginário, que “consiste apenas em arquétipos: símbolos junguianos e coisas similares” (p. 88). Em relação ao Imaginário, temos: o Imaginário imaginário, que “seria a imagem como tal, a imagem sedutora” (p. 88); o Imaginário real, que “seria a coisa pavorosa” (p. 88); e o Imaginário simbólico, que “seriam os símbolos” (p. 88).

Sem recorrer às expressões de primeiro e segundo Lacan, Zizek não só afirma que o conceito de Real é construído paulatinamente, mas também que ele acaba se tornando a preocupação central de sua obra. Na medida em que Lacan avança na elaboração desse conceito, não se trata mais de re-simbolização do Real, mas de intervenção no Real: “a primeira coisa que eu frisaria é que, para Lacan, o Real não é aquilo que existe para sempre, absolutamente imutável etc. Ao contrário do que pensam algumas pessoas, a concepção lacaniana de que o Real é impossível não quer dizer, simplesmente, que não se possa fazer nada a respeito do Real. Aposta ou esperança fundamental da psicanálise é que, através do Simbólico, é possível intervir no Real. O que Lacan chama de sinhome (sua versão do sintoma) é Real, um Real simbólico, no sentido de estruturar o gozo. E a idéia é que, pela intervenção do Simbólico, essas estruturas podem ser transformadas. (…) Portanto, a aposta básica da psicanálise é que você pode fazer coisas com as palavras, coisas reais, que lhe permitem mudar os modos de gozo, e assim por diante” (p. 185-186).

As considerações em torno das dimensões do Real e dos encontros traumáticos com o Real, apresentadas aqui de forma sucinta, conduzem as reflexões de Zizek sobre a pós-modernidade. Em primeiro lugar, ele sustenta que os avanços da ciência (biogenética, clonagem, inteligência artificial) intervêm diretamente na subjetividade, provocando nela profundas transformações. Em segundo lugar, ele afirma que a pulsão de morte é justamente a parte da subjetividade, que escapa à intervenção genética, porque é uma disfunção. Eis como ele apresenta esse paradoxo: “a biogenética traz uma ameaça, porque, como todos sabemos, ela significa o fim da natureza. Em outras palavras, a própria natureza é vivida como algo que segue certos mecanismos passíveis de modificação. A natureza passa a ser um produto técnico, que perde seu caráter espontâneo” (p. 116). “A pergunta que precisa realmente ser formula é esta: será que de fato somos simplesmente determinados pelos genes? Dito em termos ingênuos, é possível salvar a liberdade humana, diante da perspectiva da definição completa de nosso genoma, de nossa fórmula biogenética? (…) Creio que isso pode ser feito justamente por meio da psicanálise, e em especial da idéia de pulsão de morte. A pulsão de morte não é algo que esteja em nossos genes; não existe um gene da pulsão de morte. Na verdade, a pulsão de morte é uma disfunção genética” (p. 118).

Dentre as novas formas de subjetividade, identificadas por Zizek, destacaríamos: horror à proximidade, intolerância ou falsa tolerância, racismo no cotidiano auto-espancamento, retalhação, vitimização etc. Todas essas formas se caracterizam por uma resistência ao Real como furo.

O próximo é o Real. O que está em jogo na existência do próximo é o Real como acontecimento. A finalidade da máxima cristã do amor ao próximo é evitar o encontro traumático com o próximo, na medida em que esse encontro aponta para a dimensão impossível do Real como furo. O fumante passivo é o próximo, e como tal, encarna “a imagem do vizinho invasivo que goza demais” (p. 92). O assédio sexual “é outro nome do encontro com o próximo” (p. 92). Todas as lutas contra o fumo e o assédio são tentativas para manter certa distância com esse semelhante incômodo. O distanciamento do próximo é o que caracteriza o regime da tolerância. Assim, o pagamento para fazer sexo e a doação de dinheiro para causas humanitárias são as soluções encontradas não só para manter a distância do próximo, mas também para o fingimento da tolerância. Justamente por isto, o discurso atual sobre a tolerância prega a tolerância universal. Ou seja: “(…) mas, se você examinar mais de perto, verá que há um conjunto de condições ocultas, que revela que o indivíduo só é tolerado na medida em que se assemelhe a todos os outros &– o discurso determina o que deve ser tolerado. Portanto, na realidade, a cultura atual da tolerância subsiste por meio de uma intolerância radical a qualquer Alteridade verdadeira, a qualquer ameaça real às convenções existentes” (p. 149).

A tolerância universal é o racismo camuflado pelo “discurso politicamente correto”. Nesse sentido, poderíamos dizer que já não existem racistas como antigamente: “em geral, o racista de hoje já não diz que os árabes, os turcos ou os hindus são simplesmente burros ou repulsivos. Não; diz que eles são perfeitamente normais, que gosta deles, que eles são seus amigos e por aí vai, mas que há uma coisa neles que o incomoda, um detalhe: seu cheiro, sua culinária, sua música. Ou pode ser algo mais intelectual &– a orientação lingüística, as atitudes culturais, a ética do trabalho. Trata-se de algum traço que é percebido como um excesso. E é por isso que acho muito difícil lutar contra o racismo no nível do cotidiano” (p. 141). Zizek faz questão de assinalar que a dificuldade de combater o racismo no cotidiano se deve ao fato de que o que é percebido como perturbador no outro é justamente o que é apreendido, em nível da fantasia, como o gozo excessivo do outro. Nesse sentido, a tolerância contemporânea se torna sinônimo da mais absoluta intolerância ao gozo do Outro. Assim sendo, como é possível amar o próximo? Zizek assevera que “para amar verdadeiramente o próximo, é preciso esquecer todas as suas qualidades, tudo que faz dele um ser humano específico, o que significa que se deve tratá-lo como se ele já estivesse morto” (p. 145). O Outro em sua alteridade reduzido ao Outro abstrato &– eis a verdade do preceito cristão do amor: Outro como próximo está morto.

Não é por acaso que Zizek chega ao fim de seu livro referindo-se à ética da psicanálise: “é preciso arriscar e decidir. É essa a lição de Lacan. Não ceda em seu desejo. Não busque apoio em nenhuma forma de Outro maiúsculo — mesmo que esse Outro maiúsculo seja totalmente vazio, ou seja, uma injunção incondicional levinasiana. É preciso arriscar o ato sem garantias. Nesse sentido, o fundamento supremo da ética é político. E para Lacan, a ética despolitizada é uma traição ética, porque se põe a culpa no Outro. A ética despolitizada significa que você confia em alguma imagem do grande Outro. Mas o ato lacaniano é precisamente o ato em que você presume que não existe grande Outro” (p. 201). “Ou seja, em certo momento, é preciso assumir a responsabilidade pelo ato” (p. 203).

Escrever, interpretar, publicar e provocar controvérsias são os atos através do quais Zizek realiza sua intervenção no Real. Este é seu risco. Cabe ao leitor, tocado pela ética do desejo, descobrir seu jeito de arriscar o impossível.

 

 

Nadiá Paulo Ferreira
Professora Titular de Literatura Portuguesa (Instituto de Letras/UERJ); Psicanalista do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise/RJ; Pesquisadora da PROCIÊNCIA(UERJ/FAPERJ); Autora de Amor, ódio e ignorância; Teoria do amor; Co-autora de Freud, o criador da psicanálise; Lacan, o grande freudiano.
e-mail: nadia@corpofreudiano.com.br