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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.21 São Paulo dez. 2007

 

RESENHA

 

Vinícius Mendes Ribeiro

Universidade Federal de Juiz de Fora

 

 

MAURANO, Denise. A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. (Coleção Psicanálise &– Passo a Passo). 78p. ISBN: 8571109508.

 

Transferência: entre o saber e o amor

Talvez o tema que mais mereça a atenção, o devido estudo e o respaldo em suas bases, tanto para as teorias quanto para o tratamento psicanalítico, seja o da transferência. A “regra fundamental da psicanálise”, definição do próprio Freud, é o ponto de convergência para onde irá se desenvolver toda a relação analistaanalisando, além de distinguir que tipo de demanda se espera do analista, seja no processo de cura, seja na transmissão de uma ética própria e cara à psicanálise.

Nesta tarefa de circunscrever como se dá o saber psicanalítico, surge o livro da psicanalista Denise Maurano. Com clareza didática e sintética abrangência, em A transferência, volume da coleção Passo-a- Passo da Zahar Editora, a autora percorre o seguinte caminho: um levantamento da transferência em sua pré-história, com Breuer, até o desenvolvimento da teoria psicanalítica por Freud; as contribuições de Lacan acerca da transferência como local de demanda de amor; ainda segundo Lacan, a contratransferência e o desejo do analista; as proximidades da transferência com o feminino; e por último, alguns apontamentos sobre a (não)regulamentação da psicanálise.

A maior distinção da psicanálise com relação a outros métodos psicoterápicos reside no fato que a sugestão, trazida no bojo dessas técnicas, traz “resultados não confiáveis, vulneráveis e inconstantes” (p. 19), ao passo que a psicanálise irá valorizar de forma única este saber presente na experiência do sujeito em seu sintoma a ser depurado em análise. O inconsciente é quem “se justifica pelos efeitos da fala sobre o sujeito” (p. 29), objeto primeiro na investigação psicanalítica. Analisar como se opera justamente esse desejo do Outro, que se afirma em sintoma, de forma desconhecida para o analisando entre o saber e o amor.

Segundo Lacan, nos sintomas a repetição pode ser dividida em duas: tiquê e autômaton. Esta distinção é retomada por Denise ao afirmar que o papel do analista é tornar livre o sujeito que atua sempre em repetição (tiquê), não sendo capaz de produzir um acesso ao traumático; o que é visado, para além de uma extinção fenomênica dos comportamentos, é um advento do novo, de modo que “a repetição aumente a intensidade do fluxo do acaso, dando espaço para o imprevisto” (advento do autômaton) (p. 28). Para tal, o que demanda o analisando? “Demanda de vir a encontrar sua consistência, o sentido do seu ser, pela via do amor. Mais especificamente, pela via de uma modalidade imaginária de amor que se vale dos objetos” (p. 28). O amor, no analisando, surge como efeito de estar em transferência, e a conseqüência do tratamento é ultrapassar a simples submissão ao desejo do Outro, ou seja, transportá-lo ativamente ao desejo do desejo do Outro. Se o real nos escapa, o eu é nossa fantasia fundamental. Tal é o papel da psicanálise: destituir-nos desse desejo alienado no Outro.

Portanto, para além da repetição que aparece no momento da análise, a transferência também é amor, ou seja, via por onde o inusitado pode comparecer, algo pode se criar, se inovar. Este amor tem uma maneira própria de operar no processo analítico, de forma que sua real efetivação na clínica tem como pressupostos “uma ética que encontra na estética do trágico sua possibilidade de sustentação” (p. 45). Nesse momento Denise Maurano propõe uma relação entre o modo de operar da psicanálise e a estética barroca &– tema que foi desenvolvido de maneira mais aprofundada em seu livro A face oculta do amor, e no ainda inédito Torções do gozo.

A subjetividade é produto de uma torção, assim como o é a arte barroca &– uma afronta de sinuosidades (seja por meio da arquitetura barroca, da música, das artes plásticas ou de suas artes literárias) ao modo clássico de pensamento. Surgida no espaço entre o desejo do Outro e a impossibilidade de subsumirmos a um objeto que nos preencha &– objeto a &–, não nos vemos em alternativas senão convivermos como seres criadores, produtores de um belo, que segundo a personagem Diotima no Banquete de Platão, “se dilata, engendra e produz”. Por isto aqui a coincidência de lugares sugerida pela autora: “podemos atribuir à posição feminina o que excede a esse campo delimitado pela falicidade” (p. 49). Assim como Alain Didier-Weil, também como Lacan, Denise promove uma estreita proximidade entre a transferência e o feminino, favorecendo em possíveis contribuições para a psicanálise. Um maior desenvolvimento dessas questões não é o caso aqui nesta exposição, pois irá encontrálas quem se oferecer a uma leitura da obra. Termino aqui com uma citação oportuna, de S. João da Cruz, que abre o livro de Denise Maurano: “para se chegar pois a Ela, há que se proceder antes não compreendendo do que procurando compreender, deve-se antes pôr-se em trevas do que abrir os olhos para a luz...” (p. 6).

 

 

Vinícius Mendes Ribeiro
Graduando em Psicologia (UFJF); Pesquisadorbolsista CNPq.
e-mail: vinimr1@yahoo.com.br