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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Sobre o valor afetivo das roupas1

 

On the affective value of clothes

 

 

John Carl Flügel2

Sociedade Psicológica Britânica
Associação Psicológica da Índia
Sociedade Frederick W.H Meurs para a Pesquisa Psíquica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, o psicanalista John Carl Flügel analisa o fenômeno do vestir e as conseqüências psíquicas da estreita ligação que o homem estabelece com suas roupas. Na visão do autor, essa ligação ultrapassa largamente a característica de vestimenta, e ele examina outras funções do trajar, além da proteção, da decoração e do pudor. A roupa cobre a nudez, protege contra a vergonha e causa no corpo uma “segunda pele”. A incidência psíquica do mercado da moda sobre os indivíduos é também examinada do ponto de vista do superego e do ideal do eu.

Palavras-chave: Moda; Psicanálise; Corpo; Vestimenta; Libido.


ABSTRACT

In this article, psychoanalyst John Carl Flügel analyses fashion phenomenon, and the psychic consequences of the intimate relation men establish with clothes. In his opinion, such relation goes beyond the common function of clothes such as protection, decoration and decorum. Wearing clothes covers nudity, protects against the sense of shame, and produces a “second skin” to the body. The psychic effects of fashion market over individuals are also examined from the point of view of superego and ideal ego.

Keywords: Fashion; Psychoanalysis; Body; Clothes; Libido.


 

 

Os antropólogos e os historiadores nos dizem que as roupas têm três funções principais, que correspondem às necessidades da decoração, da proteção e do pudor. Os psicólogos que abordam os problemas do vestuário (e até o momento existem poucos que se deram ao trabalho de se dedicar a estas questões) advertiram inicialmente que de suas três funções, duas – a decoração e o pudor – são de natureza puramente psicológica; e que a terceira – a proteção – mesmo parecendo à primeira vista um assunto de fisiologia, corresponde, ela também, a necessidades não somente do corpo, mas também da alma. Notaram, em seguida, que há aí uma relação ambivalente entre as duas funções puramente psíquicas; o pudor e a decoração têm suas origens nos instintos opostos e nos conduzem a ações contrárias.

Se para melhor estudar o desenvolvimento do vestuário como instituição humana, nós compararmos a ordem em que estas três funções aparecem no indivíduo e na raça, constataremos que esta ordem não é a mesma nos dois casos. Naquilo que concerne à série filogenética, os antropólogos nos asseguram que a decoração é o primeiro móbil do vestir, que o pudor faz sua aparição somente em conseqüência dos hábitos adquiridos, em primeiro lugar, pelos motivos de embelezamento, e que ele é extremamente variável em suas manifestações; que o motivo da proteção é algo pouco importante nas primeiras fases do desenvolvimento da roupa, mas que, mais tarde, ele sem dúvida desempenha um papel considerável, facilitando as migrações dos homens para os climas frios.

Na série ontogenética, a evolução se faz na ordem mais ou menos inversa. Mal nasceu e a criança é envolvida em roupas muito volumosas, como se nós quiséssemos lhe restituir assim o abrigo confortável que ela acabou de perder ao deixar a matriz. Mais tarde lhe ensinamos noções de pudor – noções que, graças à cooperação do supereu, a criança aceita a partir da idade de seis e sete anos com uma complacência espantosa. Existem mesmo muitas crianças que ficam extremamente incomodadas se são obrigadas a se despir para um exame médico; entretanto, não é senão pouco antes da adolescência que elas começam a dedicar um verdadeiro interesse por suas roupas, sob o ponto de vista decorativo.

Notemos que a inversão aparente entre as duas séries evolucionárias é, em grande parte, devida ao fato de que os adultos impõem à criança hábitos que correspondem às suas próprias idéias de higiene, de moral e de estética, mais do que às necessidades e desejos da própria criança. Temos boas razões para acreditar que esta não aceita de bom grado, no início, todos os detalhes do regime que lhe é imposto. Não sabemos se a criança aprecia a matriz artificial que lhe fornecemos para seus primeiros dias. Mas sabemos bem que, um pouco mais tarde, ela sente a restrição que as roupas impõem, e que fica contente de se desembaraçar delas, regozijando-se da liberdade que possui no momento de dormir ou de tomar seu banho. Suas roupas lhe dão mais aborrecimento que prazer, e tanto mais na medida em que, em seus primeiros anos de vida (por razões que, talvez, não sejam ainda bem compreendidas), ela sente pouco frio.

A satisfação da criança no estado de nudez parece ter duas fontes principais: I) uma fonte auto-erótica que deriva, em parte, das sensações dos nervos cutâneos (sensações que são muito mais variáveis e interessantes se a pele não está isolada das excitações táteis e térmicas pela interposição das roupas); e em parte das sensações sinestésicas, que se desenvolvem mais livremente na ausência de roupas que impedem os movimentos musculares; 2) uma fonte narcísica, que se manifesta na admiração da criança por seu próprio corpo, e na busca também de provocar a admiração de outras, conduzindo assim a tentativas exibicionistas.

Estas duas grandes fontes de prazer são inevitavelmente diminuídas pelas roupas. Para aprender a tolerar esta diminuição, é preciso ou que o homem se resigne em suprimir estes prazeres (como ele faz com muitos outros) no curso de sua adaptação à moral adulta, ou então que ele encontre uma satisfação compensatória no próprio vestir. Existem muitas pessoas que sofrem de uma fixação nessa fase infantil, pois jamais conseguem tolerar facilmente o sacrifício inevitável, e durante toda a vida usam suas roupas contrariadas. Em geral, essas pessoas são mal-vestidas porque as questões do vestuário não lhes interessam suficientemente para que se dêem ao trabalho de escolher bem suas roupas, ou de vesti-las bem. No fundo, elas não cessaram de enxergar suas roupas como uma espécie de prisão; e não se pode absolutamente pedir a um prisioneiro que se mostre orgulhoso da beleza e da força de suas algemas.

Mas há outros prisioneiros, que se não chegam a admirar sua prisão, estão pelo menos reconciliados com a idéia de passarem aí suas vidas, e não desejam mais a liberdade fora de seus muros. Tal é a condição de uma outra categoria de pessoas, que se resignaram a usar o vestuário convencional, e que não buscam – pelo menos conscientemente – resgatar os gozos infantis da pele nua. Esses são homens positivos, que usam as roupas que as lojas lhes oferecem sem entusiasmo, mas também sem rancor.

Uma terceira classe compreende os que fizeram da necessidade uma virtude, que se tornaram orgulhosos de sua capacidade de tolerar os meios de coerção. Para eles, as roupas tornaram-se símbolos da moral e do supereu; símbolos que não significam somente o pudor, mas também o dever. Essas pessoas ostentam em geral um traje muito correto, com uma preferência pelas roupas brancas ou escuras, pouco coloridas, sólidas e, antes de tudo, rígidas. A rigidez de suas roupas simboliza assim a rigidez de sua moral.

Uma quarta categoria se compõe daqueles que até certo ponto substituem o interesse primitivo que tinham por seu corpo nu pelo interesse por suas roupas. Esses são os verdadeiros sublimados. Para retornar à nossa analogia, eles parecem com prisioneiros que converteram sua antiga prisão em palácio luxuoso, e que se consideram felizes de ter o privilégio de ali passarem suas vidas. Como em muitos outros casos de desenvolvimento mental, os meios empregados em primeiro lugar para combater3 e suprimir as satisfações primitivas tornaram-se os meios de satisfazer4 os mesmos instintos em um outro nível. O exibicionismo não se refere mais ao corpo nu, mas ao corpo vestido: e quanto mais belas são as roupas, maior é a satisfação. Como em todos os casos de sublimação, o indivíduo só pode chegar a esse ponto por meio de estados intermediários. Na criança e no homem primitivo o desenvolvimento é o mesmo; todos os dois se interessam primeiramente pelo valor decorativo de certos objetos isolados: uma pluma, um colar, um bracelete, e somente aos poucos eles chegam a experimentar um contentamento estético em um vestuário completo. Parece-me provável que, na criança, nós impedimos muito freqüentemente a sublimação do exibicionismo primitivo, impondo-lhe cedo demais adaptar-se aos gostos morais e estéticos dos adultos.

Sabemos que o exibicionismo não se relaciona igualmente com todas as partes do corpo, mas que em geral ele procura acentuar certas regiões, sobretudo as regiões genitais. Acontece do mesmo modo com a sublimação do exibicionismo por meio da roupa. Muitas roupas não têm apenas um valor exibicionista simples; seu valor é aumentado pelo fato de que elas possuem, para o inconsciente, uma significação simbólica. É assim que os psicanalistas assinalaram o simbolismo fálico do chapéu, do sapato, do colarinho, da jaqueta, do casaco e mesmo do botão; o simbolismo feminino da cintura, do véu, da liga e também do sapato (pois o sapato é andrógino em seu domínio). Eu mesmo tentei demonstrar em outro lugar que existe uma terceira categoria de símbolos – símbolos uterinos, graças aos quais certas roupas podem nos servir como meios de regressão simbólica ao seio materno, protegendo-nos assim contra um mundo exterior, hostil e frio. Mas não insistirei aqui sobre esses fatos de simbolismo. Prefiro primordialmente chamar vossa atenção para um fato menos conhecido, vale dizer, para uma ambivalência específica que se liga a alguns desses símbolos.

Já fizemos alusão à sobredeterminação geral da vestimenta, que serve ao mesmo tempo ao pudor e à decoração. Essa mesma sobredeterminação revela-se, sob uma forma mais específica, pelo fato de que as mesmas roupas que são consideradas pelo inconsciente como símbolos fálicos sejam empregadas, pelas camadas mais conscientes da alma, como representantes da influência do supereu. É o caso, sobretudo, de certas roupas estreitas, apertadas e rígidas, como o capacete, o espartilho, os falsos colarinhos engomados, as camisas com plastrão5. Mesmo que essas roupas diminuam as capacidades do corpo reduzindo, por sua rigidez, a liberdade de movimentos, por outro lado elas aumentam frequentemente a força psíquica disponível, e isto de dois modos: 1) facilitando a sublimação da energia instintiva genital em razão do simbolismo fálico; 2) tornando conforme ao eu o emprego dessa energia, em razão da cooperação do supereu. Entre as pessoas que pertencem à terceira de nossas quatro categorias citadas, esta cooperação do supereu é a coisa mais importante. Entre aquelas da quarta categoria, é o simbolismo fálico que desempenha o papel principal. Mas entre a maior parte das pessoas, as duas funções estão em jogo em proporções variáveis.

Nós podemos estudar agora as diferenças que existem, na época atual, no domínio do vestuário entre o homem e a mulher. Conhecemos as diferenças psíquicas gerais que estão evidentemente em relação com nosso assunto. Em comparação com a mulher, o homem adulto normal é dotado de um narcisismo menos livre, uma sexualidade mais concentrada sobre os órgãos genitais. É provável também (mas isto está bem menos estabelecido) que ele possui um supereu mais severo do que aquele da mulher, pelo menos em certas direções que nos interessam aqui. Essas diferenças psíquicas são reencontradas na diferença das roupas. Em conformidade com seu narcisismo mais livre, a mulher se permite um luxo maior, uma variedade maior, uma beleza maior em seu vestuário. Graças a sua libido mais concentrada, o corpo masculino é (fora da região genital) menos carregado de erotismo que o da mulher; mas também é, em geral, sujeito a menos restrições pudicas. O homem não tem necessidade de cobrir sua cabeça, seu rosto, seu peito e suas pernas para se mostrar modesto, como fizeram as mulheres em diferentes países e em diferentes épocas. Conformando-se ao rigor de seu supereu, o homem gosta de indicar sua seriedade pela severidade da forma e da monotonia das cores de suas roupas. É apenas estando em férias e usando roupas esportivas que ele se permite uma licença maior.

Esta influência do supereu sobre as roupas masculinas necessita de um sacrifício considerável de dois prazeres primitivos sobre os quais falamos – o narcisismo e o auto-erotismo da pele nua. Em conseqüência do recalcamento geral do narcisismo masculino, e na medida em que se refere ao corpo inteiro, a vestimenta do homem permite apenas uma satisfação extremamente restrita do exibicionismo; esse exibicionismo primitivo não pode se manifestar nem pela meia-nudez erótica – como no decote – nem por uma via sublimada das roupas delicadas ou magníficas. Ele pode se satisfazer somente por meio de uma sublimação menos direta e independente do vestir, graças a uma profissão que exige ou necessita de um exercício público, como a de ator, pregador, político, conferencista; ou por uma proteção, durante a qual o exibicionismo se converte em voyeurismo (escopofilia), o homem ali encontrando uma satisfação substitutiva na beleza da mulher.

O mesmo acontece com os elementos auto-eróticos em questão – os prazeres cutâneos e musculares. No que diz respeito a isso, a mulher goza de uma liberdade muito maior que a do homem. Minhas próprias pesquisas mostraram que as estimulações da pele por pequenas correntes de ar, e as sensações cutâneas que acompanham os movimentos sentidos sobre a pele nua ou através dos tecidos finos e leves, constituem uma fonte de prazer considerável para as mulheres que se vestem de acordo com a moda contemporânea, prazeres em sua maior parte inacessíveis aos homens.

É interessante notar, eventualmente, que as mulheres se liberaram das roupas estreitas, colantes e pesadas, que usaram durante a maior parte do século XIX, no momento em que se emanciparam de muitas restrições psíquicas e sociais. Esta última emancipação foi acompanhada de uma diminuição da severidade do supereu, uma diminuição que foi representada pela abolição das roupas correspondentes, por exemplo, aos espartilhos rígidos, os colarinhos com barbatanas. A mesma tendência se manifesta agora entre os homens. Pelo menos, tive a impressão de que são o narcisismo e o auto-erotismo cutâneo e muscular que fornecem a força motriz do movimento atual na Inglaterra pela reforma do vestir masculino – um movimento que é combatido igualmente por duas forças principais: I) as provenientes do supereu; 2) as tendências fálicas, que encontram sua satisfação no simbolismo das roupas masculinas, e graças às quais a idéia da reforma parece conter uma ameaça à virilidade (uma ameaça que deriva, em última instância, do complexo de castração).

Este último ponto nos lembra que se a roupa masculina tradicional demanda um sacrifício dos elementos narcísicos e auto-eróticos, ela é, por outro lado, bastante rica em símbolos fálicos e em representações masculinas associadas (por exemplo, os ternos pesados, espessos, acolchoados e relativamente indestrutíveis como representações da força). A sexualidade do homem, fálica e concentrada, adapta-se mais facilmente ao simbolismo genital do que a sexualidade mais difusa da mulher. É provavelmente por esta razão que o valor erótico das roupas femininas depende muito de sua capacidade de sugerir, de revelar e de acentuar a forma do corpo que elas cobrem, enquanto as roupas masculinas aspiram, sobretudo, a um verdadeiro simbolismo do órgão genital, e não fazem uso do mecanismo exibicionista do semi-escondido. Em uma palavra, a sexualidade masculina é capaz de se deslocar mais inteiramente sobre a roupa; o decote mesmo, se fosse permitido aos homens, daria menos satisfação, porque as partes do corpo expostas seriam menos carregadas de libido. Mesmo se fosse imposto às mulheres que se cobrissem tão completamente quanto os homens, o sacrifício de seu erotismo seria maior, porque elas seriam menos recompensadas em expressões dos símbolos fálicos. Contudo, as mulheres homossexuais que se sentem como homens ficam muito contentes de usar, sempre que possível, roupas masculinas, nelas reencontrando as mesmas satisfações que o homem, e tolerando sem dificuldade os sacrifícios necessários do narcisismo e do auto-erotismo. Em todas essas características das roupas masculinas observa-se a influência de uma estranha coalizão do falicismo e do supereu – coalizão de uma forma tal que se assemelha às numerosas alianças entre as tendências recalcadoras, manifestas nos sintomas das neuroses.

A história do vestir nos mostra que as tendências afetivas que se exprimem pelas roupas sofreram, entre os homens, uma grande inibição no fim do século XVIII – uma inibição que não cessou ainda de se manifestar durante todo o período de aproximadamente cento e quarenta anos que se passou desde esse tempo. Até então, embora a mulher possuísse a vantagem especial do reforço recíproco da roupa e da nudez parcial (como nos vestidos decotados), não havia aí grande diferença entre os dois sexos no que concerne à qualidade decorativa das próprias roupas. A roupa dos homens era, talvez, um pouco mais bonita e alegre: uma distinção semelhante àquela que existe entre a maioria dos primitivos e dos animais. Repentinamente, o traje masculino tornou-se sombrio, monótono, uniforme, e permanece assim até nossos dias. Os poucos escritores que se dignaram a considerar esse notável fenômeno estiveram mais ou menos de acordo em considerá-lo como sendo devido a causas sociais.

No fundo, a beleza e a variedade das roupas derivam em grande parte da concorrência – concorrência na vida e no amor. Sob o antigo regime, a diferença das roupas correspondia, em geral, à diferença de classe, distinção essa que tentava se fazer observar por meio das leis suntuárias. Quando a Revolução tentou abolir todas as distinções dessa espécie e estabelecer a igualdade entre todos os homens, aboliu-se também – muito logicamente – os sinais exteriores de distinção que era desejável fazer desaparecer. Embora nessa época a roupa feminina também sofresse grande simplificação, a natureza e a tradição mais narcísica e menos social da mulher não resistiu definitivamente às seduções da concorrência sexual e da beleza. É assim que as idéias da fraternidade e da igualdade, espalhadas através do mundo ocidental pela Revolução Francesa, conseguiram produzir nos homens uma renúncia permanente de certos sinais de concorrência, enquanto a mulher continuou a satisfazer suas tendências competitivas por meio da moda.

Chegamos então à moda. Tema inesgotável, do qual só podemos esboçar, no tempo que nos resta, as grandes linhas. Devemos distinguir, de início, as forças gerais que criam e sustentam a existência da moda, e também as tendências mais específicas que se manifestam em suas variações particulares. A verdadeira criadora da moda é a concorrência – a concorrência social e sexual entrelaçadas de maneira bastante complicada. A moda pode existir somente dentro de certas condições, nas quais se encontram os níveis sociais separados por barreiras que não são, contudo, insuperáveis. Em uma hierarquia rígida (como por exemplo, no exército), a moda é impossível; cada um ocupa uma classe determinada, uma classe que é indicada pelo uniforme, ou seja, um traje tradicional e imutável. Em outro extremo, a moda é igualmente impossível em uma democracia completa. Se não há diferenças de classe ou de fortuna, não há razão de ser para as distinções na forma, na riqueza ou na novidade das roupas. É justamente por isso que alguns escritores políticos reconheceram que a moda, no fundo, é uma coisa que não se deixa conciliar com o socialismo. Mas entre estes dois extremos – e em uma sociedade como a nossa, que é composta por um grande número de classes sociais separadas umas das outras por graus mínimos –, aqueles que ocupam uma posição inferior possuem, em geral, o desejo de subir na escala social vestimentar; os superiores, por sua vez, desejam conservar sua posição relativa, buscando roupas mais bonitas, mais caras, mais suntuosas, ou simplesmente mais novas que os menos afortunados. Naturalmente, há limites no grau de novidade permitido, e tais limites são determinados pela sugestionabilidade dos inferiores. Uma novidade só tem sucesso, do ponto de vista da moda, se é capaz de ser adaptada como símbolo do supereu por aqueles que são destinados a copiá-la. Tais limites são semelhantes àqueles impostos a qualquer emprego da sugestão – e a sugestão somente tem êxito se o sugestionável identifica seu supereu com o sugestionador. Por exemplo, no caso da moda de que se trata aqui, um novo estilo não será adotado se ele não estiver de acordo com o ideal estético, moral ou social de uma época. É assim que os estilos que parecem demasiadamente audaciosos ou demasiadamente retrógrados – ou que são inspirados em épocas passadas, nas quais o ideal diferia profundamente do nosso – freqüentemente não têm sucesso, mesmo se são lançados por pessoas que possuem um prestígio incontestável.

Estas influências sociais que sustentam a moda são estimuladas e exploradas por outras, de ordem econômica. Os desenhistas, os fabricantes e os vendedores de roupas empregam meios calculados, não somente para determinarem a direção da moda, mas também para acelerarem suas mudanças; e isto, por um lado, disponibilizando para sua clientela aristocrata e plutocrata uma variedade perpétua, e por outro, oferecendo à burguesia numerosos modelos de imitação daqueles custosamente adotados pela aristocracia. Eles vêm em auxílio tanto dos perseguidos como dos perseguidores6, precipitando os passos de ambos. No entanto, graças à produção em massa, os perseguidos estão ganhando dos perseguidores. Embora esse objetivo seja ainda remoto, podemos prever que a moda corre o risco de culminar em uma vitória completa dos perseguidos, e esse acontecimento será talvez facilitado pela influência niveladora da legislação social e da adoção, pelas mulheres, do ideal masculino – o que as obrigará a exprimir sua rivalidade de uma maneira diferente das mudanças da moda. Esperemos somente que, se isto vier a se realizar, tendo a influência do supereu conseguido suprimir a concorrência individual – na medida em que ela se exprime pela roupa –, que ela não venha a se tornar, como nos homens, tão rígida e tão conservadora que culmine em se opor a todas as mudanças, mesmo aquelas que são claramente indicadas por razões de higiene, de beleza ou de conveniência.

Encaremos agora as tendências mais específicas, que se manifestam nas variações sucessivas da moda. Temos que contar aqui com um número de variáveis mais ou menos – mas nunca inteiramente – independentes. Nós mencionaremos somente algumas das mais importantes.

1. Há uma primeira variação entre a influência relativa dos dois motivos fundamentais, o da decoração e o do pudor. Há épocas em que o exibicionismo triunfa sobre a modéstia, e outras em que o puritanismo exige uma simplicidade e uma seriedade que não permitem nenhuma exuberância. Consideremos, por exemplo, a influência relativa do realismo, e do republicanismo no tempo da guerra civil inglesa.

2. Em seguida, há uma variação no grau de deslocamento de interesses exibicionistas do corpo nu (seu objeto primitivo) ao vestir (seu objeto sublimado). Em um dos extremos, as roupas podem servir simplesmente para embelezar, para acentuar e para enquadrar os corpos como, por exemplo, nas “girls” de uma revista parisiense, cuja roupa, magnificamente decorativa, tem por único objetivo tornar mais magnífica a beleza dos corpos e permitir uma nudez quase completa. No outro extremo, a libido fica inteiramente distribuída nas próprias roupas, o corpo não sendo ali mais do que um meio de suspensão para os vestidos. Isto se vê muito claramente, por exemplo, nos magníficos vestidos de cerimônias usados por pessoas da realeza no dia de sua coroação. Entre esses dois sistemas, pode-se construir uma série de gradações contínuas. Como já indicamos anteriormente, no caso da roupa masculina, a libido é em geral mais inteiramente distribuída sobre as próprias roupas do que nas roupas femininas, essas que por muitos séculos deixaram sempre exposta uma parte do corpo – o pescoço, os ombros, o peito, os braços – e que permaneciam escondidas no homem. A moda feminina de nossos dias, em sua relativa simplicidade, limita-se, em geral, a sublinhar as formas do corpo e a enfeitá-lo com uma bonita moldura, não visando promover qualquer impressão de beleza ou de voluptuosidade por meio das roupas magníficas e suntuosas. O mesmo acontecia com as roupas clássicas do Império, que contrastavam notavelmente com o vestuário muito mais rico e amplo do século XVIII. Podem-se distinguir essas duas mesmas tendências nas reações que se fazem contra o exibicionismo. Tais reações podem se dirigir principalmente contra a manifestação do corpo nu – como foi com os cristãos antigos e como acontece nos dias de hoje – ou contra a magnificência da roupa, como era o caso dos puritanos ingleses.

3. Em terceiro lugar, existe uma variação no que concerne à parte do corpo que é acentuada pela moda. Durante um longo período (desde e durante a Renascença), a parte superior do tronco é que era vista como a parte do corpo feminino mais interessante, e para a qual se pretendia dirigir a atenção por diferentes meios – o decote, o espartilho, a cintura apertada. Freqüentemente também eram envidados todos os esforços para acentuar o contraste entre a bacia larga e a cintura fina, que é uma característica da anatomia feminina. Para atingir esta finalidade, empregavam-se ou a constrição da cintura, ou o alargamento – freqüentemente fantástico – das ancas, por meio do vertugadin7, da crinolina8, dos cestos9, ou de uma combinação de dois desses processos. Algumas vezes, retrocedendo à adoração da Vênus Calipígia, era o traseiro que se admirava mais, e ao qual – imitando-se os gostos de certos povos primitivos – eram dadas proporções imponentes por meio da tournure10. No momento atual, o interesse se concentra sobre os membros, mais do que sobre o torso. Gostamos de seguir as linhas elegantes do braço; usamos vestidos sem mangas ou com mangas longas e colantes, pois não toleramos nada que nos impeça de perceber os contornos naturais. Mesmo as pernas femininas saíram de seu esconderijo secular; durante os últimos anos, ficou o homem ofuscado pela visão inesperada da beleza sedutora dos membros inferiores, beleza que tinha sido velada desde o começo de nossa civilização.

4. Existe também uma variação quanto à idade mais admirada da mulher. A acentuação, na época atual, dos membros; a insistência sobre a cintura esbelta, o esquecimento (ou melhor, o recalcamento) do charme – tão admirado em outras épocas – da bacia e do colo, todos correspondem à apoteose da juventude; uma apoteose que contrasta de uma maneira marcante com a admiração da maturidade que caracterizou, por exemplo, o período do Renascimento. Esse culto da juventude tem suas origens na América e na Inglaterra, e invadiu recentemente outros paises europeus, sobretudo a Alemanha. Ele contém elementos psíquicos positivos e negativos. O elemento positivo é derivado, em grande parte, do amor ao esporte e da admiração, dele nascida, pelo corpo em movimento. O elemento negativo deriva de certa intolerância pelos sinais da maturidade, por exemplo, pelos seios bem desenvolvidos. As mulheres adultas tentam adotar não somente a roupa, mas também a cintura fina das moças. Nesses últimos tempos, estamos muito distantes do ponto de vista das épocas em que toda mulher pretendia estar grávida, e onde a gravidez era a condição mais admirada. Parece, ainda, que a mulher ganhou o direito de usar seus joelhos como objetos eróticos, ao preço da admiração que ela outrora recebia em razão de suas qualidades mais especificamente femininas. Do ponto de vista do simbolismo das roupas, essa mudança corresponde também, como supõe Löwitsch em um recente trabalho, a uma predominância dos símbolos fálicos sobre os símbolos uterinos – à preferência de linhas retas e de formas perpendiculares às linhas curvas e às formas bufantes.

Mas talvez tenhamos chegado ao momento em que começa uma reação contra essas tendências modernas; uma reação que nos permite reconhecer certas correlações entre as variáveis que assinalamos. Sem ter produzido grande diferença no equilíbrio geral entre o exibicionismo e o pudor (pois a mulher, por expor suas pernas, teve que renunciar ao valor erótico de seus seios), esta tendência moderna favoreceu o corpo às expensas do próprio vestir – os membros à custa do torso, a juventude à custa da maturidade, o falicismo à custa da maternidade. A reação iminente ameaça produzir uma mudança em todas essas direções. Os jornais de moda, os teatros e os salões de baile nos mostram saias mais longas, que permitem apenas olhadelas furtivas sobre a barriga da perna (que, há algum tempo, eram muito livremente expostas), os decotes mais generosos que tentam trazer o erotismo sobre o torso (contentando-se com as costas como a parte mais inocente), as decorações mais ricas e os tecidos mais amplos, como para querer re-erotizar o vestir, à custa do corpo. Diz-se, mesmo, que os diretores das revistas começam a procurar jovens meninas, com cinturas mais arredondadas, para substituir as belezas esbeltas do ano passado. Isto, e também a saia alongada, indicam que a idade da maturidade retorna à condição de ideal. Tudo isso faz pensar em uma mudança da moda que se assemelha, em suas características gerais, às mudanças que tiveram lugar há cem anos, quando a simplicidade clássica do estilo imperial passou gradualmente à amplitude bufa e gigantesca do meio do século XIX.

É claro que existem forças consideráveis que se opõem ao retorno da maturidade: sobretudo a influência do esporte e da atividade geral feminina, que caracterizaram esse mundo do pós-guerra. Tem-se a impressão de que os novos estilos que pretendem ser introduzidos correspondem muito mais aos desejos dos costureiros que àqueles de seus clientes. A tentativa de introduzir as saias longas pelo método direto já falhou, em muitas retomadas. Arrisca-se agora uma nova tentativa, limitando-se: 1) aos vestidos para usar à noite e à tarde; 2) a um alongamento parcial, limitado sobre alguns pontos ou sobre um lado. Resta saber se esse ataque mais insidioso terá êxito onde o ataque direto fracassou. Os jornais já falam da “guerra das saias”. O momento é, certamente, de grande interesse para todos aqueles que se ocupam da história e da sociologia do vestir.

Eu percebo que nessas notas pouco sistematizadas, não fiz mais do que tocar em um assunto extremamente vasto e complicado. As roupas constituem uma espécie de ambiente artificial que o homem interpõe entre seu próprio corpo e seu meio. Esse ambiente – embora tenhamos o poder de constituí-lo e de mudá-lo conforme a nossa vontade – é tão constantemente presente e se torna tão natural, que não inspira em geral a curiosidade verdadeira. E isso devido a esse meio curioso – meio que possui ao mesmo tempo as qualidades de pele exteriorizada, com suas funções de higiene e de erotismo; de casa ambulante; com suas funções protetoras, decorativas e pudicas. Ora, se, como supõe Herbert Spencer, a vida consiste na adaptação contínua de relações interiores com relações exteriores, a ciência da vida não tem certamente o direito de negligenciar esta posição do eu interior, que o homem anexou do mundo exterior para o engrandecimento e embelezamento de seu organismo.

 

 

Endereço para correspondência
Izabel Haddad Marques Massara
Universidade Federal de Minas Gerais
Av. Pinheiros, Retiro das Pedras
35460-000 Brumadinho - MG - Brasil
Tel.:+55 31 3547-2230
E-mail: izabelhaddad@hotmail.com

Recebido em: 21.08.2007
Aprovado em: 06.09.2007

 

 

1 De la Valeur affective du Vêtement, publicado em Revue Française de Psychanalyse, 1929, p. 309. Tradução de Izabel Haddad.
2 O psicanalista inglês John Carl Flügel nasceu em 03 de junho de 1884, em Londres. Foi membro honorário da Sociedade Psicológica Britânica e da Associação Psicológica da Índia. Seu pai era alemão e sua mãe inglesa, de modo que Flügel dominava as duas línguas, mais o francês. Em virtude de uma má-formação congênita nos pés, ele não seguiu um programa escolar normal, mas ingressou na Universidade de Oxford quando tinha apenas 17 anos. Obteve seu doutorado em filosofia, mas interessou-se sobremaneira por temas psicológicos, como o hipnotismo. Tornou-se membro da famosa Sociedade Frederick W.H Meurs para a Pesquisa Psíquica. Dotado de uma personalidade inquiridora e pouco convencional, Flügel encontrou na psicanálise subsídios para suas investigações sobre questões morais e sociais. Desde as descobertas de Freud acerca da interferência da moralidade sexual na etiologia das neuroses, as implicações éticas e sociais da teoria psicanalítica se tornaram determinantes nas pesquisas de Flügel. Sua obra mais conhecida, Homem, morais e sociedade, foi publicada em 1945. Flügel escreveu também A psicologia das roupas, publicado em Londres, em 1930; e também O sonhador nu – do estilo vestimentário. Entre 1918 e 1924, Flügel foi presidente da IPA, fundada por Freud em 1910. Morreu com 71 anos, em Londres, em agosto de 1955, deixando uma obra preciosa e inovadora.
3 Grifo do autor.
4 Grifo do autor.
5 N.T: Entretela colocada por dentro do colarinho.
6 N.T: Preferiu-se manter a tradução das palavras pousuivants e poursuivis em francês literal, por não ter encontrado um termo que os substituísse adequadamente.
7 N.T: Arquinho que as senhoras usavam.
8 N.T: Anágua armada com lâminas de aço.
9 N.T: Tecido de vime, anquinhas que as mulheres usavam para revelar as saias que punham por cima.
10 N.T: Grifo meu. Anquinhas que usavam as mulheres de moda por baixo dos vestidos ou algibeiras para aviltar os vestidos sobre as ancas.