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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Cindy Sherman: sobre o feminino

 

Cindy Sherman: concerning femininity

 

 

Alessandra Monachesi Ribeiro

Instituto Sedes Sapientiae
Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, busco abordar a problemática do feminino em psicanálise a partir da consideração ao percurso de uma artista plástica contemporânea: Cindy Sherman. Tomando por base suas referências ao tema em suas produções, constatamos que para a artista o feminino aparece não como lugar de castração e tampouco como reiteração da lógica fálica, mas como algo além, que suscita novas vias de reflexão. Abordo, então, os componentes de ironia em suas produções e sua tendência ao grotesco, na medida em que ambos apontam para uma consideração da feminilidade por essa outra via, em que se aproxima ao estranho e ao estrangeiro nos modos de constituir um campo para a subjetividade.

Palavras-chave: Cindy Sherman; Arte contemporânea; Feminilidade; Ironia; Grotesco.


ABSTRACT

In the present article, we tackle the theme of femininity in psychoanalysis from the point of view of a contemporary artist’s trajectory, Cindy Sherman. Based on her references to the theme above within her works, we conclude that femininity doesn’t present itself as the place to castration, neither as the reiteration of a phallic logic, but as something beyond, giving rise to new reflections. We then approach the irony components within her work, as well as her inclination towards grotesquery, since both of them put femininity in another perspective, getting the close to the ideas of the unfamiliar and the foreigner as ways of constituting a field for subjectivity.

Keywords: Cindy Sherman; Contemporary art; Femininity; Irony; Grotesquery.


 

 

Não faria sentido algum apresentar, como tema de uma reflexão psicanalítica sobre o feminino, o trabalho de uma artista contemporânea, com um percurso e questões absolutamente próprias e singulares, se não houvesse algo que justificasse tal ousadia. A maneira como o farei neste artigo, e que me parece mais interessante e enriquecedora, será pela inversão da direção usual em que tais aproximações entre arte e psicanálise se dão, qual seja: no sentido de uma psicanálise interessada na interpretação das obras de arte e de seus respectivos autores. Ao contrário, opto aqui por sustentar a indagação acerca do que a arte tem a dizer para o campo psicanalítico, e será dessa maneira que a obra e o artista comparecerão nesta reflexão. Abrem-se, dessa perspectiva, uma infinidade de interlocuções possíveis, e será a respeito de uma delas que ora tratarei.

 

Uma artista e seu percurso

Nascida em Nova Jersey, Cindy Sherman estuda pintura, a princípio, na State University College, em Buffalo, Nova Iorque. Mas será com a fotografia que encontrará o suporte privilegiado para suas criações e logo começará a transpor para sua criação plástica sua fascinação pela autotransformação através de roupas e maquiagens. Em 1977, inicia o que será sua primeira e mais famosa série fotográfica, com a qual obterá amplo reconhecimento no campo das artes: os Untitled Film Stills. Trata-se de fotografias em preto-e-branco ou coloridas, em que flagramos vários personagens femininos que nos fazem pensar nas divas cinematográficas dos anos 40 e 50, capturadas em cenas de filmes noir, ou então em momentos de descontração na intimidade de suas casas. Sempre solitárias, elas nos remetem à sensualidade, ao glamour, bem como ao suspense, ao desamparo e à tensão suscitados pelas situações nas quais se encontram. Com essa série, Sherman dá início a um trabalho que será compreendido como uma denúncia dos vários papéis destinados às mulheres que povoam o imaginário de nossa época (Cruz, 2003).

O lugar da mulher, marcado pela influência midiática, dos filmes às propagandas televisivas, é retratado de maneira irônica por Cindy Sherman, que não sem motivo torna-se uma das artistas com mais ressonância no movimento feminista, e a quem se atribui, conseqüentemente, uma grande influência do ideário feminista na feitura de seus trabalhos. O poder das imagens que circulam na mídia, sua influência na construção das identidades, bem como a criação desse imaginário como um produto de consumo, em uma sociedade de consumo, parecem ser sutilmente colocados em evidência pela artista, que em seus trabalhos constrói uma composição diretiva o suficiente para ser associada aos filmes ou à vida glamourosa das atrizes hollywoodianas, no entanto, sem especificar exatamente de quem se trata, ou em que circunstância. Ou seja, os Film Stills, ainda que evocativos, guardarão certo mistério, uma nebulosidade que deixa espaço para a participação do espectador na construção de uma história de cada foto.

Além disso, e já desde esse início de produção, Sherman dispõe de suas personagens em situações nas quais elas parecem estar sendo olhadas, criando uma cadeia voyeurística na qual o que aparece na foto remete a um complemento – o olhar de alguém – que apenas se supõe, posto que não esteja representado na composição fotográfica e que, em última instância, implica o espectador da obra, que olha alguém sendo olhada, ou que olha alguém que olha outro alguém.

Esse apelo ao olhar voyeur, bem como o uso das imagens e lugares clichês ocupados pelas mulheres, serão desenvolvidos por Cindy Sherman em suas séries subsequentes, como as Rear Screen Projections, as Centerfolds or Horizontals, em que a artista passa a se utilizar de revelações em grande formato, inspiradas ora nas emissões televisivas com seus cenários visivelmente falsos, ora no modo de composição utilizado pelas revistas pornográficas. Com isso, ela amplia ainda mais a intensidade dessa sensação de flagrante que o espectador experimenta ao deparar-se com as cenas congeladas dessas mulheres olhadas, que por vezes também olham. Para o espectador ou para quem as olha?

Se a imagem se encerra em si mesma ou se abre para o espectador através do artifício do olhar, sobra-nos essa dúvida. Na série Pink Robes, por exemplo, as personagens olham diretamente para nós, arremessando-nos para dentro da composição de uma maneira mais crua e seca do que acontecia com os convites e insinuações oblíquos das séries anteriores. Mas acentuam-se a vulnerabilidade, o desamparo, a fragilidade e também o caráter sedutor dessas figuras femininas retratadas, colocando-nos frente a composições geradoras de mal-estar, posto que, como espectadores, é difícil encontrarmos uma posição confortável a partir da qual contemplar tais fotos. Essas mulheres, o que se passa com elas? Devemos nos compadecer de sua sorte? Ou admirá-las? Desejá-las? Ou será perversidade nos regozijar do estado em que se encontram? Na dúvida, o espectador desconfortado não sabe bem como reagir à obra, efeito bem calculado pela ambigüidade e ironia impressas por Sherman.

Com as Fashion Photos, começamos a encontrar na obra de Cindy Sherman o que parece ser uma virada, ou para ser mais precisa, uma acentuação de certos aspectos que a aproximarão do campo do grotesco, e ao mesmo tempo a distanciarão da interpretação de sua obra apenas como denúncia do lugar da mulher, em viés feminista, remetendo-a mais amplamente às possibilidades do feminino como condição do humano, o que se verá posteriormente neste texto. As figuras, papéis e representações da mulher resultam, nessas fotografias inspiradas pelos editoriais de moda, em personagens aterrorizantes, feias, com esgares, olhares esbugalhados, bizarras, loucas, sinistras. É como se a mulher sobrasse destruída por todas as suas glamourosas imagens, destroçada, louca, bestial.

Daí para as séries seguintes, as Fairy Tales e Disasters Pictures, o horror só faz aumentar. Através de uma iluminação sombria e da visão de figuras grotescas, criadas com o uso de máscaras e próteses que se tornam evidentes e explícitas, enunciações claras de uma farsa construída – o que antes não acontecia, ainda que Sherman sempre nos apontasse para a questão da farsa por meio de outros estratagemas, como a inclusão do disparador da máquina, dos fundos projetados etc –, somos reenviados aos cenários e personagens mais assustadores dos contos de fadas. Ou, mais além disso, para uma total ausência de figura humana, relegados aos dejetos, às excrescências, à carne, ao sangue, à sujeira, ao informe. Da mulher à mulher destruída, e dessa ao corpo em sua literalidade, a ironia dá lugar ao horror, ou caminha passo a passo com ele.

Com os History Portraits or Old Masters, Cindy Sherman prossegue o que já havia começado na série Bus Riders: uma crítica ácida da história da arte como farsa, que caminha em paralelo com o que ela vinha fazendo em relação aos papéis da mulher em nossa cultura. Pela utilização do disparador da máquina fotográfica como parte da composição, ou por meio do uso de próteses nas figuras que remetem às pinturas renascentistas, a artista reforça a idéia de que sua discussão se amplia para além dos horizontes feministas, sendo mais uma pesquisa abrangente no campo da farsa, da ironia e do grotesco do que apenas uma denúncia acerca das mazelas relativas ao gênero. Longe de serem séries disparatadas e alheias à problemática que Sherman vinha desenvolvendo até então, parecem se articular com as outras de modo a fornecer a chave para uma possível interpretação do percurso da artista. Penso que exatamente essas fotografias, que colocam em questão a própria arte como farsa, tornarão possível compreender que o movimento das séries sobre os clichês femininos anteriormente mencionadas segue um caminho análogo, e aponta também para um tipo de falseamento ao qual me referirei mais adiante.

Mas, para não nos desviarmos desse retrospecto, retornemos para o percurso da artista, que, com as séries Civil War, Sex Pictures e Horror and Surrealist Pictures, aprofunda ainda mais sua imersão no campo do grotesco. Agora, as próteses despedaçadas servem para apontar para a destruição. Os cadáveres artificiais em estado de putrefação provocam tanta repulsa quanto os manequins, pedaços de corpos e bonecos de sex-shop, que agrupados das maneiras mais bizarras, apelam para uma sexualidade perversa inquieta e desconfortante. Não há mais a sedução das sutilezas e fragilidades das mulheres estendidas no chão, com seus olhares perdidos e demandantes, presentes nas fotografias anteriores, tão apelativas para o olhar voyeur. Mantém-se, no entanto, uma mesma intensidade de mal-estar, que é aumentada pela manifesta artificialidade da composição, pelos truques e artifícios tão explicitamente revelados quanto o sexo das figuras fotografadas.

O absurdo atinge seu ápice quando, nas figuras de horror, Sherman passa a utilizar-se de máscaras sobrepostas em camadas, ou de uma combinação de pedaços de manequins que remetem ao estranho – na exata acepção que Freud dará a este termo, como veremos –, como se fizessem referência simultaneamente a interior e exterior do corpo, e como se houvesse algo humano subjacente. Utilizando-se de técnicas aparentadas daquelas das quais fizeram uso os surrealistas, a artista faz sobrepor a repulsa à fascinação e à insinuação prazerosa que seus trabalhos iniciais evocavam.

Com as séries Masks e Broken Dolls, o que antes fora figura humana, referência à mulher, objeto de contemplação, ambigüidade, temor, entranhas, farsa, artifício, provocação, pornografia, excesso, absurdo e repulsa torna-se cada vez mais alheio ao campo da humanidade. O inumano de máscaras distorcidas, derretidas, deformadas e mutiladas não esconde mais nada detrás de si. A própria máscara tem vida, uma vitalidade monstruosa e descabida, do mesmo modo como as bonecas despedaçadas e postas em posições obscenas também soam absurdas, desligadas de qualquer possibilidade de vinculação com algo da esfera do humano que nos seja reconhecível, e com isso, reconfortante.

O passeio termina com as séries Hollywood or Hampton Types e Clowns, nas quais as personagens reaparecem, agora destituídas de qualquer glamour que outrora apresentaram. As personagens são pessoas decadentes, figurantes, atrizes esquecidas que buscam apresentar-se da melhor maneira possível em cada foto, suplicantes por reconhecimento e atenção. O brilho irrecuperável das primeiras séries reaparece aqui como crua e franca decadência. Os restos que se tornaram, ou que nos tornamos, aqueles desconstruídos em suas pretensas imagens de si pelo próprio percurso da artista culminam nos clowns, figuras mais grotescas do que ridículas, com seus sorrisos assustadores, imagens fantasmagóricas frente a um fundo colorido, excesso de vivacidade de onde brotam como máscaras da morte.

Os clowns, que têm na imitação do outro sua função, recolocam as questões principais do trabalho de Cindy Sherman: a mimesis – para a arte, ou na idéia de constrição aos papéis e lugares socialmente impostos – pode ser posta em questão, uma vez que não leva ao encontro com a verdade transcendente almejada no final do caminho. A farsa reside na pressuposição da busca e do encontro dessa verdade e, quer na arte, quer no lugar da mulher, quer na condição humana como relativa à masculinidade e à feminilidade, isso conduz apenas ao desvelamento desesperado do fracasso de sua própria lógica, como veremos a seguir.

 

A castração como máscara

O que faz Cindy Sherman em suas obras?

Desde os Untitled Film Stills, sua primeira série fotográfica, já vão mais de trinta anos de uma produção plástica intensa, consistente e provocante. Alguns críticos têm se debruçado sobre sua obra, como mencionado anteriormente, principalmente no sentido de entendê-la como um percurso de desvelamento da condição feminina em nossos tempos. Artista emergente no bojo do movimento feminista, é inegável sua influência na obra de Sherman e naquilo que ela se propõe a discutir plasticamente. Mas limitar o alcance de mais de três décadas de produção a uma discussão do lugar da mulher em nossa cultura parece-me, no que tange à obra de Cindy Sherman, uma redução que não faz jus àquilo que a artista parece nos oferecer.

Não reside no fato de ser uma mulher que faz uso do suporte fotográfico como seu meio principal de expressão, nem no fato de ela se usar como modelo para suas criações, o principal ponto de injunção de suas obras. Não parte de nenhum desses aspectos a associação entre o trabalho de Cindy Sherman e a questão da feminilidade. Tampouco no já acentuado fato de ser a artista uma mulher, como se isso garantisse, por si só, uma derivação de suas poéticas para a questão do feminino, necessariamente. Este é o primeiro equívoco a que se faz necessário desconstruir: a idéia de que feminino equivale à mulher como masculino equivale ao homem. Não se trata de uma discussão sobre gênero, mas de algo que o ultrapassa, como veremos ao longo deste texto. Mas, sim, trata-se de uma mulher artista, que por meio de percursos tão singulares, tangencia de algum modo a problemática da feminilidade.

Por que a feminilidade é questão?

Lacan foi quem o enunciou com todas as letras, mas Freud já se deparava, décadas antes, com o feminino como um problema, um mistério a ser desvendado. Feminino e feminilidade indelevelmente associados à mulher, ainda que o próprio Freud (1933) afirmasse, em suas obras da década de 30, que a feminilidade e a masculinidade são características desconhecidas que fogem ao alcance da anatomia e para as quais as diferenças anatômicas servem pouco como base ou ponto de inflexão. Além disso, a associação da masculinidade e feminilidade a aspectos mentais, que terminam por se traduzir em atividade e passividade, pouco esclarece sobre o tema, do mesmo modo que a derivação da passividade para o masoquismo como característicos do feminino. A psicanálise não tenta mais, desde tal constatação, descrever o que é a mulher, mas apenas se pergunta como é que a mulher se forma a partir da criança dotada de disposição bissexual. Mesmo assim, suas asserções resvalarão constantemente para o lado daquilo que Freud procurou se resguardar, aproximando a mulher – e o feminino, por conseqüência – da castração, do narcisismo, da passividade e do masoquismo. E ainda que isso guarde algum sentido dentro da proposição freudiana da organização de um psiquismo marcada pelo advento do complexo de Édipo, frente ao qual homem e mulher terão que se posicionar, sob pena de não acederem àquilo que mais tarde Lacan postulará como o psíquico por excelência – a linguagem – há algo que permanece intocado por esse modo de aproximação com a questão da feminilidade.

O que quer uma mulher? O que é a mulher? A mulher não existe, afirmará Lacan (1972-73). E, com isso, chamará atenção para ser a mulher uma impossibilidade, posto que cindida entre ser “toda” e “não toda”, marcada pela lógica fálica, e ao mesmo tempo transbordando para fora dela. Se for Lacan (1960) quem se pergunta se a mediação fálica dará conta de todo o campo pulsional em uma mulher, será também ele a retomar aquilo que Freud (1920) apontava como o que escapa a tal lógica, à possibilidade de representação e inscrição na ordem do psíquico – a compulsão à repetição e a pulsão de morte, mais especificamente – como pertencente à esfera da feminilidade. Que parentescos guardam a pulsão de morte, o inominável, o resto, o excesso ou, em outro registro, o que escapa à linguagem, ao simbólico, o real com o feminino?

Deslocando-se do campo do sexo para o campo do gozo, Lacan se indagará acerca de um gozo feminino, considerando que existe, para a mulher, uma divisão entre ser “toda fálica” e “não toda fálica” (Alonso, 2002). Com isso, Lacan recoloca a idéia de Freud de uma libido única e masculina como aquilo que impede que se apreenda o que é da ordem da feminilidade uma vez que, também para a mulher, para que possa dar testemunho do real de seu corpo, terá que passar pelo campo da linguagem. Isso significa submeter o campo do feminino ao significante, que define a falta a partir do ter, o feminino a partir do masculino, amarrado a uma lógica masculina, fálica. Com isso, coloca-se a importante questão de se o feminino pode ser subsumido à lógica fálica ou se não dirá respeito, também e principalmente, àquilo que lhe escapa. E como falar disso que escapa à fala?

Falar daquilo que lhe é exterior é tarefa impossível, fadada ao fracasso. E no entanto, a própria psicanálise nos aponta que somos seres condenados à fala, ao trabalho psíquico necessário, com o qual pagamos o preço de nossa existência como humanos. Ser humano diz respeito também a falar no abismo de não conseguir comunicar-se, procurando vias tortuosas, criando vocabulário e palavra onde eles faltem, na esperança de viabilizar com que esse desamparo, oriundo de nossa incapacidade de comunhão total e absoluta com um outro que complete e afaste o desterro, se não se desfizer, que ao menos se atenue.

A arte é uma das maneiras que o humano encontra para colocar em palavra o que a excede, e ainda que a questão nunca se resolva – do mesmo modo que as questões de cada artista nunca se resolvem com suas obras, impulsionando-os a criar e criar sem descanso –, é interessante atentar para o que algumas artistas andam “falando”. Mulheres artistas que nos contam algo sobre a feminilidade. Vejamos.

Cindy Sherman é um exemplo paradigmático de como a questão do feminino vem sendo abordada. Se no início de sua carreira na década de 70, com os seus Untitled Film Stills – em que aparecia como uma personificação das divas hollywoodianas flagradas em sua intimidade desvendada quase à moda paparazzi ou, o que dá no mesmo neste caso, como uma personagem de filmes capturada em um instantâneo de uma cena, tal qual uma loira platinada hitchcockiana no auge do suspense, quando sua fragilidade gelada esbarra no mistério que oculta –, a interpretação mais evidente para tais trabalhos de criação seria seu entendimento como um desmascaramento dos diversos papéis desempenhados pela mulher em nossa sociedade, com o passar dos anos e a continuidade do percurso da artista, tal afirmação parece ter se tornado um constrangimento daquilo que ela tem buscado colocar em questão. Isso salta aos olhos no passeio por suas obras atualmente exibidas em várias retrospectivas ao redor do mundo, e das quais tentei dar alguma idéia no início deste texto.

Rosalind Krauss (Bois & Krauss, 1999) acerta, a meu ver, ao colocar em questão a interpretação das obras da artista pela chave feminista da denúncia do lugar da mulher em nossa sociedade. Ainda que Sherman incontestavelmente faça um desvelamento das máscaras da mulher partindo do imaginário cinematográfico dos Film Stills, passando pelos editoriais de moda das Fashion Pictures, chegando ao uso escancarado das próteses e pedaços de manequins na série Fairy Tales para atingir, como querem alguns de seus críticos, a queda da última máscara naquelas que alguns chamam de Bulimia Pictures (a série Disasters) – nas quais a artista não aparece, mas apenas dejetos e pedaços daquilo que pode ser considerado como corpo, carne, excrescências –, quando se revela que por trás de todo aquele imaginário feminino o que se esconde é a mulher como lugar da castração, isso não faz um ponto final ao desvelamento da condição feminina, e conseqüentemente ao percurso de Cindy Sherman, já que a mulher como castrada é, também, uma máscara.

Assim, entender que a obra de Sherman percorre um caminho de renúncia do lugar da mulher como objeto fetiche e de denúncia desse lugar de fetiche como aquele que esconde aquilo que seria a verdade acerca da mulher, “o seu corpo castrado como lugar da ‘ferida’” (p. 240), – do mesmo modo que se passa naquilo que Freud (1927) postula com o conceito de fetichismo, quando o objeto fetiche serve para desviar o olhar, para recusar uma percepção – é, para Krauss, igualmente uma fetichização, agora da mulher como tendo sua verdadeira essência no ser castrada.

Ou seja, a idéia da mulher castrada – como um fetiche – é uma construção circunscrita a uma lógica fálica e apóia-se na suposição de que existe uma verdade sobre o que é a mulher passível de ser atingida pelo desvelamento de suas máscaras, o que levaria a uma totalização do conhecimento. O trabalho de Cindy Sherman, se algum desmascaramento faz, é exatamente no sentido da desconstrução dessa lógica do desvelamento, e não em manter-se dentro dela.

No ponto final das máscaras, quando todos os personagens, papéis, corpos, próteses e manequins caem por terra, resta a constatação da castração como definição do feminino, a derradeira máscara a que se acede. E ela nos ri com ironia. Na lógica fálica, uma máscara subentende um escondido, uma verdade a ser revelada. No caso da mulher, a verdade seria sua condição frente à castração. E o levantar dos véus levaria a isso, e ao terror subseqüente de encontrá-la – a mulher – revelada nesse último instante.

Medusa transforma aqueles que ousam encará-la em pedra. Cindy Sherman, que não petrifica ninguém, mostra em sua obra a farsa dessa revelação última e, mais precisamente, dessa lógica do segredo desmascarado. Há um “toda fálica”, para retomarmos o que mencionávamos acima, que se contempla nesse movimento interpretativo de sua obra, a qual se supõe que chegue a uma negação: o feminino como sendo a ausência de falo frente ao ter o falo. Mas aquilo que lhe escapa, o “não toda fálica” ao qual se referiu também Lacan, escapa igualmente a esse movimento interpretativo, que desapercebe o que lhe excede.

Se o feminino em Cindy Sherman não remete à castração, então ao quê?

É por meio da ironia e do grotesco, presentes nas composições da artista, que transitaremos por uma possibilidade outra, por um feminino como outro disso tudo, radicalmente exterior, excessivo, estrangeiro.

 

A ironia e o chiste: a fotografia como farsa

O que é a ironia?

O tom irônico das composições de Sherman, de seus Film Stills até suas obras mais recentes, os clowns, pode ser considerado como uma das duas linhas – a outra é o grotesco – que se estende e perpassa cada um de seus trabalhos, na qual a tensão entre realidade e farsa se coloca para o espectador. As cenas, as poses, as vestimentas, o disparador da máquina incorporado à composição, como na série Bus Riders, as próteses, as máscaras, os objetos; tudo posto de tal maneira que provoque naquele que contempla a obra a desconfortável sensação de estar sendo olhado exatamente no ponto em que se faz voyeur.

A obra de Sherman não se faz de rogada em desmascarar o engodo e criar a dúvida no lugar em que antes havia certeza dos papéis confortavelmente estabelecidos para o artista e o espectador de sua arte: quem olha quem? As divas do cinema hitchcockiano dos Film Stills são flagradas em sua solidão, seu desamparo ou em seus momentos de lascívia e glamour. Ou será que elas nos flagram em nosso olhar para elas? E as mulheres das Centerfold Pictures, quando a composição aparece pela primeira vez em foco fechado de corpos deitados, que dão origem a diversas interpretações no sentido da fragilidade e da violência contra a mulher. Elas nos olham as olhando e nos interpelam. Quem é espectador de quem? Quem se presta a contemplar a farsa como se pudesse querer dizer algo além disso? E o que haveria além? Um sentido? Ou o desmascaramento da farsa nela mesma?

Ironia é uma idéia existente desde os antigos gregos, e que só chegará a se tornar conceito a partir do século XVI. Diz respeito a uma construção discursiva paradoxal, em que a refutação das palavras está presente nelas mesmas, no momento em que são pronunciadas (Muecke, 1995). Na ironia, pensada filosófica e esteticamente pelos românticos, especialmente por Friedrich Schlegel, August Wilhelm, Ludwig Tieck e Karl Solger, ocorre o que chamarão de uma inversão no tempo ou semântica, quando o contrário daquilo que é dito se revela nos meandros da fala ou dos acontecimentos. Ironia do destino, dizemos. Ironia de Édipo em fugir para não matar seu pai e encontrarse no caminho dessa fuga com Laio, a quem assassina. A ironia básica, para Schlegel, é a condição humana: um homem como ser finito que se debate em tentar compreender uma realidade infinita, logo incompreensível. Ela é “a forma do paradoxo” (Schlegel apud Muecke, p. 40).

Na série Bus Riders, Cindy Sherman apresenta todos os seus personagens, com suas vestimentas e paramentações, sentados em um banquinho, com um disparador da câmera fotográfica nas mãos. A imagem se dá a conhecer como aquilo que representa – os personagens em questão e suas possíveis interpretações – e como algo mais – aparatos depositados em um cenário construído para o fim de ser capturado em imagem, tornando-se fotografia. O irônico está em que aquelas figuras jovens, velhas, homens e mulheres se desconstróem ante nossos olhos desde que constatemos o disparador da máquina. Então, encontramos uma outra cena nessa cena, aquela da composição cuidadosa de Sherman, cautelosamente trabalhada para que a cena retratada seja impecável. E paradoxalmente falsa. Ou ainda, para que seja uma construção que se desconstrói em si mesma, deixando-nos entre o riso e a angústia.

A criação artística, para Schlegel (apud Muecke, p. 41), tem duas fases contraditórias e complementares. Uma em que o artista se expande, cheio de entusiasmo e imaginação, mas cego e sem liberdade. Outra em que ele se dobra sobre si em um ato de reflexão, crítica e ironia. A ironia, portanto, depende dessa dobra sobre si mesmo em que a consciência se faz presente. Ou seja, ela depende de um saber sobre o não sabido, ou de um desconhecimento sobre o conhecido para operar. Com isso, quero dizer que a ironia necessita do desmascaramento tanto quanto da máscara, pois ela incide sobre o desvelamento daquilo que não parecia ser sabido até aquele exato momento em que o discurso irônico lhe revela ao encobrir-lhe. Ela evita a unilateralidade ao trazer sempre o oposto daquilo que é manifestamente afirmado para o próprio cerne da afirmação. O discurso irônico faz dupla referência à situação tal qual aparece, e também como ela realmente é.

Em outra série, as History Portraits, Sherman presta tributo aos grandes mestres da pintura, reproduzindo em suas criações fotográficas aquilo que parecem ser quadros de pintores dos séculos precedentes. A reprodução não é exata; não se trata aqui de uma transposição para o suporte fotográfico de uma imitação de tais obras. Os pintores renascentistas e seus sucessores aparecem como referência nas formas da composição, no uso das cores e da luz, e principalmente nos motivos ou temas de cada obra: madonas, personagens mitológicos ou nobres com suas ricas vestimentas e adornos.

Aqui, como mencionei anteriormente, penso que Cindy Sherman revela o quanto seu projeto de criação difere e se distingue da interpretação inicial de estar a serviço do desvelamento dos lugares da mulher. É com esta série que as anteriores se colocam em questão por essa chave de significação à qual vinham sendo remetidas. Pois se podemos pensar que a ironia de Sherman desmascara a condição, o lugar e os papéis da mulher em vários de seus trabalhos iniciais, com os History Portraits é possível entender que o desmascaramento a que se propõe não se restringe à condição feminina, ampliando-se para o fazer humano, para a história da arte, enfim, para a condição humana de uma maneira mais geral, apresentada em todas as suas vertentes como farsa. É a farsa na arte como mimesis e também a farsa da mulher como castrada, assim como a farsa de que haja uma verdade última a ser revelada por seus trabalhos, ou algum tipo de essência por trás do desmascaramento a que se propõe com suas próteses e máscaras.

A ironia em Cindy Sherman, portanto, está em apresentar em suas composições aquilo que pode ser imediatamente apreendido, e seu contrário, sua desconstrução. A foto que mostra uma cena e simultaneamente a construção da cena como farsa da composição artística. As mulheres de Sherman não serão, também, a enunciação de que se tratam apenas de construções? Ou até mesmo o mote para uma falsa discussão sobre o feminino, irônica por apontar que o ponto de partida sobre o qual se funda a questão – os múltiplos lugares e papéis ocupados pelas mulheres em nossa cultura – é, também ele, uma máscara que encobre o nada?

Da ironia romântica até os dias de hoje, chegamos a um momento em que o conceito de ironia quase se perde ao se confundir com a idéia de ambigüidade e de relativismo, como se o paradoxo contido no discurso irônico se convertesse em algo aberto a interpretações infinitas, sendo que nenhuma é mais a correta. Contudo, e para destacar a possibilidade fecunda de pensarmos acerca da ironia em nossos tempos, Muecke apela a Barthes ao afirmar que:

A ironia neste último sentido [de relativismo] é a forma da escritura destinada a deixar aberta a questão do que pode significar o significado literal: há um perpétuo diferimento da significância. A velha definição de ironia – dizer uma coisa e dar a entender o contrário – é substituída; a ironia é dizer alguma coisa de uma forma que ativa não uma mas uma série infindável de interpretações subversivas (1995, p. 48).

Se o traço básico da ironia é o contraste entre uma realidade e uma aparência, ela nos remete, psicanalistas, à pedra de toque da psicanálise que é o inconsciente. E uma vez que a ironia depende do tempo e da linguagem, ela diz respeito ao inconsciente que acontece na fala, que se revela e se esconde no discurso, ou seja, vinculada a um testemunho de um outro. A mensagem irônica, até que seja interpretada, não existe. Ela depende de duas pessoas, daquele que a cria e daquele a quem a fala irônica é dirigida, e só ganhará substância no momento em que o receptor dessa fala for capaz de rejeitar o conteúdo literal expresso em favor de “um significado ‘transliteral’ nãoexpresso de significação contrastante” (Muecke, p. 58).

Aproximamos, então, a ironia ao chiste e às formações do inconsciente, uma vez que ambas dependem de uma articulação que se dá na esfera da linguagem. Nenhuma associação desses dois conceitos ao de feminilidade parece ter sido articulada até agora. Mas sigamos as sugestões encontradas nas obras de Cindy Sherman, a fim de ver a que elas podem nos levar.

Freud (1905) demarca o chiste como uma formação do inconsciente, que de maneira semelhante aos sonhos, traz à tona o que se encontra oculto. Mas, de modo diferente do sonho, que se basta em seu encontro com o sonhador, o chiste necessita de um terceiro a quem sua construção se enderece. É do efeito de riso, prazer e revelação produzido nesse terceiro que aquele que constrói o chiste retira sua satisfação. A ironia, que joga com o duplo sentido e com a representação pelo oposto para realizar essa revelação do oculto, aproxima-se de algumas das formas possíveis em que o chiste se materializa.

Os chistes tornam possível uma satisfação pulsional frente a um obstáculo que seria, no modo de Freud ver, a capacidade da mulher de tolerar a sexualidade franca. Ou seja, os chistes permitem a realização de uma demanda pulsional relativa à sexualidade. O que eles revelam, de maneira tortuosa, disfarçada e elaborada, relaciona-se com o caráter sexual daquilo que mobiliza o psiquismo a funcionar. Sexual ou hostil, o que dá na mesma, já que se trata dos impulsos mais submetidos ao recalcamento, posto que inaceitáveis, os que terão que se movimentar em torno das construções psíquicas para encontrar vias de satisfação que de outro modo lhes seriam vetadas. A função dos chistes é, sinteticamente, obter prazer.

O chiste visa o prazer por meio do jogo de palavras. Ele traz o alívio decorrente dessa liberação, o reconhecimento do sentido como algo familiar, e concomitantemente o contato com o agradável do nonsense, proveniente do desprezo às normas lingüísticas tão familiares ao processo primário, em que palavras são tratadas como coisas. Ou seja, o sentido revelado pelo chiste encobre a liberação do prazer do nonsense em que o recalcado se presentifica. Mas como jogo de palavras, ele se afasta da auto-suficiência do sonho, necessitando do compartilhamento do prazer produzido para operar.

Enquanto os chistes se aproximam do cômico em sua forma de ingenuidade, distinguem-se dele pela localização de sua feitura na esfera do inconsciente. À ironia, que também se aproxima do chiste e do cômico, por sua vez, não se pode supor essa mesma participação do recalcado, já que seu produtor usa de uma estratégia calculada, por meio da qual simula um desconhecimento que é desmascarado pela própria construção irônica que abarca seu oposto.

Lacan (apud Ribeiro, 2006) enfatiza a referência feita por Freud ao terceiro para distinguir o chiste das outras formações do inconsciente. Enquanto o cômico – tal qual a ironia – é imaginário, posto que calcado em uma dualidade, dependente de um outro com quem se compartilha e efetiva o dito espirituoso, o chiste necessita ainda de um Outro que sancione que ali houve uma tirada espirituosa, ou seja, daquilo que articula o que é dito em uma dimensão simbólica. Por isso é que o chiste depende da esfera inconsciente para sua produção.

Para Lacan (apud Ribeiro, 2006), o efeito do riso é o desmascaramento, aqui entendido como oscilação da imagem unificadora do eu, a máscara privilegiada a que Lacan se dedica a desconstruir. Para ele, quando o sujeito deixa escapar a verdade, quando o chiste apresenta o inconsciente, desconcerta o eu, desmascarando-o. E fica feliz por libertar-se da máscara da imagem unificadora.

Encontramo-nos ainda no campo da verdade revelada naquilo que Freud, tanto quanto Lacan, depreendem do chiste. A verdade do sujeito, a emergência do recalcado e do verdadeiro sentido estão implicadas nas assunções psicanalíticas que fazem o chiste se remeter a um funcionamento dentro da lógica fálica do desmascaramento. Ao contrário do que nos aponta a obra de Cindy Sherman, em que a verdade última nunca é alcançada, restando à denúncia a desconstrução da própria lógica, o uso das noções de ironia e de chiste insiste em nos remeter como certeza àquilo que nas fotografias aparece posto em questão. A artista parece ter algo além para nos comunicar.

Retornemos então aos trabalhos de Sherman e a sua insistência no desmascaramento como farsa. Uma de suas obras do período entre as Horror and Surrealist Pictures e a série Masks – há tantas que poderiam ser mais profundamente abordadas neste ponto –, nomeada Untitled #316, de 1995, mostra a máscara monstruosa e deformada de uma boneca. Nos limites desse rosto de boneca, além dos cabelos desgrenhados, vemos que essa máscara encobre uma borda do que supomos ser uma outra máscara, que encobre outra borda de outra máscara, e assim sucessivamente. Podemos assumir que a máscara horrorosa se sobrepõe a outras ad infinitum ou – se quiséssemos retomar o ponto do qual partimos neste texto – que aquilo que Sherman nos confirma aqui é o desvelamento de máscara após máscara, a culminar na revelação de uma verdade, insinuada pelos olhos vivos e disformes da figura. A verdade do feminino, quem sabe?

Mas um olhar a mais sobre essa obra nos mostra que, surpreendentemente, não é essa máscara que se sobrepõe às outras que estariam ocultas ao nosso olhar. É bem o contrário. As bordas revelam que as outras máscaras estariam por cima dessa que vemos, e então nos encontraríamos diante do ponto final, a chave do enigma: no final das máscaras, uma a mais jaz como verdade. Uma máscara monstruosa. Não há substancialidade nesse encontro derradeiro, a máscara oca encobre o nada. É o vazio que se revela. O artifício dos olhos e do olhar apenas serve para perpetuar o engodo. Daí a ironia.

Impossível não se remeter à manipulação de rostos e corpos, que é feita em nossos tempos por meio das intervenções cirúrgicas. Um corpo modificado para se tornar outro e, ao mesmo tempo, para ser aquele que cremos e desejamos ser: um corpo jovem. Outro, no sentido de retornar àquele que se foi, um jovem rosto ou corpo agora perdido, outro daquele que se é e que se busca desesperadamente reencontrar. O desmascaramento da perfeição dos rostos e corpos por meio dessa geração de um produto monstruoso – algo que se constata diariamente nos rostos de algumas mulheres submetidas às cirurgias plásticas – traz, além da ironia de apelar à bela aparência e ao seu contrário sutilmente ali revelado, uma referência ao grotesco. E é no campo do grotesco, além daquele já mencionado da ironia, que Cindy Sherman parece se reencontrar, em alguns aspectos de suas obras, com a discussão acerca da feminilidade.

 

O grotesco e a revelação do horror

Grotesco e feminino?

O grotesco, que surgiu como arte ornamental na Antigüidade, referese, a partir do Renascimento, a algo concomitantemente lúdico, alegre, leve e fantasioso, além de angustiante e sinistro. Remete à suspensão das ordenações existentes na realidade, ao mundo dos sonhos como contrário a tal ordem, à mistura do animalesco com o humano, ao monstruoso como característica mais importante.

O monstruoso diz respeito à mistura dos domínios, à desproporção e ao desordenamento. O grotesco traz o temor, ainda que com o passar do tempo tenha se tentado atenuá-lo em sua equiparação ao cômico e ao ridículo. A realidade disforme, ou a falta de relação com a realidade naquilo que é fantástico, sobrenatural ou absurdo, aniquilam o ordenamento do mundo e causam, quando se apresentam, o riso, o assombro e o terror. A angústia de se perceber desprovido de referências é, segundo Wolfgang Kayser (1957), o efeito do grotesco.

Mas, como desterritorializante, o grotesco traz consigo uma dimensão de verdade, de enunciação de uma verdade subterrânea àquilo que aparenta. O absurdo, que não se explica, permanece como absurdo e inquietante, gerando um desconforto frente àquilo que brota inexplicado no seio da própria ordem do mundo, tal qual uma força que se lhe escapa e sobrepõe. Nas palavras de Kayser:

A perplexidade do observador é correlata àquele traço essencial que se alçou como determinante em todas as configurações do grotesco, ou seja, o fato de o próprio plasmador não haver dado nenhuma explicação, mas ter deixado que o absurdo permanecesse como absurdo. (...) Nós, porém, verificamos que, no tocante à essência do grotesco, não se trata de um domínio próprio, sem outros compromissos, e de um fantasiar totalmente livre (que não existe). O mundo do grotesco é o nosso mundo – e não o é. O horror, mesclado ao sorriso, tem seu fundamento justamente na experiência de que nosso mundo confiável e aparentemente arrimado numa ordem bem firme, se alheia sob a irrupção de poderes abismais, se desarticula nas juntas e nas formas e se dissolve em suas ordenações (1957, p. 40).

Se retornarmos à obra de Cindy Sherman, constataremos que, em seu percurso, ela transita paulatinamente da ironia ao grotesco. O que se iniciou com as várias figurações da mulher tornou-se, aos poucos, uma crítica mordaz à construção desses papéis, bem como ao próprio lugar da fotografia e da arte como farsas análogas a essa dos lugares da mulher a serem desvelados, culminando, em suas obras mais atuais, em um apelo cada vez maior ao grotesco para enunciar aquilo de que a sutileza da ironia parecia não dar totalmente conta. Algo de fora do campo do humano subsumido na lógica fálica é aquilo para o que apontam suas máscaras. Não uma verdade, mas um outro registro. Não um registro, porque ainda registro, mas um além.

Com suas séries Disasters, Fairy Tales, Sex Pictures, Horror and surrealist pictures e Masks e Broken Dolls, vemo-nos envolvidos pelo reino do informe, dos dejetos, dos pedaços, das excrescências, da alusão aos contos de fada em seu viés aterrorizante, dos monstros, das figuras de horror, das composições desprovidas de sentido, do absurdo, das próteses e bonecos que aludem ao intercurso sexual, dos pedaços de corpos, do sadismo, da abjeção, da máscara que ganha vida própria, do inumano, em suma, do sinistro. Sherman faz um inventário do horror e nos apresenta a essa sua incômoda caixinha de Pandora, desconfortável, deixando-nos entre o riso e a agonia.

Wolfgang Kayser esclarece que as máscaras servem para aplicar algo de animalesco aos corpos humanos. Elas remetem a uma força estranha que nelas atua, como os títeres, aqueles bonecos manipulados pelos fios que os ligam às mãos humanas, que de tão bem guiados transformam-se em seres vivos, uma encarnação contemporânea de um Pinóquio, tão mais grotesco quanto mais humano se parece. Será novamente Schlegel (apud Kayser, 1957) a apontar o grotesco como um paradoxo, o encontro entre o ridículo e o monstruoso, a caricatura sem ingenuidade. Onde a ironia provoca o riso, o grotesco suscita a intensidade do mal-estar. O disfarce e a descarga de prazer propiciados pelo chiste e pela ironia não encontram lugar no campo do grotesco.

Ainda que guarde parentesco com o cômico por meio do ridículo, ele abre mão de toda ingenuidade em sua aparência em prol de uma crueza que causa, ao invés do prazer libertador do riso, o mal-estar do horror. Assim, o grotesco se aproxima ainda mais de uma outra categoria que Freud (1919) tratou de abordar, a do estranho. Por meio dessa última elucubração psicanalítica, deslizaremos do chiste à ironia ao grotesco e ao estranho, para retornarmos ao feminino, nosso ponto de partida.

O unheimlich é o estranho que traz como oposto o familiar, que por sua vez carrega em si uma ambivalência em conter o íntimo e o secreto até o ponto em que coincida com seu oposto. Advém daí o horror e o temor que o estranho provoca, já que o que se encontra nele é aquilo que há de mais próximo, familiar, íntimo e secreto. Ao se deparar com o unheimlich, o que se encontra é apenas um reflexo das próprias entranhas, ou seja, daquelas forças insuspeitadas, que encontradas no outro rememoram aquilo que o próprio indivíduo guarda em si.

Se para Freud aquilo que causa horror remete ao retorno do recalcado, e consequentemente à castração – como, de modo análogo, é ao que ele remete os chistes, permanecendo em ambos os casos no campo daquilo que se inscreve psiquicamente e que é passível, portanto, de representação, recalque, deslocamentos e tudo mais que o psíquico lhe faculte –, o que vimos sugerido a partir dos trabalhos de Cindy Sherman é que o horror advém do desmascaramento da lógica da máscara, ou seja, de encontrarmos na última máscara não a castração, mas a falência dessa lógica do desvelamento, e conseqüentemente, dessa expectativa em aceder a um fim esclarecedor. Para fora da lógica fálica é que o deslizamento entre ironia e grotesco nas obras da artista nos aponta. Para além do “toda fálica”, reencontramo-nos com o “não-toda fálica”, na possibilidade de que tais obras estejam a nos dizer algo acerca do feminino.

 

Ampliações do feminino

O feminino como aquilo que no grotesco e na ironia escapa, e simultaneamente denuncia o que jaz além da perspectiva fálica. Jogos de linguagem, mas não apenas isso. Há algo que aponta para o que não se inscreve, não se nomeia, não se representa, como se do âmago do que se constitui como representação brotasse o seu além. Do mesmo modo que o umbigo dos sonhos aponta o limite e o mais além dos sonhos como formações do inconsciente, ou que a compulsão à repetição aponta para o que não se articula no psiquismo a não ser como ato, também na ironia – um jogo de linguagem – e principalmente no grotesco, há uma direção em suas formulações no sentido de um real que dissolve, na medida em que desmascara, o que é representável. Ironia se articula com o chiste, que se articula com o cômico, que se articula com o ridículo, que se articula com o grotesco, que se articula com o estranho, que abre para se pensar a feminilidade.

A feminilidade marca a diferença, e por isso pode ser aproximada com o estranho familiar. Ela é a fonte de uma experiência psíquica marcada pelo horror, justamente porque coloca em questão o autocentramento da subjetividade baseado no referencial fálico. Joel Birman (1999) defende a idéia de que se a divisão entre os sexos se constrói a partir do referencial fálico, pensar sobre a feminilidade é colocar-se do lado de fora desse referencial e de tais construções, colocando-nos em um outro registro de sexualidade. E a isso levaria a experiência psicanalítica, necessariamente. Ou seja, o feminino guarda uma estreita relação com aquilo que se dá ao longo de um processo de análise. Como se tivéssemos que criar um vocabulário para falar disso que escapa às palavras. Novamente.

A ironia e o grotesco, nas obras de Cindy Sherman, apontam uma via para se falar acerca da feminilidade. Esta reside, mais do que na aparência evidente e equivocada das múltiplas mulheres, no resultado da equação que se faz entre seu mundo de belezas calculadas que abrem, nos pontos de fugas dessas mesmas fotos – suas farsas históricas e aquelas relativas à própria técnica fotográfica –, ou em suas séries complementares – as fotos das excrescências, dos pedaços, das próteses, dos manequins, das máscaras e das bonecas – e o horror a que elas conduzem. As mulheres de Sherman, às voltas com o que o feminino lhe suscita como questão, deformam-se e se decompõem na tentativa de se circunscreverem apenas ao ser “toda fálica”. E se desconstróem. Após esse martírio, descortinase a farsa que lhe deu origem e o que sobre são apenas os palhaços – os clowns presentes nas produções mais recentes da artista –, que em sua personificação do grotesco e da ironia sorriem para nós, terrivelmente.

 

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Endereço para correspondência
Alessandra Monachesi Ribeiro
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Tel.:+55 11 3885-8755
E-mail: alemonachesi@uol.com.br

Recebido em: 14.02.2007
Versão revisada recebida em: 27.09.2007
Aprovado em: 09.10.2007