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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Dos limites do interpretável à valorização do vivido na clínica psicanalítica

 

From the limits of what is interpretable towards a valorization of what can be experienced in psychoanalytical clinic

 

 

Perla KlautauI; Fernanda Pacheco FerreiraII; Octavio SouzaIII

Pontifícia Universidade Católica - Rio de Janeiro I,II,III
Instituto Fernandes FigueiraIII
Fundação Oswaldo CruzIII

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ferenczi foi pioneiro no questionamento dos limites da interpretação e da invenção de possíveis soluções, muitas vezes controversas, para acessar o sofrimento de seus analisandos. Acreditamos que esse autor influenciou os teóricos da teoria das relações de objeto, principalmente Balint e Winnicott. Há, na teoria desses herdeiros de Ferenczi, uma valorização da esfera pré-reflexiva e pré-simbólica. Este alargamento do campo psicanalítico permitiu chamar a atenção para a inclusão dos chamados casos-limite ou, como os psicanalistas lacanianos convencionaram chamar, dos casos inclassificáveis, ou seja, não passíveis de inclusão no modelo da clínica estrutural. Assim, levantamos a questão de até que ponto as últimas elaborações do ensino de Lacan se aproximam da sensibilidade clínica dos herdeiros ferenczianos.

Palavras-chave: Experiência; Interpretação; Ferenczi; Winnicott; Lacan.


ABSTRACT

Ferenczi was a pioneer in questioning the limits of interpretation and proposing possible solutions, often controversial, to his patients’ sufferings. We believe this author had a significant and ample influence for the development of Object Relations theory, and more specifically on those psychoanalysts that formed the so called Middle Group, such as Balint and Winnicott. There is, in the theory of these Ferenczi’s heirs, a greater appreciation of both the pre-reflexive and the pre-symbolic spheres of experience. This widening of the psychoanalytical field allowed a great attention on the inclusion of the so-called case-limits or, as the Lacanian psychoanalysts call, “the non-classifiable cases”, better saying, cases not liable to be included in the structural clinic model. Thus, we raise the question as to how close the last developments of Lacan’s teaching approach the clinical sensitiveness of Ferenczi’s heirs, in spite of the long length of time elapsed since these authors faced these questions.

Keywords: Experience; Interpretation; Ferenczi; Winnicott; Lacan.


 

 

É sabido que os analistas contemporâneos de Freud se depararam com obstáculos que os fizeram questionar a eficácia da técnica interpretativa. Em nota para a tradução inglesa de Análise terminável e interminável (1937), Strachey se refere ao pessimismo de Freud em relação ao alcance da eficácia terapêutica da psicanálise. Uma leitura atenta desse texto deixa claro que tais limitações constituem o tema principal do referido artigo. É possível que o pessimismo de Freud em relação aos limites da cura analítica refletisse seu encontro com casos não analisáveis pelo método clássico. Sendo assim, não estaria Freud diante dos limites da interpretação?

A questão discutida no presente trabalho tem início nesse momento da história da psicanálise. Foi nesse momento que os analistas começaram a “arregaçar as mangas” e a distanciar-se, pouco a pouco, das medidas técnicas de Freud, lançando mão de sua inventividade pessoal. A figura mais destacada nessa perspectiva é certamente a de Sándor Ferenczi.

A preocupação de Ferenczi com a clínica e seus resultados terapêuticos está presente ao longo de toda sua obra, e os caminhos que percorreu para resolver as dificuldades com que se deparava valeram-lhe a acusação de desvalorizar os melhores achados da psicanálise ao retornar às teorias etiológicas do trauma e às práticas clínicas da hipnose e da catarse do vivido da experiência emocional. Ora, para Freud as experiências técnicas de Ferenczi e sua teoria do trauma conduziam a uma superestimação da responsabilidade do objeto externo e subestimação do poder transformador do inconsciente. É bastante curioso que a psicanálise contemporânea esteja se voltando cada vez mais para essas origens, em uma espécie de “avanço para trás”. As fases mais precoces das relações de objeto vêm ocupando os psicanalistas dedicados em estabelecer uma conexão entre a clínica, as transformações contemporâneas e o impacto destas na organização da experiência subjetiva.

Ao invés de discutir se há ou não algo de novo em questão nas configurações subjetivas atuais, consideramos mais proveitoso adotar como pano de fundo os desafios impostos aos psicanalistas pelos quadros psicopatológicos que não se amoldam ao método clássico de tratamento dos conflitos edipianos, e que exigem um remanejamento da técnica. É também importante observar que as transformações da técnica com vistas ao tratamento dos casos mais difíceis resultaram em uma nova sensibilidade nos analistas, que produz seus efeitos na clínica de um modo geral, independentemente do quadro psicopatológico.

Ferenczi afirmava, como princípio, que se um paciente comparece regularmente à análise, o analista deve encontrar técnicas para ajudá-lo. Esse princípio levou-o a procurar satisfazer ao máximo as expectativas de seus pacientes. Concebeu a “técnica ativa” para solucionar a estagnação do processo analítico, criticou-a, insistiu em uma “elasticidade da técnica”, engendrou o que chamou “princípio de relaxamento e neocatarse”, tentou uma “análise mútua” e aceitou em sua clínica pacientes considerados não-analisáveis por outros analistas. Não é, portanto, sem fundamento o que os contemporâneos dele diziam: salvador dos fracassos dos outros analistas e especialista dos casos limites. O que se pode constatar a partir das inovações técnicas de Ferenczi é sua preocupação em criticar a neutralidade e em enfatizar a confiança1 no analista. De acordo com Ferenczi, o analista possibilita a construção de uma cena que não está podendo ser verbalizada, mas vivida corporalmente.

Cabe ao analista emprestar sua própria fantasia e construir uma versão para o que não tem memória nem palavra e lançar mão de seu lugar possibilitador da introjeção. (...) Mostra-nos como este é o mais desconfortável dos lugares que o analista ocupa (...) porque o analista é obrigado, por assim dizer, a colocar sua própria fantasia à disposição do paciente que tem uma lacuna em sua história. É através dos recursos fantasmáticos do analista que o paciente pode começar a criar uma versão de sua história pessoal e inserir-se na cadeia ilusória a que todo ser humano tem direito (Pinheiro, 1995, p.111-2).

Neste sentido, Ferenczi foi pioneiro no questionamento dos limites da interpretação e da invenção de possíveis soluções, muitas vezes controversas, para acessar o sofrimento de seus analisandos. Sua influência ultrapassou as fronteiras da Hungria e frutificou em um grupo original de psicanalistas na Inglaterra, o chamado Middle Group ou Grupo dos Independentes. Ferenczi teve enorme influência no desenvolvimento da teoria das relações de objeto, especificamente para esses psicanalistas do Middle Group, como Balint e Winnicott. No primeiro caso, a influência é direta, já que Balint foi seu analisando, discípulo e amigo. No caso de Winnicott, a influência foi mais subterrânea. Embora esse autor praticamente não faça referências explícitas ao trabalho de Ferenczi, há sem sombra de dúvidas, em Winnicott, uma sensibilidade no trato das questões teóricas e preocupações clínicas comum aos autores pós-Ferenczi, o qual, em reação aos últimos desenvolvimentos da obra de Freud a partir de 1920, voltou-se para uma orientação explicitamente mais clínica e direcionada para as chamadas patologias narcísicas. Isso significava sacrificar as orientações clássicas e repensar, em novos termos, a constituição inicial do sujeito. Pode-se dizer que o remanejamento da psicanálise trazido por esses autores é a conseqüência da transformação da psicanálise para que ela se aplique aos distúrbios-limite da personalidade ou às situações-limite de qualquer análise.

Como resultado desse movimento, percebe-se que há, na teoria desses herdeiros de Ferenczi – no caso, Winnicott e Balint – um deslocamento das formulações metapsicológicas, expressas em uma terminologia mais clássica, para formulações criadas a partir da linguagem comum dos pacientes, e portanto, voltadas para a qualidade da experiência. Quando Winnicott afirma, por exemplo, que não há id antes do ego, e ao mesmo tempo conclui que o início é quando o ego surge, entendemos que ele quer valorizar o plano da experiência.

Nos estágios mais precoces do desenvolvimento de uma criança humana (...) o funcionamento do ego deve ser considerado como um conceito inseparável da existência da criança como uma pessoa. Qualquer vida instintiva além do funcionamento egóico pode ser ignorada, porque a criança não é ainda uma entidade com experiências. Não há id antes do ego. Apenas a partir dessa premissa pode ser justificado um estudo do ego (Winnicott, 1962, p. 56).

É a descoberta de tipos iniciais de experiência que foram distorcidos ou deixados para trás, no próprio passado histórico do paciente, que possibilita, ainda segundo Winnicott, um bom desfecho da análise.

O desfecho bem-sucedido de uma análise depende não da compreensão, pelo paciente, do significado das defesas, mas sim de sua capacidade, através da análise e na transferência, de reexperienciar esta ansiedade intolerável em função da qual as defesas foram organizadas (1961, p. 60).

Conseqüentemente, o setting analítico, palco dessa reexperiência, não deve ser tomado apenas como um meio para a tradução do inconsciente, na medida em que, do ponto de vista winnicottiano e balintiano, o analista não é porta voz de uma verdade oculta do paciente. De qualquer forma, tanto a clínica de Winnicott como a de Balint priorizam a idéia de continente e não de conteúdo psíquico (Souza, 2001). Ou seja, trata-se de formar um continente para que a busca desejante, antes interrompida ou mesmo impedida de existir, seja possível. Isso implica na idéia de necessidade psíquica2, nos cuidados que devem ser assegurados sem que sejam pedidos, distinguindo-se da necessidade fisiológica de manutenção da vida. Essa temática nos leva ao controverso problema da regressão, retomado e desenvolvido por Winnicott e Balint.

A concepção dos dois autores sobre a regressão é muito similar. Isso porque ambos situam a origem da psicopatologia em um momento de dependência, em um estado pré-ambivalente, anterior à possibilidade, para o sujeito, de uma distinção estável entre si e os objetos. Poder-se-ia dizer que tanto a concepção winnicottiana de falso self quanto a noção de falha básica proposta por Balint derivam de experiências traumáticas no momento pré-verbal. Em ambas as patologias encontramos basicamente a mesma sintomatologia, caracterizada por um sentimento de futilidade e de esvaziamento do sentido da existência. Sua abordagem clínica se dá por meio da regressão, permitindo o restabelecimento de um estado originário, ou melhor dizendo, de um novo ponto de partida. Balint fala de novo começo, e Winnicott, em um sentido muito próximo, afirma que a regressão proporciona “um novo desenvolvimento emocional”, dando a entender que um processo maturacional interrompido deve ser levado a completar-se. No caso de Winnicott, esse novo ponto de partida depende do contato com o verdadeiro self, enquanto para Balint, trata-se da possibilidade do analista se oferecer como objeto a ser investido pelo amor primário.

De acordo com esses autores, a peculiaridade da função do analista nos momentos de regressão é mais a de provisão de um ambiente facilitador do que da interpretação do desejo. Enquanto, para Freud, a psicanálise era essencialmente uma “talking cure” dependente de trocas verbais, para Winnicott e para Balint, “a relação mãe-bebê, na qual a comunicação se dá praticamente de forma não-verbal, tornou-se o paradigma do processo analítico” (Phillips, 1988, p. 138). Segundo Phillips, tal deslocamento de ênfase alterou o papel da interpretação na psicanálise.

Nesse novo modelo do setting analítico planejado para o paciente psicótico, o setting não é simbólico do cuidado materno como seria para um paciente neurótico, ele é o cuidado materno. Ele não pode representar algo que nunca existiu (p. 88).

Pode-se dizer que a ênfase na experiência do vivido é uma conseqüência lógica do aumento de interesse pela questão da transferência. Como observa Widlöcher a respeito da obra de Winnicott: “nem metáfora nem mesmo modelo, é a própria relação de objeto que se repete” (2000, p. 12-3). A conseqüência desta mudança de paradigma da neurose para a psicose é um alargamento do campo psicanalítico no sentido de um “avanço para trás”, ou seja, com o campo pré-reflexivo, pré-simbólico, tomando o lugar central da cena analítica. Este alargamento permitiu chamar a atenção para a inclusão dos chamados casoslimite ou, como os psicanalistas lacanianos convencionaram chamar, dos casos inclassificáveis, ou seja, não passíveis de inclusão no modelo da clínica estrutural.

O avanço para trás não é um movimento restrito aos autores da relação de objeto. É justamente este ponto que deve ser realçado: as últimas elaborações do ensino de Lacan se aproximam da sensibilidade clínica de Ferenczi e seus herdeiros – Balint e Winnicott –, mesmo que muito tempo depois de eles terem se deparado com estas questões.

Apenas recentemente os analistas de orientação lacaniana começaram a mostrar interesse pela inclusão desses casos que não respondem ao método clássico da associação livre e da interpretação. É importante ressaltar que nas duas primeiras décadas do ensino de Lacan, a experiência humana é vinculada à prevalência da linguagem no estabelecimento das primeiras relações da criança com o ambiente. Sob esta ótica, a linguagem deve ser entendida como a estrutura simbólica que constitui o sentido da experiência. Esta relação pode ser estendida para o campo analítico. A referência ao esquema L e ao grafo do desejo nos mostra que a meta da experiência analítica consiste em restabelecer a rede rompida de comunicação: o sintoma, entendido como uma espécie de mensagem cifrada dirigida ao Outro, surge onde falta a palavra. Nessa perspectiva, o sintoma já é formado com vistas à sua interpretação, ou seja, o sintoma já surge atrelado a um destinatário que supostamente detém seu sentido. Em análise, o sintoma sempre é dirigido ao analista como um apelo, a fim de obter dele a revelação de seu sentido oculto. Em outras palavras, não haveria sintoma sem destinatário. Isto nos permite situar a experiência analítica no interior do campo discursivo, e revela um ponto fundamental: o campo discursivo implica o grande Outro como consistente e completo. Esta pode ser considerada a marca fundamental da concepção do processo analítico nas duas primeiras décadas do ensino lacaniano, visto que, desde seus primeiros seminários e escritos clínicos, Lacan parte da linguagem e da palavra como elementos de comunicação dirigidos ao Outro.

As primeiras décadas do ensino de Lacan são, portanto, marcadas pela primazia do simbólico e pela castração como organizador nuclear das estruturas clínicas. Foi com esta teoria que ele conquistou e renovou o campo psicanalítico, erguendo seu império teórico. Atualmente, no entanto, com a ênfase na última parte do ensino de Lacan – o chamado “último Lacan” –, há uma busca de acesso ao tratamento do sofrimento não neurótico por meio de uma clínica que não tenha a castração como referência exclusiva, e que se traduza na superposição do campo da lalangue sem o nome do pai por sobre o campo da linguagem organizado em torno da inscrição ou da foraclusão do nome do-pai.

Enquanto a referência à castração determinava por completo todo o campo da experiência, a noção de gozo sempre aparecia forçosamente contraposta à de desejo. O último ensino de Lacan, como observa Miller (1999), implica em uma importante mudança na concepção da relação entre significante e gozo. Antes do seminário de 1972-73, o significante, ao incidir sobre o ser vivo, produzia o gozo em uma duplicidade tópica paradoxal: por um lado, como horizonte impossível da abertura do desejo; por outro, como fetiche obliterador desse mesmo desejo. Depois de Encore, com a ênfase nos conceitos de letra e sinthoma, o significante deixa de ser heterogêneo ao gozo e passa a ser, ele mesmo, matéria gozante. A partir dessa mudança, torna-se possível assinalar uma proximidade com os herdeiros ferenczianos: o que verdadeiramente acontece é que a noção de gozo passa a ser assimilada à própria noção de experiência, ou seja, gozo passa a ser sinônimo de experiência, confundindo-se com a própria dimensão do vivido em toda a sua extensão.

A conseqüência disso é que, a partir de 1972-73, a linguagem deixa de ser entendida como a estrutura simbólica que fornece o sentido da experiência, e passa a ser concebida como um conceito derivado em relação à invenção lacaniana de lalangue. Esta consiste na palavra tomada por si só, ou seja, separada da estrutura da linguagem e fazendo parte da fala antes de seu ordenamento gramatical e lexográfico: “lalangue serve para coisas inteiramente diferentes da comunicação” (Lacan, 1972-73, p. 188). Portanto, a invenção de lalangue nos aproxima do campo pré-discursivo e nos afasta da idéia de que a fala e a palavra são sempre produzidas como comunicação dirigida ao grande Outro detentor da significação.

Deste modo, o conceito de lalangue traz consigo um novo ponto de partida para a teorização e para a clínica lacaniana: a noção de gozo. Miller formula seis paradigmas que compreendem a evolução da teorização de Lacan sobre o conceito de gozo. Nos cinco primeiros paradigmas, o gozo encontrase sempre relacionado ao Outro. O sexto paradigma é denominado “a nãorelação”, com o intuito de enfatizar, a partir da invenção da noção de lalangue, a disjunção efetuada entre o significante e o gozo, que eram até então relacionados. Ao invés de ser secundário ao Outro “enquanto aquele que prescreveria as condições de toda a experiência” (1999, p. 102), o gozo passa a ser o ponto de partida para toda e qualquer teorização sobre a experiência. Sendo assim, no artigo em questão, Miller deixa claro que, ao partir do gozo como fato, Lacan propõe uma aliança originária entre gozo e palavra, designando a palavra não mais como comunicação que visa o reconhecimento e a compreensão, mas sim como uma modalidade de gozo. Neste sentido, o gozo deve ser entendido como uma propriedade do corpo vivo:

Não é lá que se supõe propriamente a experiência psicanalítica? – a substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Propriedade do corpo vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso goza (Lacan, 1972-73, p. 35).

A definição acima possui reflexos diretos sobre a clínica: ao relacionar o gozo unicamente com o corpo vivo, Lacan coloca o corpo e as experiências vividas em uma época anterior à aquisição da linguagem no centro da cena analítica. Isto amplia a perspectiva clínica na medida em que o fazer analítico não se restringe mais a colocar em palavras, ou melhor, a simbolizar experiências vividas quando o ser humano ainda não dispunha de um aparato suficientemente desenvolvido para organizar, significar e dar sentido às suas experiências. Com o horizonte ampliado, o fazer analítico lacaniano se aproxima de uma sensibilidade característica dos herdeiros ferenczianos no que diz respeito principalmente à presença sensível do analista no processo de simbolização.

Basta recorrer à Conversação de Arcachon – nome dado ao encontro dos participantes das Seções Clínicas Francofônicas do Instituto do Campo Freudiano realizado em 1997 – para constatarmos a preocupação dos analistas lacanianos diante dos, assim chamados, casos inclassificáveis3. Estes “casos nem tão raros”4, conhecidos na literatura psicanalítica como casos ou estados-limite, além de decretar uma certa falência à classificação estrutural, questionam os limites da analisabilidade. Até aqui, nenhuma novidade para o psicanalista atento ao que vem sendo discutido sobre técnica psicanalítica desde 1950. O que há de novo no cenário clínico da Conversação de Arcachon é que, pela primeira vez, os analistas lacanianos encontram-se afetados pelas mesmas preocupações que levaram Ferenczi e seus herdeiros a valorizar o vivido no seio da experiência analítica. Deste modo, ao mesmo tempo em que se aproximam de muitos dos elementos que estão na base da sensibilidade clínica característica de Ferenczi, Balint e Winnicott, encontram o limite da clínica estrutural.

E estamos aqui reunidos em comitê de ética, o comitê de ética das Seções francofônicas, para falar de nossas classificações e de seu eventual atraso (...) O que para nós faz wall-paper é a tripartição clássica neurose-psicose-perversão, reduzida no uso corrente ao binário neurose-psicose (Miller, 1997, p. 104).

Na lógica dos analistas presentes em Arcachon, para recuperar o tempo perdido, é preciso lançar mão dos últimos anos do ensino de Lacan, mais especificamente do que se convencionou chamar de clínica do sintoma5:

Esta clínica do sintoma em nada vem contradizer a barreira estrutural neurosepsicose estabelecida pelo doutor Lacan nos anos 50. Pelo contrário, ela permite dispor do lado das psicoses toda uma categoria de sujeitos até então classificados em todas aquelas categorias que acabei de citar [neurose narcísica, borderline e distúrbios de humor], excetuada a psicose (Defieux, 1997, p. 13).

A clínica do sintoma, também chamada de borromeana ou de clínica dos nós, abre um leque de possibilidades que a classificação estrutural não comporta. A lógica estrutural baseia-se em um traço distintivo – nome-dopai (sim ou não) –, que permite opor sempre dois termos. Ou seja, há sempre presente uma idéia de descontinuidade: ou isto ou aquilo. Na clínica dos nós, a oposição não é condição necessária. Pelo contrário, o que está em jogo é uma idéia de gradação portadora de uma elasticidade que comporta os casos-limite: “muitos casos não classificados, ou mal classificados, atualmente, dizem respeito a essa clínica à espera de polimento” (p. 13).

O polimento deve ser dado pelo analista por meio de uma mudança de sua atitude: o analista deve estar atento aos “ínfimos detalhes clínicos que podem chamar atenção para o lado da psicose” (p. 13). A conseqüência dessa atenção refinada diz respeito à mudança no analista, que inclui todo seu funcionamento mental, envolvendo mudanças de sensibilidade e de percepção. Com isto, o analista lacaniano não se reserva apenas a descortinar o material inconsciente recalcado; passa a participar ativamente do processo de simbolização. Tal postura confere um espaço privilegiado para a dimensão do vivido no seio da clínica lacaniana, revelando uma proximidade com a sensibilidade de Ferenczi, Winnicott e Balint.

Sabemos que uma comparação de linhas tão distintas entre si não é feita sem riscos. Nosso objetivo não era esgotar o tema em questão, e sim confrontar pontos de partida de duas linhagens teóricas distintas – a do Middle Group e a dos lacanianos –, com o intuito de criar bases para o exame da noção de experiência do vivido e de suas conseqüências clínicas. A partir dessa análise, não podemos deixar de ressaltar que há, em todo caso, um movimento comum em direção a descrições na primeira pessoa, ou seja, à experiência e sua corporeidade. Atento a isto, e munido de suas ferramentas metapsicológicas, cabe ao psicanalista, na prática, conhecedor da concepção arqueológica do inconsciente, abrir-se também a uma concepção imaginativa, na qual transferência e contratransferência constituem a tessitura experiencial do encontro analítico.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Perla Klautau
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Recebido em: 21.09.2006
Aprovado em: 03.12.2007

 

 

I Psicanalista; Mestre em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Doutoranda em Psicologia Clínica (PUC-RJ).
II Psicanalista; Mestre em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Doutoranda em Psicologia Clínica (PUC-RJ).
III Psicanalista; Mestre em Filosofia (Paris 1, Sorbonne); Doutor em Comunicação (ECO/ UFRJ); Pesquisador Associado do Instituto Fernandes Figueira / Fundação Oswaldo Cruz; Professor Assistente (PUC-RJ).
1 Ganhar a confiança do analisando torna-se um objetivo primordial na clínica de Ferenczi – “essa confiança é aquele algo que estabelece o contraste entre o presente e um passado insuportável e traumatogênico” (Ferenczi, 1933, p. 100).
2 Roussillon define necessidades do ego como a representação do que o ego “necessita para fazer seu trabalho de apropriação subjetiva das experiências vividas que tecem a sua história. As necessidades do ego variam, então, em função da idade e do que o ego deve metabolizar (...). [Esse conceito] acompanha uma conceituação do trabalho terapêutico centrada sobre a otimização das capacidades de simbolização do paciente, ele modifica profundamente o sentido do trabalho interpretativo” (1999, p. 20-21).
3 Os inclassificáveis devem ser entendidos como casos que escapam à tríade neurose-psicoseperversão, marca patente da clínica estrutural desenvolvida por Lacan nas duas primeiras décadas de seu ensino.
4 Cf. Defieux, 1999. Um caso nem tão raro.
5 Nesta segunda clínica, os sintomas são equivalentes ao nome-do-pai.