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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Que atos são esses? Luto e acting out

 

Which acts are these? Mourning and acting out

 

 

Ana Maria Rudge*

Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle
Pontifícia Universidade Católica - Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

São relatados três fragmentos clínicos em que certos atos se apresentaram como respostas à angústia suscitada por perdas traumáticas. São atos que podem apresentar certas analogias com a mania, pela disposição à atividade e o sentimento de suficiência e poder que a caracterizam, assim como pelo escape que proporcionam de sentimentos dolorosos de desamparo. Entretanto, seu traço mais estrutural não repousa nessa semelhança, que nem sempre está presente, mas sim em seu cunho de mensagem encenada, o que caracteriza esses atos como casos de acting out.

Palavras-chave: Luto; Acting out; Desempenho; Mania; Mensagem; Clínica.


ABSTRACT

Three clinical fragments are presented focusing in certain acts which occurred as responses to the anxiety caused by traumatic losses. They are acts that suggest certain analogies with mania, due to their acting, and the feeling of self sufficiency and power that characterize it, as well as evasion of painful feelings of abandonment. However, its more structural trait does not reside in this similarity, not always present, but in its quality of dramatized message, which characterizes these acts as examples of acting out.

Keywords: Mournig; Acting out; Dramatizing; Mania; Message; Clinic.


 

 

Para Marta Gerez Ambertin

 

 

Em algumas experiências clínicas, deparei-me com certos atos de analisandos que pareciam responder a uma situação de luto, patológico ou não. Embora não se tratasse, em nenhum desses casos, de uma psicose maníaco-depressiva, esses atos me recordaram inicialmente, por analogia, a mania. Marcados por uma disposição à atividade, sentimentos de poder e suficiência, certa desconsideração pelos riscos envolvidos em certas atuações, alguns desses estados transitórios se assemelhavam à mania no sentido de sugerirem um movimento pelo qual o eu vence o luto pela perda do objeto, ou mesmo derrota o próprio objeto. Vitorioso, o sujeito parece, mesmo que por um curto período, ter se liberado das questões e objetos que o faziam sofrer, inflando-se de sentimentos passageiros de triunfo e alegria.

A partir dessa impressão inicial, na busca de melhor analisar esses atos, passo ao relato de alguns fragmentos de casos clínicos. É importante esclarecer, de saída, que se trata de situações bastante diversas, heterogêneas quanto a vários aspectos, mas que foram selecionadas apenas por um traço: o fato de apresentarem atos inusitados que se articulavam à angústia provocada por uma perda importante.

Maria, uma mulher que perdera sua filha há alguns meses, relata em uma sessão o quanto seu desejo sexual andava exacerbado. O pensamento de conseguir outros homens, além de seu marido, de repente começara a perseguila, e agora andava pela rua pensando nisso, como se tomada por uma excitação sexual indomável. Na véspera, quando estava passeando de carro com seu marido nesse estado de excitação, retirara sua blusa dentro do carro em movimento para exibir os seios a quem passasse, em uma atuação exibicionista que não era comum em sua história. Relatou-me, nessa mesma sessão, algumas fantasias e brincadeiras sexuais com as quais andava se entretendo. Entre elas, conta uma fantasia que se apresentava com freqüência, e estava colorindo sua atividade sexual: a de que era uma mocinha de apenas 15 anos, e que tinha sido seduzida por seu companheiro.

Perguntei, sabe-se lá por que, qual era exatamente a idade de sua filha, quando falecera. A analisanda perguntou, quase em um grito: “o quê?”, como se não estivesse acreditando no que ouvira. Quando repeti a pergunta, respondeu: “15 anos”. A mesma idade da personagem que a própria analisanda estivera desempenhando em sua fantasia sexual. Chorando, disse então que sua filha possivelmente nunca chegara a ter qualquer experiência sexual, e se censurou por ter sido severa com a menina, não a deixando sair para certos programas. Depois disso, chorou muito, não só nesta sessão, mas por vários dias a seguir, período em que muito pensou na menina e olhou seus retratos.

O caso que passarei a relatar, diferentemente do anterior, não envolve o luto por uma perda recente. Trata-se de um rapaz, João, que perdeu sua mãe ainda menino. Embora não apresentasse um quadro melancólico, um luto patológico e infindável havia se estabelecido, acompanhado de uma autoabsorção narcísica, de investimentos frágeis nos vínculos com as pessoas.

A idealização exaltada da mãe perdida coexistia com grande hostilidade em relação a suas namoradas, que na forma de uma compulsão à repetição, ele se esmerava em decepcionar, confundir e angustiar assim que as conquistava. Embora isso se desse de forma predominantemente inconsciente para ele (só a mensagem que lhe retornava do outro o alertava para o sentido hostil de sua atuação), essa atuação tinha o sentido de uma vitória sobre o objeto, e era acompanhada de sensações de liberdade, independência, poder e leveza. O sentido de derrotar “a perda do objeto” ou o próprio objeto, que caracteriza a mania, assim como a busca voraz de novos investimentos objetais estavam presentes, embora sem o aspecto extremado que assumem na mania. Era como se uma injunção superegóica proibisse que algum vínculo amoroso pudesse chegar aos pés daquele primeiro, o que representaria trair essa adorável mãe, que nunca fora verdadeiramente perdida (apesar de tantos anos terem se passado, João ainda vestia luto nos aniversários de sua mãe). A ambivalência em relação ao objeto se resolvia na idealização da mãe, por um lado, e por outro, no desdém e na crueldade que estavam presentes em sua relação com as mulheres.

Sabe-se que as lutas inconscientes devidas à ambivalência, na melancolia, se resolvem pelo abandono do investimento libidinal do objeto e seu recuo para o eu. Nas duas vinhetas clínicas apresentadas, ao contrário, não houve tal retirada de investimentos objetais e regressão narcísica – o objeto persiste investido no imaginário. No segundo caso, é verdade, embora o analisando aparentemente saiba quem perdeu, já que a imagem da mãe é exaltadamente idealizada, como que saída de um conto de fadas, e sempre presente, existe algum retraimento narcísico, e a ambivalência é bem mais intensa que no primeiro. Além disso, até mesmo porque a perda não era recente, mas um luto antigo que parecia não ter chegado ao fim, o que ocorreu não foi uma atuação em especial, mas uma série de atos que se repetiam com detalhes diferentes, mas que compunham, como se fosse um traço caracterológico, uma relação conturbada com as mulheres. A sensação de vitória sobre elas parecia obedecer à necessidade de conjurar as Eríneas dessa mãe (Stein, 1988), que não admitiriam que ninguém a ela se igualasse em valor para ele.

Sobre a impressão inicial de que esses episódios corresponderiam, no plano da “psicopatologia da vida cotidiana”, à mania, apresentando certas semelhanças com ela, o que pensar? Freud considera que os estados de alegria ou triunfo são o paradigma normal da mania, compartilhando com ela as condições econômicas. Neste lugar estão as sensações de ilação que surgem na vida de todos nós, quando um esforço que precisamos despender para nos livrar de condições adversas subitamente se torna desnecessário. Ganhar na loteria, por exemplo, é uma situação que ilustra bem do que se trata, já que provoca um estado de euforia, ao livrar “um pobre diabo da crônica preocupação com o pão de cada dia” (Freud, 1917, p. 254).

Os leitores de Luto e melancolia sabem que Freud assevera que não há um correspondente da mania em operação no luto. O luto normal chega finalmente, após envolver um grande dispêndio de energia, a uma superação da perda do objeto. A energia que foi mobilizada no trabalho de luto poderá ser liberada para outros destinos. Freud se pergunta: por que não haveria, nesse caso, uma fase de triunfo? Se a saída maníaca, como vimos, é resultante da liberação da energia que era empregada em um esforço psíquico que subitamente se fez desnecessário, eis Freud confrontado com a questão de descobrir por que não haveria também uma fase de triunfo, análoga à mania, no luto. De fato, também o luto exigiu grande dispêndio de energia para efetuar a separação dos laços com o objeto, representado em cada uma das pequenas lembranças dos momentos de amor.

Abraham, o grande interlocutor e principal influência de Freud em seus trabalhos sobre depressão, luto e melancolia, apresentou pela primeira vez, em um Congresso Psicanalítico em 1922, uma contribuição que vai na contramão da opinião enunciada por Freud de que não haveria no luto normal nada que correspondesse ao salto dado pelo melancólico para o estado maníaco. Em sua clínica, Abraham (1924) reconhecia a existência de estados equivalentes à mania no luto: uma intensificação libidinal, que se traduz em uma atividade sexual aumentada, na gestação de um filho, ou até mesmo em manifestações sublimadas, como um enriquecimento da produção intelectual e dos interesses, costumam se seguir a uma perda. As observações clínicas de vários autores contemporâneos confirmam o valor dessa formulação (Torok, 1995), inclusive aquela, quase de senso comum, de que o apaixonamento (Person, 1988) freqüentemente se instala na iminência de uma perda, ou logo após ela ter sido efetivamente vivida.

Embora Freud tenha recusado a contrapartida da mania no luto normal, ele não recusou a idéia de que haja contrapartidas da mania em estados não psicóticos. No capítulo IX de Psicologia das massas e análise do eu (1921), ele afirma existirem pessoas cujo estado de ânimo oscila entre uma depressão intensa e uma alegria e bem-estar exaltados, e toma a oscilação entre melancolia e mania como o exemplo mais extremo de um dinamismo que pode se apresentar em graus de amplitude muito variáveis, inclusive bastante sutis, e atribui essa situação a uma coalescência entre o ideal do eu, que fora anteriormente muito severo, e o eu.

Os atos que se seguem a uma perda traumática, entretanto, nem sempre assumem esse estilo ligado à mania, nem sempre proporcionam sentimentos de triunfo, leveza e alívio. Passo ao terceiro exemplo, um fragmento clínico, em que um ato relacionado à angústia suscitada pela perda comparece sem qualquer laço com a mania ou a ilação. A analisanda era uma mulher de meiaidade, que chamaremos Lucia. Quando já estava em análise há algum tempo, um acidente roubou-lhe inesperadamente a filha, uma jovem que iria casar-se dentro de poucas semanas. Acompanhando o doloroso trabalho de luto desde seu início, fui surpreendida um dia por um acontecimento que me foi relatado. Lucia tinha sido abordada na rua por uma jovem simpática, parecendo nervosa e insegura, que dizia ter chegado de uma pequena cidade do interior para trocar um bilhete de loteria premiado. A história que se segue é a de um conto do vigário inteiramente típico. A moça precisava descontar o bilhete, mas tinha medo de ser roubada. Assim, queria encontrar alguém que lhe comprasse o bilhete, ou alguém mais experiente que ela para auxiliá-la a retirar a quantia na Caixa Econômica. A certa altura, um senhor muito simpático se introduz na conversa, querendo ajudar, e todos dão idéias de como o bilhete poderia ser descontado. Lucia, enternecida pela juventude e fragilidade da moça, esquecese de suas ocupações do dia e passa a se dedicar, com todo o empenho e interesse, a pensar e discutir com os novos amigos uma forma de ajudá-la.

Sem entrar nos detalhes do conto do vigário, que envolveu longo tempo de conversa desse trio, e uma ida ao banco onde Lucia tinha conta, felizmente sem conseqüências, pulo logo para o final. Contrariando seu modo habitual de agir, já que costumava ser muito cuidadosa com sua segurança, Lucia levou a sua casa esse simpático senhor, um completo desconhecido, para comprovar que ela efetivamente tinha boas condições financeiras e que poderia receber o dinheiro referente ao bilhete premiado e entregá-lo à moça sem nenhum interesse pessoal no mesmo. Assim, abriu seu cofre, pegou as jóias de família e as exibiu ao senhor como prova de sua boa situação financeira. Ele, depois de examinar atentamente as jóias, guardou-as de novo no saco de feltro em que estavam, devolvendo-o a Lucia para que o recolocasse no cofre. Só depois ela viria a se dar conta de que suas jóias não estavam mais no saco, mas que este estava cheio apenas de papel de jornal amassado.

O incidente a deixou muito triste. Chorou muito por sua pobreza; a família havia empobrecido e novas jóias não poderiam mais ser compradas. Além do mais, tendo perdido sua única filha, Lucia não tinha mais a quem dar suas jóias de família, transmitindo aquele legado familiar. Essa perda inconscientemente escolhida se superpôs àquela, traumática, que sofrera como vítima passiva.

Embora esta atuação não proporcione qualquer elação ou sensação de triunfo, não exibindo traços semelhantes ao da mania como as que foram relatadas nos outros fragmentos clínicos, ela compartilha com elas um cunho de demonstração, já que faz alusão, através do desempenho, à perda, ao luto e à dor experimentados. Isso nos remete ao campo do acting out.

As configurações de queixas e sintomas com que a clínica nos brinda hoje em dia, como anorexias, bulimias, toxicomanias, impulsividade, suscitaram não só a expressão “patologias do ato”, como um novo interesse pelas teorias psicanalíticas sobre o ato, já que precisamos de instrumentos para nos mover nesse terreno, que é amplo, heterogêneo e pedregoso. O que dizer desses atos que surgem associados a perdas traumáticas e ao luto, e qual sua relação com o acting out?

Partimos forçosamente da premissa de que os atos são significantes e que não podem ser opostos à linguagem, premissa que foi deitada ainda em 1901, com Psicopatologia da vida cotidiana. Na leitura desse texto, podemos encontrar, subsumidos na categoria de atos falhos, muitos exemplos que dificilmente qualificaríamos assim nos dias de hoje, em que podemos contar com o chão já trilhado pelos psicanalistas desde então, e com os avanços na discriminação de atos de diferentes estruturas.

Com a introdução da noção de acting out, em 1914, muito foi adiantado no sentido de rigor na abordagem do campo do ato, e muitas ambigüidades foram esclarecidas. Naquele momento, Freud define o acting out como a tendência a repetir, no tratamento analítico, padrões e experiências infantis, em vez de recordá-las. Isso ocorre quando a resistência se intensifica, e a transferência se torna intensamente erótica ou hostil.

Nesta definição, o acting out quase se identifica com a transferência, uma vez que a neurose de transferência, cujo estabelecimento é considerado como uma precondição para o trabalho analítico, caracteriza-se exatamente pelo repetir. Tal como a transferência, o acting out é expressão da resistência, mas é também um instrumento do processo analítico, uma vez que, como sabemos, “é impossível destruir alguém em efígie” (Freud, 1912, p. 108). Reiterando essa opinião, dirá mais tarde, comparando o trabalho do analista com o do arqueólogo, que enquanto o arqueólogo tem apenas alguns indícios e restos do passado como instrumento para reconstruí-lo, o analista se encontra em uma posição bem melhor, porque o passado com o qual ele trabalha está presente e vivo na transferência (Freud, 1938).

O acting out se apresenta, em contraposição ao recordar, como a repetição do passado recalcado na análise, na transferência para o analista, mas também em “todos os outros aspectos da situação atual” (1914, p. 151), já que a transferência em análise e o próprio alcance dos efeitos analíticos não se limitam ao que ocorre no âmbito do consultório do analista. O acting out é conceituado como efeito da instalação da neurose de transferência, e portanto, como uma vicissitude do processo analítico. Corroborando essa estreita ligação entre acting out e neurose de transferência, Freud dirá em 1920 que as repetições da vida sexual infantil se apresentam com surpreendente exatidão, e que “invariavelmente são atuadas (acted out) na esfera da transferência” (Freud, 1920, p. 18).

Em sua última formulação sobre o tema, Freud caracterizará o aspecto resistencial do acting out como sendo constituído especialmente pelo atuar fora da transferência. Aponta como ideal que o analisando se comporte da forma “mais normal possível” fora do tratamento, e que sintomas e reações anormais se manifestem apenas na transferência (1940[1938], p. 177).

Esse trecho porta a imprecisão de equacionar “fora do consultório do analista” com “fora da transferência”. Por esse motivo, entre outros, tem fomentado a visão do acting out como sendo fundamentalmente prejudicial ao tratamento (Greenacre, 1950), e até mesmo como constituindo uma resistência à transferência, e se opondo a ela. Entretanto, vimos como o acting out é, por definição, parte integrante das manifestações transferenciais, ponto de vista que Lacan implicitamente reconhece ao tomar o acting out como transferência selvagem.

A oposição que havia sido feita por Freud entre as duas formas de expressar o recalcado – recordar ou atuar – perde importância com as modificações de ênfase que vão tendo lugar na história da psicanálise. A clínica tem mostrado, e vários autores o atestam (Weiss, 1942) que é bastante comum que analisandos atuem (act out), repetindo situações das quais se lembram muito bem. Além do mais, o objetivo de recordar, trazer à consciência o que fora esquecido, foi sendo rapidamente desalojado da posição que deteve nos primórdios da psicanálise. Mostrei em outro artigo1 como, já em 1901, Freud relata muitos exemplos de atos falhos, cujo motivo sempre foi conhecido. O sujeito decide, por alguma conveniência social ou princípio moral, agir contra seu desejo, mas apesar de sua decisão, emergem atos falhos que contrariam essa decisão consciente e o impedem de realizar o que havia proposto.

A questão, que será formalizada apenas na segunda tópica, é que o ato não se submete a nossa vontade. O eu, na busca de exercer o controle, consegue apenas envolver em racionalizações o ato, no qual, na verdade, está envolvido em situação análoga à do mau cavaleiro, que não tem outra saída senão se conformar a ir para onde o cavalo (isso) o levar.

Com relação aos fragmentos clínicos, surge uma outra questão. Poderíamos qualificar de acting out os atos que irromperam na análise de Lucia, e mesmo na de Maria, mas isso não se aplica inteiramente às expressões de hostilidade de João em relação às mulheres. Em sua história, atuações agressivas ou desdenhosas eram constantes, constituindo um estilo ou um sintoma. Seu caso apresenta semelhanças com o daqueles que já procuram análise por questões ligadas ao campo do ato, como os impulsivos ou aditivos, clientes que são chamados por muitos analistas de “atuadores”.

Nossos recursos conceituais devem dar conta das diferenças entre analisandos, cuja disposição ao acting out é fruto de sua entrada em análise, daqueles cujos sintomas sempre se situaram no campo do ato (Anna Freud, 1968). Enquanto os analisandos do segundo tipo, que Anna Freud classifica como delinqüentes, adictos, pré-psicóticos e psicóticos, e cujos sintomas enquadram-se de forma mais genérica na categoria de patologias do ato, atuam habitualmente antes mesmo de chegar à análise, no caso dos neuróticos, a precondição para isso são os efeitos liberadores da análise e da instauração da transferência. O acting out é um processo que é fomentado pela própria análise e o estabelecimento da transferência, enquanto o comportamento impulsivo corresponde a “insurreições do isso” (A. Freud, 1968), que pertencem à patologia do analisando. A análise dos delinqüentes, diz Anna Freud de forma expressiva, só começará quando eles passarem a roubar do analista; do mesmo modo, a análise dos adictos terá início quando a dependência às drogas se transmutar em dependência da presença do analista.

Essa esclarecedora distinção estabelecida por Anna Freud deixa ainda o campo do acting out amplo em excesso, como inicialmente fora o do ato falho, ou seja, abrangendo fenômenos clínicos de estruturas diversas. Lacan (2005) trouxe importante contribuição ao rigor ao destacar, do acting out, a passagem ao ato, uma distinção que não foi incorporada por psicanalistas de outras orientações teóricas. Os textos psicanalíticos em língua inglesa geralmente traduzem passagem ao ato por acting out, ignorando as nuanças da distinção conceitual proposta por Lacan.

Com a inclusão da passagem ao ato no campo da psicanálise, Lacan refinou o instrumental psicanalítico no sentido sugerido por Anna Freud, mas levou ainda mais longe sua proposta, na medida em que busca estabelecer uma discriminação metapsicológica, e não apenas descritiva, entre atos impulsivos que chamou de passagens ao ato, e o acting out. Para ilustrar o ponto, retomo o exemplo de acting out que é o seu preferido – o do analisando de Kris que, ao sair da análise, dirigiu-se calmamente a um restaurante para comer um prato que apreciava muito: miolos frescos. O acting out, tomado por Lacan como uma mensagem ao analista, adverte-o de que errou o alvo ao interpretar o sintoma do analisando – a idéia de que era um plagiador – no nível da objetividade e não do desejo. O acting out é uma mensagem “encenada”. Ele tem certo parentesco com o que, em Psicopatologia da vida cotidiana, Freud (1901) batizara de ato sintomático, considerando-o na época como um gênero de ato falho2. O acting out é – tal como seu antecessor, o ato sintomático – eu-sintônico; ou seja, não há o sentimento por parte do analisando de que seu eu tenha sido atropelado pelo isso, como na impulsividade. O analisando não concede conscientemente ao acting out significação especial alguma, o que o torna refratário a qualquer tentativa de interpretação. Ressaltando o aspecto demonstrativo do acting out, voltado para o Outro, equivalente a uma fala e comportando uma demanda de interpretação, Lacan (2005) lhe oporá a passagem ao ato como saída de cena do sujeito a partir de sua identificação absoluta ao objeto “a”.

Vital Brazil3 considerava que a melhor tradução para acting out seria “desempenho” em vez de “atuação”, visto que esta pode sugerir o sentido equivocado de recurso à ação motora, algo que é acidental no acting out, e não serve para defini-lo. Desempenho é um termo que, sob a rubrica “cinema” e “teatro” figura no Houaiss, por exemplo, como “maneira de representar, de interpretar”, e que remete à encenação teatral como forma de expressão.

Ao desempenho, à encenação como mensagem que é sempre dirigida ao Outro no acting out, Lacan opõe a passagem ao ato, como queda da cena, o reverso da encenação e atualização na transferência. O móvel das passagens ao ato é dar as costas ao Outro, fugindo da angústia e da divisão do sujeito, o que só se pode efetivamente alcançar no suicídio.

Por que essa relação do acting out com a perda e o luto? Um desempenho que é fundamentalmente mensagem e demonstração ao Outro da dor sofrida? A leitura feita por Lacan de Hamlet, texto no qual, segundo o mestre, “de uma ponta a outra... só se fala de luto” (Lacan, 1986, p. 77 [29/04/59]), fornece algumas idéias sobre isso4. A perda que provoca o luto é um buraco no real que mobiliza o significante. Os ritos à memória dos mortos demonstram exatamente a intervenção de todo o jogo simbólico para preencher esse buraco que se instaurou na vida do enlutado. O luto é um trabalho “que se realiza no nível do logos” (Lacan, 1986, p. 757 [22/04/59]).

Não surpreende, portanto, que o chamado ao acting out, ao desempenho, presente nos casos que relatei, acompanhe o trabalho de luto, uma vez que compartilha com esse trabalho o cunho de invocação do simbólico e do reconhecimento do Outro para a dor que a perda promoveu.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Ana Maria Rudge
Av. Rui Barbosa, 532 / 1101
22250-020 - Rio de Janeiro/RJ - Brasil
Tel.:+55 21 3527-1185
E-mail: arudge@puc-rio.br

Recebido em: 26.07.2006
Versão revisada recebida em: 01.12.2007
Aprovado em: 10.12.2007

 

 

*Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle; Professora nos Cursos de Graduação e Pós-graduação (Mestrado e Doutorado/Departamento de Psicologia/PUCRJ); Pesquisadora do CNPq; Pesquisadora da Rede Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.
1 Metapsicologia e clínica do ato, de 2000
2 Ato sintomático dá nome a um capítulo do livro.
3 Comunicação pessoal.
4 Devo a Marta Gerez Ambertin essa indicação.