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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Reaproximando afasia e psicanálise: pressupostos e estudo de um relato autobiográfico

 

Approaching aphasia and psychoanalysis: presuppositions and a study of a autobiographic narrative

 

 

Alessandra Caneppele*

Instituto de Estudos da Linguagem - Unicamp

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho lemos Zur Auffassung der Aphasien não como um livro sobre a origem da psicanálise, nem como um texto clássico de afasiologia, mas como momento precursor para a construção de um saber propriamente psicanalítico sobre o sujeito da clínica das afasias. Para tanto, investigamos primeiramente sua apresentação da formação do sintoma do resto de linguagem em associação com a fala presente em uma situação de perigo. Em um segundo momento, a partir da leitura da narração feita pelo escritor Cardoso Pires sobre sua própria afasia no livro De profundis, repropomos a relação encontrada no texto freudiano como reconhecimento para a psicanálise de uma certa posição de angústia do sujeito na linguagem.

Palavras-chave: Lesão cerebral; Afasia; Trauma; Angústia; Linguagem.


ABSTRACT

In this paper, we read Zur Affassung der Aphasien not as a book referring to the origins of psychoanalysis, nor as a classic text about aphasia, but as a precursory occasion for the building of properly psychoanalytical findings on clinical reality of aphasia. We therefore investigated first the formation of the symptom of the rest of speech associating it with the speech appearing in dangerous situation. In a second moment, through the reading of the report made by the writer Cardoso Pires about his own aphasia in the book De Profundis, we suggested an existing relation, present in Freud’s text, between aphasia and anxiety position in the subject’s speech.

Keywords: Cerebral injury; Aphasia; Trauma; Anxiety; Speech.


 

 

I- Restos de linguagem, significação e interpretação

Em Zur Auffassung der Aphasien1, Freud (1891) dedica um parágrafo ao sintoma do resto de linguagem (Sprachrest) encontrado em algumas afasias. Ele se pergunta sobre como a teoria localizacionista pode explicar o fato de esse pedaço de linguagem resistir, escapando da destruição geral, pois supondo que as representações da linguagem se encontrem localizadas em um mesmo lugar do cérebro, todas deveriam sofrer a mesma perda. Por outro lado, o fato de serem observados tanto restos simples como também restos que correspondem a operações lingüísticas mais elevadas, depõe contra a suposição de que o simples sobrevive e o complexo é perdido. Freud remete, então, à hipótese de Jackson de que esses restos de linguagem pertenceriam à linguagem emocional e não à intelectual, mas essa solução não o satisfaz: não lhe basta dizer que o que resta é um pedaço de linguagem emocional, mas sim investigar a natureza do que poderia ser a fala emocional. Para tanto, Freud passa dos casos em que o significado ou importância dessas palavras ou expressões é reconhecidamente preciso (enger Bedeutung) para aqueles em que podemos nos espantar com a “célula ou imagem de memória” que conseguiu escapar à destruição generalizada. Mas ele conclui: “muitos desses casos [espantosos] autorizam uma interpretação muito plausível (eine sehr plausible Deutung)” (Freud, 1891, p. 104-106).

a) Sintoma e constituição da clínica: histeria e resto de linguagem

Freud distingue, em 1891, dois tipos de restos de linguagem. No primeiro, composto por palavras básicas como “sim” e “não” e blasfêmias ou outras expressões do linguajar emocional, aparentemente a persistência é devida a características intrínsecas ao resto de linguagem – em outras palavras, não é incompreensível que persistam palavras que já tinham antes para o sujeito um valor elevado (funcional ou emocional). No segundo, o resto parece desprovido da importância (Bedeutung) intrínseca atribuída ao primeiro grupo, sendo necessária então uma interpretação (Deutung). Nesses casos, Freud propõe que se analise o momento em que esses restos se formaram, ou seja, o momento do evento que acarretou a lesão cerebral. Ele apresenta dois exemplos. No primeiro, o resto de linguagem “I want protection” persiste em um sujeito que adoeceu depois de uma briga. No segundo, o resto “List complete” persiste em um sujeito que era copista e que havia adoecido logo após completar um complicado catálogo.

Pode-se reconhecer aqui uma distinção entre dois modos distintos de formação do sintoma dos restos de linguagem que repetem os dois modos de formação dos sintomas histéricos encontrados nos escritos sobre a histeria: pelo primeiro, a própria representação justifica o afeto a ela associado; pelo segundo, a representação é carregada de afeto por sua associação a um estado específico – estado hipnóide (Breuer e Freud, 1893/1895, p. 36-39)2. No que se refere à clínica das histerias, Freud abandona a hipótese dos estados hipnóides e dedicase às formulações sobre a histeria de defesa, cujo valor do sintoma está na importância da representação traumática. Ao mesmo tempo que se desenvolvem tais formulações sobre a histeria, ele traça uma linha divisória entre o diagnóstico das neuroses sexuais e das psiconeuroses. Se para a histeria trata-se de estabelecer uma teoria da exclusividade do sentido anímico, nas neuroses de angústia o que se busca reconhecer é uma elevação de excitação que ainda não é um sentido anímico, mas sim de pura descarga de tensão sexual mal conduzida e que não chegou a constituir nem afeto nem sentido anímico – portanto, não podem ter seus sintomas interpretados, mas apenas suas práticas sexuais questionadas. Aparentemente poderíamos, então, aproximar os sintomas afásicos aos sintomas reconhecidos nos estados hipnóides e nas neuroses sexuais como sintomas em si mesmo não portadores de significação (pois derivados apenas de uma variável alheia à ordem do sentido anímico), e repetir a expulsão desses do campo daquilo que a psicanálise constitui como seu objeto de estudo.

Duas considerações justificam a recusa em repetir tal expulsão. Primeiramente porque os limites traçados por Freud entre o interno e o externo à psicanálise seriam metodológicos e não propriamente empíricos – ou seja, eles não servem para eliminar da investigação uma certa realidade clínica, mas sim para traçar as linhas mestras que definirão a aproximação propriamente psicanalítica de qualquer objeto clínico. Desse modo, compreende-se que para a psicanálise todo o sexual se refere ao sentido anímico e todo afeto a uma representação que justifique sua presença. Para sustentar a radicalidade de seu campo, Freud manterá paralelamente supostas nosologias contrárias a essas máximas.

Corroborando essa primeira consideração sobre a metodologia freudiana de fundação do objeto da psicanálise, observa-se que as variáveis que circunscrevem a especificidade de tais nosologias externas à psicanálise serão reacomodadas posteriormente em seu interior – será assim com a sexualidade, pelo conceito de libido, e da teoria da sexualidade infantil, que buscará dar conta teoricamente de porque o sujeito apresenta um certo comportamento sexual. E será assim também com os estados afetivos causados por aparentes situações reais de perigo, por meio da concepção da angústia real como estado afetivo sustentado exclusivamente por uma ordenação da libido. Podemos concluir, portanto, que o próprio Freud não empreendeu uma exclusão: metodologicamente, traçou limites para a especificidade do que a psicanálise constituía como seu saber, e não se cansou de reacomodar nesse lugar aquilo que, em um primeiro momento, havia colocado do lado de fora.

Trata-se, então, de metodologicamente propor a realidade afásica como objeto da psicanálise – ou seja, como evento que se efetiva como sentido anímico. Assim procedendo, veremos que a clínica das afasias, como realidade limítrofe ao campo do sentido, tocará a psicanálise justamente através de um tema que voltou a instigá-la particularmente nos últimos anos – a saber, aquele do trauma3.

b) A pergunta do sintoma: acidente cerebral e perigo

Freud escreve sobre os exemplos em que o resto de linguagem pode ser interpretado pela associação ao momento do trauma: “tais exemplos permitem a hipótese de que os restos de linguagem são as últimas palavras, as quais o aparelho de linguagem formara antes de seu adoecimento, talvez já em premonição a esse” (1891, p. 105) A particularidade do que Freud concebe sobre o adoecimento do aparelho de linguagem é a suposição de que tal aparelho pode pressentir, adivinhar a doença e de algum modo representá-la: nesse contexto, o aparelho de linguagem não é apenas aquele que adoece, mas também aquele que significa para si mesmo o evento da doença. O aparelho de linguagem, como grupo de representações associadas, forma palavras e expressões continuamente, as quais, em um momento em que a integridade cerebral – que não coincide com ele – é ameaçada, passam a representar o evento ameaçador. Tal certeza permite a Freud supor até mesmo uma distinção entre uma palavra que está formada no momento da lesão, mas não responde propriamente a essa, e uma segunda palavra, que talvez represente o pressentimento do aparelho diante de uma situação que o ameaça (vielleicht bereits in Ahnung derselben). Compreende-se que o que está em jogo é um certo funcionamento da linguagem diante de um perigo, que por meio desse funcionamento pode formar um pressentimento, uma representação do que não coincide com ela mesma. Não se trata, portanto, de pesquisar o perigo/lesão, mas sim a função da linguagem nessa situação – e Freud descreve tal função como sendo afim a uma adivinhação.

Ele se encaminha nessa direção investigativa introduzindo um exemplo pessoal de uma vivência de perigo. Anunciando não apenas o uso constante que fará de si mesmo na construção de sua psicanálise, mas também a tensão entre sentido e quantidade que a habitará, Freud começa por expor a faceta quantitativa: “eu gostaria de esclarecer o persistir dessas últimas modificações por suas intensidades, quando elas se sucedem em um momento de grande excitação interna” (1891, p. 106). Nada se diz sobre a origem dessa excitação interna – e dada a recusa freudiana em aceitar a tese localizacionista e a correspondência direta entre representação e lugar cerebral, ela não pode ser compreendida como idêntica ao dano cerebral. Justifica-se apenas a afirmação de que na vivência de dano cerebral, o sujeito lingüístico pode pressentir um perigo; tal pressentimento é acompanhado por um incremento de excitação e a linguagem toma ou forma palavras que adquirem, pela associação a essa excitação, o caráter de compulsão. A questão sobre se tal incremento de excitação deve ser concebido como anterior ou posterior ao pressentimento repetiria a oscilação na obra freudiana entre suas concepções de angústia, e mantendo a dupla solução para a questão – concebendo o dano cerebral como perigo em si mesmo produtor de excitação ou como algo que é significado como perigoso pelo aparelho de linguagem e que nesse contexto gera excitação –, mantém-se a problemática sob o signo da solução não unitária do pensamento freudiano. Tomando Freud como modelo, optar por uma das soluções apresentadas em relação ao evento traumático na afasia não é condição prévia à investigação sobre a associação feita em Zur Auffassung entre o uso da linguagem na afasia e no perigo.

c) Perigo e linguagem

Freud assim descreve sua experiência pessoal:

Eu me lembro que eu me acreditei duas vezes em perigo de vida, cuja percepção se sucedeu em ambos os casos de modo totalmente instantâneo. Nos dois casos eu pensei para mim: “agora, está acabado para você”, e enquanto minha fala interna de costume funciona por si com imagens sonoras insignificantes e sensações labiais pouco intensificadas, eu escutei no perigo essas palavras como se fossem gritadas para mim nas orelhas, e as vi ao mesmo tempo como que impressas sobre uma folha esvoaçante (1891, p. 106).

O funcionamento da linguagem desdobra-se em dois aspectos: a forma pela qual as palavras se apresentam; a escolha propriamente das palavras.

A fala alucinada

Freud narra uma situação em que o pensamento apresenta-se como uma percepção – como uma linguagem alucinada. Em Zur Auffassung, o privilégio do elemento acústico para a cadeia de associações da linguagem justifica a suposição de que a compreensão de um discurso ouvido implicaria o repetir da fala (nachsprechen) internamente, uma própria sensação de inervação da fala (1891, p. 137). Em 1938, Freud usará a expressão “resto de linguagem” para descrever a dependência da constituição da linguagem de um elemento perceptivo (linguagem ouvida como fala e guardada como resto de linguagem), os quais permitiriam o acesso a conteúdos internos e a formação da consciência de si. Em Zur Auffassung, Freud escreve que a compreensão de um discurso passaria sempre pela repetição diminuta de uma percepção da imagem sonora, e tal concepção é reafirmada ao descrever nesse parágrafo sua própria “fala interna” em situações normais como aquela na qual estariam presentes, mesmo que minimamente, percepções auditivas (som ouvido) e motoras (mexer os lábios). Em Zur Auffassung, descreve-se na situação de perigo uma linguagem cujo funcionamento é diametralmente oposto ao apaziguamento do suposto caráter de fala ouvida da linguagem: Freud relembra uma frase que se apresentou a ele como uma alucinação oral e visual. O incremento da excitação interna diante de um perigo, afim à angústia, concorda com um funcionamento da linguagem que recoloca o pensamento sob a forma de um dito ou visto que se impõe como alucinação. Mas, o que diz tal fala alucinada?

A fala angustiante

O conteúdo da frase ouvida e vista também coloca o sujeito em uma posição passiva: tal como esse sujeito ouve e vê a frase como se produzida externamente a ele, também o conteúdo da frase faz do sujeito objeto (complemento verbal). Desse modo, Freud não afirma ter pensado/ouvido/visto a frase, por exemplo, “agora eu acabei”, mas sim “agora está acabado (é findo) contigo (para você) (jetzt ist es aus mit dir)”. Do mesmo modo, o suposto sujeito do proferimento não diz “tu acabastes”, fazendo de seu interlocutor sujeito de sua frase. O discurso é direto, mas o sujeito do pensamento agora escutado aparece como objeto indireto da fala de um outro que o propõe frente a um terceiro (es).

Além disso, o suposto sujeito que a profere não é o sujeito da frase, ou seja, ele não diz “eu acabei contigo”. Lemos então que um outro, um terceiro (es), é que acabou para o sujeito, e portanto, o proferimento tem a forma de uma constatação que poderíamos descrever assim: algo que não é nem eu que falo nem você que escuta acabou com você que me escuta. Enfim, não há um agente na frase, nem pelo lado de quem a profere, nem pelo lado de quem a escuta, e o sujeito, oculto, não é quem responde por seu fim: ele (es) apenas é aquele que acaba, e ao acabar, leva um segundo (dir) ao mesmo fim.

A descrição de tal funcionamento da linguagem associada à vivência do trauma cerebral indicaria algo sobre o que é vivido pelo sujeito nessa situação, assim como a estrutura da linguagem implicada na castração expõe para a psicanálise os princípios do que para o seu sujeito é a passagem por esse lugar/fala.

d) O proferimento da lesão e o proferimento da castração

Em Esboço da psicanálise, lemos que a angústia de castração surge quando, após as tentativas infrutíferas da mãe de proibir o comportamento sexual do filho, essa “recorre a um meio mais mordaz, ela ameaça retirar-lhe a coisa com a qual ele a enfrenta. Normalmente atribui ao pai a execução da ameaça, a fim de torná-la mais apavorante e mais crível. Ela dirá ao pai e ele cortará o membro” (1940[1938], p. 116). Com a concorrência do conhecimento sobre os genitais femininos, o menino passa a acreditar na efetividade dessa ameaça, reconhecendo aí um perigo digno de provocar angústia.

É evidente uma primeira distinção entre o proferimento descrito no caso do perigo de vida e o proferimento reconhecido no perigo de castração: enquanto o primeiro é uma constatação sobre uma realidade dada (acabou) no presente (jetzt), o segundo é uma ameaça (pode acabar). O primeiro está reduzido ao presente, o segundo coloca-se como possibilidade futura, ou seja, cria a incerteza de um segundo tempo, de um a posteriori4. Uma segunda distinção pode ser associada a essa primeira: na medida em que a primeira é uma constatação presente de algo ocorrido no passado, ela não precisaria incluir um sujeito que responderia pela intenção de uma ação; já na segunda, a ameaça implica a presença de um sujeito que pode ou não agir punitivamente, ou seja, o perigo é indissociável de um certo querer agir de uma pessoa (mais especificadamente de duas pessoas, na medida em que a fala implica uma certa posição da mãe perante o pai). Ou seja, na primeira situação o perigo aparece independente de um sujeito que se coloca como motor de sua realização, e na segunda, tal sujeito se apresenta.

Para Lacan, a castração imporia ao sujeito uma perda simbólica de um objeto imaginário. Como descrita acima, será uma operação simbólica que estabelece uma possibilidade de vir a ser sobre um gozo do corpo, que será realizada nessa fala. O real que funciona como agente dessa perda, tornando eficaz a fala da mãe, será em Freud o reconhecimento a posteriori do corpo da menina como castrado. Em tal esquema compreende-se a particularidade da fala implicada na castração, mas não a particularidade dessa na vivência de perigo descrita por Freud; para tanto, dever-se-ia aproximá-la à estrutura da privação postulada em Lacan, a qual concebe uma perda real – falta real definida como “buraco” (1956, p. 36) – de um objeto simbólico (p. 38). Nessa estrutura o que foi reconhecido como o tempo presente da fala do perigo concordaria com o lugar da perda no real, enquanto a posição do sujeito como terceiro deveria responder pela constatação de que o que se perde é simbólico. O simbólico, que resultava da operação de castração na medida em que a instalação de uma perda de ordem simbólica permitia ao sujeito o acesso a essa ordem, na privação apresentar-se-ia justamente como objeto perdido. Mas qual o lugar que o sujeito deve ocupar para que essa perda se realize? Trata-se de propor a lesão cerebral como exemplo paradigmático do deslocamento desse sujeito, na medida em que nela não se perderia um objeto simbólico, mas a própria possibilidade do simbólico.

e) Lesão cerebral como privação

Em textos pouco posteriores à monografia sobre as afasias, Freud apresenta sua teoria de que a vida anímica sustenta-se pela ocupação por uma certa excitação somática de representações psíquicas. Se a impossibilidade de organizar via representações lingüísticas a excitação somática é tão perigosa e responsável por angústia como o seria supostamente a própria lesão orgânica que desorganizaria a produção dessa excitação, dá-se, assim, uma inversão da ordem investigativa sobre o perigo, que nos permite conceber a perda da capacidade simbólica como representante capital do perigo para a vida do sujeito.

Se no esquema lacaniano da privação o objeto perdido é simbólico, entende-se que o que poderíamos reconhecer como o perigo das afasias – a perda da capacidade de construção simbólica via representações lingüísticas – é paradigma de toda vivência em que o simbólico ocupa o lugar de objeto perdido. Contudo, apenas o reconhecimento da lesão como privação não atribui ainda à angústia um lugar compreensível: para tanto, será preciso investigar através da vivência afásica o imaginário como agente que opera no sujeito da privação, retomando a indagação sobre a “espécie de existência real” que poderia ser reconhecida ou não nesse agente (Lacan, 1956, p. 39), sobre a natureza de seu retorno no sintoma e sobre sua função na cisão estrutural do sujeito.

Na castração, o corpo próprio ocupa o lugar do perdido no simbólico por meio da ação de uma falta que é real. Retomando Freud, compreendemos que o que é perdido na castração é o corpo próprio concebido apenas como lugar de prazer por meio de uma fala que marca esse corpo como lugar de desprazer, cujo prazer ou desprazer dependerá sempre desse outro – portanto, de uma real submissão ao outro para a obtenção do prazer e do desprazer do corpo próprio. Já na privação, o que vem a ocupar o lugar reservado ao corpo próprio é justamente o simbólico: não se trata mais da perda do corpo próprio, mas sim da perda do simbólico. Mas se a perda do corpo se dava no simbólico na castração, já na privação a perda do simbólico não se dará no corpo próprio, ou seja, a relação não é simétrica: na privação o simbólico é perdido no real e o corpo próprio é o agente, o motor dessa perda. Portanto, aquilo que na castração coloca-se no lugar do perdido, na privação, de modo diametralmente oposto, desempenha a função de agente, o que nos permitiria concluir que se na castração falta corpo próprio, já na privação teríamos um excesso de corpo próprio.

Em termos de cisão do sujeito, impõe-se também uma reviravolta: se a perda simbólica do corpo próprio conduz à cisão de um sujeito que nesse momento não se reconhece mais como idêntico a esse corpo imaginário (castração), a perda real do simbólico conduz à cisão do sujeito que não se reconhece mais como idêntico ao simbólico (privação). Do mesmo modo, se a perda da castração acrescenta ao estranhamento (diante do corpo imaginário) uma suposta identidade (do sujeito como sujeito simbólico), na privação também o estranhamento diante do simbólico em seu reverso constitui a identidade entre sujeito e real.

Os quadros de afasia encontrados em lesões cerebrais apresentar-seiam como vivências paradigmáticas da privação compreendida como situação traumática na qual por uma ação do corpo próprio o sujeito perde sua suposta identidade com o simbólico e se reconhece no lugar do real como buraco (daí o sujeito oculto da frase de Freud). Quando isso (es)/simbólico acaba, o sujeito não está perante uma ação do real (tal como quando esse é o agente da castração) desde o lugar em que ele opera o simbólico, mas sim no lugar em que opera o real, com o real como o lugar em que se dá a perda. Como podemos reconhecer na ambigüidade da frase de Freud, “isso acaba con/tigo”, ou seja, o simbólico acaba onde o sujeito, coincidindo com o real, acaba.

Contudo, quando a privação não se perfaz em morte, algo deverá retornar desde os outros lugares do sujeito como o que persiste fora da coincidência com o real5. Mas o que a clínica das afasias nos ensinaria sobre o sujeito que retorna desse lugar?6.

 

II- Sobre a narração de um caso de afasia

O escritor português José Cardoso Pires narra seu próprio acidente cerebral no livro De Profundis, valsa lenta. O amigo e neurologista que acompanhou a doença do escritor – e também prefaciou a publicação do livro – descreve assim o que para ele a doença do escritor apresentava como enigmático:

Penso que o pudor de narrar toda a intensidade do sofrimento ou o bálsamo do esquecimento inconsciente aplicado suavizaram a sua descrição da angústia da perda de identidade, do seu isolamento, sem nome, sem assinatura e sem memória. Este é um dos pontos mais intrigantes do caso (...). Num mundo sem coordenadas de tempo ou de distância, (...) V. não temeu! (Cardoso Pires, 1989, p. 16).

Mas a angústia está ausente na narração dessa vivência? Seguindo as indicações do próprio escritor, buscamos nos “erros”, nas “imprecisões” e em seu “modo de contar” o que poderia “revelar a sintaxe dum comportamento de crise e porventura alguns complexos da sua interioridade” (Cardoso Pires, 1989, p. 78), e portanto, dar pistas sobre o enigma da aparente desaparição da angústia.

Aparentemente Cardoso Pires concorda com a descrição de seu médico ao caracterizar seu estado como sendo de “insensibilidade afetiva”: não há significantes sentimentais, posto que não há “consciência da nossa identidade”, que por contraponto reconheça tais significantes como tais (p. 43). Também nas entrelinhas que fazem referência a um acidente de carro ocorrido três meses antes do acidente vascular cerebral, encontramos uma referência à associação entre perda de memória e afeto:

Insensibilidade cerrada a seguir à colisão. Comportamento automático e memória “automática”, digamos assim, nas respostas às situações mas tudo num aturdimento em casulo opaco: factos, pessoas e lugares fechados ali para sempre. (...) Apesar de o meu traumatismo cerebral não ter sido uma seqüela deste acidente, a alienação de memória que ele determinou constituiu para mim uma referência perturbadora. A memória como exponencial comum a dois desastres (p. 77).

O autor associa duas vivências, repetindo a associação proposta por Freud no texto sobre as afasias entre clínica da lesão cerebral e vivência de um perigo de vida. Mas, diferentemente de Freud, que não sofrera qualquer lesão cerebral, Cardoso Pires descreve a si mesmo nessas duas experiências. O escritor revela que sua vivência do acidente de carro fora desprovida de afetos: “insensibilidade cerrada”, respostas automáticas “em casulo opaco”. Para tanto, a memória, também automática, fora seccionada, “fechada” por meio do isolamento de seus conteúdos. O perturbador exponencial comum aos dois desastres não diria respeito apenas à alienação da memória, mas também a um mesmo isolamento dos afetos que poderiam advir dessa memória. A partir desse enquadre, as diferenças entre a descrição da situação de perigo de Freud e a de Cardoso Pires se explicitam: se o primeiro reconhece o incremento de excitação interna, o segundo descreve uma insensibilidade; se o primeiro guarda para si, como representação dessa vivência, palavras gritadas aos seus ouvidos e atiradas aos seus olhos, o segundo guarda da vivência apenas uma “recordação: o flash nocturno dum enorme salão de pedra com dois ou três médicos a discursarem em espanhol diante da maca onde eu me encontrava. Imagens de árvores a escorrerem chuva lá fora – as árvores da cerca do Hospital, possivelmente” (p. 77). Segundo a descrição, no que resta para nosso narrador como lembrança do episódio, as palavras, apresentadas em seu caráter estrangeiro ao sujeito (“discursam em espanhol”), persistem como elementos de uma representação pictórica, figurativa da cena recordada, na medida em que elas são apenas sons incompreensíveis, sem que o sujeito retenha dessas qualquer conteúdo. Ou seja, a presença perceptiva da linguagem reconhecida anteriormente na descrição freudiana repete-se aqui, mas de um modo completamente diverso: não mais resto perceptivo de uma fala do outro, mas pura materialidade de um som. E nesse contexto, o escritor nada teme e não se angustia.

O tema da angústia é introduzido explicitamente na narrativa de Cardoso Pires quando descreve como “humor sacrificado” que travestia o medo perante a espreita da morte a “Commedia della paura” (p. 79), representada por seus colegas de quarto. Em uma palavra reconhecida como ficção e concebida em um idioma estrangeiro (paura), Cardoso pode indicar um lugar de angústia, mas como ele mesmo indica em sua narrativa, ele ainda não pode se inquietar nesse lugar. Encenada em uma ficção cômica estrangeira, assim a palavra reaparece carregando sinais de angústia que não chegam a inquietar o narrador: palavra e angústia estão aí, mas alheias a ele, não são ainda suas.

Mas Cardoso Pires descreve também em sua narrativa a persistência de um resto de linguagem: a palavra SOHNAB associada à interrogação “se eu não estaria a caminhar para a loucura” (p. 50). Algo resiste à “desertificação”, à indiferença da morte que tudo apaga, sem “rastros”, sem “traços”: uma palavra escrita e sua associação a uma interrogação, embora “sem sobressalto”, sobre a possibilidade de enlouquecer. O autor explicita o caráter obsessivo dessa palavra: “numa porta volto a dar com o letreiro SOHNAB que me perseguiu até a obsessão sob a máscara bizantina de SOHNAB e que é uma das raras imagens que me ficaram do tempo cego” (p. 60). A seguir ele narra a associação dessa palavra a um lugar inquietante:

Até sair do hospital jamais me quis abordar (inquietar, para ser mais preciso) como sujeito de livros e de escrita, uma identificação pessoal que eu só muito depois viria a relacionar com o letreiro-fantasma SOHNAB SOHNAB SOHNAB que me perseguira ao longo da minha erosão da memória, e que foi a única recordação que sobreviveu integralmente a todo esse aniquilamento. A única não. A hipótese de loucura, por exemplo, foi outro episódio de que guardo uma lembrança objetiva (p. 66).

A doença é descrita por Cardoso Pires como um estranhamento de si mesmo: “eu tinha me transferido para um sujeito na terceira pessoa” (p. 25); “ele, o Outro. O outro de mim” (p. 26). Ao mesmo tempo, narra-se a persistência de um sujeito mínimo nesse outro: “aí já se deixa ver que era ainda um último resto de mim que protestava” (p. 32); “a princípio houve uma ou outra situação em que nos confundimos e fomos um só. Situações raríssimas, devo acrescentar, breves clarões de consciência” (p. 32). Portanto, não se descreve a desaparição de um sujeito, mas sim sua cisão que o coloca ao largo do que se vive, como se ele mesmo não estivesse implicado nessa – desimplicação pela qual apaga-se a própria possibilidade de memória. Nesse contexto, como compreender o que insiste e persiste como palavra, memória e hipótese de loucura no resto de linguagem SOHNAB?

Prossigo o inventário. Por cima de uma porta não sei onde havia um letreiro que me obrigava a um soletrar intrigado: SOHNAB. Aquilo parecia-me uma grafia cirílica. Alfabeto eslavo?

Cada vez que passava por lá com a Edite apontava-o sem mais nada e ela, já sem levantar os olhos, respondia SOHNAB. Então sim, eu conseguia ler e reconhecia a palavra.

SOHNAB. Era isso devia ser isso mas imediatamente revertia à forma inicial SOHNABSOHNABSOHNAB de tanto o estudar a sós e de o saber impossível o letreiro fez com que me interrogasse

sem exactidão de consciência é certo sem sobressalto

mas a interrogar-me

se não estaria a caminhar para a loucura.

Inacreditável. Eu, o Outro de mim, em viagem de passos perdidos e a interrogar-me se não estaria a caminhar para a loucura. E o caso é que, desconcertante ou não, a pergunta aconteceu. E para maior surpresa, não a esqueci. Loucura, caminho para a loucura, a questão chegou-me com uma insistência passageira mas no estado em que eu me encontrava o que seria para mim loucura? Como é que eu, impessoal e tão a esmo, me tinha lembrado de tal coisa a propósito do letreiro? (p. 50).

A exposição freudiana sobre a formação dos restos de linguagem na afasia associa a palavra ou expressão persistente ao momento de vivência da lesão: uma expressão que o aparelho de linguagem formava no momento em que pressentia a ameaça. Na descrição que Cardoso Pires faz do momento em que localiza o início de sua doença lemos:

A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente – e foi ali.

Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar a fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por conseqüência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objeto, do eu com o outro alguém ou do real com a visão que o abstrato contém (p. 26).

Sua escrita revela o caráter inaugural atribuído a esse momento (e foi ali; sim, foi ali; a fracção mais que secreta). E nesse exato momento encontramos a referência tanto ao conteúdo do que persiste como resto de linguagem como também à forma que ele adquire: o momento em que se reconhece a instalação da doença é descrito em relação a um lugar (casa de banho) e em relação a um instante (instante em que se está de frente para a própria imagem no espelho). Alcançamos assim uma “interpretação muito plausível” para o resto de linguagem: a palavra BANHOS está referida ao lugar em que o sujeito forma para si a representação da doença (nas palavras de Freud, pressentindo-a) e submetida ao espelhamento do instante em que o sujeito que olha sua imagem no espelho não pode mais fazer a passagem que vai da imagem para si mesmo, abandonando-se na imagem/outro (“frente com a minha imagem no espelho mas já desligada dela, me transferi para um outro”). Persiste, portanto, um resto de linguagem que reapresenta o momento marcado pelo sujeito como inaugural de seu adoecimento – o que não significa afirmar que nesse momento exato a lesão cerebral ocorre, mas apenas que, na narração desse sujeito, esse é o momento em que se reconhece o adoecimento sob a forma de uma transferência de si “para um Outro sem nome e sem memória” –, outro da imagem no espelho e que, sendo o outro do espelho, deverá habitar um mundo de palavras invertidas e espelhadas.Mas por que essa palavra resiste obstinadamente, ao contrário de todas as outras que desaparecem?

Ao lado de um sujeito que tudo apaga e que, nesse contínuo, não se angustia – “ouvir e perceber enquanto ouvia mas apagar prontamente (...) Ouvir e apagar logo-logo (...). Tudo sem angústia, como quem preenchesse o tempo numa serenidade terminal” (p. 28) – persiste alguém que guarda algo obsessivamente. Estaria aí a angústia? Freud indica em seu texto o interesse em associar a força dessas representações que persistem ao incremento de excitação interna vivido no momento de lesão ou de perigo. Já em Cardoso Pires, o caráter persecutor da palavra é associado à insistente interrogação sobre o caminho da loucura, como se em sua formação sintomática o autor revisitasse a história de Alice atravessando o espelho, passando para o mundo da loucura. Desse modo, a palavra especular, perdida no lugar do outro, não representa apenas o cenário do instante em que se dá o reconhecimento da doença, mas reapresenta a natureza do que naquele momento apresenta-se como perigo: a desrazão de estar no lugar do outro, de entregar sua palavra para que um outro a diga (o narrador, mesmo que sob a hipótese da loucura, encontra um lugar para si no outro).

Cardoso Pires por fim entrega em sua letra o afeto que se enlaça à hipótese da loucura espelhada em seu resto de linguagem:

pensando-a a esta distância, admito que essa perturbação se possa dever a um eco da minha identidade do passado: ao enfrentar aquele letreiro como uma provocação da leitura e da escrita era o ex-autor de livros que estremecia na cegueira em que tinha mergulhado e que tirava do fundo da sua razão perdida o esboço duma interrogação à loucura. Seria? (p. 51).

Através do enigmático SOHNAB um sujeito estremecido persiste.

Na experiência freudiana de perigo reconhecemos a presença de afeto de angústia e uma apresentação da linguagem sob a forma alucinada e angustiante, o pensamento aparecendo como fala de um outro: há linguagem e há afeto, mas tal linguagem é reduzida à linguagem de um outro. Seguindo a estrutura que Lacan descreve para a privação, na situação de perigo de vida vivida por Freud, o suposto objeto perdido (o simbólico como lugar da vida anímica) volta imediatamente sob a forma de imaginário – desse modo, a linguagem volta sob a forma da linguagem de um outro, portanto, alienada. É pela boca desse outro que o trauma concorrente à privação pode se inscrever sob a forma de uma adivinhação: é a esse outro que se entrega o poder de dizer/adivinhar um futuro que a ele se entrega. Lugar de saída da privação que se faz pelas mãos de um outro, ela será porta de entrada no simbólico na medida em que for possível ir até esse outro, e aí, nesse lugar estrangeiro, pegar de volta aquilo que nos pertence. Caminho percorrido por Cardoso Pires, mas tantas vezes interrompido na clínica das afasias7.

 

III) Do lugar angusto de retorno da palavra

Entre um momento vazio de afetos e de palavras, no qual o sujeito a tudo é alheio, e um momento no qual uma certa palavra guarda para um sujeito o lugar de um sofrimento anímico, de um desprazer que estremece e dá medo, Cardoso Pires oscila. A palavra obstinada, sob a forma do que se impõe desde um outro, planta-se no sujeito pelas raízes de um afeto que persiste, e no lugar onde ela resta, resta também a angústia.

O sujeito está agarrado a uma palavra, mesmo que sob a forma de uma palavra do outro (o “acabou contigo” gritado a Freud, o SOHNAB espelhado para Cardoso Pires). Há um retorno do simbólico sob a forma do imaginário, e nesse momento – sob a forma da angústia que impõe a manutenção de um laço, a insistência e a persistência de uma representação – o sujeito encontra sua angusta morada: estreita, mínima, tomada de empréstimo a um outro, mas mesmo assim morada. Morada a partir da qual ele pode se interrogar sobre o descaminho louco de um simbólico entregue aos lábios de um outro imaginário. Portanto, a narração de Cardoso Pires não ilustraria apenas a particularidade de um escritor que só poderia angustiar-se por meio das palavras, mesmo na situação em que é privado delas.

Do mesmo modo, sua afasia não nos ensinaria apenas sobre o desaparecimento da linguagem. Pelo contrário, ela exemplificaria a “sintaxe” de todo sujeito que só sobrevive nas palavras, mesmo quando a vida o priva delas e as recoloca na dependência do espaço estreito de um outro espelhado. Sobrevida estruturada em si mesma como angústia, pois embora nossa única morada, não poderemos senão habitar temporariamente cada um de seus (in)cômodos. A afasia poderia, então, nos auxiliar a compreender a precariedade de nosso exílio no simbólico na medida em que exporia de modo paradigmático o retorno do simbólico por meio do corpo espelhado do imaginário como resto da privação do real. Investigar a especificidade dessa angústia para a psicanálise é, portanto, momento de encontro com os lugares heterogêneos pelos quais desliza seu sujeito e sua palavra, e de reflexão sobre como a palavra composta na cena traumática já pode dizer sobre uma permissão ou impedimento de deslocamento entre eles.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Alessandra Caneppele
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E-mail: alessandra.caneppele@itelefonica.com.br

Recebido em: 25.02.2007
Versão revisada recebida em: 01.09.2007
Aprovado em: 03.09.2007

 

 

*Doutora em Epistemologia da Psicanálise; Psicanalista; Pós-Doutoranda (bolsa FAPESP) e Professora Colaboradora do Departamento de Lingüística (IEL-Unicamp).
1 A partir de agora referido apenas como Zur Auffassung.
2 Podemos conjecturar que esta dupla distinção não seria mera coincidência. Primeiramente porque o texto de 1891 foi dedicado a Breuer, com quem Freud nesse momento já compartilhava o atendimento às histéricas, e com quem publicaria mais tarde o texto dedicado a esse tema. Greenberg, em seu livro sobre a monografia de Freud sobre as afasias, lista alguns comentadores que reconheceram Zur Auffassung justamente como uma primeira tentativa de dar conta dos sintomas encontrados na clínica das histerias (Greenberg, 1997, p. 18-20). Não nos parece necessário acatar essa conclusão. Basta apenas apontar para o fato de que para Freud, nesse momento, histeria e afasia pareciam clínicas dignas de serem compreendidas a partir de princípios teóricos que não eram de naturezas distintas.
3 A constatação dos elementos que uma clínica psicanalítica das afasias poderia trazer à reflexão sobre um tema tão caro à psicanálise contemporânea corroboraria a importância de um movimento teórico que faça resistência à atual tomada dessa clínica pela chamada neuro-psicanálise – a qual, desde o lugar de investigadora de um saber sobre a “correlata cena anatômica da ação” (Kaplan-Solms e Solms, 2002, p. 62), não pode senão estar desvirtuada por princípio de toda aproximação clínica de um sujeito psicanalítico, e portanto, impossibilitada de produzir um saber que diga respeito a esse campo. Por outro lado, avançar uma reflexão teórica e clínica sobre o tema do trauma para a psicanálise a partir dos casos de lesões cerebrais poderia ser fundamental para o aprofundamento da posição epistemológica tomada por Hélène Oppenheim-Gluckman em sua abordagem psicanálitica dessa clínica (2006, p. 54-55) .
4 Se na temporalidade do a posteriori o passado encontra seu significado no segundo tempo do presente de uma outra significação, podendo comportar nesse duplo lugar o efeito de um trauma, já na clínica das afasias a adivinhação poderia ser associada a um outro deslocamento temporal do sujeito, também afim ao trauma. Em ambos os casos, o traumático deveria ser buscado não na vivência em si, mas em um efeito segundo de significação, que em cada um dos casos estaria voltado para um dos extremos da temporalidade: no primeiro caso, para o passado (resignificação do passado), no segundo, para o futuro (adivinhação do futuro). Então, a temporalidade traumática nas lesões físicas poderia desdobrar-se, no limite, em fechamento da dimensão do vir a ser; enquanto a dinâmica do a posteriori, afim ao trauma da castração, concordaria com um sujeito que constitui “seu passado reconstruindo-o em função de um vir a ser” (Roudinesco e Plon, 1997, p. 56). O tema do destino – tal como articulado por exemplo por Danielle Eleb (2004) a partir da leitura de Lacan do conceito aristotélico de tiquê como encontro com o real “que essencialmente é encontro faltoso” (Lacan, 1964, p. 57) – poderia indicar a natureza do que se presentificaria no encontro com o real da lesão para além da mera referência à suposta realidade de uma perda objetiva, reencontrando a discussão freudiana sobre a natureza da distinção entre luto e melancolia a partir do tema da temporalidade (Freud, 1917).
5 Pesquisas recentes, que investigam a afasia a partir de concepções lingüísticas sobre os diferentes níveis de elaboração da fala e que incluem na competência da língua uma estratégia de performance, concordam com a importância de se reconhecer nesses casos não apenas o déficit ou privação de certos níveis de elaboração da frase constituintes da língua, mas também de se atentar para o que retornaria dessa privação por uma ação estratégica do sujeito sobre a própria língua: “dire que le locuteur n´est pas indifférent à son aphasie – et les idées de choix, d’action en retour du déficit, impliquent une telle assertion -, c’est soutenir aussi que le discours qu’il tient ne reflète pas une privation qu’il subit, mais que cette privation l’amène à modifier la relation qu’il entretien aux normes de l’expression”(Forest, 2005, p. 147). Contudo, tais pesquisas, que concebem a ação do sujeito em resposta à privação como diversa de uma escolha intencional, parecem ainda distantes de ponderar clinicamente sobre os mecanismos desse retorno automático em cada afasia. Trata-se aqui, em nosso trabalho, de investigar se e como a psicanálise poderia abordar esse retorno do sujeito.
6 A teoria psicanalítica clássica sobre os traumas diferencia vivência com e sem lesão corporal: a lesão orgânica funcionaria como ponto de equilíbrio para a excitação presentificada na vivência, de modo que tal excitação se acomodaria em um cuidado dedicado à parte lesionada, não restando quantidades psíquicas livres que formariam um trauma psíquico. Mas, se as afasias concomitantes a lesões afetam a própria capacidade simbólica do sujeito, sua capacidade de propor uma ligação anímica para o incremento de excitação supostamente concomitante à vivência, logo, a lesão cerebral, embora dano orgânico, não poderia funcionar para o sujeito anímico como tal (ou seja, ela não poderia corresponder meramente a um incremento de investimento simbólico do cérebro lesionado). Para Ferenczi, em A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral (1993, p. 151-166), haveria, como nos casos de outras lesões orgânicas, um investimento no órgão lesado, mas sendo este o cérebro, esse a mais de investimento narcísico responderia pela regressão da própria capacidade simbólica. Trata-se, portanto, de investigar por meio dos restos de linguagem na afasia o que poderia ser esse retorno/deslocamento a um modo/lugar regressivo de funcionamento simbólico.
7 Os acompanhamentos clínicos psicanalíticos de sujeitos em estado de afasia corroboram a importância de compreender a especificidade de cada cena traumática e da estrutura do sujeito na composição da palavra do outro constituída como adivinhação e da relação dessa inscrição com os desdobramentos clínicos posteriores. Freqüentemente tal composição aparece atrelada a um enredo de culpa, punição ou castigo, e conseqüentemente, sob uma forma na qual o encontro com esse outro que comparece como a voz da adivinhação não seria capaz de enlaçar o sujeito em uma identificação pela qual ele poderia sair de um primeiro momento de silêncio ou repetição. Já na narração de Cardoso Pires, a cena se compõe como entrega ao outro, permitindo que o escritor encontre nessa palavra do outro um lugar para si – mesmo que esse lugar no outro seja percebido como encontro com a loucura. Trata-se, por intermédio dessa primeira distinção, de se começar a propor as bases de uma compreensão dos estados de afasia e seus prognósticos a partir de variáveis exclusivamente internas ao campo do sujeito psicanalítico, repetindo os passos que outrora Jakobson propôs para a Lingüística em relação à afasia (1995, p. 36).