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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008

 

RESENHAS

 

O Complexo de Édipo em questão

 

 

Vera Luiza Horta Warchavchik*

Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 

MIGUELEZ, N. B. S. de. Complexo de Édipo: novas psicopatologias, novas mulheres, novos homens. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. 181p. ISBN: 8573965789.

Complexo de Édipo: Novas Psicopatologias, Novas Mulheres, Novos Homens, livro de Nora Beatriz Susmanscky de Miguelez, é uma leitura imprescindível para todo psicanalista da atualidade. A questão que norteia o minucioso exame desse conceito nuclear da teoria psicanalítica é a indagação acerca da pertinência daquilo que se chama, muitas vezes apressadamente, de “psicopatologia contemporânea”, que seria diferenciada daquela descrita por Freud, e possivelmente não redutível aos mecanismos psíquicos descritos por ele há cerca de um século. Será que há hoje, de fato, novos sujeitos, experimentando sofrimentos inéditos, tornando obsoleto ou, na melhor das hipóteses, insuficiente, o instrumental teórico e prático da psicanálise “clássica”? Aqueles que defendem essa idéia nem sempre se dão conta de que isso implica necessariamente em revisar o conceito de complexo de Édipo freudiano, “fábrica de subjetivação sexuada” (p. 15) e ponto de precipitação das estruturas e suas modalidades psicopatológicas. Pois, em última instância, admitir novos quadros psicopatológicos (e não apenas novas manifestações sintomáticas), que se desenhariam para além-do-Édipo, implica em colocar em questão a metapsicologia freudiana e as vicisscitudes da pulsão que esta sustenta. É esse enfrentamento que Nora de Miguelez leva a cabo nessa pesquisa, em diálogo com psicanalistas, filósofos e outros pensadores da cultura que pensam a contemporaneidade dentro e fora do âmbito da clínica.

Enfrentar essa questão é urgente nesses tempos nos quais muitos psicanalistas, seduzidos pelo marketing psiquiátrico, importam desse campo “novas psicopatologias”, realizando “produtos híbridos da psiquiatria e da psicanálise” (p. 153), desconsiderando a descontinuidade lógica que há entre esses dois campos de saber. No afã de perceberem-se, e exibiremse, “atuais” – em uma adesão ingênua à lógica e ao tempo das ciências naturais –, muitos psicanalistas acabam por embaralhar “sintoma” e “psicopatologia”, distinção fundamental realizada por Freud ao fundar a psicanálise em oposição à medicina, à psicologia e à psiquiatria. Parece haver forte sedução pela lógica do “up-to-date”, junto ao temor infundado da obsolescência, gerando precipitações e inovações estéreis, que parecem desconhecer, ou ao menos menosprezar, o caráter essencial de pesquisa permanente que define a clínica psicanalítica cotidiana.

A pesquisa apresentada nesse texto acerca dos homens e mulheres contemporâneos e suas modalidades de sofrimento psíquico não se realiza sobre um sujeito abstrato. Nora de Miguelez pensa o sujeito inserido em sua realidade política, determinante último de suas construções culturais, estejam essas em consonância ou em resistência ao exercício de poder presente a cada momento histórico. Não há, portanto, a idéia de um sujeito transcendente ou a-histórico, evitando-se assim a contaminação da psicanálise pela metafísica. O complexo edípico vivido por esse sujeito concreto será então examinado em sua dimensão histórica como modalidade possível de subjetivação, tendo assim uma genealogia e uma pertinência historicamente dadas. Michel Foucault é assim a referência fundamental, embora não exclusiva, desta pesquisa.

A pesquisa enfrenta então a difícil tarefa de realizar a genealogia do conceito de complexo edípico, de modo a circunscrever sua pertinência histórica e avaliar sua potência para descrever o modo de subjetivação – e o modo de sofrer – na contemporaneidade. Essa genealogia se faz em duas vertentes. Na primeira, ela se refere à história da construção desse conceito bastante complexo no interior da obra freudiana, na qual se destacam dois sentidos: um sentido estrito, que se refere aos melindres do romance familiar, que sofreu inúmeras reformulações ao longo da teoria psicanalítica e que contém em sua formulação final a angústia de castração como idéia nuclear. E um sentido amplo, que se mantém inalterado ao longo de toda a teoria freudiana, que se refere à proibição do incesto. A segunda vertente da pesquisa genealógica se dirige para além da psicanálise, examinando o contexto histórico de seu surgimento, ou seja, os dispositivos de poder e a organização social vigentes na época de Freud, que possibilitaram fazer dos processos de subjetivação um novo campo de análise. Essa genealogia alargada revela a relação existente entre a proposta freudiana e a desarticulação do poder patriarcal – o declínio da supremacia masculina – que já se dava naquele momento e ainda se processa em nosso tempo. A morte de Deus, anunciada por Nietzsche, pode ser pensada como emblema das angústias, fantasias e impasses dos pacientes de Freud – e dele mesmo, fruto de seu tempo – que marcaram sua clínica e, conseqüentemente, seus modelos teóricos.

Duas questões interligadas passam então a ocupar o foco da pesquisa: qual a relação entre o nosso tempo histórico e o tempo de Freud?; e o complexo de Édipo freudiano nos dois sentidos, sendo histórico e não um universal, cai inteiramente por terra, uma vez terminado o processo de desconstrução do poder patriarcal? O modo de responder a essas duas questões implica em admitir, ou não, a presença de novas patologias e formas de subjetivação que se definiriam para além da conflitiva edípica – o que colocaria a psicanálise frente à tarefa de rever a sua metapsicologia.

Antes de responder a essas interrogações, a autora apresenta recortes do pensamento de psicanalistas franceses e brasileiros da atualidade, como Jean-Jacques Rassial, Charles Melman, Jean-Pierre Lebrun, Joel Birman, Jô Gondar, M.C. Antunez e T. Coelho dos Santos, que respondem de diferentes modos a essas questões. Esses autores foram selecionados por também valorizarem o complexo edípico na construção da subjetividade e adotarem uma perspectiva histórica, admitindo o declínio do patriarcado e seus efeitos no campo simbólico. Nora de Miguelez oferece então ao leitor uma interessante cartografia da psicanálise contemporânea, situando linhas de pensamento que respondem de modo semelhante a essas questões, e que têm por conseqüência admitir-se ou não a presença de novas patologias. Nessa cartografia encontramse autores que pensam a modernidade pela óptica da perda, na qual a queda do pai torna precária a imposição das interdições fundantes do sujeito, impossibilitando o ingresso pleno dos sujeitos no campo simbólico. Os sujeitos fracassariam no processo de neurotização, ficando suspensos a meio caminho na construção da subjetividade ou lançados à psicose e à perversão generalizada. Esses psicanalistas fariam da psicanálise uma força restauradora do pai, não admitindo outras possibilidades de subjetivação que não a patriarcal. Os pensadores brasileiros se mostram menos “apocalípticos” e saudosistas, segundo a autora, admitindo que novos poderes ocupam a cena abandonada pelo pai, transmitindo as interdições fundamentais da cultura. A desmontagem gradual do patriarcado teria provocado, no entanto, uma desarticulação da ordem simbólica, que hoje se mostraria insuficiente para amparar os sujeitos, que ficariam à mercê dos excessos pulsionais, dando origem às patologias não neuróticas. Desse modo, as novas psicopatologias resultariam ora da insuficiência do agente interditor – dando lugar a uma psicanálise retrógrada –, ora da insuficiência da ordem simbólica, possivelmente gerando uma psicanálise melancolizada.

Em meio a tudo isso, um destaque interessante é dado ao último Lacan e a Miller, que fazem do complexo edipiano um modo de subjetivação, entre outros, com a proposta da clínica dos nós borromeanos. A rápida passagem por essa perspectiva, mesmo que justificada por não atender ao pré-requisito da pesquisa – a consideração do sujeito concreto em sua realidade histórica – dá a impressão de não se explorar suficientemente todo o potencial de questionamento que esta proposição radical traz para o tema em questão.

Por fim, a autora se insere em um lugar singular nessa cartografia, em oposição às propostas descritas acima, e em certa sintonia com o pensamento de Michel Tort. Nora de Miguelez concorda com a linha de pensamento que apregoa que novos poderes vieram para compor ou substituir o pai em crise na função da transmissão das interdições fundamentais, como a proibição do incesto, que diz respeito ao complexo de Édipo em sentido amplo. Mas, diferentemente dos autores citados acima, não há, para ela, déficit na ordem simbólica. Apoiando-se nas propostas de Zizek, Deleuze, Hardt, além de Agamben e Foucault, ela considera que hoje nos encontramos mais profundamente colonizados pela cultura do que na sociedade patriarcal, atravessados agora por uma tessitura ideológica de normas disseminadas horizontalmente. Essas normas não têm o caráter interditório das leis na sociedade patriarcal; elas são “fomentos” para sermos e agirmos de modos determinados, que vivenciamos erroneamente como medidas de proteção e zelo por nosso bem-estar. A distribuição das “senhas de ingresso” (p. 115) na ordem simbólica ficaria garantida por essa rede normativa transmitida pelos próprios sujeitos, junto à escola, à mídia, à medicina e a outras instituições da contemporaneidade.

Para a autora, além dessa normativa horizontalizada, própria da sociedade pós-moderna em constituição, persistem hoje enclaves verticalizados, junto a outros resquícios da sociedade patriarcal, que nos aproximam do tempo de Freud e que mantêm a operatividade da “fábrica edipiana” no processo de subjetivação atual. Um importante fator que contribui para isso resulta do desnível irredutível que define a relação entre o adulto cuidador e a cria humana, que ficaria perdida em seu desamparo caso não encontrasse outro em posição assimétrica, logo estabelecendo com ele ligações libidinais, renúncias e identificações. Esses dois fatores (a normativa e os enclaves verticalizados) permitem à autora concluir que nosso tempo ainda produz “sujeitos predominantemente neuróticos, edipianos, nos quais funciona o recalque, o inconsciente, o desejo, a fantasia, e que estabelecem laços libidinais com seus semelhantes (...) não se trata(ndo) de um universo de predomínio de perversos, psicóticos, borderline ou de seres desprovidos de capacidade de simbolização” (p. 131). As manifestações de mal-estar psíquico na atualidade podem então ser consideradas novas formas sintomáticas das neuroses clássicas, e não novas modalidades psicopatológicas. Um forte argumento que corrobora essa tese é o de que as novas neuroses traumáticas tendem a se organizar em perfis identificáveis, gerando estilos grupais, “indicativo da possibilidade de que essas patologias não sejam recursos individuais, fora da simbolização, para dar vazão ao sofrimento, e sim, talvez, conjuntos sintomáticos que refletem ‘modas’ ou até padrões dependentes de injunções culturais. Do pânico à anorexia, do vício às mais variadas compulsões consumistas, as ‘novas doenças’ podem ser testemunhas da sujeição superegóica aos mandatos atuais da cultura”(p. 117). Esses quadros se propagariam por contágio histérico, neurose possivelmente prevalente em nosso tempo, em que o poder não mais se exerce na forma da proibição, e sim na forma do incentivo, ou seja, por meio da sedução.

Se a interlocução da autora com outros campos de saber, como a sociologia, a antropologia, a filosofia e mesmo o direito, traz aportes importantes para essa pesquisa e para a psicanálise como um todo, nem sempre se entende no texto como esses fatores efetivamente se articulam. Diferentes níveis de argumentação por vezes parecem se sobrepor, dando a impressão de que aquilo que é logicamente necessário para a sustentação do construto teórico psicanalítico tem a mesma valência que fenômenos que se mantêm apenas em função da inércia da História, ou o caráter estruturalmente retrógrado do superego. Tal parece ser o caso do conceito da angústia de castração. Esse conceito – que constitui o núcleo do complexo de Édipo em sentido estrito – seria, conforme a autora, “uma estratégia especificamente patriarcal a serviço da proibição do incesto” (p. 132). Seria um resto falocêntrico que só se faria presente na atualidade como resquício da sociedade patriarcal. É de se supor que haverá um tempo em que esse fator não conte mais no processo de subjetivação. Coloca-se então a questão: uma vez sepultado o patriarcado, pode-se dispensar esse conceito? Como explicar o processo de sexuação dos homens e das mulheres, sem a presença deste eixo central, que define o lugar de cada gênero? A heterossexualidade, não mais necessária para a preservação da espécie, estaria em vias de extinção? Sem essa angústia, haverá como, e por que, se manter a proibição do incesto?

Uma questão correlata diz respeito à maternidade: para Nora de Miguelez, o deslizamento pênis-bebê, dado como natural por Freud, já encontra hoje outras derivações, podendo não redundar no desejo por um filho (mesmo que hoje isso seja vivido de modo conflituoso pelos sujeitos ainda tomados pelos restos da lógica fálica). Se esse é um fato incontestável, como pensar, em outras bases, o desejo da mulher por um bebê? O que garantirá seu intenso investimento narcísico nele? O que a moverá a sonhá-lo? Haverá subjetivação neurótica sem esse excesso narcísico? Se essas considerações têm algum sentido, percebemos que ao se considerar obsoleto ou puramente ideológico um conceito do construto teórico, corre-se o risco de colocar em perigo sua coerência interna, desestabilizando-a. A proposta dessa pesquisa, sem duvida louvável, de evitar a armadilha dos universais e retirar a psicanálise de certo “piques” a-histórico, talvez flerte com esse perigo.

Inúmeras questões como estas são suscitadas no leitor, atestando a extensão e a profundidade dessa pesquisa, e sua potência em levantar problemas e desacomodar certezas. Trata-se de uma leitura fundamental para impulsionar o debate e ajudar a psicanálise a livrar-se de seus entraves ideológicos, possibilitando uma clínica mais precisa e eficaz, única forma de fazer frente ao totalitarismo das neurociências, com seu modo de pensar a-histórico e dessubjetivante. O complexo de Édipo – conceito nuclear da psicanálise – é posto a trabalhar, de modo a evitar a sua reificação, mas também para defender a especificidade do campo psicanalítico, barrando importações comodistas e ingênuas de outras áreas do saber, que diluem a psicanálise e comprometem sua eficácia clínica.

Ao longo de todo o texto, Nora de Miguelez se sustenta no fio da navalha, não se deixando seduzir nem pela metafísica nem pelo naturalismo, que criam dogmatismos que enrijecem a teoria psicanalítica. Ela exige que os psicanalistas se impliquem com sua realidade histórica, e pensem a psicanálise inserida em seu contexto histórico, respondendo às angústias dos sujeitos concretos, submetidos aos dispositivos do poder que definem seu campo de existência. Tratase, assim, de uma leitura importante para os clínicos da atualidade, cujas linhas gerais são apenas apontadas por esta apresentação.

 

 

Endereço para correspondência
Vera Luiza Horta Warchavchik
E-mail: veraw@uol.com.br

 

 

*Filósofa e Psicanalista; Membro Docente e Supervisora do Departamento Formação em Psicanálise (Instituto Sedes Sapientiae).