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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.23 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

A experiência do aprendizado na observação da relação mãe-bebê-família

 

The experience of learning in the observation of mother-baby-family relation

 

 

Daniel Nardini Queiroz Pergher I; Carmén Lúcia Cardoso II

I Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – (FFCLRP/USP)
II Programa de Pós-graduação em Psicologia (FFCLRP/USP)

Endereço para correspodência

 

 


RESUMO

Este artigo busca compreender o desenvolvimento do papel do observador analisando recortes das sessões de observação da relação mãe-bebê-família. Foram realizadas observações semanais da relação mãe-bebê durante um ano e seis meses, segundo o método proposto por Esther Bick. Todas as observações foram transcritas e se constituem o corpus de análise desta investigação, a partir do referencial psicanalítico. Na análise, destacamos algumas das transformações no papel de observador. Inicialmente marcado por uma postura mais crítica e intervencionista em relação à família, caminhando, com a ajuda das supervisões, para uma postura mais reflexiva e curiosa. Ampliando a capacidade de pensar as experiências vividas, o que favoreceu o surgimento de um novo contato com a família.

Palavras-chave: Observação; Relação mãe-bebê; Família, Supervisão; Psicanálise.


ABSTRACT

The aim of this article is to follow the development of the observer's role, through the analysis of parts of the observing sessions of the mother-baby-family's relationship. Mother-baby observations were done once a week during one and a half year, according to Esther Bick method. All the observations were transcribed right after the end of the sessions and they constitute the bulk of main analyses of this investigation, based on psychoanalysis. The analyses highlight some transformations on the observer's role. Marked by a more critical and interventionist behavior in relation to the family, heading towards reflection and curiosity, aided by supervisions, implied, as we realizes, the capacity to reflect on lived life-experiences that favored the emergence of a new contact with the family.

Keywords: Observation; Mother baby relationship; Family; Supervision; Psychoanalysis.


 

 

"a resposta é a doença que mata a curiosidade" (Bion).

 

O Método de Observação de Bebê, descrito pela psicanalista Esther Bick, faz parte do treinamento do curso de psicoterapeutas infantis da clínica Tavistock, em Londres, desde 1948, ano do início do curso (Bick, 1964).

O objetivo do treinamento é o desenvolvimento de uma observação minuciosa que pretende abarcar não apenas uma atitude manifesta do que é observado, mas as reações próprias do observador para uma possível compreensão psicodinâmica da situação vivenciada.

A técnica de observação implica em visitar semanalmente um bebê e sua família durante uma hora. Este encontro tem como objetivo promover o contato entre o observador, o bebê e a família. Depois da observação faz-se necessário anotar o maior número de detalhes possível do que foi observado e vivenciado na relação com o bebê e com a família durante o encontro. Os registros das observações desempenham um papel muito importante para o desenvolvimento do observador, pois é por meio deles que se pode discutir as relações emergentes de seus contatos com o bebê e a família nos seminários grupais.

A experiência das observações torna-se importante, segundo Bick (1964), porque o estudante, no contato prolongado com um bebê e sua família, pode relacionar seu aprendizado às situações clínicas posteriores e com teoria aprendida. Vale ressaltar toda complexidade e transformações ao longo do tempo envolvidas nesse processo de aprendizagem.

Neste método de observação, o observador se depara com o constante desafio de observar as relações familiares sem um lugar ou papel previamente definido. Desta forma, é possível que nos primeiros contatos com a família, o observador atue em diferentes papéis, pois está sendo inserido no núcleo de uma dinâmica familiar no qual não há reservado previamente um lugar para ele (Sandri, 1997).

Diante deste impacto emocional, Mélega (1987) afirma que é comum o observador apresentar dificuldades para encontrar o papel de observador, uma vez que necessita enfrentar o desconhecido sem uma função interventiva definida, e ainda lidar com as emoções despertadas no contato com a mãe e o bebê. A maior dificuldade, segundo a autora, é estar sozinho no campo emocional onde se dá a relação mãe-bebê tendo que contar consigo mesmo, com sua própria mente o tempo todo. Segundo Sandri,

seu papel poderia ser definido como o de " um portador" encarregado de uma tarefa de grande intensidade emocional: inicialmente, assim como uma nova mãe, sentir-se-á muitas vezes desarmado, sem identidade precisa, tentando encontrar seu lugar, desprovido, às vezes, de sua capacidade de compreensão (1997, p. 63).

Esta falta de compreensão, aparentemente sem finalidade, é ferramenta fundamental para o desenvolvimento da atividade psicanalítica. O próprio Freud definia uma conduta psicanalítica em casos bem sucedidos da seguinte maneira:

os casos mais bem sucedidos são aqueles em que se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta neles, e sempre se enfrenta com liberalidade, sem quaisquer pressuposições. A conduta correta para um analista reside em oscilar, de acordo com a necessidade, de uma atitude mental para outra, em evitar especulações ou meditações sobre os casos (1912, p.128).

A observação é mais um instrumento que auxilia o exercício da atividade como terapeuta, pois ajuda a desenvolver capacidades de tolerância, compreensão e contenção de situações instáveis e dinâmicas.

O grupo de supervisão funciona como um continente para o observador. Nos seminários semanais, o aluno tem oportunidade de ser observado por seus colegas e supervisores, acompanhando seu desenvolvimento e de outros observadores nas relações com as famílias. Desta maneira é possível criar uma nova rede de significados para suas vivências.

A função continente do grupo para com o observador é semelhante à função do pai que sustenta a mãe no cuidado do bebê. O grupo assume uma posição de terceiro, que permite conter o impacto emocional da situação de observação (Sandri, 1997). Desta forma, os registros e os seminários favorecem um olhar mais claro do contexto em que o observador se encontra, possibilitando-lhe compreender qual é o seu papel nessa família, e participar da situação emocional, sem se ver obrigado a satisfazer às expectativas dos pais e do bebê (Mélega, 1987).

Compreende-se, assim, que as condutas do observador não são passivas. São condutas com forte mobilização afetiva. As descrições, esclarecimentos, assinalamentos, perguntas e interpelações que o observador geralmente realiza permitem que mãe-bebê-família compartilhem com esses conflitos e sentimentos inconscientes, fontes de dor, frustração e perturbação da relação. O observador assume o significativo papel de proporcionar o espaço para que os dramas de todos sejam externalizados (Caron, 1997).

O objetivo deste trabalho é compreender o desenvolvimento do papel do observador através da análise de recortes das sessões de observação da relação mãe-bebê-família.

Estas observações foram realizadas semanalmente durante um ano e meio na casa de uma família na qual residiam avó (Maria), mãe (Claudia) e bebê (Maria, mesmo nome da avó). O primeiro contato foi feito pelo telefone com a avó, e posteriormente com a mãe, que aceitou a proposta de ser observada com sua bebê, e assim iniciaram-se as observações. Nesta época a bebê tinha apenas 1 mês e 25 dias.

Os encontros foram realizados semanalmente e quase não tiveram a presença da mãe na casa. Apesar de marcar os encontros e ter se disponibilizado a participar, dizia estar sempre sobrecarregada com o trabalho, mas estimulava a realização das observações, mesmo que ela não estivesse presente.

Ainda que racionalmente justificada, esta falta de disponibilidade da mãe teve influências sobre minha postura de observador, pois nas primeiras observações era difícil aceitar a ausência da mãe, o que me deixava sempre insatisfeito de estar observando a bebê apenas na presença da avó ou da empregada. Em muitos momentos, fiquei a sós com a bebê, o que me fazia ficar sem direção e sentir que o objetivo de observar a relação mãe-bebê estava se perdendo.

Logo na primeira observação o encontro com a bebê se deu de uma forma intensa, do ponto de vista emocional. A mãe entregou a bebê em meus braços:

Senti um súbito medo, pois não lembrava da última vez que tinha segurado um bebê no colo. A bebê se remexia de um lado para outro ansiosamente e pensei até em devolvê-la para a mãe. A avó, percebendo sua ansiedade, colocou uma chupeta em sua boca, esta caiu e tomei a atitude de colocá-la de volta. Ela foi se acalmando e eu fui balançando-a confortavelmente. Aos poucos fui me acalmando também. Eu me concentrava na tarefa de fazer a bebê não se sentir mal (1 mês e 25 dias).

Percebo em meu depoimento que me concentrava na tarefa de fazer a "bebê não se sentir mal". Neste contexto, aparecia a necessidade de cuidar e ajudar para além do observar, assumindo naquele primeiro momento o papel de cuidador.

Na seqüência da observação, a mãe atendeu vários telefonemas referentes a seu trabalho.

Enquanto a mãe falava ao telefone eu ficava atento na bebê, e neste momento reparei na sua respiração, enquanto ela dormia. Era uma respiração tranqüila e calma; às vezes ela se mexia e parecia querer pegar alguma coisa. Neste momento a chupeta caiu da sua boca, eu fiquei ansioso e avisei a mãe que a chupeta havia caído, ela fez sinal com mão que não era necessário pegar e colocar de novo (1 mês e 25 dias).

Inicialmente, para mim, era muito difícil observar, visto que estava permeado por preocupações, projeções e atuava dispensando cuidados à bebê. Assim, havia pouca disponibilidade interna para observar a bebê naquele momento.

No final da primeira observação, a mãe relatou que a gravidez fora conturbada, separou-se do namorado uma semana depois que a bebê nasceu. Terminou a observação dizendo que a minha presença seria importante para " detectar possíveis anomalias". Acrescentou ainda que estava sendo ajudada, pois "se eu notasse alguma desordem ela poderia tratar bem cedo".

Penso que estes relatos traziam-me a fantasia de uma bebê impotente que passou por momentos difíceis: gravidez conturbada e ausência de pai. Formava-se a fantasia de uma bebê que precisava ser cuidada por um terceiro, e que pouco adiantaria ficar observando.

Na ausência da mãe, a avó era quem participava das observações. Ela via como problemática a ausência da mãe, dizendo que esta não comparecia às observações, chegava muito tarde em casa e quase nem ficava com a filha, deixando todos os encargos dos cuidados para ela (avó) e para a empregada.

Diante dessa dinâmica, passei a entrar em contato com a bebê e sua família. Logo na primeira observação me deparei com a fantasia de uma bebê desprotegida, sem a figura do terceiro (pai), e incorporei o papel de um observador que poderia, por ser da área da psicologia, acompanhá-la para detectar possíveis dificuldades e desvios em seu desenvolvimento; nesse primeiro momento não foi possível conter as emoções contratransferenciais nem pensar sobre elas, atuando-as no espaço familiar, aspecto este que será melhor explicitado na continuidade deste relato.

Nas observações seguintes, a avó passava a requisitar, em minha presença, respostas sobre cuidados em relação à alimentação, sobre problemas em um possível atraso no desenvolvimento da bebê, se a cabeça da criança era normal, entre outras: "durante a amamentação, Maria (avó) me perguntou se o relevo na cabeça da Maria (bebê) não era nenhum problema. Cheguei perto, toquei, e senti o formato da cabeça da bebê dizendo que achava normal" (2 meses e 1 dia).

Nesses primeiros momentos eu reagia com respostas prontas, tentando aliviar o mal-estar da avó, que também era meu, e de nosso desconhecimento perante aquela situação. Farias e Tucherman (1988) apontam que os observadores, principalmente nos primeiros meses de observação, diante das ansiedades do desconhecido, tentam preencher os vazios com respostas baseadas em idéias pré-concebidas e conclusões precipitadas. Não conseguem lidar com o não-saber, com o fato de que não há regras de como agir. O observador tem dificuldade, no início, para manter uma distância necessária para observar as relações que se estabelecem no ambiente mãe-bebê-família. Em geral sente-se inundado pelas identificações projetivas do meio, reagindo de forma não pensada.

Era desta forma que eu podia me defender daqueles primeiros contatos com a família. "Notei que a bebê estava um pouco gordinha, comparado com a semana passada, e também com algumas manchinhas vermelhas e um pouco pálida. Nada muito estranho estar pálida, pois tinha acabado de tomar vacina na perna" (2 meses e 1 dia).

Meu olhar ficava voltado às preocupações manifestadas pela avó, direcionando minha atenção aos aspectos físicos da bebê, e respondendo ao desejo de detectar possíveis anomalias. Buscava poder aliviar as angústias que a avó vinha sentindo em relação ao nascimento de sua neta. Invadido por essas projeções, cheguei até a buscar por manuais de pediatria, para entender mais sobre bebês, e talvez poder intervir de maneira mais científica.

Bion descreve que "estamos sob uma pressão constante para dizer algo, para admitir que somos doutores ou psicanalistas ou assistentes sociais; para fornecer alguma caixa na qual possamos colocar algo completo, como um rótulo" (1992, p. 73).

Assumia, assim, um lugar na casa de alguém que poderia intervir naquela situação, prevenindo problemas. Nestes primeiros encontros eu satisfazia as expectativas da mãe e também da avó, que me idealizavam como alguém que detinha as respostas para as dificuldades enfrentadas.

A avó criticava a mãe por sua ausência e afirmava que não era um bom momento para o nascimento daquela bebê, pois a mãe nunca tinha hora para chegar, o pai em nada ajudava, e por isso achava que a bebê estava muito ansiosa; e relatava suas próprias dificuldades para cuidar da bebê. "Depois de terminar a amamentação, a avó colocou a bebê em algumas posições para ela arrotar, dizendo que tinha perdido a prática, pois fazia trinta e um anos que não tinha filhos. Contou que não gostava de trocá-la, pois sempre fazia mal feito" (2 meses e 1 dia).

Esses contatos iniciais ajudaram na manutenção da fantasia inconsciente de que a bebê era frágil, e nem a mãe nem a avó correspondiam aos cuidados idealizados por mim. Estas pré-concepções impossibilitavam que eu pudesse olhar para a bebê, mantendo-me frustrado por não ter a mãe da bebê presente nas observações, e por observar uma avó que estava insegura realizando os cuidados maternos.

Na décima quarta observação tive oportunidade de observar a mãe amamentando a bebê:

Maria (bebê) mamava com muita voracidade, respirava forte e dava goles velozes; por vezes chegou até a perder o fôlego. A mãe pediu para uma amiga – que estava na casa durante a observação – pegar uma caneta e sua agenda porque estava esperando uma ligação. O telefone tocou, Claudia não interrompeu a mamada e fez as duas tarefas juntas. A bebê parecia incomodada, pois por duas vezes agitou os braços acertando o telefone, e em alguns momentos parecia querer interromper a mamada, mas Claudia estava desatenta à bebê; atenta à ligação, alimentava-a desordenadamente (5 meses e 1 dia).

É fato que esta amamentação ficou aquém de meus desejos, pois gostaria de ver uma mãe atenta e uma bebê que se tranqüilizasse no colo da mãe para mamar. Ela fez como pôde, mas isso eu só iria reconhecer meses depois, e a transcrição denota o tom de crítica daquele momento de observação.

Eu assumia uma posição crítica em relação à mãe, que segundo Mélega (1987), pode ser entendida pelo uso de um modelo idealizado mãe-bebê por parte do observador ao se confrontar com sua nova experiência, o que o leva a se identificar com aspectos de descontentamento do bebê.

Meu papel de observador passava, portanto, a ficar comprometido desde os primórdios do contato com a família, na qual eu assumia vários papéis – como por exemplo, cuidador da bebê, conselheiro e terapeuta –, o que dificultava a compreensão da dinâmica familiar, ficando impossibilitado de observar a bebê, pois estava pressionado a solucionar problemas daquela família.

Fiquei a sós com a bebê. A chupeta caiu e ela ficou se mexendo de um lado para o outro. De repente começou a vomitar; preocupado, coloquei a mão sobre sua cabeça, virando-a, pois a bebê estava deitada de barriga para cima, e ao colocar a mão, ela parou de vomitar. Levantei preocupado e pensei em chamar alguém, mas logo vi que a bebê estava bem e que o susto maior tinha sido meu (2 meses e 14 dias).

Segundo Farias e Tucherman, "raramente ocorrem situações em que a ação do observador é necessária. Em geral, percebemos interferências que atendem mais à necessidade do observador do que à da mãe ou do bebê" (1988, p. 600).

Assim, era possível começar a notar que alguns de meus sentimentos amplificavam a observação e não correspondiam ao que se passava naquela situação. Parecia assustado, cumprindo a função de uma mãe que está demasiadamente preocupada e ansiosa com a bebê, talvez por acreditar que a bebê era frágil e não resistiria sem o auxílio de um cuidador.

Com a ajuda das supervisões foi possível perceber alguns papéis que eu vinha exercendo dentro daquela dinâmica familiar; por meio do pensar, da reflexão, do não-saber pude perceber minhas motivações e desejos, auxiliando-me a encontrar o lugar de observador, transformando minhas pré-concepções e atuações.

Nesse momento de meu desenvolvimento pude compreender a importância do que Bion chamou de capacidade negativa (1992), a importância de tolerar as incertezas sem uma tentativa ansiosa de alcançar o fato e a razão. O que só é possível por meio de uma abstenção da memória, do desejo e da necessidade de compreensão.

Na vigésima observação a avó continuava a se queixar da falta de desenvolvimento de sua neta, mas eu já não tentava apenas aliviar o sofrimento com respostas prontas, podia pensar algo sobre a bebê de uma forma um pouco diferente.

A avó me disse que ela está com sete meses e não engatinha, apenas consegue ficar sentada. Colocou-a sentada para me mostrar, e comentou sobre uma criança de seis meses que já engatinha. Eu disse que ela ainda não tinha sete meses e que ela podia pensar que ser precoce, às vezes, também pode ser uma dificuldade, coisas de uma bebê que precisa se virar muito sozinha; ela me respondeu que ainda não havia pensado nisso (6 meses e 25 dias).

Ao dizer que ainda não havia pensando sobre isso, a avó se depara com o novo, algo que ainda não havia refletido diante de sua preocupação; surgia assim a possibilidade de um novo conhecimento sobre sua neta.

Era possível se desvencilhar de algumas sensações que o mergulho nas projeções me provocava, e conseguia aos pouco pensar sobre o que acontecia – como por exemplo, em certos momentos em que eu me deparava com intensas angústias da bebê e passava a tentar distraí-la com algum brinquedinho ou gesto. "Neste momento me toquei que eu estava mergulhado em um outro papel que não era de observador. Parei de descontrair a bebê e passei a observá-la. A bebê começou a chorar muito e Maria (avó) resolveu ir preparar a mamadeira" (6 meses e 25 dias).

Percebi minha necessidade de ajudar e pude contê-la, permitindo que a situação ficasse mais transparente e aparecesse um choro que pedia algum cuidado. Quando o choro apareceu, a avó teve que despender seus cuidados indo preparar a mamadeira da bebê. Assim, os papéis podiam ficar mais organizados, menos perdidos e confusos na situação observada. Na continuação do relato, a avó traz a mamadeira e começa a amamentá-la.

A mamada foi muito voraz, a bebê nem respirava, e tossia, engasgando com o leite. Por vezes sorria, parecia querer brincar ao mesmo tempo em que mamava, não mamou nem a metade, ameaçava chorar enquanto bebia e batia muito forte contra a mamadeira fazendo espirrar leite por todos os lados (6 meses e 25 dias).

Com minha mente mais livre para pensar, e menos invadida pelas projeções, era possível captar pela observação situações íntimas de fortes reações emocionais manifestadas pela bebê, como esta descrita.

Em um outro momento de sofrimento da bebê, ao conter minhas emoções sem atuá-las, imediatamente trouxe à tona algo inesperado, surgia em meu olhar uma bebê que eu achava que conhecia, mas que nascia de uma forma extremamente surpreendente.

A bebê começou a ficar agitada e ameaçou chorar. Pensei que não devia mais brincar com ela, pois eu deveria observá-la; se ela estivesse sofrendo, não era eu que teria que amenizar o sofrimento dela. Contra minhas expectativas, ela ameaçou chorar e logo em seguida ficou tranqüila (7 meses e 2 dias).

Percebi que a fragilidade da bebê estava baseada em minhas pré-concepções, que encontraram ressonância naquela família; e não precisando intervir, pude ficar disponível para conhecer os potenciais da bebê.

Por meio do desenvolvimento da capacidade de pensar a situação, foi possível para mim conter melhor meus desejos, perceber meus pré-conceitos, aceitar a diferença e tolerar a impotência frente a situações que não são possíveis de serem mudadas. Farias e Tucherman (1988) afirmam que a experiência de observação auxilia o aluno a tolerar e poder aceitar a diferença, o estilo próprio de funcionamento de cada pessoa.

Assim, aceitando melhor meu limite dentro daquela casa, era possível observar como a avó tentava apaziguar as ansiedades e angústias da bebê, permitindo-me conhecer alguém que não era apenas frágil, como ela mesma se julgava nas primeiras observações:

A bebê ameaçava chorar no carrinho; realmente parecia estar sentindo dor. A avó pegou-a e tentou acolhê-la. Parecia fazer um grande esforço para tentar conter as angústias da neném, mas acabava se cansando. Nem a chupeta ela aceitava. Colocou a mão na cabeça dela dizendo que era o ouvido que doía. Depois colocou a mão na testa e verificou sua temperatura. Resolveu buscar um termômetro (7 meses e 15 dias).

Conseguindo pensar sobre meus modelos e desejos, era possível enxergar o potencial "materno" da avó e abrir espaço para a observação. Diminuindo a necessidade de intervir sobre a dinâmica familiar, passava assim a lidar melhor com minhas idealizações.

A partir de uma posição menos crítica, formava-se uma inesperada configuração observador-avó-bebê. Nascia para mim uma nova possibilidade de cuidado, diferente do idealizado, ou de minhas pré-concepções, tornando possível reconhecer o potencial cuidador da avó.

Ao acolher as emoções que antes não podiam ser nomeadas através da revêrie (Bion, 1991), e poder circular da posição esquizo-paranóide para a posição depressiva, era possível viver uma experiência emocional com menos expectativas e vontades de cura, e mais curiosidade.

Os momentos de encontro com a dupla avó-bebê foram ficando cada vez mais constantes. Na vigésima sexta observação já era possível notar as nuanças da relação dessa bebê com a avó e o mundo:

Passei a observar a bebê sendo alimentada pela avó, ela comia tranqüilamente, mesmo estando em cima de um andador mexia-se muito pouco. Às vezes, com a boca cheia de comida ela olhava para mim, e balançava as pernas, ou ficava assistindo televisão enquanto comia. A avó achou que era muita comida, e resolveu não dar tudo; em seguida, foi buscar água para a bebê e esta tomou na mamadeira. Começou a balançar muito a mamadeira, respingando água no carrinho, depois mordeu o lado oposto da mamadeira. Maria (avó) assistia televisão, mas quando viu esta cena tirou imediatamente a água da bebê e colocou a mamadeira em cima do sofá. A bebê chorava resmungando pela volta da mamadeira, mas Maria (avó) disse que se ela quisesse mesmo teria de vir pegar (8 meses e 9 dias).

Nesse momento pude estar junto da díade e acompanhando o desenvolvimento da bebê; o encontro com o mundo através dos gestos, de suas mordidas e de suas necessidades. Minha postura discreta, atenta e acolhedora parece ter contribuído para a interação entre a avó e a bebê.

O discurso da avó não era mais de uma bebê que estava sem pai nem mãe, mas de alguém que era capaz de receber cuidados e buscá-los a sua maneira. A avó também podia observar a bebê e dosar a comida, criar espaços para que ela pudesse crescer e desenvolver sua autonomia. Ela parecia descobrir o prazer de brincar com a neta. "Avó sentou com a bebê no colo que estava muito calma, acompanhando a situação com os dois olhos. A avó escondia-se da neta, que dava risada sempre que a avó aparecia de novo"(8 meses e 9 dias).

Ao mesmo tempo, distanciava a mamadeira de seu alcance e estimulava a criança a procurar por novos recursos. Mas, atenta, a avó não deixava de proporcionar o conforto necessário à criança.

A avó passou, com a presença do observador, a se utilizar do momento de observação também para observar sua neta, e foi gradativamente adquirindo autonomia nos cuidados com ela. Já não precisava que alguém respondesse suas dúvidas sobre os possíveis problemas com a bebê. "A avó dizia que ela não podia engatinhar no chão, pois o cachorro mordia, que isso era uma pena, porque ela tinha dificuldade para engatinhar e se ela utilizasse o chão ficaria bem mais fácil"(8 meses e 16 dias).

Minha presença constante e continente possibilitava que a observação pudesse ser um momento para a avó partilhar os cuidados com a neta. Eu podia perceber que esse tempo junto tinha repercussões para as duas: "a avó não sentia tanto o peso de cuidar da neta, e a bebê comunicava suas necessidades para ela. Avó disse que ela ainda não andava, mas que ela gostava de deixá-la tentar andar no chão frio. Depois, com uma expressão mais relaxada no rosto, sorriu e disse: ‘quer saber?'. E colocou a bebê no chão tentando fazê-la ficar de pé. Mas a bebê saiu engatinhando e resmungando algumas palavras" (11 meses e 9 dias).

E sob a observação do estudante com quem fez um vínculo, beneficiando-se de sua presença, compartilhando suas emoções e angústias, conseguiu soltar a criança para que ela tivesse suas próprias experiências. Diante de uma postura facilitadora do observador, a avó pôde arriscar novos caminhos frente à situação.

A formação de uma atitude psicanalítica, por meio de nosso desenvolvimento na análise pessoal e experiências como a observação de bebês, nos dá a possibilidade – por meio de intensas vivências emocionais – de suportar e enfrentar os sofrimentos na medida em podemos esperar uma saída não pensada, sobreviver a aspectos que não podem ser digeridos momentaneamente, que surgem ao nosso olhar sempre da mesma maneira, mas que sob o olhar do outro – seja de nosso analista ou das supervisões ou dos encontros – podem adquirir uma nova continência de um olhar que tolera e transforma essas toxidades. Algumas relações humanas podem fazer surgir um sonho novo, uma história nova, um cuidado esquecido/reprimido em algum lugar da mente.

A avó podia criar saídas por intermédio do que observava, do que aprendia com a experiência – é importante assinalar que a conquista do espaço de observação foi acontecendo de forma gradual. Alguns momentos continuavam a mobilizar meu lado cuidador/materno, e assim, surgia a vontade de segurar a bebê e cuidar dela; e quando esses momentos não podiam ser pensados, passavam a ser atuados. Mas o cuidado por intermédio de meu olhar já não tinha tanto furor crítico do certo e do errado. Havia um cuidado de quem olha, espera, aguarda o momento para que alguma transformação possa vir à tona.

Essas atuações não necessariamente me afastavam da família; as atuações também foram uma forma de compreender o ambiente. Sem as primeiras atuações talvez jamais pudesse perceber e pensar naquelas pessoas. Mas quando essas atuações puderam ser pensadas, foi possível entrar em contato com a qualidade única da relação avó-bebê e com os potenciais próprios daquela bebê pra lidar com a vida.

Encontrando meu lugar naquela família, passava de uma postura mais ativa para uma reflexiva, que não deixava de ser ativa na medida em que, podendo ser continente de mim mesmo, propiciava uma continência para a avó, que passava a usufruir do espaço de observação para se observar na relação com a bebê, aprendendo com a experiência da observação, valorizando e acreditando em seus cuidados.

Foi possível refletir sobre meus movimentos como observador na casa, contando com ajuda e apoio do grupo de supervisão. Este passava a ser o continente de minhas ansiedades mobilizadas nos encontros. Nas supervisões era possível compartilhar experiências, estranhar o que era comum, acordar em nossa mente algo que ainda não havia sido observado, remexer aspectos da observação que pareciam estar estáticos, imóveis, dando vida, cor e fôlego para enfrentar e sobreviver aos novos encontros na casa.

Resta ainda uma última indagação: a mãe da bebê. Como havia assinalado, a insistência para que esta comparecesse nas observações eram tanto minhas como da avó. Depois de mais ou menos vinte observações, reconheci que ela não teria disponibilidade para comparecer às observações, pude perceber que havia alguém cuidando da bebê, e essa pessoa era a avó. Desta forma, firmei o contrato com a avó, marcando inclusive os horários dos encontros com ela; assim, eu deixei de desejar o ideal e pude encontrar o possível naquela situação. Foi nesse momento que houve uma transformação na situação, pois eu passava a acreditar no potencial da avó em estar junto com a bebê.

No princípio a avó ainda ficava desconfiada; principalmente quando se encontrava em situação de dificuldade, ela ainda reclamava a falta de uma mãe de verdade para aquela bebê. Mas essas reclamações não mais ecoavam dentro de mim, e muitas vezes eu respondia a estas queixas apenas com um breve e tímido sorriso. E assim, essa senhora pôde reencontrar sua capacidade de maternagem, constituindo-se, assim, uma mãe substituta para aquela bebê.

Abria-se espaço, então, para que a função materna fosse gestada, nascendo uma mãe-avó que pôde, por meio do cuidado da neta e de meu olhar, descobrir seu potencial cuidador.

A experiência de observar configura-se como um compartilhar afetivo do aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a conviver, aprender a conhecer com repercussões para a confiança no permanente aprender ser da formação profissional. O relato da observação pôde ilustrar o desenvolvimento dessa capacidade de aprendizagem

A avó atendeu o telefone, logo percebi que poderia ser a mãe da bebê porque a avó dava broncas na filha. O interessante é que a avó chamou a bebê para falar com a mãe. Fui junto. Foi muito engraçado e bonito ver a bebê tentar falar ao telefone. Uma das frases que ela falou no telefone, e sempre anda falando é: "não acredito". Então a avó pegou o telefone e disse que eu estava lá, pediu para eu falar ao telefone com a mãe. Eu me assustei e pensei: "o que ela quer conversar comigo?". Peguei o telefone e ela disse coisas como: "tubo bem, Daniel?" E aí, como está indo? Esta menina é demais, não é? Ela é especial, né? "O que você está achando?". Respondi que ela estava muito esperta, muito linda. Lembro de ter lhe agradecido por eu poder estar observando. Depois me despedi. Fiquei muito contente em falar com ela ao telefone. Perguntei se ela queria falar com mais alguém, disse que não, e terminamos a conversa. O interessante foi perceber que nós quatro estávamos juntos, finalmente, cada um do jeito que podia. A avó, eu, a bebê e a mãe ao telefone, participando da observação, e eu que pensava que ela nunca poderia participar... Ela participou do jeito dela (1 ano, 5 meses e 10 dias).

Na observação de bebês aprendemos sobre a importância de estarmos abertos à investigação do novo, despojados do que já temos como intervenções prontas, que nos impedem de escutar o que não sabemos.

A observação da relação mãe-bebê-família se constitui como uma possibilidade de aprendizado pela experiência dinâmica das relações humanas, configurando-se em um instrumento que ajuda a expandir as potencialidades do analista de lidar com aspectos primitivos e psicóticos, ampliando sua capacidade de continência para fazer frente às adversidades da vida, inclusive situações de grande impacto psíquico. Um dispositivo que ajuda a conhecer-se e conhecer o outro em sua singularidade. A observação de bebês se mostra cada vez mais um instrumento fundamental para a formação dos psicanalistas e profissionais da saúde.

Bion (1997) afirma ser a resposta à doença que mata a curiosidade. Talvez a curiosidade seja mesmo um sinal de saúde mental, e transformação para o clínico que pretende enfrentar e re-pensar a clínica, principalmente nos casos que despertam angústias profundas e primitivas.

 

Referências Bibliográficas

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BION, Wilfred R. O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1991.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Daniel Nardini Queiroz Pergher
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Carmén Lúcia Cardoso
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Recebido em: 20/12/06
Versão revisada recebida em: 16/01/08
Aprovado em: 08/08/08