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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.23 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

As incidências da repetição no corpo, pela via da dor1

 

The Incidences of Repetition in the Body Through Pain

 

 

Marinella Morgana de Mendonça

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A repetição é um operador teórico eficaz para se pensar o corpo psicanaliticamente? As incidências da repetição no corpo são demonstráveis por meio da dor? Para responder a essas questões, é necessário ter em mente que para Freud, as expressões da repetição seguem caminhos distintos de acordo com as lógicas pulsionais destacadas. Na perspectiva do primeiro dualismo pulsional, a repetição se manifesta no corpo segundo a ótica da formação dos sintomas neuróticos. A introdução do conceito de pulsão de morte abre a possibilidade de consideração desses temas sob o ponto de vista do transbordamento pulsional, que por sua vez, permite entender a compulsão à repetição, revelando-se no corpo, como sendo a expressão de um conteúdo pulsional excessivo e traumático.

Palavras-chave: Repetição; Corpo; Dor; Freud; Metapsicologia.


ABSTRACT

Is repetition an efficient theoretical concept to think the body in Psychoanalysis? Could the incidences of repetition be demonstrated by observing the phenomenon of pain? The several manifestations of this phenomenon follow, as we can see all through the Freudian theory, also distinct ways, in accordance to its two instinctual logics. From the perspective of the first instinctual dualism, repetition could be revealed in the body by it"s symptoms, according to the theory of the neurotic symptoms formation. The introduction of the death instincts would enables us to consider those patients through the driving overflow"s point of view, as well as allows us the understanding of repetition"s compulsion phenomenon as an expression of an extreme and traumatic driving content in the body.

Keywords: Repetition; Body; Pain; Freud; Psychoanalysis.


 

 

É impressionante, e ao mesmo tempo desafiante, a insistência, a reincidência – ou a permanência – de alguns acontecimentos somáticos na clínica psicanalítica. Há uma repetição por trás de tais acontecimentos, e os sintomas corporais, a dor, mais especificamente, pode ser compreendida como sendo uma manifestação do fenômeno de repetição no corpo, como uma tentativa de inscrição da pulsão. Poderia citar mais de um exemplo da psicopatologia do corpo na vida cotidiana2 para esclarecer esta hipótese. No entanto, um relato de uma analisanda é mais interessante para elucidar o que ocorre:

"o que eu faço para parar de sentir esta dor, por todo o meu corpo, toda vez
que eu não falo o que tinha de ter falado com a minha irmã? É aquela velha
história, de novo. Sempre que me calo ou que me sinto contrariada, meu corpo
fala por mim. Ele me dá uma rasteira, me mostra o que eu deveria ter feito. Mas
o que eu faço para mudar isto? Estou cansada dessa repetição"
.

Este fragmento foi retirado do caso clínico que serviu de argumento inicial para a pesquisa de mestrado sintetizada neste artigo: trata-se de uma paciente com diagnóstico médico de fibromialgia, que chegou ao consultório tomada por dores generalizadas. Dolores relatava que inicialmente as "dores eram só de cabeça", e foram piorando de tal maneira que a impossibilitaram de trabalhar. Daí por diante, "as coisas só pioraram", e a dor, que era localizada, difundiu-se pelo corpo todo. Essa paciente, durante os primeiros tempos de análise, só falava da dor. Descrevia em minúcias os caminhos dolorosos, sem mencionar os contextos nos quais as dores haviam surgido. Sua dor era totalmente referida ao corporal, e demorou certo tempo até que ela pudesse associar à dor algo de sua história. Isto só foi alcançado a partir do momento em que ela se permitiu abrir mão de alguns aspectos identificatórios, relacionados às figuras materna e paterna.

Como exemplifica o trecho destacado de sua fala, as associações começaram com uma referência explícita à repetição. A partir daí foi possível que ela, por meio do trabalho de perlaboração possibilitado pela análise, desse um sentido a sua dor. Os sintomas de dor, que eram freqüentes, passaram a ocorrer espaçadamente à medida que Dolores atribuía, sem grandes esforços, um significado a esses sintomas. Ficou claro, então, que a dor tinha, na economia psíquica da paciente, um lugar privilegiado, permitindo afirmar que ela se "apresentava ao mundo" por meio de sua dor. A análise trouxe a possibilidade de uma passagem da dor corporal à dor psíquica quando ela pôde dar um sentido às sensações corporais excessivas que a arrebatavam. Portanto, para essa paciente, a "dor passou a falar" 3.

"O incômodo" que o corpo representa pode ser analisado sob diversos ângulos e a literatura psicanalítica tem se ocupado do assunto cada vez mais. De acordo com Joel Birman, "a evocação do fazer e do agir remetem para a ordem da prática, da superação de obstáculos existentes no registro do real, isto é, impasses encontrados pelo sujeito" (1991, p.173). A articulação dessas esferas – do fazer e do agir – com o registro do corpo pode ajudar a interpretar a pergunta da paciente Dolores. Talvez não seja suficiente afirmar que seu questionamento expresse uma modalidade de acting-out, uma tentativa de se esquivar do trabalho de perlaboração no processo psicanalítico, evitando assim lidar com certos conteúdos recalcados e permanecendo no curto-circuito de sua dor. A pergunta "o que eu faço?" comporta, sim, este tipo de interpretação, mas talvez não seja só isso o que esteja em jogo. Há repetição aí; uma repetição que insiste por meio da dor, utilizando o corpo como palco, e que ao insistir, faz desse corpo um lugar de embaraço para o sujeito, ou seja, de enfrentamento do real.

Os conceitos de pulsão e de repetição podem ser úteis para tratar o corpo psicanaliticamente, uma vez que possibilitam uma investigação teórica com o intuito de traçar uma metapsicologia psicanalítica do corpo4. Neste sentido, é válido afirmar que a pulsão, ao percorrer o corpo, faz dele um lugar de sua manifestação, e ao fazê-lo, torna o corpo um palco privilegiado para a repetição. Repetição que ao utilizar o corpo produz mal-estar, produz sintoma, pois coloca em cena a pulsão e suas vicissitudes. A pulsão transforma o corpo. Ela é, segundo Luiz Alfredo Garcia-Roza, "disjuntora dos esquemas corporais inatos e produtora de novos esquemas, perversos em relação ao natural" (1986, p. 113). Assim, ao produzir essa disjunção, a pulsão faz do corpo uma superfície de inscrição das histórias do sujeito. Em suas tentativas de obter satisfação, contornando o objeto, a pulsão faz do corpo um lugar de inscrição do psíquico e do somático5 .

Em Os instintos e suas vicissitudes, Freud afirma que a finalidade, ou o alvo, de uma pulsão é chegar à satisfação (1915, p. 128); porém, a descrição da "experiência de satisfação" (Freud, 1895, p. 370) nos mostra que tal finalidade – apreender o objeto – está fadada ao fracasso. Mas, se capturar o objeto não é possível, a pulsão o contorna – como nos indica Lacan –, e deste contorno, obtém a satisfação. O que é interessante nisso tudo é que a pulsão, ao traçar seu caminho em torno do objeto e rumo à satisfação, engendra concomitantemente uma repetição e um esboço de corpo. A pulsão, como um impulso constante (drang), atravessa a superfície da zona erógena – constituída como uma borda –, e por meio da repetição, tenta apreender o objeto. Tenta apreender e desvia, uma vez que o objeto de desejo está perdido para sempre. É a distância entre o objeto faltoso e o objeto para o qual a pulsão se dirige que faz com que ela retorne em direção à fonte –no caso, a zona erógena –, e recomece seu movimento em direção ao objeto. Assim, no que se refere ao corpo, a pulsão está entrelaçada à repetição.

O fato de considerar os caminhos da pulsão sobre o corpo como sendo repetitivos possibilita entender que a pulsão se expressa no corpo de acordo com as formas de manifestação da repetição, isto é, ora sob sua faceta constitutiva, atuando a serviço do princípio de prazer, ora sob a forma restitutiva da repetição, tentando inscrever no corpo algo que não encontrou outra maneira de se fazer representar. Já os efeitos da repetição no corpo, acredita-se ser viável verificá-los por meio da dor.

Uma investigação sobre a relação que a pulsão estabelece com o corpo, ao longo da primeira e segunda teorias das pulsões, responde de forma afirmativa à possibilidade de articulação do corpo com a repetição, e do mesmo modo, é útil para a consideração do fenômeno da dor como um exemplo dos efeitos da repetição no corpo. Portanto, interessa destacar o entendimento que se tem do corpo e do fenômeno da dor a partir da primeira teoria pulsional e da introdução do conceito de pulsão de morte.

Retomemos brevemente o percurso metapsicológico da noção de repetição ao longo da obra de Freud. A idéia de repetição perpassa todas as teorizações freudianas, sendo pensada a partir de suas relações com a transferência, a resistência e, sobretudo, a pulsão. Em Recordar, repetir e elaborar (1914), a repetição já se apresenta em sua dupla perspectiva, ou seja, como retorno do recalcado e como compulsão à repetição. Este tema, encarado como uma manifestação do retorno do recalcado, já tinha se dado a ver a Freud desde muito cedo em seu percurso teórico, como ressalta seu comentário sobre as reminiscências em Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar (1893). Contudo, a repetição, reconhecida como sendo da ordem de uma compulsão, que Freud caracterizará como essencialmente pulsional na virada" de 1920, aparece nesse texto pela primeira vez. De acordo com ele, a compulsão à repetição se apresenta, na análise, no lugar do discurso, como um ato dirigido ao analista. Como exemplo, Freud menciona o paciente que

não se recorda de como chegou a um impotente e desesperado impasse em suas
pesquisas sexuais infantis; mas produz uma massa de sonhos e associações
confusas, queixa-se de que não consegue ter sucesso em nada e assevera estar
fadado a nunca levar a cabo o que empreende. Não se recorda de ter se
envergonhado intensamente de certas atividades sexuais e de ter tido medo de
elas serem descobertas; mas demonstra achar-se envergonhado do tratamento
que agora empreendeu e tenta escondê-lo de todos (1914, p. 165-166).

Em Além do princípio de prazer, Freud (1920) anuncia uma outra dualidade pulsional – vida e morte. É o momento em que ele repensa o circuito pulsional, a partir dos fracassos terapêuticos que revelam a pulsão de morte como pulsão sem representação. Nesta perspectiva, a compulsão à repetição pode servir para dominar retroativamente as excitações, que na ocasião de um trauma psíquico fizeram efração no aparelho, como é o caso dos sonhos nas neuroses traumáticas. Esses sonhos obedecem à compulsão à repetição, e são uma tentativa de elaboração de situações traumáticas. Essas considerações tornam possível a afirmação de que a compulsão à repetição tenta inscrever no psiquismo aquilo que não tem representação, que não encontrou outras formas de representação.

Apesar de tais eventos que escapam à representação psíquica serem considerados como traumáticos, por sua qualidade de serem excessivos em relação à excitação que o aparelho psíquico é capaz de suportar, é necessário declarar, por outro lado, que é justamente o caráter compulsivo, isto é, a insistência com que esses episódios que estão fora do circuito representacional tentam se inscrever, que permite considerar os limites desse processo. Assim, é possível pensar que os fatos sobre os quais se está tratando aqui não pertencem mais ao campo da representação. O que esses eventos conseguem ao se repetir compulsivamente é, talvez, somente uma apresentação, mas sem possibilidades de simbolização. Para entender o que acontece com o que não pode ser representado, estamos de acordo com a hipótese de diversos autores, como Berlinck, Fernandes e Garcia-Roza, de que tais eventos seguirão o caminho do corpo como última tentativa de se fazer representar.

No entanto, para que se delimite a questão que a introdução do conceito de pulsão de morte coloca para a compreensão psicanalítica do corpo, é necessário destacar o entendimento psicanalítico deste tema no decorrer das investigações freudianas. Desde os escritos pré-psicanalíticos, já é possível ver Freud subvertendo o corpo biológico. A concepção freudiana do corpo inaugura uma modalidade corporal diferente daquela que vigorava em sua época. Freud postula, desde o início de seus trabalhos, um corpo erotizado, erogenizado, que é também auto-erótico e pulsional. E Freud o faz por meio de seus estudos sobre a histeria. É nos sintomas histéricos que se pode observar o surgimento de uma nova forma de se olhar para o corpo. A histeria é, assim, o que melhor caracteriza o corpo nos primórdios da Psicanálise, isto é, são os fenômenos histéricos de conversão que atestam o caráter erógeno e representacional que distingue o corpo nesse momento do percursofreudiano. A partir disso, pode-se inferir duas formas de apreensão do corpo presentes na teoria freudiana: um corpo da representação, ou simbolização, que é regido pelas pulsões de vida e tem seu paradigma na histeria; e um corpo do transbordamento, quando a dor pode representar uma descarga, uma outra maneira de se fazer apresentar o que não teve representação, ou seja, de lidar com o excesso pulsional. Este é o campo regido pelas pulsões de morte6.

É o conceito de pulsão de morte que nos permite pensar a categoria da não representação, uma vez que a pulsão de morte, com seu trabalho silencioso, opõe-se às tentativas de simbolização feitas por Eros. Assim, concomitantemente ao segundo dualismo pulsional, Freud introduz a possibilidade de se pensar o não representável no aparelho psíquico. E é a esse não representável que qualificamos como pertencendo à lógica do transbordamento (Fernandes, 2003, p. 115).

A noção de traumático, justamente por sua impossibilidade de representação, situando-se em um lugar limítrofe do psíquico, lugar este não elaborado e desorganizado, pode ser encarada como expressão maior de algo que não pode ser representado. E o que ocorre com o que não tem representação psíquica? Tenta se inscrever, uma vez que não cessa de se repetir, utilizando-se do corpo. Pensar o corpo a partir da segunda teoria pulsional implica considerar outra lógica que não a da representação, e é o conceito de traumático que possibilita entendermos o excesso que a pulsão de morte impõe ao incidir sobre o corpo. Esse excesso, em uma eterna insistência em se fazer representar, só consegue se apresentar como trauma, que acaba transbordando no corpo.

Da mesma forma que acontece com a repetição e com o corpo, a dor também pode ser pensada a partir de um duplo aspecto, isto é, no primeiro e segundo dualismos pulsionais vê-se Freud se referindo a ela de maneiras distintas. Se no tocante à primeira teoria das pulsões ele se interessa mais pela "dor física", ou corporal, quando a idéia de "pseudo-pulsão" é fundamental para o entendimento da dor, a partir da introdução do conceito de pulsão de morte, já no âmbito da segunda teoria pulsional, Freud centra suas "atenções na dor psíquica", momento no qual as considerações sobre o excesso pulsional e o masoquismo são cruciais para a compreensão psicanalítica desse fenômeno.

Em um primeiro tempo dos estudos freudianos – ou seja, a primeira teoria das pulsões – encontra-se a dor intimamente referida ao corporal, e como não podia deixar de ser, ao pulsional. Nesta perspectiva, cabe notar o caráter excessivo que qualifica a dor como sendo um afeto que desempenha uma função crucial na estruturação psíquica, como bem ilustram as considerações freudianas do Projeto para uma psicologia científica (1895). A dor, na qualidade de uma falsa pulsão que utiliza o corpo para se manifestar, pode, no percurso rumo à representação, percorrer dois caminhos: 1- A dor pode fazer uso, no caso das doenças orgânicas, de um órgão específico do corpo. Neste exemplo, o corpo, ou melhor, as sensações corporais, são o que melhor representam, para o sujeito, seu eu; 2- à dor cabe, ainda, apoiar-se a uma concepção fantasmática do corpo – lembre-se aqui da histeria –, e então se enveredar pelo caminho da lógica sintomática presente nas neuroses, quando a repetição, na forma do retorno do recalcado, tem um papel relevante.

Pode-se dizer que é em Luto e melancolia (1917) que a dor surge como psíquica, relacionada à perda do objeto. No entanto, a partir de 1920, entra em cena a pulsão de morte, e por meio das considerações sobre o trauma, Freud associa a dor à noção de um excesso de excitação que não pode ser contido pelo aparelho psíquico (Freud, 1920, p.40). Jean-Bertrand Pontalis destaca que a dor é, portanto, uma violação (2005, p. 268). Mas segundo o ponto de vista do psicanalista francês, a introdução da pulsão de morte como referente ou como "mito originário" confronta a psicanálise com uma outra ordem de questões para a qual as "personalidades narcísicas" e os "casos-limites" tornam os psicanalistas da atualidade cada vez mais sensíveis – aqui, a psique se faz corpo. Do ‘o que isso quer dizer?", passa-se ao "o que isso quer?" (Pontalis, 2005, p. 258).

Dentre muitos outros aspectos, Freud enfatiza no artigo O problema econômico do masoquismo (1924), a idéia de que o masoquismo moral explica o fato de uma experiência de sofrimento poder ser encarada como um processo vital para a manutenção da vida. Como isto é possível? Primeiramente, é necessário ter em mente a afirmativa freudiana de que o masoquismo moral é a "prova clássica" da existência da fusão pulsional, isto é, este tipo de masoquismo se origina da pulsão de morte, mas tem também o significado de um componente erótico. Considere-se, ainda, para uma análise mais precisa dessa situação, as reflexões sobre o sentimento inconsciente de culpa, ou necessidade de punição, a partir do exame de pacientes que apresentam uma "reação terapêutica negativa". Sabe-se que em tais pessoas a força desse impulso constitui, como salienta Freud, uma das mais sérias resistências e o maior perigo ao sucesso do tratamento psicanalítico. E que a satisfação do sentimento inconsciente de culpa, que jaz por trás de uma reação dessa espécie, é talvez o mais poderoso bastião do sujeito no ganho secundário" propiciado pela doença. Há, portanto, uma necessidade de punição, que por um lado, a serviço da pulsão de morte, obtém prazer no "sofrimento pelo sofrimento", mas por outro, em virtude da ligação aos componentes eróticos (pulsão de vida), não pode promover a destruição do sujeito sem que esta leve em conta uma cota de satisfação libidinal. Isto comprova a relevância do masoquismo, e conseqüentemente, da economia da dor na regulação dos processos vitais do sujeito humano.

Ressalte-se a proximidade que essas considerações sobre o tema da dor, inferidas a partir do estudo do masoquismo, têm com as formulações acerca da compulsão à repetição. Freud articula a compulsão à repetição com o masoquismo a partir de dois aspectos: a proximidade deste último com a pulsão de morte e, sobretudo, a existência de uma permanência, no masoquismo moral, de um sofrimento que tem um caráter excessivamente pulsional. Ora, como é que fenômenos dessa espécie se dão a ver na clínica psicanalítica? Freud apontou um caminho ao falar sobre a reação terapêutica negativa; contudo, temos trabalhado com a possibilidade de se pensar o corpo como sendo um lugar que se presta como depositário possível do excesso pulsional. O fenômeno da dor demonstra, de forma clara, o quão associados estão a compulsão à repetição e o corpo nos destinos desse excesso

Em Inibições, sintomas e ansiedade (1926[1925]), vê-se Freud tentando compreender a analogia entre a dor corporal e a psíquica. Neste sentido, o papel da vivência corporal da dor, como sendo paradigmática para o entendimento da dor psíquica, é enfatizado por ele ao esboçar a dimensão econômica dessas experiências. Contudo, Freud já havia salientado a importância da dor na constituição da idéia de corpo em O ego e o id, ao ressaltar o modo pelo qual obtemos conhecimento de nossos órgãos corporais por ocasião de uma doença (1923, p. 39). O fato notável de que, no caso de um desvio psíquico por conta de um interesse de outra espécie, as dores corporais mais intensas não se produzam encontra também sua explicação na concentração do investimento sobre a representação psíquica do local do corpo dolorido. Neste ponto, afirma Freud, parece residir a analogia que permitiu a transformação da sensação de dor corporal para o domínio psíquico.

Observe-se aqui que em ambas as situações ocorre um sobreinvestimento, isto é, um investimento que aumenta porque não pode ser descarregado, na dor corporal, da parte do corpo que emite a dor, e na dor psíquica, do anseio pelo objeto ausente. Criam-se, pois, as mesmas condições econômicas. Isto, por sua vez, é o que permite a Freud afirmar que

a transição da dor física para a mental corresponde a uma mudança da catexia
narcísica para a catexia de objeto. Uma representação de objeto que esteja
altamente catexizada pela necessidade instintual desempenha o mesmo papel
que uma parte do corpo catexizada por um aumento de estímulo. A natureza
contínua do processo catexial e a impossibilidade de inibi-lo produzem o
mesmo estado de desamparo mental (1926, p. 166).

Assim, é válido ressaltar o comentário de Rubens Marcelo Volich a respeito desse momento da elaboração freudiana sobre o fenômeno da dor: este afeto, assim como a angústia e o luto, "surgem como diferentes destinos da experiência de níveis elevados de investimento – no corpo, na expectativa de perda de objeto, na representação do objeto perdido" (1999, p. 48). E perante a impossibilidade de percorrer outras vias de descarga, continua o autor, estes afetos acarretam a sensação de desprazer (p. 48).

Mais uma vez, portanto, encontra-se a dor, na obra de Freud, referida a um excesso, que tem conseqüências tanto corporais como psíquicas. Pode-se afirmar serem justamente tais efeitos que permitem identificar, retrospectivamente, os caminhos e elementos envolvidos na metapsicologia desse fenômeno clínico. Neste sentido, tanto o corpo como a repetição são essenciais. No entanto, a despeito dessa breve análise sobre a dor, a clínica psicanalítica mostra que ela é uma só, e que às vezes distinções entre um "aspecto corporal" e outro "psíquico" de suas manifestações são bem menos relevantes diante do sofrimento do sujeito. Pois, com a dor, o corpo se transforma em alma e a alma em corpo (Pontalis, 2005, p. 272).

A partir dessas observações, pode-se afirmar que o mecanismo da dor é desencadeado pela via da repetição, isto é, há dor quando uma experiência angustiante, traumática e excessivamente carregada de afeto é reativada por uma lembrança que se repete. Está aberto, então, pelo caminho de facilitação, o trilhamento para a dor.

A dor expressa, no corpo, o excesso pulsional que se instaurou no aparelho psíquico. Ela é uma possibilidade de apresentação da angústia, ou o resultado desta, como afirmou Freud. Esta formulação sobre a dor é o que dá ao analista condições para sustentar sua escuta no sentido de "ouvir" o que a dor tem a dizer. Neste sentido, a lógica pulsional subjacente a tal mecanismo de funcionamento psíquico é a da primeira teoria das pulsões, uma vez que o caminho que a dor percorre é repetitivo, ou seja, já foi trilhado pela facilitação, já rompeu as barreiras de contato. Permanecemos, pois, na perspectiva do retorno do recalcado, mesmo se estamos diante de material que indique a lógica do transbordamento.

É relevante lembrar o fato de que quando ingressou na análise, a dor tinha para Dolores um caráter enigmático. Esse fenômeno foi inserido em uma cadeia representacional, ganhando um sentido. Desta forma, para que não se separem essas questões – o corporal e o psíquico – de maneira tão simplista, é mais interessante pensar nas duas lógicas pulsionais, vida e morte, evoluindo lado a lado. Assim como as "duas manifestações" do fenômeno repetição caminham juntas, isto é, a compulsão à repetição ao lado do retorno do recalcado, também a dor, ao – digamos – tomar corpo no corpo, carrega esta dupla face: ao mesmo tempo em que tenta conter um excesso pulsional, algo escapa, transborda desta tentativa, já que a representação não dá conta de tudo sempre.

Portanto, para articular a repetição com o corpo pela via da dor, faz-se necessário recorrer à clínica. Desde Freud, é o setting analítico que fundamenta a teoria e diz como os fatos, psíquicos e corporais, à semelhança das "duas correntes" pulsionais, se apresentam: fusionados. Somos nós, psicanalistas e pesquisadores, a partir do método psicanalítico, quem fazemos a separação entre as duas lógicas pulsionais, da representação e do transbordamento. No entanto, como a própria teoria psicanalítica sinaliza, na chamada "vida real", essas duas maneiras de manifestação da pulsão caminham juntas.

O que não quer dizer, contudo, que não haja casos em que a dor permaneça sem adquirir um significado para o sujeito que por ela é tomado. Pode ser que, para alguns, ela seja sentida como expressão de uma estranheza tal que impossibilite qualquer simbolização. O que distingue um caso do outro é a atenção dispensada às lógicas que fundamentam a primeira e a segunda teoria pulsional.

Para outros, como o caso clínico aqui descrito parece indicar, pode ocorrer que tal estranheza tome o sujeito somente quando irrompa, e que o percurso de análise possibilite à dor, que inicialmente tomou o corpo silenciosamente e de forma abrupta, utilizar-se desse corpo, pela lógica representacional e repetitiva, para se expressar. Assim, tem-se ao mesmo tempo algo do excesso e da contenção tomando corpo em um único fenômeno: a dor.

Finalizando, é importante ter em mente que o fenômeno da dor é o que concede legitimidade à articulação do corpo com a repetição. E mais: se não convém deixar a primeira teoria das pulsões de lado, é porque ela continua tendo algo a dizer. É preciso trabalhar, clínica e teoricamente, com as duas lógicas pulsionais – às vezes em oposição, noutras, intrincadas. Faz-se necessário escutar o que a dor tem a dizer, pois para que ela adquira um sentido para o sujeito, tem que se fazer representar de alguma forma, seja por artifícios corporais seja por meios psíquicos.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
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Recebido em: 28/08/06
Versão revisada recebida em: 20/08/08
Aprovado em: 25/08/08

 

 

Marinella Morgana de Mendonça

Psicóloga; Psicanalista; Mestre em Psicologia (Ênfase em Estudos Psicanalíticos/UFMG).

 

Notas

1 Este artigo é uma versão condensada de minha dissertação de mestrado defendida em abril de 2006 na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, sob a orientação da Profª Drª Ana Cecília Carvalho e com o financiamento do CNPq (Mendonça, 2006).
2 Expressão utilizada por Maria Helena Fernandes, em Corpo (2003), para caracterizar imagens que evocam cenas da clínica psicanalítica e que funcionam como espelho da cultura, refletindo um mal-estar na atualidade.
3 Isso evoca a situação comentada por Freud na terapia de Elisabeth von R., que sentindo a dor na perna em um momento de tensão é convidada por Freud a deixar a dor participar da conversa" (Freud, 1892, p. 173).
4 Uma metapsicologia psicanalítica do corpo sintetiza a tentativa de apreensão, em termos metapsicológicos, do corpo ao longo da teoria psicanalítica de Freud (Fernandes, 2003).
5 A idéia de se pensar o corpo como sendo um lugar de inscrição do psíquico e do somático é a tese central que Maria Helena Fernandes desenvolve em Corpo (2003).
6 Esta é uma das principais conclusões apresentadas por Maria Helena Fernandes em Corpo (2003, p. 111).