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versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.23 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Uma causa que inclui um sujeito: a originalidade da causa em psicanálise

 

A cause that includes a subject: the originality of the cause in psychoanalysis

 

 

Rosane Zétola Lustoza

Universidade Estadual de Londrina/UEL

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo investiga de que modo a psicanálise lacaniana consegue tornar compatível o pensamento causal e a possibilidade de responsabilizar o sujeito. Examinando em que sentido a psicanálise foi levada a se afastar consideravelmente das famosas formulações que a filosofia moderna fez sobre o problema da causalidade, será justificada a redefinição lacaniana desse conceito com base em seu emprego na experiência analítica. Mediante o recurso aos conceitos de objeto a, causa do desejo e de significante como causa material busca-se pensar que contribuições a psicanálise pode dar para um pensamento causal que não pretende destituir o sujeito de seu estatuto ético.

Palavras-chave:Causalidade; Responsabilidade; Ética; Objeto a; Significante.


ABSTRACT

This article investigates how lacanian theory can negotiate causal reasoning and the consideration of the subject as a responsible one. Examining in what sense the psychoanalysis deviated from the famous formulations of modern philosophy about the problem of causality, the Lacanian redefinition of this concept based on its use in analytical experience seems justified. Using the concepts of object a, the cause of desire and the significant as material cause, it is pointed psychoanalysis contributions to the causal thinking, maintaining the ethical status of the subject.

Keywords: Causality; Responsibility; Ethics; Object a; Significant.


 

 

Este artigo pretende demonstrar de que maneira a psicanálise lacaniana pretende operar com o conceito de causalidade psíquica, sem com isso eliminar a possibilidade de uma responsabilização do sujeito. Tal problema é relevante posto que tradicionalmente o uso de esquemas causais a fim de dar conta de problemas humanos tem sido associado à suspensão do sujeito de direito. O encaminhamento aqui seguido será o de primeiramente justificar por que Jacques Lacan foi levado a qualificar a psicanálise como um pensamento causal, diferenciando-a, contudo, das teorias causalistas da filosofia moderna. Posteriormente será realizado um exame das diferenças entre causalidade psíquica e causalidade física, apontando para a necessidade de uma redefinição do conceito, caso queiramos empregá-lo no registro da subjetividade. Por último será apresentado como a causalidade psíquica, tal como pensada por Lacan em sua dupla forma (o objeto a causa de desejo e o significante como causa material), deixa lugar para um sujeito capaz de responder pelo que diz e faz.

 

A psicanálise como pensamento causalista

A filosofia moderna acreditou que a causa seria o padrão de inteligibilidade adotado pela ciência. O alvo da explicação causal seria estabelecer uma ligação entre fatos, entidades acessíveis a algum tipo de observação. O laço causal afirmaria a existência de uma dependência entre fenômenos heterogêneos, de tal maneira que um só poderia ocorrer caso o outro também ocorresse.

Para Descartes, causa e efeito formariam um nexo necessário, como se existisse entre as coisas na natureza a mesma ligação de princípio e conseqüência que encontramos no espírito. Desse modo, a ordem do ser repetiria a organização lógica do pensamento, resultando em um mundo constituído de encadeamentos necessários, sendo que uma vez que ocorra um certo fato não poderia deixar de seguir-se outro. Já David Hume critica a legitimidade da relação causal, assinalando o caráter contingente das seqüências de fenômenos que a experiência nos traz. Por último, Kant busca uma síntese de ambas as concepções afirmando a causalidade como uma necessidade, que embora não se encontrando impregnada nas coisas, constitui um ato fundamental para o entendimento, pois este precisa de regras a fim de tornar o mundo inteligível. Em suma, ainda que mantendo o esquema básico da relação causal (a dependência entre fenômenos heterogêneos), os filósofos modernos divergiramquanto à questão da validade cognitiva desse princípio (Alquié, 1999).

Ao elaborar o conceito de objeto a como causa do desejo, Jacques Lacan acaba colocando a psicanálise nas fileiras do pensamento causalista. Inserir a psicanálise nesse debate não significa, contudo, afirmar que seu campo de investigação seja o mesmo que a filosofia moderna consagrou ao princípio de causalidade – a saber, o dos fenômenos naturais. O conceito de causa não incidiria sobre o terreno dos fatos observáveis (ôntico), mas sim sobre o terreno dos valores (ético). Evidentemente, ao ser transferida para uma outra ordem de problemas, a noção de causa experimentará uma redefinição.

A noção de causa tem sua origem na experiência cotidiana em que o sujeito se apreende como capaz de promover modificações no ambiente a seu redor. Eu tenho vontade de desligar a luz, então estico o braço e aciono o interruptor. Logo, concluo que a luz apagada é um efeito de minha ação. A causa será assimilada a um agente que tem o poder de produzir alterações no mundo. O efeito será aquilo que sofreu a ação. A relação de causa e efeito comporta então uma assimetria, sob a forma da polarização ativo/passivo (Blanché, 1975).

Subseqüentemente, o sujeito ampliará o alcance do raciocínio causal, passando a incluir a possibilidade de elementos não-humanos figurarem como agentes. Desse modo, digo corriqueiramente que, por exemplo, a bactéria foi o agente que causou a infecção. De qualquer maneira, a noção de causa, mesmo quando aplicada aos fenômenos naturais, não deixa de ter raízes antropomórficas, já que sua origem é a experiência consciente que o sujeito tem de si mesmo como agente de uma vontade.

Vimos como o princípio de causalidade tem origem na experiência habitual em que produzimos modificações no meio ambiente, como quando usamos nosso braço para mover objetos. A causa é o agente, o efeito é o paciente. O surpreendente é que o mesmo braço que serviu para apagar a luz, fazendo com que eu me apreenda como causa, possa subitamente parar de responder a meu comando, afetado por uma paralisia histérica; não me deixando então outra saída senão me conceber como efeito. Como explica Lacan, nesta passagem do Seminário X:

O que adiantarei, sempre para lhes fazer sentir o de que se trata na ordem da
causa, será o quê? No final das contas, meu braço – mas meu braço enquanto eu
o isolo, considerando-o como tal, como o intermediário entre minha vontade e
meu ato. Se me detenho em sua função, é na medida em que ele encontra-se, por
um instante, isolado, e que ele quer a todo preço que eu o recupere por algum
viés. É preciso conseqüentemente que eu modifique o fato de que, se ele é
instrumento, ele não é, contudo, tão livre assim. É preciso me premunir, se
posso dizer, contra o fato, não imediatamente de sua amputação, mas de seu
não-controle, contra o fato de que um outro possa se apoderar dele, que eu possa
me tornar o braço direito ou o braço esquerdo de um outro, ou simplesmente
contra o fato de que eu possa – como um guarda-chuva comum, como esses
coletes que, parece-me, se encontrava ainda há alguns anos em abundância –
esquecê-lo no metrô (Lacan, 1962-63, p. 250-251).

O que Freud vai descobrir de novo é um campo em que o sujeito não pode se apreender como senhor em sua própria casa, encontrando-se destituído do poder de modificar a situação a seu bel-prazer: a sexualidade. O sujeito não seria um centro de iniciativas capaz de causar o próprio desejo; o desejo seria antes causado por algo que ele não controla, o objeto a.

Uma maneira de tentarmos circunscrever o objeto a é tomarmos como ponto de partida o fato de que qualquer sujeito encontra-se inserido em uma certa perspectiva de avaliação, a partir da qual organiza e concebe seu mundo. Contudo, nenhuma rede interpretativa pode fornecer uma interpretação capaz de integrar em uma totalidade coerente a nossa experiência, subsistindo sempre em seu interior furos e pontos de incompreensão. Nenhum ponto de vista pode conferir sentido à totalidade dos elementos do mundo, existindo sempre uma parcela de não-sentido que resiste ao esforço de simbolização. Esse ponto da rede significante que se mostra inassimilável por ela corresponde ao que Lacan designa como o objeto a. Este é denominado de causa porque isso que escapa a uma determinada perspectiva é precisamente algo que o sujeito não controla, não domina, que está fora de seu alcance manipular. O sujeito pode acender e apagar a luz, mas não está a seu alcance modificar o fato de que todos os seus projetos engendrarão algo que não pode ser convenientemente absorvido por eles. O sujeito pode ser ativo em muitos sentidos, pode se entregar aos afazeres os mais variados, mas há pelo menos um ponto em relação ao qual ele é passivo, a saber, o fato de que qualquer atividade sua produzirá um resíduo. O paradoxo é que será justamente esse elemento excepcional o que atrai o desejo. É algo que poderíamos ilustrar aludindo ao típico discurso de alguns amantes que sempre se empenham em reformar ser amado, deixando ver como o traço no Outro que nos incomoda é aquilo mesmo que provoca o nosso desejo...

 

As diferenças entre causalidade psíquica e causalidade física

Sabe-se que a aplicação do princípio de causalidade ao mundo físico é corriqueiramente feita prescindindo do apelo a noções de valor. Quando dizemos que um fenômeno produz como conseqüência o surgimento de um outro, supomos que tais eventos ocorreram sem nenhuma direção prévia ou finalidade que os dirigisse. Na natureza está ausente exatamente aquilo que caracteriza o domínio dos valores, a saber, a eleição de um fim como sendo superior aos outros.

Já na experiência analítica, o emprego da noção de causa está intrinsecamente ligada a valores. O sujeito neurótico se pergunta sobre questão da causa quando ocorre algum desengonço no seu modo de funcionar cotidiano. "Só existe causa para o que manca" (Lacan, 1964, p. 27): o sujeito só indaga pela causa quando as coisas não vão bem para ele, quando algo contraria suas expectativas. Aparecendo ligado a alguma coisa que não funciona como deve, o uso da noção de causa sugere que esta impediu o sujeito a alcançar um certo fim, que julgado superior, é o que demonstram queixas do tipo "eu sempre o amei, e agora que ele decidiu ficar comigo descubro que não o suporto. Qual a causa disso?". O sujeito se depara com algo que põe em xeque o que ele considerava como um bem. A causa é então "Isso" que me impede de alcançar o meu próprio Bem.

O interessante é que a psicanálise endossará esse uso ético que o neurótico faz da causa, mas introduzindo um a mais. Pois, para a psicanálise, a causa vem testemunhar o fracasso do sujeito, não em obter aquilo que para ele é um valor, mas sim em formular com exatidão qual seria este valor. A causa dá nome ao fato de o sujeito jamais conseguir alcançar uma representação adequada do que vale efetivamente para ele, de tal modo que o que ele pensava ser o fim da sua ação é sempre muito diferente do que a provocou de fato. O desencontro pode ser assinalado no nível mais básico, o da distinção demanda e desejo: o sujeito demanda algo, mas o que ele pediu não coincide com o que mobiliza seu desejo. O desencontro se instala em um nível ainda mais fundamental, sob a forma do par desejo e gozo: o sujeito deseja algo, mas o que ele deseja não coincide com aquilo que o satisfaz realmente. Portanto, se a causa em psicanálise está ligada a valores, é na medida em que ela nomeia o fracasso do sujeito em dizer o que vale para ele. É por isso que só há causa para o que manca: a mancada aqui consistindo na impossibilidade de o sujeito localizar com exatidão onde está seu bem mais precioso, o que vale efetivamente para ele.

A discussão acima nos levou a diferenciar a causalidade física e a causalidade psíquica pelo viés da ética: enquanto a primeira não está intrinsecamente associada a valores, a segunda encontra-se indissoluvelmente ligada a eles. Ao lado deste, existe ainda outro modo de distinguir os dois tipos de causalidade. Quando estamos nos referindo ao mundo físico, causa e efeito constituem fenômenos acessíveis a algum tipo de observação, portanto entidades passíveis de uma descrição de suas propriedades efetivas. Já no campo psíquico, a causa não poderia ser isolada em termos de uma descrição positiva de suas propriedades, razão pela qual Lacan designou-o pela letra a. O objeto a não existe na realidade física, não consistindo em um corpo material entre outros.

O objeto a é um algo a mais que não pode ser isolado em termos de propriedades positivas dos objetos, simplesmente porque depende do sujeito para existir. Recorrendo ao famoso Poema do exílio, de Gonçalves Dias, em cujo verso "As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá" as aves brasileiras aparecem com um quê a mais que as torna especiais, poderíamos dizer que este "quê" a mais não é da ordem do observável; um americano, por exemplo, poderia não ser sensível aos encantos de nossas aves. Isso que as torna tão especiais depende de um ponto de vista particular, sendo algo psíquico, e não físico.

As observações acima podem servir para desfazer algumas confusões. Quando se lê nos jornais ou se escuta nos programas de variedades que, por exemplo, certo comportamento é causado por hormônios, existe a pretensão de isolar um fato objetivo capaz de produzir o efeito. Ora, se a causa é orgânica, seria a princípio imaginável sua supressão por meio de uma intervenção, ela também orgânica. Uma vez detectada a causa, nasce evidentemente a esperança de poder removê-la por intermédio de um método objetivo. Afinal de contas, cessada a causa, cessa o efeito... Contrária a esse encaminhamento, a psicanálise sabe que o sintoma psíquico não pode ser modificado por meio de uma intervenção no mundo dos fatos. A causa de que a psicanálise trata não pode ser delimitada no registro da objetividade, posto que ela é inseparável da posição assumida pelo sujeito. A causa em psicanálise não é destacável da perspectiva assumida pelo analisando, sendo antes solidáriada mesma. Eis então a diferença entre causalidade física e psíquica: a primeira não depende do sujeito para existir, ao passo que a segunda depende do sujeito.

Note-se que dizer que a causa depende do sujeito para existir não significa dizer que é o sujeito quem cria a causa: "não sou, no entanto, causa de mim mesmo" (Lacan, 1965-66, p. 879). O objeto a depende da perspectiva a partir da qual o sujeito avalia o mundo, precisamente na medida em que escapa a esta perspectiva. O objeto a está condicionado a um ponto de vista, justamente por constituir o que se encontra fora de seu horizonte da compreensão. O objeto a é um corpo estranho que não pode ser assimilado às coordenadas de avaliação oferecidas pelo Outro, tampouco excluído dela, coexistindo com ela como seu resto ineliminável. Não se trata de um resto em-si, mas de um resto para-nós. Ou melhor, para-o-Outro.

 

A causa do desejo e o problema da responsabilidade

As observações acima acarretam para a teoria analítica um novo posicionamento a respeito do problema da responsabilidade. Vimos como o a é engendrado pela própria simbolização, na medida em que é o rochedo sobre o qual qualquer perspectiva fracassa. Não sendo possível dizer que o sujeito tenha causado o a, já que não foi ele quem o criou, não resta menos que ele deve ser responsabilizado por aquilo que o causa. Pois algo só pode aparecer como não absorvível para certa posição por ser já uma conseqüência dela. Sendo algo que excede certo ponto de partida adotado, o objeto a manifesta por isso mesmo sua dependência em relação a esse ponto de partida. Como o a não existe em si mesmo, somente como limite relativo à posição adotada pelo sujeito, este deverá então responder por "isso" que é heterogêneo a ele próprio. Este é o ponto a que "Freud os convida, sob o apelo do Wo es war, soll Ich werden, que retraduzo, mais uma vez, para acentuá-lo aqui: láonde isso estava, lá, como sujeito, devo [eu] advir" (Lacan, 1965-66, p. 878).

Caso o a fosse completamente exterior a certa perspectiva, não faria sentido responsabilizar o sujeito por algo completamente alheio a ele. Se o a fosse completamente interior a uma perspectiva, até faria sentido responsabilizar o sujeito – pois este responderia por algo que foi ele próprio quem causou –, mas não seria possível atribuir o qualificativo de inconsciente a esse sujeito. Ao afirmar o caráter de exclusão interna do a em relação a uma perspectiva, a teoria analítica consegue afirmar a possibilidade de conceber um sujeito responsável por aquilo que o causa.

Não devemos deixar de sublinhar o caráter surpreendente dessa afirmação, principalmente quando lembramos como a causa encontra-se normalmente associada à suspensão do sujeito responsável. Esta é uma discussão muito presente em um campo como o do Direito, em que é essencial saber distinguir se um sujeito pode ser responsabilizado ou não por sua conduta. Quando se considera que os indivíduos cometeram um delito devido a um fator orgânico que os impeliu à ação, automaticamente se os declara irresponsáveis. Pois agir causalmente parece implicar que toda escolha foi interditada.

No entanto, o princípio que norteia o tratamento analítico é o de "um imperativo que me pressiona a assumir minha própria causalidade" (Lacan, 1965-66, p. 879). Lacan assinala o caráter paradoxal da sua afirmação, uma vez que esta reúne dois termos aparentemente incompatíveis – "imperativo" e "causalidade". Por que seriam incompatíveis? A causa, entendida no sentido objetivo, é sinônimo de desresponsabilização. Ao dizermos que uma ação encontra-se na dependência de um fato anterior, que pressiona o indivíduo a comportar-se de certa maneira, concluímos que não restou a ele qualquer escolha. Se não houve escolha, o indivíduo não pode ser responsabilizado pelo que fez. Já o imperativo, sendo uma regra de ação, implica responsabilização. Pois só faz sentido estipular uma regra se estivermos lidando com um ser capaz de escolher. A regra só pode se dirigir a um sujeito ao qual estão facultadas diversas possibilidades de ação. A obediência à regra supõe que entre as infinitas possibilidades de ação franqueadas aos indivíduos, somente uma deverá ser seguida. Note-se que a regra deve ser seguida, o que não significa que ela será seguida de fato, já que a regra pode não ser seguida. Não há constrangimento natural algum obrigando os sujeitos a obedecerem às regras. Por isso, é um aparente contra-senso uma regra que ordena a assunção da causalidade.

Só podemos entender como a psicanálise pôde afirmar que a causa não desresponsabiliza apelando para a distinção entre os dois sentidos do termo causalidade. Se partirmos do pressuposto de que a conduta do indivíduo foi deflagrada por uma causa orgânica, portanto factual, seremos de fato obrigados a eximi-lo de responsabilidade. Já o objeto a, não representando uma causa física, e sim psíquica, deixa margem à atribuição de responsabilidade ao sujeito. O sujeito é responsável por aquilo que o causa na medida em que a causa não pertence ao registro objetivo, sendo antes o que está em exclusão interna ao registro subjetivo.

Uma outra maneira de abordarmos a conjunção entre causa e responsabilidade é tomando a via da relação entre o sujeito e o Outro. Sabe-se que antes mesmo de seu nascimento o sujeito já se encontra inscrito no campo do Outro, por intermédio da série das falas que antecipam qual será seu lugar no mundo: brasileiro, negro, classe média, filho da família Tal etc. O fato de o sujeito só poder se constituir como tal passando pelos significantes do Outro corresponde ao que Lacan denominou alienação. A perspectiva a partir da qual o sujeito avalia o mundo não é algo que ele próprio formou, mas sim uma matriz a partir da qual ele foi formado. A alienação significa que o sujeito nasceu da perspectiva do Outro; só a partir do Outro o mundo pôde aparecer dotado de uma organização mínima para ele. Ao contrário da concepção filosófica segundo a qual o sujeito seria uma instância capaz de julgar autonomamente, a psicanálise afirma que nossos critérios de julgamento provêm do Outro. O sujeito não seria uma instância livre para interpretar o sentido, pois participa de uma escolha forçada, mediante a qual os critérios de interpretação sempre virão do Outro.

No entanto, o ponto de vista que o Outro nos lega não forma um bloco homogêneo; a rede simbólica é uma trama perpassada por furos. De todos esses furos, virtualmente presentes no campo do Outro, o sujeito se alojará em algum. Não existe então a possibilidade de uma alienação total ao significante, justamente porque a ordem significante é atravessada por falhas, deixando para o sujeito a possibilidade de eleger a falha por onde ele entrará. Há uma margem para o sujeito, que é aberta pelos próprios buracos da trama simbólica. O sujeito poderá ser reconhecido precisamente como uma operação interrogativa no Outro, incidindo sobre as fissuras existentes em uma ordem dada.

Isso não quer dizer que a bateria significante possua a priori vazios, cabendo ao sujeito posteriormente se encaixar nesses vazios. Os limites do simbólico, embora de direito pré-existam ao sujeito, só podem ser de fato identificados retroativamente, depois da entrada do sujeito nessa ordem. Ao herdar o saber do Outro, o sujeito detectará os limites desse saber apenas a posteriori. A possibilidade de escolha para cada um de nós incidirá, então, não sobre qual discurso irá nos anteceder, mas sobre qual ponto de falha do discurso animará nosso desejo.

À luz desses desenvolvimentos, conseguimos entender porque Lacan espera com seus escritos "levar o leitor a uma conseqüência em que ele precise colocar algo de si" (1966). O sujeito coloca algo de seu não quando encontra respostas prontas no Outro, mas quando consegue endereçar uma pergunta ao Outro, circunscrevendo o buraco por onde ele entrará. Se dermos o mesmo texto para vários sujeitos distintos, cada um será desafiado por uma dificuldade diferente. O texto sendo, por hipótese, o mesmo para todos os sujeitos, o diferencial se estabelecerá justamente nas lacunas específicas que causarão cada sujeito. Resumindo a discussão, se os limites da simbolização constituem a causa do desejo (objeto a); e se esses limites não são previamente dados, só podendo ser posteriormente detectados com a colaboração do sujeito; logo o sujeito deve ser responsabilizado por aquilo que o causa.

 

O significante como causa material

Na discussão anterior introduzimos sub-repticiamente o significante como sendo, ao lado do objeto a, a outra causa do sujeito. Em A ciência e a verdade, Lacan (1965-66) afirma explicitamente o caráter causal do significante. Recorrendo ao clássico esquema aristotélico das quatro causas, Lacan interpreta o significante como causa material. Esta é a sentença que nós pretendemos esclarecer nesta seção do trabalho.

A causa denominada por Aristóteles de formal coincide com a essência, a definição da coisa. Ela traduz uma tendência que cada coisa tem de agir conforme sua natureza própria, tendo em vista a manutenção ou o progresso de seu ser. Por exemplo, o corpo doente exibe uma tendência a recuperar seu lugar natural, a saúde. Já a causa eficiente seria um fator externo, que "atua como uma espécie de mediador ou catalisador permitindo à causalidade interna [formal] operar" (Malherbe, 1994, p. 11) Por exemplo, se dermos um remédio ao corpo doente podemos esperar que fique sadio mais rapidamente. O remédio seria a causa eficiente. Há ainda a causa final, que seria aquilo em virtude do qual um ser existe. Por exemplo, um vaso é feito para enfeitar a sala. Por último, a causa material, que seria aquilo de que a coisa é formada. No exemplo, o bronze que compõe o vaso.

Chama a atenção o fato de as três primeiras causas já suporem todas elas a possibilidade de uma natureza organizada. Somente uma delas, a causa material, poderia existir independentemente de qualquer organização. Nossa interpretação encontra respaldo em Blanché, para quem em "face da matéria, causa passiva, as três causas ativas se reduzem geralmente a uma única, (...) a essência intemporal" (1975, p. 53). Poderíamos então reduzir as três causas ativas à causa formal, considerando a causa material como algo irredutível a um princípio de ordenação. É o que afirma Hamelin, para quem "todas as causas se reduzem à forma e à matéria...O motor e o fim não fazem senão um com a forma"(1920, p. 274-275).

Nossa hipótese é a de que ao tratar o significante como causa material, Lacan está valorizando justamente esse caráter da matéria de se mostrar irredutível a um princípio de organização qualquer. "A matéria é esse substrato mínimo, indeterminado, sem predicativo, pólo receptivo dos constrangimentos onde as outras causas vêm se acoplar. Isto vale para Aristóteles e sem dúvida para a psicanálise, já que a causa material, no sentido literal, também aí se define pela ausência de determinação" (Freire, 1996, p. 31).

Afirmar que o significante é causa material devido a seu caráter de indeterminação pode causar estranheza ao leitor. Afinal, todos já nos habituamos a entender o significante principalmente como agente de determinação, por fornecer ao sujeito os trilhos por onde ele deve caminhar. Esse sujeito ao nascer recebe um banho de linguagem, e é pela via do significante que serão fornecidas certas balizas para sua conduta, certa orientação permitindo que ele saiba como se conduzir na vida. Tal leitura, apesar de correta, exige, no entanto, uma complementação fundamental; caso contrário, não entenderíamos por que o sujeito não se deixa integrar completamente ao campo do Outro.

O sujeito ao nascer já encontra uma série de falas que o antecedem, e é em relação a esse discurso do Outro que o sujeito vai se constituir. O significante, de certa forma, fornece de fato ao sujeito alguma direção: ele será doravante um membro de certa família, uma mulher honesta, um homem corajoso etc. Contudo, isso não nos autoriza de modo algum a dizer que o significante confere ao sujeito uma identidade. Pois não é dado a ninguém saber como se comportar para ser um digno membro de sua família, como agir para ser uma mulher honesta, ou que regras seguir a fim de se tornar corajoso. Quando a um sujeito é designado certo lugar na rede simbólica, não devemos então nos ater a conceber tal lugar como uma casa na qual o sujeito vai confortavelmente se instalar, mas sim como um caminho no qual ele vai se perder. Uma vez que somos feitos de significante, nunca seremos senhores em nossa própria casa. Portanto, mais do que conceder um ser ao sujeito, o significante opera, antes de tudo, um esvaziamento de ser.

O que se transmite por meio dos significantes do Outro é, mais do que um saber, antes um não-saber. Mais do que um conhecimento a respeito do que realmente somos, nós herdamos do Outro uma ignorância fundamental. Não-saber que buscaremos remediar de várias formas. Um dos paliativos é tentarmos "preencher" o buraco aberto pelo significante, recorrendo a alguma interpretação dele. De tal modo que, por exemplo, o homem que se diz honesto definirá a honestidade como "nunca mentir". Solução que funcionará bem até o momento em que ele tiver de mentir para salvar um amigo. Aí, então, o honesto rapaz se verá em apuros... Porque, então, ele já não saberá dizer com a ingênua tranqüilidade de outrora qual a definição de honestidade. É então que o significante que comandava sua vida torna-se enigmático, seu significado ficando em suspenso. Aqui o significante assumirá sua forma mais fundamental, a de ser barreira de resistência à significação (Lacan, 1957, p. 500). E é por engendrar não um ser, mas sobretudo uma falta-de-ser, que o significante será tomado como agente de indeterminação. A analogia entre significante e causa material encontra nesse ponto sua justificativa.

A nosso ver, não é gratuito que Lacan, a fim de fundamentar o caráter material do significante, defina-o como agindo, antes de mais nada,"como separado de sua significação" (Lacan, 1965-66, p. 890). Pois quando tomamos o significante separado de sua função representacional, temos a oportunidade de apreender de modo ainda mais puro sua propriedade mais fundamental, a de ser agente de indeterminação. O significante separado de sua função de representar torna-se o correlato por excelência do sujeito esvaziado de ser. Já quando acoplamos o S1 ao S2, estamos tentando devolver o "ser" ao sujeito, tirando esse sujeito da indeterminação através da concessão de um significado ao significante (no exemplo dado mais acima, interpretando a honestidade como o dever de nunca mentir). Não que o S2 consiga de fato preencher em definitivo o vazio de S1, mas convenhamos que quando a função representacional do significante está em primeiro plano (como é o caso do par S1- S2), sua função de indeterminação fica um tanto ocultada, tornando-se de difícil apreensão... Por isso o significante agindo separado de sua significação é que se presta mais a ser considerado como agente de indeterminação, tornando-se apto a receber a designação de causa material.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
R. Goiás, 1777 / 307 – 86020-410 – Centro – Londrina/PR
Tel: + 55 43 9914-6956
E-mail: rosanelustoza@yahoo.com.br

Recebido em: 19/03/07
Versão revisada recebida em: 18/09/07
Aprovado em: 05/08/08

 

 

Rosane Zétola Lustoza

Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Professora Adjunta (Universidade Estadual de Londrina/UEL).