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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.23 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Algumas articulações psicanalíticas acerca do tratamento e da escolarização de uma criança psicótica

 

Some psychoanalytical articulations on the treatment and the schooling of a psychotic child

 

 

Camille Apolinário Gavioli

Faculdade de Educação/USP
Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida (IPUSP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto discute questões teórico-clínicas que surgem quando um analista, tomando a teoria lacaniana como referencial teórico, propõe-se a tratar uma criança psicótica. É interesse deste escrito discorrer sobre a especificidade do trabalho analítico com a psicose infantil, bem como sobre o que caracteriza o sujeito psicótico, considerando a singularidade que marca seu funcionamento. A proposta é pensar a teoria a partir da experiência clínica; direção que diz respeito à ética da psicanálise, além do fato de a discussão de caso poder ajudar a refletir sobre essa práxis. Enfim, este escrito, em que se articulam prática e teoria – posta à prova pela clínica –, não pretende dar lugar a conclusões, mas tão somente abrir-se a outras descobertas.

Palavras-chave: Psicanálise; Educação; Psicose infantil; Tratamento; Escolarização.


ABSTRACT

This text discusses theoretical and clinical questions that appear when a psychoanalyst, based on Lacan"s theory, intends to treat a psychotic child. It discusses particular aspects of analytical work regarding infantile psychosis, as well as, upon what characterizes the psychotic subject, considering the singularity that marks its functioning. The purpose is to think about the theory from the clinical experience. This direction is related to psychoanalysis ethic and it is supposed the discussion of the case can help to think about the praxis. Finally, this writing, in which theory and practice are articulated – and the theory is checked by the clinic -, does not intend to give place to conclusions, but instead to rest open to other discoveries.

Keywords: Psychoanalysis; Education; Infantile psychosis; Treatment; Schooling.


 

 

Uma vez, um caso

Matias1, 5 anos, chegou com sua família em uma instituição que oferece atendimento terapêutico2 para triagem em outubro de 2003. A família queria saber "o que o menino tem". Matias já tinha passado por várias avaliações e exames. Em uma universidade em que foi atendido previamente, foi levantada a hipótese diagnóstica de psicose e feito o encaminhamento para a referida instituição. Em uma outra associação3, onde até hoje é feito o acompanhamento neurológico e psiquiátrico, foi diagnosticado como deficiente mental. Atualmente Matias tem 8 anos. É uma criança sorridente e falante. É filho único de uma família nordestina, nascido de parto normal, no Maranhão, após um aborto espontâneo da mãe. Chegou a São Paulo aos 4 anos de idade.

A mãe supõe que houve algum problema no parto, o que justifica, segundo entende, o problema do filho. Entretanto, os exames não apontam qualquer indício que confirme essa suposição. A mãe fala que o filho teve atraso no desenvolvimento, que não brincava com as outras crianças. Quanto ao pai, não concorda com o diagnóstico de deficiente mental, e acha que filho tem um problema de comunicação", que tem dificuldade para acompanhar outras crianças. Entretanto, termina por afirmar que os doutores é que sabem, e quem sou eu para discordar". E é com essa fala que o pai se retira do tratamento, não dialoga com esses doutores" e encontra um lugar no qual fica fora dessa situação.

A vida escolar de Matias revela a dinâmica dessa família. Aos 3 anos ele foi para a primeira escola, da qual logo foi retirado pela mãe. Embora conte que Matias gostava muito de lá, a mãe justifica sua atitude dizendo não ter sido informada a respeito do andamento da escolarização de seu filho. Ele passou a freqüentar outra escola particular, cujos profissionais notaram nele um baixo desempenho, ou um atraso, além de se queixarem de que o menino não fazia tarefas. Os relatórios chamaram a atenção dos pais no sentido de que alguma coisa estava errada com o filho; contudo, nada foi feito naquele momento. Em São Paulo, ele passou a estudar em uma escola da prefeitura, mas segundo o pai, não deu certo porque Matias tem dificuldade de acompanhar", não consegue falar coisa com coisa", fala muito e não tem assunto específico". Em 2004, foi matriculado em uma escola do tipo escola-cooperativa, próxima a sua casa. Em 2005, mais uma vez mudou para uma escola da prefeitura, que freqüenta, até o momento, mas agora em uma sala especial.

A mãe vem levando o filho a médicos e especialistas, e circula com os relatórios desses profissionais, mas suas atitudes para com o filho denunciam que, como mãe, algo não vai bem – não sei o que fazer com ele!". O pai de Matias não apóia a esposa nas idas e vindas aos médicos, e é enfática sua discordância; mas a mãe explica essa atitude dizendo que ele não acredita em qualquer tipo de tratamento. Nesse cenário, interessa problematizar o lugar que essa mãe dá ao pai de Matias em seu discurso, na medida em que é ela quem sustenta o tratamento durante um longo período. Quanto à escola, podemos pensar no efeito da apresentação dos referidos relatórios. A escola espera um menino deficiente que precisa de tratamento especial; e o fato de que tal tratamento é desconhecido pelos educadores acaba fazendo com que não se impliquem em sua tarefa. E a Matias resta responder de que lugar? Ninguém sabe o que fazer com ele, e nessa zona de desconhecimento não há regras ou limites.

 

Entrevistas preliminares

Matias é um menino desinquieto" – é assim que sua mãe o descreve –, que se mexe quase todo o tempo. A equipe aposta, então, na indicação de um atendimento individual, supondo que com o tratamento ele poderá contar com um lugar estável para construir um saber a respeito de como é viver neste mundo, com seus próprios recursos. Apesar de sua mãe sempre fazer as coisas por ele, no lugar dele, Matias nem sempre responde concordando com as demandas dela. Mesmo em tentativas precárias, ele fala de suas vontades, e é isso que pede escuta. É curiosa a posição desse menino. Ele consegue, em alguma medida, confrontar o desejo da mãe.

Desde a primeira entrevista, a atitude da mãe é a de descrever detalhadamente o que e como diz qualquer coisa a seu filho, reportando-se repetidas vezes às orientações que recebe dos especialistas. Seus pais contam que o filho gosta de ir à casa das primas, de ir ao parque perto de casa, e também de andar de ônibus. O gosto pelo andar de ônibus revela algo muito interessante da história dessa família. A mãe conta que quando menina adorava passear de ônibus e o pai fala de seu sonho de infância: ser motorista de ônibus. Isso nunca foi dito a Matias e seus pais sequer imaginaram que o gosto do filho pelos ônibus pudesse estar relacionado ao gosto deles, ou ao que acontecera em suas vidas, conforme eles mesmos relataram em entrevista. O tema dos ônibus tem sido de constante interesse durante o tratamento, e por isso merece uma abordagem mais detalhada, à qual retornarei mais adiante.

Ainda no que diz respeito à posição dos pais, é interessante relatar o modo como se dirigem ao filho. A mãe sempre duvida de que Matias entenda o que ela diz. Então quando Matias a desobedece, ela diz a ele que não pode fazer tal e tal coisa, mas em uma posição totalmente destituída de autoridade. O pai não considera o filho doente, uma vez que para ele o que o filho tem é um problema de comunicação", portanto, diz que fala firme" com Matias, e que o filho fica chateado, mas passa. E acrescenta que é a mãe que não sabe comunicar". Essa fala da mãe, o que ela transmite, enfim? A dificuldade com os limites, tanto para ela quanto para seu filho. Na dúvida quanto à compreensão do menino, acaba fazendo as coisas por ele, mesmo quando ele lhe pede para realizar sozinho alguma tarefa.

As entrevistas com a mãe, ao longo do tratamento, têm promovido sua implicação no quadro clínico que se delineia para o filho, e servem a ela como um lugar para trabalhar e elaborar o não saber a que ela se refere, sem fazer um trabalho de orientação, conforme ela solicitava. Atualmente, é possível constatar os efeitos desse tipo de intervenção. A mãe justifica suas atitudes em relação ao filho dizendo o que ela mesma pensa a respeito daquilo que lhe é dito sobre seu filho. Não se trata mais de mera reprodução da fala do outro. Ela não fala mas refere em dúvidas quanto à compreensão de seu filho, e tomo uma expressão que ela usa, a qual revela importante mudança no modo como se dirige à criança: eu falo firme com ele, o que é certo é certo".

 

Sobre os atendimentos de Matias

Nos atendimentos, Matias responde prontamente ao ser convocado. É uma criança que brinca, e suas inúmeras brincadeiras fornecem um importante operador de leitura para pensar sua posição na relação com o Outro4. É interessante fazer uma articulação entre as teorias sobre as psicoses e o que se passa com essa criança, assim como também é importante discutir as intervenções e seus efeitos para pensar a direção de tratamento. Será mesmo um caso de psicose? Qual a relação do psicótico com a linguagem? Em outras palavras, como é o Outro para o psicótico? O que é a função paterna5 nesses casos?

A relação do sujeito com o campo da linguagem revela sua posição, e a particular posição do psicótico com o que vem desse campo do Outro se divide entre a colagem e a recusa. Assim, há momentos em que fica evidente que ele habita a linguagem, fazendo dela um bom uso para se comunicar, e há outros em que ele é literalmente habitado por ela. Nesse caso, repete falas de comerciais e falas de sua mãe, mostrando sua forma de relação com o Outro. Nas palavras de Lacan:

Como não ver na fenomenologia da psicose que tudo, do início até o fim, se
deve a uma certa relação do sujeito com essa linguagem, de uma só vez
promovida ao primeiro plano da cena, que fala sozinha, em voz alta, com seu
ruído e seu furor, bem como com sua neutralidade? Se o neurótico habita a
linguagem, o psicótico é habitado, possuído, pela linguagem (Lacan, 1955, p.
284).

É difícil para Matias administrar essas falas; assim, em muitos momentos ele acaba repetindo-as sem censura, o que se evidencia também em sua agitação motora. Lembro o comentário do pai: ele fala muito, mas sem um assunto específico, não fala coisa com coisa", e é isso que se observa em vários momentos. De uma coisa desliza para outra, desliza de uma fala para outra, de uma brincadeira para outra, como um texto sem pontuação. A hipótese diagnóstica da equipe é a de que se trata de uma psicose. Nesse sentido, poderíamos pensar simplesmente a agitação motora e o tipo de fala como fenômenos que dizem respeito a uma psicose; contudo, há que se considerar que é esse o modo como Matias responde à oferta que vem do campo do Outro, ou seja, que há um jeito particular de essa criança lidar com tal oferta.

Iluminar a cena desse modo faz com que o olhar se dirija à criança que tem lá seus problemas, e que com o tratamento e a circulação, poderá criar outras condições para viver, para melhor circular pelo mundo. A direção, então, não é a de confirmar a teoria, mas colocar a clínica no lugar de questionadora da teoria, e essa é uma questão ética para a psicanálise. Tal tipo de abordagem parece simples, e até mesmo óbvia quando dita dessa maneira, mas requer grande esforço do analista no trabalho clínico; neste caso, por exemplo, questiono-me freqüentemente sobre o lugar de que falo depois de ter feito uma intervenção.

No texto Estruturas clínicas e constituição do sujeito, Dunker faz uma afirmação que ajuda a sustentar a direção da minha escuta. O autor diz que não se trata apenas de uma descrição da estrutura, mas de intervenção. A estrutura inclui o outro (analista) conforme a tese de que o analista faz parte do conceito de inconsciente" (2006, p. 126). Assim, ao considerar a questão motora e a da fala, cabe ao analista, ao tomar a criança em tratamento, estar atento para perceber em que lugar a criança o coloca; quais são os recursos da criança; e dentre esses, com quais ela ainda poderá contar para se organizar e lidar com aquilo que vem do Outro. A idéia é refletir sobre a maneira como se olha para a clínica. Ainda nas palavras de Dunker, a clínica é uma experiência aberta e que, como tal, deveria estar em condições de criticar e fazer objeção à teoria de onde precede" (p. 122); ou seja, trata-se de uma leitura atenta e crítica do caso e da teoria.

É nessa escrita da clínica que retomo o interesse de Matias pelos ônibus. A princípio, ele se entretém com algum material dentro da sala, mas basta escutar o ronco do motor dos ônibus que se torna incontrolável o impulso de dirigir-se rapidamente à janela, para vê-los passar. Diante de seu grande interesse pelos ônibus, vou propondo brincadeiras em torno desse meio de transporte, em que penso encontrar algo que possibilite uma passagem para outros interesses. Quando ele está na janela, proponho brincadeiras como nomear os ônibus, nomear os terminais mencionados no pára-brisa, cores ou o número dos ônibus que passam diante de nós. As brincadeiras são uma tentativa de circunscrever uma atividade, colocar alguma delimitação à desordem que ele revela e que o impede de sustentar sua escolha por alguma brincadeira. A resposta de Matias a esse tipo de intervenção é muito interessante. Ele passa, muito lentamente, a ficar mais tempo na janela observandoos ônibus, e as conversas sobre o assunto também vão incorporando novos detalhes. Esse tema permanece muito tempo como o principal interesse de Matias; ou seja, falamos, desenhamos, brincamos também com miniaturas de ônibus.

Recentemente ele aprendeu a ler, e agora, ao ver os ônibus passando, Matias lê as palavras e números inscritos na carroceria. É possível dizer que o ônibus é um objeto investido, uma vez que ele não lê qualquer coisa: ele escolhe o ônibus, e nesse sentido, podemos dizer que o ônibus é um significante que representa Matias.

Para falar em significante6, é preciso esclarecer que a representação nesse caso – ou seja, em uma psicose – guarda especificidades. Na neurose, falamos de sujeito como efeito da cadeia significante. Em outras palavras, que um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante" (Lacan, 1960, p. 833). Trata-se de uma operação que conta com o registro simbólico, então fica clara a idéia de representação, pois é justamente pela incidência do simbólico que a substituição, a flexibilidade e o deslizamento na cadeia significante são possíveis. A retroação aparece e o equívoco se revela, justamente pela incidência da metáfora paterna, ou da função paterna. Na psicose, a representação, por estrutura, não conta com o simbólico – ou seja, com a incidência da metáfora paterna; ela se dá imaginariamente, sustentando-se em situações isoladas. Matias faz uma construção em relação aos ônibus, mas essa construção se limita a esse objeto. Quando muda o objeto, uma nova construção precisa ser feita. Aparece, portanto, o sujeito da psicose.

Em Autismo e paranóia, Soler observa que essas crianças autistas respondem como um puro significado do Outro" (1999, p. 226). Ou seja, o ônibus tem um sentido único, não há dialética das palavras; assim, quando Matias ouve o barulho do ônibus, não é possível não se deixar levar pela convocação; todavia, algo da singularidade dessa criança se faz notar.

O ônibus é trazido por ele para a análise, e a partir daí o analista faz-lhe uma oferta: o tema ônibus passa a ter uma função de referência, torna-se um eixo organizador, destacado pelo menino entre tantos outros. Matias engata nessa oferta, e só isso lhe interessa. Ele, então, incrementa a proposta a partir da proposta da analista. Poderíamos dizer que se trata de pura colagem àquilo que vem do Outro. Entretanto, Matias não cola em tudo que vem do Outro. Há certa seletividade quanto àquilo que vai colar ou servir-lhe de referência, e isso revela uma marca, algo particular nessa e dessa criança, algo que a distingue das outras, e é também o que permite falar em sujeito da psicose.

As cenas diante do espelho também revelam um importante movimento desse menino e servem para ilustrar, primeiramente, com qual registro o psicótico conta, e em seguida, as particularidades da questão da imagem corporal quando se fala em psicose. Aparece uma imagem estruturada, mas bastante frágil. Assim, Matias recolhe referências imaginárias para organizar seu corpo; referências que – por serem imaginárias – têm um caráter pontual. Com isso, fica caracterizado que na psicose o registro se dá no plano imaginário.

Por falta de referência simbólica, o sujeito psicótico funciona no registro
imaginário, onde o outro é tomado como espelho e modelo de identificação
imediata. Disto decorrem os fenômenos de transitivismo, projeção, rivalidade,
onde identificação e erotização se confundem. O semelhante é apreendido
apenas no registro do imaginário onde a relação especular é a regra (Quinet,
2003, p. 18).

A exposição de Quinet ajuda a qualificar a especificidade do registro imaginário, o que, por sua vez, tem conseqüências na construção da imagem corporal. Ou seja, Matias mostra-se organizado, mas também há vários momentos em que o eu e o Outro aparecem como uma coisa só. Ao ver sua imagem refletida no espelho, ele sorri, engraçando-se, em júbilo com o próprio corpo. Ele se reconhece e busca o olhar do Outro para reconhecê-lo e para diferenciar-se de mim no espelho. Em outras palavras, convida o outro a olhar para um objeto em comum, incluindo e buscando o reconhecimento do Outro. Ele nomeia sua língua, sua cabeça, levanta sua camisa e nomeia sua barriga. Antes ele se dizia quase sempre em terceira pessoa: olha a barriga do Matias". Nesse caso, Matias é falado pelo Outro. Agora, apesar de essa fala em terceira pessoa ainda aparecer, ela surge intercalada com outra, como: olha minha barriga". Mais tarde, ele me inclui na brincadeira, momento em que encontra subsídios para organizar o eu", o que sua fala também evidencia. O pronome eu" vai aparecendo cada vez mais, e fica clara a exploração e a construção que ele faz. E agora ele fala da minha barriga, ao ver minha imagem refletida, e fala de sua barriga, também refletida no espelho.

Na psicose, o que se observa, no que diz respeito à imagem corporal, é uma fragilidade em termos de sua consistência e constância. É preciso um outro, alguém literalmente presente, que ora parece bastante distinto do eu, ora não, e nesses momentos o psicótico e o outro formam claramente uma coisa só, uma imagem só.

O túnel de pano é outro brinquedo que faz parte dessa história. O túnel possibilita que a criança brinque com seu corpo e com o do outro. Ele pode esconder-se, separar-se visualmente do outro, e então brincar com a alternância presença e ausência que, vale repetir, na psicose também tem um caráter imaginário. Ou seja, trata-se de uma presença ou de uma ausência que se configura, se efetiva concreta e pontualmente. Nesse túnel – de brincar de perder o Outro e de perder-se desse Outro –, falar do circuito pulsional pode lançar alguma luz, uma vez que no estabelecimento desse circuito o que está em jogo é a construção de um corpo libidinizado, e essa libidinização se dá por meio da relação do corpo da criança com o Outro. Em outras palavras, trata-se da construção de bordas libidinizadas, de passar de uma experiência sensorial e de indiferenciação geral para certa diferenciação e incrementação. O primeiro tempo desse circuito caracteriza-se por um movimento ativo da criança em direção a um objeto externo; no segundo momento, a criança está em uma posição mais passiva, já que ela toma uma parte do próprio corpo como objeto; e o terceiro momento é passivo também, já que a criança se faz objeto do outro, oferecendo partes de seu corpo para a degustação". Laznik afirma que a instauração do terceiro tempo do circuito pulsional instaura a alienação na sua dimensão real" (1998, p. 47). Assim se constroem marcas, os contornos do corpo, e a boca pode deixar de ser apenas um orifício.

É possível dizer que Matias, em suas brincadeiras, mostra os efeitos dessa operação, porque sua relação com o Outro conta com a elaboração que o estabelecimento do circuito pulsional possibilita. Revela-se a dimensão de sua submissão ao Outro, ou melhor, da alienação. Há um Outro ali, um tanto indiferenciado às vezes, e há marcas do Outro que também parecem já ter sido apropriadas por esse menino. Seu corpo parece organizado, por intermédio de referências imaginárias, nas quais ele vai se apoiando. Poderíamos pensar no circuito pulsional como efetivado em alguns pontos e em outros não. Nesse sentido, o que importa destacar é o caráter pontual que o registro no plano imaginário implica.

Como isso aparece nas brincadeiras de Matias? Seu interesse se manifesta por meio de formas de brincar que coloquem em jogo o tema da separação e da ordenação, e o túnel é o brinquedo escolhido. Primeiro ele se esconde no túnel e eu o encontro; depois, eu me escondo, e depois outros objetos – como um ônibus de brinquedo – também são escondidos e depois encontrados. Ele desenha um ônibus para mim e outro para ele, e ainda um terceiro para sua mãe. A organização que ele vai construindo é evidente em sua fala. Ele passa de uma grande indiferenciação das pessoas para certo discernimento.

A Joice é a Camille, a Darlene é a Camille". Darlene é o nome de sua mãe. Os nomes próprios interligam-se tornando sujeito e predicado indiscerníveis, metonimicamente substituíveis. Em outro momento, ele diz: a Darlene tá na sala de espera, o Matias tá aqui. Não, a Darlene tá aqui. Não, a Darlene tá na sala de espera". São várias idas e vindas que ele revela ao falar, enquanto também vai construindo os lugares dos personagens nas cenas narrativas que tenta elaborar.

Em outra cena clínica, brincamos com carimbos de animais e cada um tem sua folha para carimbar. Muito atento a minha produção, Matias fala: esse é o cão". Ele olha, e pergunto se ele quer saber como se escreve essa palavra. Ele responde: acho que quero". Imediatamente escrevo CÃO", e ele copia a palavra sob a imagem do cão em sua folha. Em seguida, vira sua folha e carimba a figura do leão, e escreve embaixo, sem copiar, ?AO", com a letra C" invertida. Na seqüência, proponho um jogo de onomatopéia, carimbo o leão e escrevo como o leão faz, e ele carimba o cavalo e escreve como o cavalo faz, mas no caso, repete o que fiz para o leão. Como analista, fico como testemunha de suas articulações e também na posição de garantir, pela minha fala e presença, um lugar de sustentação da ativa construção imaginária, às voltas da qual esse menino está. A posição que ocupo é determinada por minha presença real, o outro semelhante, e como Outro possível. Por que falar em Outro possível?

O Outro do psicótico é absoluto, a ele nada falta. Na psicose, falamos de uma indiferenciação entre o eu e o Outro, e faz-se necessário construir uma separação possível, para que o sujeito psicótico possa construir mediadores ou referencias com os quais possa contar para lidar com o Outro. O Outro invasivo provoca situações para as quais o psicótico não vê outra saída, senão a de responder como objeto. Em decorrência disso, um dos desdobramentos que se observa é uma pura colagem ao significado do Outro. Nessa cena, diferenciar o outro, o semelhante, pode significar, de alguma maneira, diferenciar-se do Outro.

Isto posto, interessa retomar a cena há pouco descrita. Cabe pensar que, ao escrever, Matias exercita a separação: o que é do leão, o que é do cão, e mais, sua produção e a minha. Sua escrita revela sua organização, já que a escrita mostra a relação do sujeito com a linguagem. Assim, ao mesmo tempo em que a escrita e a fala demonstram a relação sujeito e linguagem, elas também podem servir ao sujeito como um meio para se organizar, para marcar o espaço e o tempo, e simultaneamente diferenciar-se desse Outro.

Nesse sentido, cabe questionar como o sujeito se dirige ao outro, ou seja, se demonstra notar alguma diferença entre um e qualquer um. Matias vai aos poucos construindo seu lugar, e assim, um lugar para os outros. É dessa forma que ele se dá conta de uma diferença entre as pessoas com as quais convive, e de seus direitos e deveres. Ele vai montando histórias para cada personagem de sua vida. A princípio, tudo parece muito desordenado em sua fala, mas se organiza conforme vai construindo sentido ou significações para o que vive.

A Darlene é a Camille". Não é possível precisar o que vem antes, que falas, que construção, que organização. Trata-se de um movimento que vai se tornando pouco a pouco mais complexo. A Camille é psicóloga e a Paula é secretária". Designação e predicação vão se deslocando por substituição. Matias começa também a se interessar pelo tema dos gêneros, ou seja, diferenciar coisas de menino e menina, de homem e de mulher, de fêmea e de macho. Em uma brincadeira de cabeleireiro, em que ele é o cabeleireiro e eu a cliente, pergunto-lhe: qual o seu nome?" Ele responde: Ano Paulo" –, fazendo a versão masculina para o nome Ana Paula. Ele fala do cavalo e da cavala, que a Ana fica chateada, e eu fico chateado".

Proponho-lhe que também fale o que deseja fazer antes de simplesmente mudar de atividade. Matias se expressa bem, e este me parece ser um recurso do qual ele pode usufruir, e minha aposta é a de que isso tenha um efeito organizador para ele. O simples ato de falar deixa clara nossa submissão ao Outro, mas também uma diferenciação, já que se fala uma coisa entre todas as outras. Ao falar, Matias é confrontado com o Outro, e aí precisa tomar uma decisão. Assim, o ato de fala é em si um ato de separação do Outro.

Matias hesita ao falar, mas não se trata de uma gagueira. A hesitação evidencia o confronto com o Outro. O que hesita em aparecer aí? O eu? O Outro? Além disso, à medida que ele diz o que fará a seguir, ele promove um intervalo no deslizamento puramente motor de uma coisa para outra, o que também permite alguma interlocução com o outro. Ao intervir nesses momentos, pedindo-lhe que diga o que quer fazer, a analista oferece-lhe recursos, por representar o que vem do campo do Outro, para que ele possa assim lidar com esse Outro desregrado que se lhe apresenta.

O efeito da intervenção confirma minha hipótese de que ela é produtiva para ele. Cabe indagar nesse momento a partir de que posição a analista se dirige a essa criança. Ao lhe propor determinado modo de relacionar-se com as regras e leis do mundo, não estaria colocando-o no lugar de objeto? Se o psicótico sempre responde do lugar de objeto, uma vez que isso é próprio de sua estrutura, qual a diferença neste caso? A diferença que interessa apontar aqui é que a convocação que o outro lhe faz pode ser diferente, ou seja, a convocação pode dirigir-se ao sujeito. Pergunto: se o psicótico responde do lugar de objeto, por que é importante convocá-lo diferentemente desse lugar? Parece que só assim abre-se uma brecha para que haja alguma apropriação, uma marca, um traço, e para que algo da singularidade do sujeito da psicose possa surgir.

Contudo, não se trata de conduzir o sujeito. Isso seria da ordem do imperativo e contra a ética da psicanálise. O analista deve conduzir o caso, oferecendo referências a partir das quais o psicótico possa construir suas próprias referências e viver no mundo. De que maneira isso aparece nos atendimentos? Primeiro, falo com ele sempre da posição de quem toma a mesma regra para dirigir-se a ele, isto é, eu também, literalmente, falo com ele antes de qualquer mudança. Este passou a ser um combinado: primeiro falamos e depois fazemos. Segundo ponto, ao propor que falemos antes de agir, faço uma oferta e espero para ver como Matias responde a ela. Não se trata de uma regra que deve ser obedecida. Pergunto-lhe: vamos fazer um combinado quanto às nossas brincadeiras?". A resposta dele é: vamos". A partir desse momento, meu papel é garantir o combinado. Toda vez que Matias não o toma como referência – e isso acontece com freqüência –, repito o que combinamos, eu e ele. O efeito é que ele vai se apropriando disso e passa de uma atitude em que a minha fala é o que o organiza, para uma outra em que ele mesmo repete o combinado. Já não preciso mais enunciar o combinado a cada momento. Parece que a apropriação do combinado garante-lhe a possibilidade de organizar-se diante das regras que regem a relação com o outro, ou seja, com o Outro. Ele pode, assim, contar com recursos seus para lidar com seu tempo e o tempo de cada coisa.

 

Um sujeito da psicose

Na psicose, cabe falar em regras e não em lei, justamente pelo caráter pontual que a regra tem, marcada pelo registro no plano imaginário. Dito de outro modo, ela funciona como referência no um a um, em uma situação, e por isso, precisa ser de novo construída quando se trata de uma outra cena.

É na posição de Matias em relação à linguagem que se pode sustentar que, nas cenas clínicas aqui relatadas, trata-se (de) uma criança psicótica. Essas cenas, articuladas à teoria, fundamentam esse diagnóstico e permitem sustentar a definição de uma estrutura clínica. Há momentos em que ele se dirige a mim, em que me toma como interlocutor. Entretanto, há outras circunstâncias em que fala dele mesmo com um outro. Em alguns desses momentos, pergunto-lhe: com quem você está falando?" Às vezes, ele responde: tô falando com a Camille". Nesse caso, claramente, não sou eu seu interlocutor; sou simplesmente mais uma das vozes que lhe falam. Outras tantas vezes, contudo, ele responde: tô falando com você". Aí, sim, sou seu interlocutor, e é um sujeito que sua fala revela. Digo-lhe então: olhe para mim enquanto fala comigo".

Neste ponto, importa também discutir a referência ao termo sujeito, já que em psicanálise fala-se em sujeito quando se fala em neurose. É possível falar em sujeito da psicose? Certamente, há muitas maneiras de se abordar essa questão. Parto, então, de algumas articulações de Lacan para falar da psicose.

Em psicanálise, fala-se em sujeito como efeito da cadeia significante, como efeito da linguagem. Entretanto, essa lógica diz respeito à clínica da neurose. Nas psicoses, o que se observa é que não ocorre o intervalo entre os significantes, lugar a partir do qual poderia emergir o sujeito. Não há passagem de um significante a outro, com efeito retroativo, e isso caracteriza certo modo de a criança se apresentar na linguagem. À criança psicótica resta a permanente colagem ao significante do desejo materno, o que a prende à posição de objeto, de modo que a relação de completude mãe-bebê – que por natureza se instaura em um momento da vida desses dois indivíduos – não se desfaz. O sujeito humano desejante se constitui em torno de um centro que é o outro, na medida em que ele lhe dá a sua unidade, e o primeiro acesso que ele tem do objeto, é o objeto do desejo do outro" (Lacan, 1955, p. 50).

O que é específico na estrutura da psicose, seguindo ainda com Lacan, é que, [a criança] se torna o ‘objeto" da mãe e não tem mais outra função senão a de revelar a verdade desse objeto. A criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como o objeto a na fantasia." (Lacan, 2003, p. 369 – grifo do autor). Ou seja, a criança psicótica se oferece como suporte ao lugar de objeto do fantasma da mãe. Se a constituição do fantasma é a estrutura mínima do sujeito, porque em sua operação separa-o do objeto, assujeitando-o ao movimento do desejo e lançando-o nas leis da linguagem, vale dizer que na psicose a criança tem problemas para constituir seu próprio fantasma. Essa dificuldade está no fato de que o sujeito dividido, efeito da saída do lugar de objeto, não ocorre. Como formula Jerusalinsky (1996), na psicose fala-se em sujeito não dividido; fala-se que sua posição é a de equivalência ao objeto.

Falar em sujeito nas psicoses é um pouco curioso, na medida em que há pouco foi dito que o sujeito é efeito do jogo significante, e que a ascensão à condição de sujeito é decorrente de uma operação lógica que a criança psicótica não faz. Nesse sentido, a leitura de Soler sobre os autismos (que essa autora situa no quadro das psicoses) é esclarecedora. Para Soler, tais crianças são sujeitos, mesmo que não falem, uma vez que são tomadas no significante pelo fato de se falar delas; no Outro há significantes que as representam" (1999, p. 221). Essa é a primeira emergência de todo sujeito, qualquer que ele seja.

A partir de tais considerações, é possível falar em sujeito da psicose, e isso ajuda a sustentar a hipótese diagnóstica de psicose no presente caso, uma vez que a flexibilidade de sentido que o jogo significante possibilita não aparece na fala desse menino. O sentido é único: é aquele que vem do Outro de modo absoluto; é uma fala que revela certezas, não há dúvidas, não há dialética. Nas falas de Matias, como em não pode falar palavrão que a Camille fica doente", aparece uma junção, uma indiscriminação que se repete nas brincadeiras. Assim, se eu brinco de carrinho, ele repete o que fiz inúmeras vezes; procura repetir a mesma música que canto, ou meus gestos. Essa dinâmica também diz de sua posição na linguagem, ou seja, de uma colagem ao significante, o que caracteriza uma relação puramente imaginária com o Outro, uma relação em que não vale o faz-de-conta.

No faz de conta está em jogo o fazer-se de, a simbolização. Brincamos de pega-pega, e de cada vez, um de nós, com um pano na cabeça, faz o papel do monstro. A brincadeira vai bem enquanto ele é o monstro e eu a presa; todavia, assim que proponho a inversão de papéis e escondo meu rosto, literalmente viro monstro, e Matias sai correndo da sala, em disparada, dirigindo-se à rua. Ao encontrá-lo, pergunto-lhe o que está acontecendo. Muito assustado, ele responde: o monstro". Na psicose, fazer-se de monstro pode ser tornar-se monstro, portanto, não há mais Camille, ou Camille-vestida-de-monstro, Camille é o monstro. A brincadeira não é uma representação, é a realidade.

É pelo efeito da intervenção, pela resposta da criança que se pode efetuar o diagnóstico. Matias é uma criança que faz perguntas, mas como ele lida com a resposta? A resposta cola-se na pergunta, e sempre em um sentido imaginário. Suas perguntas, por sua vez, não trazem a idéia de um enigma, remetem a um vazio, a um nada. Esse modo particular de tomar a fala do Outro indica que Matias constrói seu saber como pequenas histórias a respeito do funcionamento do mundo. Uma resposta para cada pergunta, em uma lógica do um a um e que, portanto, não comporta dúvida. Suas perguntas têm o estatuto de identidade e não de enigma. Ou seja, ele pergunta o que é isso ou aquilo ou o porquê de uma determinada coisa, e a resposta simplesmente encerra a cadeia de associações. Uma questão não engancha na outra. Não se trata de um por que" enganchando-se em outro por que". Da mesma maneira, aquilo que foi aprendido também fica no lugar do inquestionável. Assim, morar em São Paulo encerra a possibilidade de considerar que morar em São Paulo é o mesmo que morar no Brasil. Ele diz: eu moro em São Paulo, não é no Brasil".

Matias dá a impressão de um menino organizado, entretanto, fica claro que essa montagem é bastante frágil, uma vez que essa qualidade se refere ao estatuto de seu registro, ou seja, ao plano imaginário. Ela funciona bem para lidar com as situações que ele já conhece e em que se repetem os mesmos elementos em jogo. Trata-se de um saber todo. A cada nova situação será preciso construir um outro saber, fechado, sem dúvida, e ele vai arranjando, a cada nova situação, um jeito de lidar com ela.

O barulho do motor leva Matias mais uma vez à janela: o que é que aquele ônibus tá fazendo ali?". Respondo: acho que está parado esperando os passageiros embarcarem". Ele continua: como ele chama?" Digo: é o Parque D. Pedro". Assim, o ônibus que está parado esperando os passageiros é desta vez o Parque D. Pedro. A resposta resolve essa cena, e se um outro ônibus parar ali outro dia, será necessário reconstruir a resposta.

 

A escolarização

E os efeitos da escolarização? Na escola educa-se, ensina-se, formam-se hábitos, uma rotina, e assim forma-se um corpo. Matias responde bem a essa convocação escolar, o que se faz notar depois de algum tempo de tratamento.

Atualmente ele lê e escreve, e pede à analista para aprender a falar direito. Ele omite as letras R" e L" em algumas circunstâncias; percebe essa omissão, que expressa com as palavras do pai: o meu pai falou que eu falo enlolado". Sua professora nota que ele está escrevendo como fala e pede um acompanhamento fonoaudiológico. Ele é, então, encaminhado para uma avaliação e, com a confirmação e a indicação para atendimento, sua mãe busca a ajuda desse profissional.

No início do tratamento analítico, Matias freqüentava uma escola que dizia que lá não era um lugar para ele, que seu lugar era em uma escola especial. Não podia contar com a organização que uma escola oferece e que tão claramente lhe faltava. Os educadores dessa escola diziam não saber o que fazer com ele e hesitavam em tomar com ele as atitudes que tomavam com outros alunos. Depois de algumas conversas com a professora, constatou-se que não havia o investimento necessário a essa criança. Assim, a mudança de escola estava no horizonte. Qual escola?

A mudança para uma escola regular parecia indicada. A aposta era a de que ele se beneficiaria do ordenamento que qualquer escola propõe se puder tomar uma criança como ele efetivamente como um aluno. A indicação foi correta. A escola pôs em discussão, em primeiro lugar, se Matias deveria ficar em uma sala regular ou especial. A proposta foi, então, a sala especial, e seus pais concordaram.

Matias e sua mãe passaram a ir à mesma escola. Sua mãe conseguiu um trabalho voluntário lá, o que a deixou muito contente. Ela dizia que lá aprendia muitas coisas, ocupando-se com os afazeres que lhe atribuíam, e que seu filho não a via, pois ela ficava na secretaria ou na cozinha da cantina.

Foram inúmeras as entrevistas com a mãe para falarmos do assunto escola. De quem é aquela escola? É dela? É de Matias? Por que ela resolveu ter um trabalho voluntário na mesma escola que o filho? A mãe pôde falar de sua dificuldade em deixar seu filho só" – o que, no caso, significa sem ela". Também contou de sua vontade de voltar a estudar e a trabalhar, e que não podia fazer isso porque tinha que cuidar do filho. Atualmente, o trabalho da mãe é levar e buscar de ônibus crianças de sua vizinhança que estudam na mesma escola de Matias. Ela também voltou a estudar, mas em uma escola e em um período diferentes dos de seu filho. Pela manhã, Matias vai à escola, à tarde, vai para ACM7 de perua. E sua mãe está fazendo supletivo à noite.

Essa mudança de atitude da mãe parece estar relacionada também a uma mudança de atitude do pai, que após dois anos do tratamento analítico do filho, reapareceu. A partir de uma situação ocorrida em casa, ele concluiu: meu filho precisa de mim". Ele pediu para conversar com a psicóloga do filho e contou a cena que o fez mudar de idéia. A partir desse dia, o pai se comprometeu mais com os cuidados do filho, especialmente na questão escolar. Ele resolveu ir à escola de Matias para resolver sua inserção no próximo ano letivo: sala especial ou primeira série regular? Essa era a questão que se impunha naquele momento, dado o período do ano.

A escola resolveu manter Matias na sala especial porque ele era muito inquieto, não conseguia sentar-se, e com isso não podia cumprir as tarefas exigidas em uma primeira série. A equipe escolar considerava Matias muito agitado e pediu que fosse feito um acompanhamento psiquiátrico, dizendo aos pais que se o filho deles fosse menos agitado, ele talvez pudesse ser remanejado para uma sala regular. Os pais concordaram com a decisão da escola.

A avaliação psiquiátrica validou a agitação motora mencionada pela escola, diagnosticando Matias como hiperativo. O uso da medicação prescrita pela psiquiatra foi importante. A agitação motora diminuiu bastante e ele passou a ficar mais tempo sentado na sala de aula na escola, bem como nos atendimentos clínicos. Aos olhos da escola, ele passou a ser uma criança hiperativa, diagnóstico que soa mais interessante do que o de Deficiente Mental, que circulava até então. Esse fato também ressignifica as dificuldades de Matias para seus pais.

Seu pai contratou uma professora particular para lhe dar aulas de reforço e investiu na aprendizagem da educação formal, impondo horários de estudo na rotina de Matias. A isso o filho respondeu prontamente, aprimorando constantemente, desde então, suas habilidades em termos da leitura e escrita. Para Matias, o pai passou a ser uma referência imaginária com um efeito organizador. O lugar que o pai passou a tomar também apareceu na fala de Matias. E ele falou do pai nos atendimentos.

Como analista atenta às conquistas desse menino, a partir da mudança de escola e pela ampliação e enriquecimento do repertório dele tanto em termos de vocabulário como nos jogos e na relação com os outros, tendo a pensar que ele poderia se beneficiar bastante das propostas da sala regular. Na instituição em que Matias é atendido, há uma equipe que faz o acompanhamento de sua escolarização por meio de visitas à escola. As visitas do profissional dessa equipe à escola produziram e produzem resultados interessantes, em termos dos efeitos da implicação da instituição na educação desse aluno. Matias fica o período todo na escola, faz as tarefas em sala de aula e ainda leva lição para casa. A professora diz que ele é o mais esperto da sala. Por outro lado, a professora também fala de dias mais complicados, quando ele nada quer fazer e mal consegue ficar sentado. De modo geral, ela vê muitos avanços. A mãe traz o caderno do filho para o atendimento e pede a ele que mostre suas atividades.

Matias não parou, desde então, de progredir: já mudou de sala de aula e também tem novos colegas, e é ele quem conta a mudança para a analista. Os efeitos dessas intervenções são muito importantes. Esses novos olhares para ele lhe permitem colocar-se diante do Outro de um modo mais organizado e com mais recursos. Os pais mudam de postura, mãe e filho aprendem a lidar com o grude" de outra maneira.

 

Falando do que se pôs à prova

Esta escrita é o relato de um estudo de caso. O efeito de pôr em palavras uma prática clínica, escrevendo-a, está já nos primeiros registros freudianos, que dialogam com a própria forma de escrever, com as dificuldades em lidar com uma teoria constituída pela mesma prática que a desafia.

Há duas questões que parecem resumir o que diz respeito à pertinência deste texto. A primeira delas é para que serve o tratamento?". Para Matias, o tratamento analítico constitui para ele um lugar para construir referências imaginárias que organizam e promovem conquistas e ganhos subjetivos. Ele faz suas construções, suas pequenas histórias a respeito de como o mundo funciona e de como ele pode lidar com as questões que vão aparecendo. Também é evidente o ganho em termos de organização na relação com o Outro; ou seja, no modo como se dirige às pessoas para obter o que deseja, na escola, em sua produção escrita, em suas perguntas. O tratamento também precisa incluir a escuta dos pais, e nesse caso, funciona como lugar para falarem de suas dificuldades nos cuidados e educação do filho, para promover sua implicação e ajudá-los a sustentar esse lugar, que é fundamental para o estabelecimento, a continuidade e a viabilidade do tratamento.

Porque discutir o tema?". Eis a segunda questão proposta neste trabalho. Discutir a práxis é fundamental, e em termos éticos, a psicanálise não pode se esquivar da discussão, dada a importância de seu conhecimento a respeito da psicose. Além disso, são inúmeros os impasses vividos por educadores e psicanalistas que trabalham com crianças psicóticas e que buscam espaços de interlocução e reflexão a respeito da psicose infantil.

Encontramos algumas respostas para ambas as questões. Respostas que servem, neste caso, para Matias, para tecer algumas articulações sobre o tratamento e a escolarização de uma criança psicótica. Uma a uma, caso a caso, as histórias se contam, cada uma e todas marcadas pela incompletude, pela falta de solução definitiva, e mesmo pelo mal-estar, diante do qual, como ensina Freud, a psicanálise não deve recuar.

 

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Endereço para correspondência
Rua Dr. Penaforte Mendes, 157 / 91 – 01308-010 – Bela Vista – São Paulo/SP
Tel: + 55 11 3539-2793
E-mail: camillegavi@yahoo.com.br

Recebido em: 05/04/07
Versão revisada recebida em: 28/12/07
Aprovado em: 05/08/08

 

 

Camille Apolinário Gavioli

Psicóloga; Mestranda (Faculdade de Educação/USP); Membro da Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida (IPUSP).

 

Notas

1 Todos os nomes citados no texto são fictícios.
2 A instituição – que não terá seu nome mencionado para preservar a identidade da criança – oferece atendimento terapêutico e educacional integrados para crianças e jovens adolescentes com problemas de desenvolvimento. Também oferece atendimento psicológico aos pais. É uma instituição que conduz pesquisas em torno do tema das crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento, e dessa forma constitui-se em núcleo multiplicador na formação de estudantes e profissionais das áreas de saúde mental e educação.
3 A associação não terá seu nome mencionado para preservar a identidade da criança. É uma organização social que atua no atendimento à deficiência intelectual, e a outras deficiências relacionadas, do nascimento ao envelhecimento.
4 Termo utilizado por Jacques Lacan para designar um lugar simbólico – o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, ou ainda Deus –, que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em sua relação com o desejo. Pode ser simplesmente escrito com maiúscula, opondo-se então a um outro com letra minúscula, definido como outro imaginário ou lugar de alteridade especular. Mas pode também receber a grafia grande Outro ou grande A (Autre), opondo-se então quer ao pequeno outro, quer ao pequeno a (autre), definido como objeto (pequeno) a (Roudinesco, 1998, p. 558).
5 Quando essa função se instala, a criança renuncia às satisfações imediatas que antes advinham da relação com o próprio corpo e com o corpo da mãe ou de seu cuidador. Para que a função paterna opere, é preciso que a mãe situe a lei como uma referência a um terceiro em seu laço com a criança, não fazendo desta criança um objeto que se presta unicamente a sua satisfação. É graças à ação da função paterna que uma criança poderá distanciar-se do outro materno e utilizar então a linguagem em sua função simbólica. Ao mesmo tempo, isso a empurra na direção de procurar novas formas de satisfação (Kupfer, 2003, p. 14).
6 Termo introduzido por Ferdinand de Saussure, retomado por Jacques Lacan como um conceito central em seu sistema de pensamento, o significante transformou-se no elemento significativo do discurso (consciente e inconsciente) que determina os atos, as palavras e o destino do sujeito, à sua revelia e à maneira de uma nomeação simbólica.
7 A associação – que não terá seu nome mencionado para preservar a identidade da criança – reúne profissionais e voluntários na promoção de atividades físicas, passeios, palestras e cursos, entre outros, visando à integração e à qualidade de vida dos associados.